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Prosa - Academia Brasileira de Letras

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Disco <strong>de</strong> Faístos, CretaMuseu do Louvre, ParisDatado do século XVII a.C.São 45 signos representando figuras <strong>de</strong> animais e objetos da vida cotidiana.Supõe-se que a leitura comece da borda para o centro.


Miguel RealeEm um segundo momento, porém, houve homens que se <strong>de</strong>ramconta <strong>de</strong> seu po<strong>de</strong>r próprio, irredutível ao <strong>de</strong>terminismo naturalista.Lembro-me, mais uma vez, <strong>de</strong> Cícero, que, fiel ao voluntarismo <strong>de</strong> suagente, contrapunha-se ao naturalismo dos estóicos, afirmando: “est aliqui<strong>de</strong>tsi in nostra potestate”, algo existe, todavia, em nosso po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> querer.Dando gran<strong>de</strong> salto na história das idéias, diria que coube a Kantrevelar com segurança o valor do eu perante a realida<strong>de</strong> natural, mostrando,com sua “revolução copernicana” (uma virada <strong>de</strong> 180º noplano do conhecimento), que, para conhecer, não há a<strong>de</strong>quatio rei acintellectus, ou seja, não nos a<strong>de</strong>quamos aos objetos, mas são estes quesão constituídos como tais em virtu<strong>de</strong> do po<strong>de</strong>r legislador ou nomotéticoda mente. Haveria, assim, condições subjetivas or<strong>de</strong>nadorasou legisladoras da realida<strong>de</strong>, as chamadas “condições transcen<strong>de</strong>ntais”.Creio que essa mudança radical na esfera do conhecimentopermitiu ir além <strong>de</strong> Kant através <strong>de</strong> Kant, digamos assim,para compreen<strong>de</strong>r-se melhor como o ‘natural’ se converte em ‘cultural’,ao envolver tanto quem pensa como aquilo que é pensado e setorna elemento e fator <strong>de</strong> nosso agir.Pois bem, em um terceiro momento, houve exagero na consi<strong>de</strong>raçãoda natureza como o ‘pólo negativo’ do conhecimento, até o ponto<strong>de</strong> Hegel, continuador <strong>de</strong> Kant, dizer que o espírito está ‘alienado’enquanto não se liberta da natureza, superando suas leis causais.Tobias Barreto, pensador sergipano que lecionou na Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong>Direito do Recife, entendia que é a cultura que supera o que há <strong>de</strong>selvagem no homem, sendo “a antítese da natureza, no tanto quantoela importa uma mudança no natural, no intuito <strong>de</strong> fazê-lo belo ebom”. Como no Nor<strong>de</strong>ste, conforme dito <strong>de</strong> José Américo <strong>de</strong>Almeida, “a natureza é menos mãe do que madrasta”, compreen<strong>de</strong>-sea visão negativa que Tobias tinha da natureza.Já agora, abstração feita <strong>de</strong> certos ‘culturalistas’ extremados, prevaleceo entendimento <strong>de</strong> que a natureza está na base da cultura, constituindoambas um binômio incindível, o que não nos impe<strong>de</strong> <strong>de</strong> reconhecero primado do espírito e a sua irredutibilida<strong>de</strong> ao físico ou ao biológico.58


Diretrizes do culturalismoO ‘culturalismo’, tal como vem sendo estudado no Brasil <strong>de</strong>s<strong>de</strong> adécada <strong>de</strong> 1940, e se acha em pleno <strong>de</strong>senvolvimento, compartilha<strong>de</strong>sse conceito mo<strong>de</strong>rado <strong>de</strong> cultura. Seja-nos permitido pon<strong>de</strong>rarque nessa matéria há uma contribuição minha, não recebida da filosofiaalienígena: é a idéia <strong>de</strong> que a cultura não é um ente intercaladoentre a natureza e o espírito, entre os fatos e os valores i<strong>de</strong>ais, conformetese <strong>de</strong> origem neo-kantiana, mas representa o correlato danatureza, sendo um ente autônomo, que abrange “tudo o que é enquanto<strong>de</strong>ve ser”, isto é, tudo o que o homem pensa e realiza ao longo da história,visando alcançar seus fins específicos. Não será <strong>de</strong>mais acrescentarque esse reconhecimento da cultura como objeto autônomosó adquire plenitu<strong>de</strong> se é atribuída a autonomia ao valor, visto pormim como expressão do <strong>de</strong>ver ser (Sollen) e não do ser (Sein). Não é eleum ‘objeto i<strong>de</strong>al’, como os lógicos ou matemáticos, tal como erroneamentesustentavam Max Scheler e Nicolai Hartmann, mas sim algoque se põe como fim que <strong>de</strong>ve ser realizado.Gran<strong>de</strong> passo <strong>de</strong>u o conhecimento humano, a cavaleiro dos séculosXIX e XX, quando se passou da teoria <strong>de</strong>ontológica do bem (objetofinal da conduta ética) para a teoria dos valores, condições transcen<strong>de</strong>ntais<strong>de</strong> todas as objetivações intencionais do espírito, abrangendotudo o que o ser humano po<strong>de</strong> criar, do plano filosófico aoreligioso, do ético ao político, do científico ao estético, e assim pordiante, o que quer dizer, aquilo que hoje <strong>de</strong>nominamos cultura.Daí minha afirmação <strong>de</strong> que o ser do homem é o seu <strong>de</strong>ver, uma vezque ele, a um só tempo, é e vale, como pessoa, que é o valor-fonte <strong>de</strong> todosos valores, e, por conseguinte, a raiz primordial da cultura.Esclarecidos esses pontos car<strong>de</strong>ais, po<strong>de</strong>-se concluir que o culturalismo– que veio assumir no Brasil configuração e sentido próprios – éuma doutrina que põe o conceito <strong>de</strong> cultura no centro <strong>de</strong> suas indagaçõessobre o ser humano e suas realizações, consi<strong>de</strong>rando-a um temaessencial da filosofia, e não apenas da antropologia, como ciência positivadas formas <strong>de</strong> vida e civilização da espécie humana <strong>de</strong>s<strong>de</strong> as suasorigens.59


Miguel RealeÉ claro que o culturalismo assume modalida<strong>de</strong>s diversas, <strong>de</strong> maneiraque vou me limitar a expor meu ponto <strong>de</strong> vista, apresentado emvárias obras, duas das quais básicas, Experiência e cultura e Verda<strong>de</strong> e conjetura,completadas por um trabalho recente, intitulado Cinco temas doculturalismo.Assim sendo, torno a insistir que, quando emprego a palavra cultura,não me refiro a seu sentido mais corrente, como o conjunto <strong>de</strong> conhecimentosque nos habilita a fruir <strong>de</strong> um número cada vez maior <strong>de</strong> valoresmateriais e espirituais, mas sim à cultura como tudo aquilo que a humanida<strong>de</strong>vem constituindo através da história, no plano da religião, dasciências, das artes, das técnicas, etc., bem como do que ela realizou econtinua realizando no mundo da vida comum (Lebenswelt). Não é <strong>de</strong>maisacrescentar que a evolução cultural se <strong>de</strong>sdobra em longos períodoshistóricos que <strong>de</strong>nominamos civilizações, ao longo das quais se configuramdurações que Fernand Brau<strong>de</strong>l dá o expressivo nome <strong>de</strong> conjunturas.Não será exagero afirmar que, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> quando o homem adquiriumaior consciência <strong>de</strong> si mesmo e <strong>de</strong> sua posição no mundo, começoua duvidar da verda<strong>de</strong> daquilo que pensava; ou do acerto <strong>de</strong> seu modo<strong>de</strong> agir, dando, assim, nascimento, ainda que <strong>de</strong> forma imprecisa eelementar, ao que, bem mais tar<strong>de</strong>, viria a constituir, respectivamente,o domínio da ‘teoria do conhecimento’ e da ‘ética’.Passaram-se milênios antes que se elaborassem esses dois campos<strong>de</strong> investigação. Se a ética, como teoria da conduta em razão do bem,se organizou mais cedo, atingindo um <strong>de</strong> seus pontos mais altos nopensamento <strong>de</strong> Aristóteles, a indagação sobre os limites do conhecimentohumano, como uma problemática autônoma, somente surgiuna Época Mo<strong>de</strong>rna e, mais claramente, através <strong>de</strong> um processo cognoscitivoque vai <strong>de</strong> Descartes a Kant.Pois bem, é com Kant, nas últimas décadas do século XVIII, quea teoria do conhecimento adquire contornos mais precisos, enten<strong>de</strong>ndoele que somente po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rado certo o que é verificávelpela experiência, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo <strong>de</strong> certas condições subjetivas, ou seja,60


