110produção social da existência sob a forma capitalista, qual seja a produção controladapor capitalistas isolados, individuais que produzem de forma autônoma sem precisarresponder às necessidades sociais e guiando-se exclusivamente pelo mercado.Capitalistas que contratam indivíduos livres, proprietários de sua força de trabalho, e“iguais” perante a lei, que se deparam individualmente com o proprietário dos meiosde produção no mercado. É por isso que o indivíduo se constituirá como núcleo socialsob o capitalismo, indivíduo cujo agrupamento não forma, segundo Sartre (2002), umacomunidade, mas uma serialidade, ou seja, uma reunião de vários indivíduos em ummesmo espaço social, quando condicionado por relações capitalistas, não é capaz deconformar um grupo com laços comunitários, solidários. São essas condições sociaisque propiciarão à moderna ciência isolar e fragmentar o corpo individual com base emsua constituição anatomofisiológica.Portanto, a organização do processo de trabalho assistencial em saúde sob ométodo da clínica é expressão no plano tecnológico de um rearranjo do objeto daspráticas em saúde no plano infraestrutural. A partir do momento em que o objeto daspráticas em saúde aparenta deixar de ser um certo “modo de estar e ser” no mundo, ouseja, deixa de ser a “vida” para se restringir à manutenção do corpo orgânico, oprocesso de trabalho também precisa mudar. Sendo assim, para um objeto restrito aocorpo orgânico é necessário um método capaz de apreender o objeto nessa dimensãorestrita, a anatomofisiológica. Segundo MENDES-GONÇALVES (1994: 66)(...) uma das características mais importantes da concepção do objeto elaborada pela profissãomédica – a clínica – é a individualização do normal e do patológico ao nível do corpo dohomem indivíduo-biológico, que leva à ruptura das conexões sociais desse homem, e mesmo àruptura das conexões desse homem consigo mesmo. Em outros termos, foi elaborada umaconcepção da saúde que está inteiramente contida nos limites físicos, químicos e biológicos docorpo humano, e essa concepção mostrou-se capaz de instrumentalizar tecnicamente (eportanto ‘internamente’) o processo de trabalho, ao mesmo tempo em que o instrumentalizavasocialmente (e portanto ‘externamente’).Esse método ou “modelo tecnológico” de operar o trabalho em saúde é amoderna clínica. Os dois principais agentes da Idade Média – o físico e o cirurgião –darão espaço a um novo agente: o médico. Agente este, que passará a centralizar aspráticas em saúde, agora sob a tutela do Estado, legitimado pelo caráter de
111cientificidade e neutralidade que estas práticas passarão a adquirir sob o métodocientífico/positivista da clínica.O nascimento da medicina moderna, como corpo institucional, pode seridentificado com o momento de consolidação do Estado capitalista e seus aparelhosideológicos (ALTHUSSER, 1985). Através da incumbência de um corpo deintelectuais detentores do saber acerca do corpo, que estão acima de questionamentos,estabelece-se um padrão de normalidade determinado pelas necessidades do novomodo de produção. E com a unificação das práticas médicas anteriores em um corpotécnico-científico, estruturado sob controle do Estado esses padrões de normalidadeadquirem legitimação técnica suficiente para encobrir suas determinações de classe.São por esses aspectos acima comentados, entre outros, que SCHRAIBER(1989: 86) irá dizer que “(...) a medicina participará, e contribuirá, tão de perto naconstituição da ordem social capitalista, preservando-se seus agentes na situação deautoridade e poder, na qualidade de intelectuais dominantes e orgânicos da ordemsocial, a qual já detinha pelo menos parte dos agentes vinculados com a prática sobre ocorpo e a doença, na ordem social anterior.”. Porém, a autoridade e o poder exercidopela medicina a partir de agora, ao contrário da ordem anterior, não terá como alicercea religião. Esta, como principal objeto de legitimação da ordem anterior, será oprincipal adversário da nova classe dominante. Em oposição às “trevas”, as “luzes”;contra a religião, a razão. A ciência, sob direção da racionalidade positivista, passará aser o referencial que poderá propiciar legitimidade a relações, sujeitos e práticas (LUZ,2004a). Os médicos não terão dificuldade em se adaptarem a essa nova condição. Pelocontrário, seu poder e autoridade serão reforçados e ampliados. Se anteriormente amedicina, na figura dos físicos, exercia a prática diagnóstica e terapêutica guiada pelametafísica – sendo, por isso, mediadora entre a divindade e os sujeitos – agora ela éaplicadora da ciência. Ora, nesse momento a ciência médica e o médico se confundem,são indissociáveis. O acúmulo tecnológico é restrito e está integralmente sob domíniodo trabalhador. Vimos que é característica do trabalho artesanal o completo domíniosobre os conhecimentos advindos do processo de trabalho. Nesse modo de operar, oaspecto subjetivo – o trabalho vivo – é dominante sobre o trabalho objetivado – o
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