102que era representado basicamente pela quantidade de força de trabalho disponível,determina a pouca importância dada ao corpo do camponês – o trabalhador típicodesse período. É somente com a transição para o capitalismo, com a crescentenecessidade de força de trabalho disponível, que o capital irá se ocupar de proverações que visem à normalidade do corpo do trabalhador para as novas exigências quese apresentam.Alguns autores (<strong>DO</strong>NNANGELO, 1975; <strong>NO</strong>GUEIRA, 1977; SCHRAIBER,1989) ressaltam, como conseqüência dessa pouca ênfase dada à questão da reproduçãoda força de trabalho por essas relações sociais, que se apresenta como característicaimportante do trabalho em saúde no período feudal a inexistência de um corpo técnicoe um método de trabalho que unificasse as diversas práticas em saúde. Ao contrário, oque se apresenta é uma variedade de práticas, relacionadas ao que hoje chamamos áreade saúde, dispersas na sociedade e sob domínio de diferentes sujeitos. Logo, outrofator que diferenciaria as práticas em saúde do período feudal em relação ao períodocapitalista seria a presença de uma diversificação da organização técnica e socialdessas práticas, diversificação que aparecia refletida na diversidade de seus agentesrealizadores. Importante ressaltar que a existência de diversos sujeitos realizadores daspráticas em saúde não deve ser tomada da maneira como compreendemos o trabalhocoletivo em saúde nos dias atuais. Não havia um objeto comum que unificasse asdiferentes práticas e sujeitos em seu operar, como vemos atualmente. Pode-se dividiresses diferentes sujeitos em dois grupos tendo como referencial o conteúdodiferenciado de suas qualificações: um grupo era composto pelos sujeitos de origemerudito-religiosa e outro pelos “práticos” ou “leigos”; entre os primeiros destacam-seos físicos – os médicos clínicos da época – que passavam por formação em mosteiros(a partir do século X, nas universidades) e atendiam principalmente os sujeitos dasclasses dominantes, sendo remunerados diretamente pelo seu trabalho. No caso dos“práticos” os principais agentes eram os cirurgiões, cirurgiões-dentistas, barbeiros,boticários e parteiras. Ao contrário dos físicos, esses agentes eram oriundos das classespobres (campesinato, artesãos) e geralmente prestavam atendimento às mesmas.Alguns desses agentes, como os cirurgiões, possuíam uma formação advinda das
103corporações de ofício, exerciam seu trabalho de maneira artesanal e independente eeram remunerados diretamente pelos consumidores de suas práticas. Outros, como nocaso das parteiras, exerciam um trabalho de cunho mais filantrópico-comunitário e aformação se dava diretamente pela transmissão oral entre as diferentes gerações.Dentre esses vários sujeitos dispersos realizadores das práticas que mais tarde seriamreunidas no campo do trabalho em saúde, destacam-se dois agentes principais: aquelede caráter mais erudito, filosófico-ideológico, que agia através de uma prática maisdiscursiva – os chamados físicos; e aqueles de caráter mais artesanal, com práticasmanuais, dentre os quais se destacam os cirurgiões. Os primeiros correspondiam aoque mais tarde viria se configurar nos médicos-clínicos enquanto os segundoscorrespondem, sob o capitalismo, aos futuros médicos-cirurgiões. Vejamos umaelucidativa descrição desses dois agentes:Por sua ação mecânica sobre o corpo humano, a cirurgia logo foi identificada a um tipo detrabalho físico. A medicina interna, por outro lado, revestiu-se de um caráter operacionalmenos nítido, sobretudo graças ao aparecimento do boticário, que tomou a si a tarefa demanipular as ervas e preparar as poções medicamentosas. A noção de trabalho chegou a serapartada do exercício da medicina interna e suas qualidades de saber, filosófico ou prático,foram mais reconhecidas e acentuadas. Desse modo condições peculiares à sociedademedieval puderam fazer de seus praticantes figuras que se defrontavam antagonicamente: ohumilde artesão face ao douto prestigioso, o homem da técnica face ao filósofo. (<strong>NO</strong>GUEIRA,1977: 25)Assim, se por um lado, os cirurgiões se incumbiam de um trabalhoessencialmente manual, prático, com fortes repercussões corporais, - cuidavam deferimentos externos, conseqüências de acidentes, guerras - por outro os físicosolhavam e agiam sobre o processo de adoecimento guiados por uma concepçãoessencialmente filosófica e metafísica acerca da saúde e da doença, tendo comoprincipal instrumento da prática o discurso. A formação dos últimos acontecia nasuniversidades, era de caráter erudito e apoiava-se no acesso às diversas áreas doconhecimento, enquanto que o cirurgião se formava através do trabalho nascorporações de ofício. Na hierarquia social o físico apresentava-se em uma posiçãosuperior à do cirurgião, pois “assim como o clérigo, com quem frequentemente estavaassociado, ele (o físico) era um intelectual orgânico da classe dominante. A primazia
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