Diretrizes do culturalismo<strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong>s próprias do sujeito cognoscente como tal e que, por seremcondicionantes do saber, ele as <strong>de</strong>clarava transcen<strong>de</strong>ntais ou a priori,isto é, anteriores ao conhecimento mesmo. Noto que não há comoconfundir transcen<strong>de</strong>ntal com transcen<strong>de</strong>nte, visto ultrapassar este as relaçõesentre o sujeito cognoscente e a experiência, sendo, por isso, aseu ver, incognoscível (o absoluto).Em última análise, a partir <strong>de</strong>sses pressupostos, segundo Kant, seriamcientificamente cognoscíveis somente os fenômenos da natureza,havendo uma vinculação incindível entre teoria da natureza e teoriado conhecimento, só po<strong>de</strong>ndo a ética resultar <strong>de</strong> imperativos que emanamimediata e diretamente da consciência como imperativos categóricos.Por outro lado, a história, ou por melhor dizer, os fatos históricossó po<strong>de</strong>riam ser objeto <strong>de</strong> conjeturas, colocação esta que eu iria<strong>de</strong>pois reviver, mas com outra significação, no meu livro Verda<strong>de</strong> econjetura, no qual também analiso o problema da metafísica para alémdo mundo fenomenal.Po<strong>de</strong>-se dizer que gran<strong>de</strong> parte da filosofia, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> Kant, sepropôs a superar o impasse por ele criado entre natureza e cultura,ou natureza e história, com a exclusão da ética do plano do experienciável,o que era grave, por ficar a liberda<strong>de</strong> humana insuscetível <strong>de</strong> terseu valor <strong>de</strong>monstrado ao longo do processo histórico. Daí o gigantescoesforço <strong>de</strong> Hegel no sentido <strong>de</strong> tudo englobar em sua concepçãomonista e dialética da história, na qual “o que é real é racional e oque é racional é real”.No meu enten<strong>de</strong>r, superado o monismo hegeliano, por sinal queconvertido por Marx em materialismo histórico, era preciso voltaràs origens da teoria do conhecimento, para revisá-la. Foi o que fezHusserl, que, embora reconhecendo a existência <strong>de</strong> condições subjetivasno ato cognoscitivo, <strong>de</strong>clara necessário indagar também <strong>de</strong> suas condiçõesobjetivas, ou seja, das pertinentes às coisas mesmas, para as quais sedirige a consciência intencional, a qual não as po<strong>de</strong>ria captar se nelasnão houvesse algo que as torna apreensíveis e que constituem o que61


Miguel Realeele <strong>de</strong>nominou a priori material, dando, <strong>de</strong>sse modo, valor tanto ao sujeitoque conhece quanto ao objeto conhecido. Dado esse passo, foipossível a Max Scheler e Nicolai Hartmann reintroduzir a ética nomundo do conhecimento e da cultura, ao mesmo tempo que os renovadosestudos sobre o valor (axiologia), a partir das últimas décadasdo século XIX, permitiram que ele fosse o elemento mediadorentre natureza e cultura, ou, como prefiro dizer, entre o que é e o que<strong>de</strong>ve ser, iluminando o sentido a ser dado ao objeto cultural, que “é enquanto<strong>de</strong>ve ser”. Nem se po<strong>de</strong> esquecer que se <strong>de</strong>ve a Bergson a façanha<strong>de</strong> <strong>de</strong>svincular a liberda<strong>de</strong> dos nexos causais da natureza, sem oque não teria sido possível reconhecer-se a autonomia da cultura.Lembrado, nesse breve escorço histórico, como veio se <strong>de</strong>lineandoo culturalismo – que, no Brasil, teve como precursor Tobias Barretoao correlacionar Kant com o antropólogo Hermann PosteojuristaJhering – cabe-me observar que, segundo minhas últimas meditações,há um terceiro a priori a consi<strong>de</strong>rar, o relativo às condiçõesexistenciais da correlação sujeito/objeto no plano do conhecimento:é o a priori cultural, transcen<strong>de</strong>ntalmente inerente ao ato <strong>de</strong> conhecer.Em verda<strong>de</strong>, a cultura não é algo que vem <strong>de</strong>pois – como geralmentese pensa – mas é coeva e concomitante com o surgimentodo ser humano na face da Terra, como o comprovam seus instrumentose <strong>de</strong>senhos encontrados nas cavernas primitivas. Essa projeçãoda cultura à origem do homem altera radicalmente a problemáticado culturalismo, po<strong>de</strong>ndo-se afirmar que a cultura é “a objetivizaçãodas intencionalida<strong>de</strong>s humanas ao longo da história”, a partir danoção <strong>de</strong> que “conhecer é conhecer algo no mundo”.Husserl, com o seu conceito <strong>de</strong> Lebenswelt (mundo da vida) distinto domundo dotado <strong>de</strong> categorias cognoscitivas, tal como, por exemplo, omundo da ciência – abre caminho à admissão <strong>de</strong> um a priori cultural.Éque o Lebenswelt não representa uma fase anterior da evolução histórica,mas constitui uma realida<strong>de</strong> perene, a qual coexiste com o mundo sujeitoa diversas formas <strong>de</strong> categorização resultantes do po<strong>de</strong>r nomoté-62


Diretrizes do culturalismotico do espírito. O tempo do Lebenswelt não é, assim, tempo histórico(como tal categorizado) mas mero tempo cultural correspon<strong>de</strong>nte aomundo intuitivo da vida cotidiana, à expontânea experiência comumou corrente não or<strong>de</strong>nada em objetos do conhecimento. 1Se assim é, pon<strong>de</strong>ro eu, cumpre reconhecer a universalida<strong>de</strong> a priorida cultura, a qual é inerente ao ser humano, que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> as origens nãopo<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ser visto como um ente cultural.Em verda<strong>de</strong>, quando surge a cultura? Quando o ser humano sevale <strong>de</strong> suas proprieda<strong>de</strong>s individuais e introduz algo <strong>de</strong> novo na natureza,passando do grito animalesco – que é sempre o mesmo –para a fala, que nasce, se transforma e se <strong>de</strong>senvolve; ou, então, plasmaos dados da natureza para convertê-los em utensílios, <strong>de</strong>les se servindopara múltiplos fins, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> as armas <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa ao preparo <strong>de</strong>alimentos, não faltando a espontânea disposição à dança e ao recreio,bem como a inclinação a fazer os primitivos <strong>de</strong>senhos e esculturas,que até hoje nos surpreen<strong>de</strong>m, como projeção <strong>de</strong> origináriaforça emocional. Como contestar que essas criações já não implicamo po<strong>de</strong>r a priori <strong>de</strong> instaurar cultura? É com base, pois, nesses dados <strong>de</strong>experiência que afirmo existir um a priori cultural como conditio sine quanon <strong>de</strong> projeção do po<strong>de</strong>r nomotético do espírito.Se, como geralmente se admite, o ser humano é um ente histórico,éporque originariamente é um agente cultural, instaurador dos bens <strong>de</strong>cultura, graças aos a priori subjetivo e material que Kant e Husserl souberam<strong>de</strong>terminar no ato cognoscitivo.O homem, em suma, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sua chegada ao mundo, é um agente cultural,sendo, a um só tempo natureza e cultura, estando a projeção <strong>de</strong>staa priori em sua mente, ou melhor, em sua subjetivida<strong>de</strong> criadora. Istoposto, a extensão que fiz da fenomenologia ao mundo históricocultural,importa no reconhecimento <strong>de</strong> um a priori cultural, sem oqual não surgiria a relação sujeito-objeto, base da ontognoseologia.Este é o ponto comum <strong>de</strong> partida da infinita aventura universaldo espírito.1 Sobre oconceitohusserliano <strong>de</strong>Lebenswelt erespectivabibliografia, cfr.Miguel Reale –Experiência eCultura, 2 a ed.revista,Campinas, 2000,pág. 126 e segs.Quanto àdistinção entretempo cultural etempo histórico, v.,no mesmo livro,Cap. VIII, § IV,pág. 254 e segs.63


O santo D. EugênioArnaldo NiskierCanonização propriamente dita, não houve. Mas é possívelconsi<strong>de</strong>rar o Car<strong>de</strong>al D. Eugênio <strong>de</strong> Araújo Sales um santodos tempos mo<strong>de</strong>rnos. Numa crônica <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 1995, publicadano livro Diário da educação (Edições Consultor), tomei essa liberda<strong>de</strong>ao reviver a extraordinária obra <strong>de</strong> pastor do religioso nascidono Rio Gran<strong>de</strong> do Norte, mas carioca por vonta<strong>de</strong> dos que com eletêm o privilégio <strong>de</strong> conviver.De on<strong>de</strong> vem a nossa estima? São múltiplos os fatos que a motivaram.Primeiro foi o convívio mais estreito quando me tornei Secretário<strong>de</strong> Estado <strong>de</strong> Educação e Cultura do Rio <strong>de</strong> Janeiro(1979). Queríamos, numa gran<strong>de</strong> interação, aperfeiçoar aindamais a coor<strong>de</strong>nação <strong>de</strong> educação religiosa, reunindo católicos, ju<strong>de</strong>use protestantes.D. Eugênio, homem <strong>de</strong> convergências, reuniu-me com os dozebispos do Rio <strong>de</strong> Janeiro, para uma utilíssima troca <strong>de</strong> idéias. Oresultado foi o aprimoramento da educação religiosa nas 2.500Professor,educador,conferencista,Arnaldo Niskiertem cerca <strong>de</strong> umacentena <strong>de</strong> livrospublicados, sobreEducaçãobrasileira,Filosofia eHistória daEducação,Tecnologias <strong>de</strong>Ensino, obrasdidáticas e <strong>de</strong>literaturainfanto-juvenil.65


Arnaldo Niskierescolas públicas do Estado, tarefa que parecia impossível, dada aexistência <strong>de</strong> interesses subalternos, mas que superamos, para alegriageral.Fui ao lançamento do livro Viver a fé em um mundo a construir,emquese reuniram crônicas publicadas pelo Car<strong>de</strong>al D. Eugênio nos principaisjornais do Rio <strong>de</strong> Janeiro. Temas predominantes? Ética, violência,AIDS, corrupção, saú<strong>de</strong>, vida, esperança e amor. Era o momentoem que se comemorava o cinqüentenário <strong>de</strong> sacerdócio doCar<strong>de</strong>al-arcebispo, que consagrou a vida a Deus e ao bem das almas,servindo completamente a seus irmãos <strong>de</strong> forma silenciosa e discreta,como reparou o acadêmico Murilo Melo Filho, que lhe <strong>de</strong>votaprofunda admiração.Como sacerdote, estimulou os homens a lutar por uma socieda<strong>de</strong>justa, com fundamento na moral e na exaltação dos valores éticospregados pela religião. Ele reage ao enfraquecimento da atenção aosvalores morais: “É insustentável esta situação, pois temo que hajagraves conseqüências para a vida do nosso país. Queremos uma socieda<strong>de</strong>livre e <strong>de</strong>mocrática, é certo, mas baseada em princípios éticosda convivência social.” É uma <strong>de</strong>claração <strong>de</strong> 1995. A luz da religiãoNa véspera <strong>de</strong> uma segunda visita do Papa João Paulo II ao Rio<strong>de</strong> Janeiro, em 1997, conversando com os membros do ConselhoCultural da Arquidiocese, por ele criada e da qual tenho a honra <strong>de</strong>ser membro, D. Eugênio fez uma <strong>de</strong>claração que anotei em meu ca<strong>de</strong>rno:“A religião ilumina nosso caminhar no mundo, exalta a dignida<strong>de</strong>do indivíduo e oferece um fundamento sólido às dimensõeséticas em nossa ações.”66


O santo D. EugênioÉ por isso mesmo que ela não po<strong>de</strong> se ausentar da escola, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntementeda crença dos jovens estudantes: “Para que <strong>de</strong>forma completa a Educação possa assegurar o futuro da socieda<strong>de</strong>,pois são fundamentais os valores morais ministrados a<strong>de</strong>quadamente.”A conversa, coor<strong>de</strong>nada pelo professor Sérgio Pereira da Silva, foiconcluída com o comentário <strong>de</strong> D. Eugênio, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> solicitar quea Educação fosse incluída entre as priorida<strong>de</strong>s do País: “Ela encerraalgo intrínseco à natureza do homem. Procura dar resposta às interrogaçõesque norteiam nossas ativida<strong>de</strong>s por toda parte.” Daí a necessida<strong>de</strong>do ensino religioso nas escolas. Rádio CatedralOutra ação que me aproximou muito <strong>de</strong> D. Eugênio Sales foi ainauguração da Rádio Catedral. Participei das primeiras reuniõessobre a sua programação, daí nascendo a idéia do vitorioso programa“Vox Populi”, conduzido pelo Conselho Cultural da Arquidiocesedo Rio <strong>de</strong> Janeiro. Participei durante mais <strong>de</strong> dois anos, todas assegundas-feiras, às 18 horas, do atraente programa <strong>de</strong> <strong>de</strong>bates, aolado <strong>de</strong> profissionais <strong>de</strong>dicados e competentes. Tudo obra do Car<strong>de</strong>al,que, com a sua acuida<strong>de</strong>, por vezes nos puxava as orelhas quandopassávamos do ponto. Mas isso muito raramente, pois ele é fã ardorosoda liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> expressão e soube compreen<strong>de</strong>r também ovalor da mídia eletrônica.A Rádio Catedral-FM hoje é uma realida<strong>de</strong>, no espectro dasemissoras do Rio <strong>de</strong> Janeiro, exercendo um papel <strong>de</strong> fundamentalimportância, nos planos <strong>de</strong> comunicação da Igreja.67


Arnaldo NiskierAlguém menos avisado perguntará: “Como D. Eugênio permiteque um não-católico participe disso tudo?” Eu diria que a respostaestá na própria atitu<strong>de</strong> aberta e <strong>de</strong>mocrática <strong>de</strong> D. Eugênio. Nuncaadmitiu que, a qualquer pretexto, fosse feita qualquer discriminação.Ao contrário, partiu <strong>de</strong>le o estímulo para que eu fizesse, há seis anosininterruptos, o programa “Frente a Frente”, na Re<strong>de</strong> Vida <strong>de</strong> Televisão.A minha única frustração é que ele, até hoje, não encontroutempo para me dar uma entrevista, que será longa. Mas cultivo essaesperança. O Papa no SumaréPenso que vale ainda uma reflexão sobre o nosso primeiro encontrocom o Papa João Paulo II, no Centro <strong>de</strong> Estudos do Sumaré, em1981. Eram aproximadamente 100 intelectuais, como pediu a D.Eugênio o Sumo Pontífice, e a sessão on<strong>de</strong> falaria o acadêmicoAlceu Amoroso Lima se iniciou com um passeio do Papa, ao ladodo inesquecível professor Carlos Chagas Filho, para apertar a mão<strong>de</strong> cada presente. D. Eugênio, sorrindo sempre, vinha logo atrás.Quando chegou a minha vez, disse o professor Carlos Chagas:“Eminência, este é o Secretário <strong>de</strong> Educação do Rio <strong>de</strong> Janeiro, professorArnaldo Niskier.” O Papa apertou <strong>de</strong>licadamente a minhamão e disse: “Muito prazer.”Mas D. Marcos Barbosa, <strong>de</strong> saudosa memória, que se encontravaao meu lado, aduziu rapidamente: “Ele é filho <strong>de</strong> poloneses.” OPapa voltou um passo, me olhou <strong>de</strong> alto a baixo, e acrescentou, apertando<strong>de</strong> novo a minha mão: “Muito bem.” Foi, confesso, um momento<strong>de</strong> gran<strong>de</strong> emoção.Chegando em casa, ainda muito feliz, e agra<strong>de</strong>cido a D. EugênioSales pela oportunida<strong>de</strong>, escrevi a crônica que ora transcrevo:68


O santo D. EugênioCom uma serenida<strong>de</strong> invejável e um carisma evi<strong>de</strong>nte, oPapa João Paulo II manteve um diálogo <strong>de</strong> 90 minutos com<strong>de</strong>zenas <strong>de</strong> intelectuais brasileiros, no Sumaré. Disse – oque foi uma constante em sua viagem – uma série <strong>de</strong> conceitos<strong>de</strong> gran<strong>de</strong> importância para a nossa reflexão e o <strong>de</strong>stinoda atual geração, que ele preten<strong>de</strong> seja beneficiada pela institucionalizaçãoda “civilização do amor.”Tive o privilégio <strong>de</strong> participar <strong>de</strong>sse encontro. Olhei <strong>de</strong> pertoos seus olhos azuis e a sua face rosada, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> se irradia intensaluminosida<strong>de</strong>. É uma das maiores figuras da humanida<strong>de</strong>.Suas palavras ainda ecoam em nosso espírito:– Os povos economicamente mais ricos e industrialmentemais <strong>de</strong>senvolvidos geraram o consumismo, que está na origem<strong>de</strong> <strong>de</strong>sequilíbrios cada vez mais acentuados entre os povosricos e os pobres, assim como entre as populações <strong>de</strong> um mesmopaís.O Papa ressaltou, sentado ao lado do Car<strong>de</strong>al D. EugênioSales, a contribuição da Igreja que, através das missões, tentoupreservar os elementos básicos da cultura indígena. Afirmou:“A mensagem da Igreja não esteve alheia ao equilíbrio e à harmoniacom que se processou a integração das diversas raçasque constituíram o País.” (Nesse momento, eu me lembreimuito do trabalho <strong>de</strong> José <strong>de</strong> Anchieta.)Sua Santida<strong>de</strong>, com muita singeleza, mostrou que a verda<strong>de</strong>iracultura é humanização, enquanto a não-cultura e as falsasculturas são <strong>de</strong>sumanizantes. Por isso mesmo, na escolha dacultura o homem empenha o seu <strong>de</strong>stino. Assinalo o trechotalvez mais enfático da leitura do Papa, num bonito e bem ditoportuguês:69


Arnaldo Niskier– A humanização, ou seja, o <strong>de</strong>senvolvimento do homem,efetua-se em todos os campos da realida<strong>de</strong> na qual eleestá situado e se situa na sua espiritualida<strong>de</strong> e corporalida<strong>de</strong>,no universo, na socieda<strong>de</strong> humana e divina. Trata-se <strong>de</strong>um <strong>de</strong>senvolvimento harmônico... A cultura <strong>de</strong>ve cultivar ohomem e cada homem na extensão <strong>de</strong> um humanismo integrale pleno, no qual todo o homem e todos os homens sãopromovidos na plenitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua dimensão humana. A culturatem o fim essencial <strong>de</strong> promover o ser humano e <strong>de</strong>proporcionar-lhe os bens necessários ao <strong>de</strong>senvolvimento<strong>de</strong> seu ser individual e social.O Papa João Paulo II lembrou ainda que todas as formas<strong>de</strong> promoção cultural radicam-se na cultura animi, segundoexpressão <strong>de</strong> Cícero – a cultura do pensar e do amar, pelaqual o homem se eleva à sua suprema dignida<strong>de</strong>, que éadopensamento, e se exterioriza na sua mais sublime doação,queéadoamor.Todas as colocações <strong>de</strong> Sua Santida<strong>de</strong>, lastreadas em suasólida formação filosófica, mereceriam uma boa reflexão.Imaginem os <strong>de</strong>sdobramentos da frase: “O homem cultotem o <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> propor a sua cultura, mas não a po<strong>de</strong> impor.”É claro que a imposição contradiz a própria idéia <strong>de</strong> cultura,que só po<strong>de</strong> florescer em regime <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>: “Não seconstrói uma socieda<strong>de</strong> humana <strong>de</strong>srespeitando a liberda<strong>de</strong>humana.”Se o homem é a medida <strong>de</strong> todas as coisas, como afirmouAristóteles, ninguém há <strong>de</strong> ter <strong>de</strong>fendido com tanta proprieda<strong>de</strong>o seu futuro, nos últimos anos, como fez o Papa JoãoPaulo II, na inesquecível passagem pelo Rio <strong>de</strong> Janeiro. Asua gran<strong>de</strong> presença e as palavras proferidas jamais serão esquecidas.70


O santo D. EugênioD. Eugênio Sales e o Papa João Paulo II sempre <strong>de</strong>monstraramuma sólida afinida<strong>de</strong>. Não somente para saudar o passado, maspara pensar gran<strong>de</strong> o que po<strong>de</strong>mos esperar do nosso futuro, coma prevalência dos valores éticos <strong>de</strong> que são insubstituíveis paradigmas.71


Eça <strong>de</strong> Queirós eEduardo PradoJoão <strong>de</strong> ScantimburgoFenômeno psicológico, a simpatia mereceu <strong>de</strong> Max Schelerprofundo e <strong>de</strong>nso estudo na filosofia <strong>de</strong>ste século. Segundoo filósofo, a simpatia é o próprio fundamento do sentimento social,e consiste em participarmos do outro, enquanto outro. Acentua o filósofoque “todo o participar implica a intenção <strong>de</strong> sentir dor ou alegriapela vivência do próximo”. 1 Opera-se a i<strong>de</strong>ntificação entre doissujeitos através <strong>de</strong>sse profundo mistério psíquico, o qual, a rigor, <strong>de</strong>veriaatormentar todos os filósofos. Temos simpatia ou antipatia,não raro gratuitamente, sem encontrarmos explicação para o estadoda alma em que nos encontramos. O cristão, por exemplo, <strong>de</strong>ve sersimpático e <strong>de</strong>spertar simpatia, mas nem sempre o consegue, poistodos carregamos conosco, durante a vida inteira, essa incógnita psíquicaque se <strong>de</strong>nomina simpatia, ou seu antônimo, a antipatia. MasScheler foi ao âmago da questão, e outros filósofos também a estudaram.Já o velho Aristóteles meditou sobre a simpatia. Atribui-lheo sentido <strong>de</strong> estado afetivo consciente, e qualifica-a como virtu<strong>de</strong>,João <strong>de</strong>Scantimburgoé jornalista,ensaísta,historiador,autor <strong>de</strong> Tratadogeral do Brasil,Introdução àfilosofia <strong>de</strong> MauriceBlon<strong>de</strong>l, Ospaulistas, Memóriasda Pensão Humaitá(lembrançasda casa dohistoriador Yan<strong>de</strong> AlmeidaPrado), Eça <strong>de</strong>Queiroz e atradição.73


João <strong>de</strong> Scantimburgo1 Max Scheler,Esencia y forma <strong>de</strong>la simpatia,Buenos Aires,EditorialLosada, 1943,passim2 Et. Nic., VIII, I.3 Émile Brehier,Historia <strong>de</strong> laFilosofia. BuenosAires, EditorialSudamericana,1942, passim.4 HenriBergson,Évolutioncréatrice. Paris,PUF, 1969,p. 179.ou sempre acompanhada <strong>de</strong> virtu<strong>de</strong>, vendo nela, ainda, uma das necessida<strong>de</strong>sa vida. 2 Adam Smith, conhecido pelo seu tratado A riquezadas nações, foi um moralista. A sua Teoria dos sentimentos morais trata dasimpatia. Para Smith a simpatia concorda com o sentimento que asnações <strong>de</strong>ixam transparecer. Ainda segundo o autor, a simpatia não éuma espécie <strong>de</strong> intuição que leva o ser humano a se introduzir naconsciência do outro. 3 Para Bergson, a intuição conduz a inteligênciaa reconhecer que a vida não entra nem na categoria do múltiplo nemdo uno, que nem pela causalida<strong>de</strong> mecânica nem pela comunicaçãosimpática se estabelece relação entre seres vivos. Pela dilatação queobterá <strong>de</strong> nossa consciência, ela nos introduzirá no próprio domínioda vida, a qual é compenetração recíproca e criação in<strong>de</strong>finidamentecontinuada. 4Não nos <strong>de</strong>teremos no fenômeno. Fomos buscar em Max Schelere outros filósofos uma <strong>de</strong>finição. Consignando-a aqui, procuramostomá-la na exatidão <strong>de</strong> seus termos. Pela simpatia realiza-se a fusão<strong>de</strong> dois seres, não no sentido amoroso ou erótico, mas no sentidoético. Não haveria amiza<strong>de</strong>s duradouras, não haveria casamento, nãohaveria fraternida<strong>de</strong> <strong>de</strong> idéias e i<strong>de</strong>ais, não haveria comunhão <strong>de</strong> sentimentosse não palpitasse no fundo <strong>de</strong> cada ser humano esse enigmainsondável a que se dá o nome <strong>de</strong> simpatia. As ciências do espírito<strong>de</strong>vem levar em conta esse fato, para interpretarem as ações do serhumano em toda a complexida<strong>de</strong>, da sua formação profunda à suaexpressão em atitu<strong>de</strong>s <strong>de</strong>finidas. Tomando a simpatia como amor,no sentido elevado da palavra, todos os filósofos <strong>de</strong>la se ocuparam, emais ainda o fizeram os teólogos, sobretudo quando estudaram e interpretaramo versículo primeiro do Evangelho segundo São João.Max Scheler tratou objetivamente do tema no capítulo das relaçõesdo amor com a simpatia. Baste-nos, por isso, o conceito do filósofoe o que disseram outros.74


Eça <strong>de</strong> Queirós e Eduardo PradoNessa linha, vamos encontrar um exemplo <strong>de</strong> simpatia, cimentadapor amiza<strong>de</strong> sólida e duradoura, <strong>de</strong> Eça <strong>de</strong> Queirós por EduardoPrado. Vemos aí a concordância do escritor português com o escritorbrasileiro nas idéias, nos sentimentos nacionais, nos problemasque a ambos preocupavam. Foi afetiva a ligação entre Eça e EduardoPrado, mas, também, sentimental e patriótica. Aduzia Max Schelerque se po<strong>de</strong> ter simpatia somente por seres simpatizantes, 5 pondoênfase no pathos que estabelece esses liames insondáveis, que nos conduzemem socieda<strong>de</strong>, pelo tempo e pelo espaço. Eça e Eduardo viveramesse pathos, por estreitíssima afinida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sentimentos. Nãocompreen<strong>de</strong>mos diferentemente a amiza<strong>de</strong> que vinculou um ao outro,e mereceu <strong>de</strong> Eça o admirável ensaio <strong>de</strong> 1898, incluído nas Notascontemporâneas.Dentro <strong>de</strong>ssas consi<strong>de</strong>rações, e da filosofia que esposamos parafazê-las, não concordamos com Cândido Motta Filho 6 quando escreve:“Eça <strong>de</strong>sconfiava das convicções consagradas. O que dizia estavasempre carregado <strong>de</strong> enfeites e berloques. E, por isso, era capaz<strong>de</strong> reconhecer, em Eduardo, qualida<strong>de</strong>s que ele não tinha e talveznão quisesse ter.” “O retrato <strong>de</strong> Eduardo po<strong>de</strong> ser exato. É um retratoque também po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong> Eça. É, além disso, <strong>de</strong> um Eduardo vistopor um europeu que encontra no americano os encantos da originalida<strong>de</strong>.”“Não há dúvida que nesse retrato há, além dos retoques daadmiração e da amiza<strong>de</strong>, algo preconceituoso e intencional. A figurado escritor brasileiro é traçada muito mais por um querer-bem doque por um querer-ver.” Discordamos. O retrato <strong>de</strong> Eça foi escritocom as tintas da simpatia, no significado filosófico da palavra expostopor Max Scheler. Deixamo-nos, pois, ficar no perfil <strong>de</strong> Eduardopor Eça, nas Notas contemporâneas, admirável retrato que o escritorcompôs com os recursos <strong>de</strong> sua palheta literária incomparável. ReconheceCândido Motta Filho 7 que sobrava em Eça, “com disfarcesou sem eles, um certo apego ao passado monárquico criador e con-5 Max Scheler,loc. cit.6 CândidoMotta Filho, Avida <strong>de</strong> EduardoPrado. Rio <strong>de</strong>Janeiro, JoséOlympioEditora, 1967,p. 38.7 Id., ibid., p. 3775


João <strong>de</strong> Scantimburgoservador da unida<strong>de</strong> lusitana” e que “em Eduardo, nascido em umpaís mais amante do futuro do que do passado, estava um inimigo daRepública e um amigo da Igreja”.I<strong>de</strong>ntificamos um e outro pelo culto à tradição, esse princípio <strong>de</strong>coesão social que em Portugal se entibiava progressivamente, comoferida para qual não há medicamento, e no Brasil, a proclamação daRepública, por um golpe revolucionário, vibrado pela espada domarechal Deodoro, <strong>de</strong>finitivamente, a comprometera. O admirávelsentimento <strong>de</strong> amiza<strong>de</strong> e a simpatia que uniu Eça a Eduardo Pradoconfirmam a tese que nos propusemos <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r, a <strong>de</strong> que o supremoartista <strong>de</strong> A ilustre Casa <strong>de</strong> Ramires patrocinou a tradição, no sentidoque lhe atribuímos, <strong>de</strong> força <strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong>, sem cuja ascendênciaas socieda<strong>de</strong>s perecem. Não sabemos se Eduardo fez correções ouretificações nos originais sobre o seu perfil, que Eça lhe submeteu,mas <strong>de</strong>veria ter substituído o vocábulo “passado” pelo vocábulo“tradição” nesta passagem: “Este culto do Passado não só atua sobreo <strong>de</strong>senvolvimento incansável da sua cultura – mas dirigiu docementeà evolução da sua consciência.” Eduardo observara a <strong>de</strong>vastaçãoque a República causava no Brasil, nos anos subseqüentes à sua proclamação.Saindo a público com Fastos da ditadura militar, Eduardoquis <strong>de</strong>monstrar, com palavras ásperas, o papel que o Exército e aArmada tiveram na mudança do regime, mudança que, à luz do seujulgamento, seria fatal para a evolução das instituições políticas brasileiras.Os primeiros anos da República foram marcados pelo mais feroze alucinado jacobinismo, do qual Floriano Peixoto era a encarnaçãoe o representante no Brasil. Ficou conhecido em nossa Históriao uso do cravo vermelho, símbolo <strong>de</strong>ssa exaltação supostamentepatriótica, mas, no fundo, profundamente, jacobinamenteantipatriótica. Lembrando Proudhon, que “terminou por consi<strong>de</strong>rarseriamente o jacobinismo, não como uma doutrina, mas como76


Eça <strong>de</strong> Queirós e Eduardo Pradouma doença maligna do coração e do cérebro”, Eça acrescentou:“Mas a estes <strong>de</strong>sagradáveis vícios que lhe analisou, com tristeza etédio, o gran<strong>de</strong> Lógico da Revolução, ainda o Jacobismo junta ume outro, abominável para um espírito tradicionalista como o <strong>de</strong>Prado – a violência iconoclasta. O Jacobinismo possui, por únicoprincípio, um quid pro quo – a substituição da Soberania do Rei pelaSoberania do Povo. Vive <strong>de</strong> uma impru<strong>de</strong>nte escamotagem <strong>de</strong> coroas,do salto <strong>de</strong> uma ficção para outra ficção, <strong>de</strong> uma mudança <strong>de</strong>Absolutismo – e <strong>de</strong>sastrosa, porque sempre o Absolutismo impessoalda Multidão será mais ru<strong>de</strong>, fantasista e cruel do que o autoritarismo<strong>de</strong> um Homem, peado pelas consi<strong>de</strong>rações <strong>de</strong> Dinastia eda Socieda<strong>de</strong>, e acessível às influências do terror, quando o não sejaàs da justiça. O Jacobino portanto também se reclama <strong>de</strong> um DireitoDivino – que ele <strong>de</strong>nomina Direito Popular; é o concorrentenato da realeza; e, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que governa, proce<strong>de</strong> logo, mais por instintodo que por sistema, a <strong>de</strong>struir toda a obra secular da Monarquia.Para ele não há tradição nacional – pois que a Nação só legitimamentedata do dia em que ele se coroou e reinou! O seu <strong>de</strong>sejoe interesse seriam anular toda a História.”Eduardo Prado foi um dos poucos brasileiros <strong>de</strong> prestígio quenão se dobraram à revolução, cuja fúria abateu um trono com raízesem séculos <strong>de</strong> História. Enfrentou a ditadura, com as armas nasquais era <strong>de</strong>stro, a inteligência e a pena. Foi perseguido e teve <strong>de</strong> fugir.Rebento <strong>de</strong> uma das mais ilustres famílias do Brasil, indignou-secom o mal que praticavam em sua pátria, e reagiu, veemente,inflamando-se até o <strong>de</strong>sespero. Esse excerto do perfil <strong>de</strong> EduardoPrado por Eça <strong>de</strong> Queirós resume em poucas palavras o que foia revolução jacobina <strong>de</strong> 1889, substituindo a monarquia pela república,isto é, a soberania dinástica, limada pelos séculos, responsável,familiarmente, pela continuida<strong>de</strong> da chefia do Estado e sua imparcialida<strong>de</strong>em face <strong>de</strong>sse <strong>de</strong>us dos tempos mo<strong>de</strong>rnos, a opinião77


João <strong>de</strong> Scantimburgo8 Society cultureand personality.Nova York,Harper, 1944,p. 244-245.9 Pio XII,Discorsi eradiomessaggi diSua Santitá.Roma,TipografiaPoliglottaVaticana,Mensagem <strong>de</strong>Natal <strong>de</strong> 1944.pública, pela soberania da massa, que vem a ser na realida<strong>de</strong> a soberaniado anonimato, da <strong>de</strong>magogia, da mentira, da impostura e dacorrupção institucionalizada, <strong>de</strong> resto uma das poucas instituiçõesconsolidadas na República. Nas <strong>de</strong>mocracias populares e nas <strong>de</strong>mocraciasliberais o que observamos é ser essa falaz soberania monopolizada,não raro pelos enganadores, pelos mentirosos, pelosespertos. Eça <strong>de</strong> Queirós viu longe, viu que Eduardo Prado, tãocaro aos seus sentimentos, estava certo em se revoltar contra o abusodos republicanos e o tobogã pelo qual atiraram uma nação, cujoregime se institucionalizava, através do exercício do po<strong>de</strong>r mo<strong>de</strong>radore <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>lar organização política.Se Pitirim Sorokin 8 tivesse adotado o exemplo brasileiro parailustrar a sua tese sobre o povo, não teria sido mais feliz. A palavrapovo aumenta a confusão das Ciências Sociais. É mesmo, na opinião<strong>de</strong>sse autor, um procedimento incientífico. Numa <strong>de</strong> suasmais citadas mensagens <strong>de</strong> Natal, a <strong>de</strong> 1944, Pio XII estabeleceu adistinção entre o povo e a massa. 9 Deve-se, por isso, enten<strong>de</strong>r comexatidão o que é povo e o que é massa, o que é povo nos regimes“viltamente <strong>de</strong>mocráticos” e povo nos regimes sustentados pela<strong>de</strong>magogia, ou pelas armas e a política secreta. O mundo está profundamentecorrompido, e, com ele, as palavras. Já não se sabe exatamenteo que significa <strong>de</strong>mocracia, nem liberda<strong>de</strong>, nem povo,nem pessoa humana. Na Vulgata, tradução do padre Antônio Pereira<strong>de</strong> Figueiredo, os filhos <strong>de</strong> Israel são o povo <strong>de</strong> Deus: “Por issodizei aos filhos <strong>de</strong> Israel: eu sou o Senhor, que vos hei <strong>de</strong> tirar daprisão dos egípcios, que vos hei <strong>de</strong> livrar da servidão, e que vos hei<strong>de</strong> resgatar com um po<strong>de</strong>roso braço, e por meio <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s juízos.Eu vos tomarei por meu povo, e serei vosso Deus; e sabereis que eusou o Senhor vosso Deus, <strong>de</strong>pois que eu vos tiver tirado da prisãodos egípcios” (Ex. 6, 6-7). Dezenas <strong>de</strong> vezes a palavra ‘povo’ é citadano Livro Sagrado, mas sempre no sentido <strong>de</strong> uma reunião <strong>de</strong>78


Eça <strong>de</strong> Queirós e Eduardo Pradopessoas. Foi neste século que o povo <strong>de</strong>generou em massa. Esse é osentido que lhe atribuiu Ortega y Gasset. 10Com sua admirável inteligência, aberta aos fenômenos <strong>de</strong> seutempo, Eduardo Prado afuroou os dias vindouros, ao observar a suapátria retaliada pelas facções, governada, arbitrariamente, pelosusurpadores do po<strong>de</strong>r, e intoxicada pelo jacobismo. Foi contra esseconjunto <strong>de</strong> males que se ergueu, tomado <strong>de</strong> ira santa, e vergastou oregime. Intuitivamente, previa Eduardo, o seu povo se transformariaem massa, para os políticos sem raízes na tradição, sem compromissoscom a História, sem o pundonor, que <strong>de</strong>ve revestir todas as suasfacetas, e o fez com inegável beleza. Prado nunca foi um dândi <strong>de</strong>boulevard, um sibarita, a quem a fortuna havia proporcionado lazerespara as viagens. Era, no exato sentido da palavra, o patriota, que nãohesitou em se indispor com o governo da República, quando viu queesta abalava o antigo edifício das suas mais caras convicções políticase sociais. Eça <strong>de</strong> Queirós também fizera o mesmo na sua pátria. Des<strong>de</strong>os trabalhos da mocida<strong>de</strong>, Uma campanha alegre, até As cida<strong>de</strong>s e as serrasEça mostrou sempre o seu robusto patriotismo, o amor ao torrãonatal, que a tempesta<strong>de</strong> i<strong>de</strong>ológica da Revolução Francesa <strong>de</strong>sfigurara.Usou nos seus primeiros escritos a férula da ironia, em que erafortíssimo, chegando até a repercutir no Brasil, 11 contra os solapamentosjacobinos, herdados das transformações sociais, políticas eeconômicas do século XVIII e primeira meta<strong>de</strong> do século XIX.Cada qual – Eça e Eduardo – em sua esfera, alanceava-se <strong>de</strong> amarguradiante do espetáculo que a mediocrida<strong>de</strong> política exibia nagran<strong>de</strong> cena <strong>de</strong> cada nação. Reagiram como pu<strong>de</strong>ram, como acharammais conveniente para a finalida<strong>de</strong> que se propuseram. Ambospagaram pesadíssimo tributo, durante a vida, pelas atitu<strong>de</strong>s assumidasna área política. Quando Eça escreveu o soberbo perfil <strong>de</strong> EduardoPrado, a República brasileira já tinha nove anos e estava consolidada.Mas Eduardo não ce<strong>de</strong>u em suas convicções. Prosseguiu,10 Ortega yGasset, Larebelión <strong>de</strong> lasmassas. Madri,Espasa-Calpe,1932, pp.1063-1178, inObras completas.11 PauloCavalcanti, Eça<strong>de</strong> Queirósagitador no Brasil.São Paulo,CompanhiaEditorialNacional,1966, passim.79


João <strong>de</strong> Scantimburgo12 EduardoPrado, A ilusãoamericana. SãoPaulo, Ibrasa,1980, passim.combatendo-a, fiel aos seus princípios. Eça, monarquista, partilhavaos dissabores do amigo caríssimo. Cultuando a História, esse estudo“<strong>de</strong>senvolveu nele um dos seus fortes sentimentos inatos – o amordo Passado”. Eduardo amava, efetivamente, o passado, com o seucortejo <strong>de</strong> glórias e <strong>de</strong> reveses, <strong>de</strong> tristezas e alegrias, <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>za emiséria, mas amava-o para ter do presente visão mais segura. “Esteculto do Passado não só atua sobre o <strong>de</strong>senvolvimento incansável dasua cultura – mas dirigiu docemente a evolução da sua consciência”;e acentua poeticamente: “... a Beatriz Teológica que no meio da sua‘estrada’ (...) o tomou pela mão, o iniciou, era criatura toda <strong>de</strong> beleza– e a augusta Poesia do Passado cantava na sua voz persuasiva.”Eduardo foi, por isso, um revoltado contra a nacionalida<strong>de</strong> americanaque, sem ter compromissos com a História, com o passado,com eras pretéritas, concorrera, <strong>de</strong>cisivamente, para aluir o formosoedifício da monarquia bragantina. Panfletário <strong>de</strong> talento, Eduardoinvestiu contra os Estados Unidos, e <strong>de</strong>u a público libelo <strong>de</strong>scarnandoos males do republicanismo norte-americano em A ilusão americana.12 Quando os Pais Fundadores criaram os Estados Unidos, comorepública, dotando-a <strong>de</strong> um presi<strong>de</strong>nte eleito a prazo certo, puseramem movimento uma formidável revolução que, em poucos anos,conquistaria o mundo. Na lista negra <strong>de</strong> Eduardo, os Estados Unidosentravam em primeiro lugar, não por um preconceito racial, <strong>de</strong>que foi argüido maliciosamente por inimigos encapuçados ou ostensivos– pois freqüentou os Estados Unidos antes <strong>de</strong> conhecer a Europa–, mas por ver neles o fator prepon<strong>de</strong>rante das transformações,em cuja esteira seriam arrastadas as monarquias, centros <strong>de</strong> estabilida<strong>de</strong>,<strong>de</strong> permanência, <strong>de</strong> respeito à tradição. Eduardo observavaque o mundo se pusera a mudar <strong>de</strong>pois que os Estados Unidos passarama ostentar uma vitalida<strong>de</strong> sem paralelo no mundo, fruto <strong>de</strong> variadascircunstâncias, já <strong>de</strong>masiado estudadas por seus contemporâneos,que os Estados Unidos haviam aberto, por osmose, essa força80


Eça <strong>de</strong> Queirós e Eduardo Pradosociológica compulsiva, uma brecha irreparável no seu mundo, queera a mundo da or<strong>de</strong>m monárquica.Daí a cólera que extravasa em A ilusão americana. Estava certoEduardo Prado:O furor imitativo dos Estados Unidos tem sido a ruína daAmérica. Péricles, no seu célebre discurso do Cerâmico, disse:“Dei-vos, ó atenienses, uma constituição que não foi copiadada constituição <strong>de</strong> nenhum outro povo. Não vos fiz a injúria<strong>de</strong> fazer, para vosso uso, leis copiadas <strong>de</strong> outras nações.”Há muita gran<strong>de</strong>za na exclamação do gênio grego. Há umapresciência <strong>de</strong> tudo quanto <strong>de</strong>scobriu a ciência social mo<strong>de</strong>rnaque, afinal, se po<strong>de</strong> resumir nisto: as socieda<strong>de</strong>s <strong>de</strong>vemser regidas por leis saídas da sua raça, da sua história,do seu caráter, do seu <strong>de</strong>senvolvimento natural. Os legisladoreslatino-americanos têm uma vaida<strong>de</strong> inteiramente imersa nonobre orgulho do ateniense. Gloriam-se <strong>de</strong> copiar as leis <strong>de</strong>outros países!Todos os países espanhóis na América, <strong>de</strong>clarando a sua in<strong>de</strong>pendência,adotaram as fórmulas norte-americanas, isto é,renegaram as tradições da sua raça e da sua história, sacrificadasao princípio insensato do artificialismo político e do exotismolegislativo.O que colheram <strong>de</strong>sse absurdo, diz a triste história hispanoamericana<strong>de</strong>ste século. O Brasil, mais feliz, instintivamenteobe<strong>de</strong>ceu à gran<strong>de</strong> lei <strong>de</strong> que as nações <strong>de</strong>vem reformar-se <strong>de</strong>ntro<strong>de</strong> si mesmas, como todos os organismos vivos, com a suaprópria substância, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> já estarem lentamente assimiladose incorporados à sua vida os elementos exteriores que elanaturalmente tiver absorvido. No Brasil tivemos a in<strong>de</strong>pendência,fato lógico do <strong>de</strong>senvolvimento da socieda<strong>de</strong> colonial;81


Eça <strong>de</strong> Queirós e Eduardo Pradoção, perversa forma <strong>de</strong> agitação, a estabilida<strong>de</strong> que é própria da instituição.No Brasil, a nação inteira ouviu, no dia 15 <strong>de</strong> março <strong>de</strong>1984, o presi<strong>de</strong>nte da República, João Baptista <strong>de</strong> Oliveira Figueiredo,repetir que, ao assumir o governo, jurou fazer <strong>de</strong>ste país uma <strong>de</strong>mocracia,isto cem anos <strong>de</strong>pois da <strong>de</strong>posição da genuína <strong>de</strong>mocraciacoroada <strong>de</strong> D. Pedro II. Todos os <strong>de</strong>mais países da América estãonas mesmas condições. Quando, pois, Eduardo Prado fez as consi<strong>de</strong>raçõesacima sobre a cópia servil das instituições americanas pelosrepublicanos históricos, estava indigitando o gran<strong>de</strong> mal <strong>de</strong> que vimossofrendo, <strong>de</strong> sua época aos nossos dias. O regime criado pelosPais Fundadores alcançou êxito nos Estados Unidos, para os quaisfoi concebido. Mas não <strong>de</strong>veria ter sido exportado. É a tese <strong>de</strong> HaroldJ. Laski, em seu estudo sobre a <strong>de</strong>mocracia americana. 14Eça admirava em Eduardo sua luci<strong>de</strong>z, a capacida<strong>de</strong> excepcional<strong>de</strong> perscrutar os dias vindouros e <strong>de</strong> fazer, com precisão, o diagnósticosobre o Brasil e o seu futuro. Entraríamos numa fase turbulenta.Sem recorrermos às teses conhecidas sobre o Estado patrimonial, diremosque prevalecia no Brasil o regime do Pai, caro à psicanálise, integradona longa tradição luso-espanhola, católica, hierárquica, moralmenteassentada sobre o princípio da autorida<strong>de</strong>. Eduardo não seconformou, até a morte, prematura, aos 41 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>, com ogolpe revolucionário que, numa agitada manhã <strong>de</strong> novembro, <strong>de</strong>rrubouo trono e o substituiu por uma república, subservientemente copiadados Estados Unidos, inclusive na improprieda<strong>de</strong> da nova <strong>de</strong>nominação.Gozando <strong>de</strong> in<strong>de</strong>pendência econômica, moral e intelectual,passou a <strong>de</strong>sferir contra a situação a que foi jogado o Brasil osraios <strong>de</strong> sua ira. Pagou caro. Teve <strong>de</strong> fugir dos esbirros da ditadura,que suce<strong>de</strong>u ao monarca liberal. Mas não se dobrou. Implacável nacrítica aos abusos do po<strong>de</strong>r, <strong>de</strong>nunciou-os com veemência. Flor dopatriciado paulista, preferiu à comodida<strong>de</strong> do sibaritismo gratuito apolêmica, e vergastou, quanto pô<strong>de</strong>, o novo regime. Esse, o Eduardo14 Harold J.Laki, TheAmerican<strong>de</strong>mocracy.Londres,George Allenand Unween,1953, passim.83


João <strong>de</strong> ScantimburgoPrado que Eça cultivou e por quem se ligou numa amiza<strong>de</strong> sólida e,mesmo, exaltada.Eduardo era um estupendo exemplar da tradição viva e atuante.Não se tratava <strong>de</strong> um <strong>de</strong>sses mitos que se adoram inconscientemente,mas <strong>de</strong> convicção firme <strong>de</strong> quem aceitava, nesse princípio, a viacerta para manter coesa a nação e projetá-la no tempo e no espaço,portanto na História, mas com a sua personalida<strong>de</strong> soberanamenteassegurada. Eça admirou o amigo querido por ter com ele profundaafinida<strong>de</strong> espiritual, profunda simpatia, no sentido atrás referido.Eça vinha sofrendo com a <strong>de</strong>vastação política, que tanto abalavaPortugal, e Eduardo, com o que abalava o Brasil, ambos, portanto,i<strong>de</strong>ntificados na mesma paixão, queimando no fogo do mesmo patriotismo.Só se admira por i<strong>de</strong>ntificação. Não se admiram os contrários.O belo ensaio, <strong>de</strong>dicado por Eça a Antero <strong>de</strong> Quental, inspirou-sena mesma fonte. O gran<strong>de</strong> e angustiado poeta, um dos maioresem qualquer língua, <strong>de</strong>safiou Deus, <strong>de</strong> relógio na mão – atitu<strong>de</strong>pueril e perdoável num <strong>de</strong>sesperado –, mas era um <strong>de</strong>sses estupendosexemplares que a civilização portuguesa gerou, para a a<strong>de</strong>são entusiástica<strong>de</strong> quem o conheceu. Antero foi, a rigor, um místico leigo,ou um místico falhado. Daí não ter encontrado outra resposta para asua ansieda<strong>de</strong> em face dos pecados do mundo, senão se entregando à15 Antero <strong>de</strong>Quental, <strong>Prosa</strong>sescolhidas. Rio <strong>de</strong>Janeiro, Livro<strong>de</strong> Portugal,1942, passim,seleção eprefácio <strong>de</strong>Fi<strong>de</strong>lino <strong>de</strong>Figueiredo.Funérea Beatriz <strong>de</strong> mão gelada,Mas única Beatriz consoladora.Isto é, a morte por suas próprias mãos. Quando Eça confessouque ficou, sempre, aos seus pés, cultuando-o, via no poeta do pessimismoe da aflição um ser humano com longos, extensos vínculosno passado.O autor da conferência sobre as “Causas da Decadência dos PovosPeninsulares”, 15 “atraente mas <strong>de</strong>masiado simplista”, como <strong>de</strong>la84


Eça <strong>de</strong> Queirós e Eduardo Pradodiz Fi<strong>de</strong>lino <strong>de</strong> Figueiredo, não aceitava a mediocrida<strong>de</strong> do séculopolítico em que vivia. Esse aristocrata, rebento <strong>de</strong> ilustre família açoriana,<strong>de</strong> on<strong>de</strong> emergiram para a História <strong>de</strong> Portugal André PonteQuental da Câmara, amigo <strong>de</strong> Boccage “e seu dileto companheiro naboêmia literária do fim do século XVIII”, e Bartolomeu <strong>de</strong> Quental,escritor místico, fundador, em Portugal, da Congregação do Oratório,cuja influência na fé e nos costumes foi das maiores. Eça o admiroupor sentir nele um irmão, embora Antero tivesse abandonado afé <strong>de</strong> seus ancestrais e se convertido, como afirmou, ao socialismo,doutrina que na época, envolvida pelo romantismo do século, confundia-secom humanitarismo. Essas duas admirações, até mesmoexageradas, <strong>de</strong> Eça confirmaram, a nosso ver, a tese que vimos <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>ndo,a do profundo apego do escritor às tradições <strong>de</strong> sua terra.Eduardo e Antero possuíam tudo para atrair admirações. Um era ohomme du mon<strong>de</strong>, civilizado, culto rico, amando as viagens por ser,como acentuou Eça, <strong>de</strong>vorado pela curiosida<strong>de</strong>, não a que faz escutaratrás das portas ou olhar por sobre os muros, mas a que leva a<strong>de</strong>scobrir a América. O outro era o iconoclasta, o atormentado perscrutadordos mistérios do mundo, em quem o meio coimbrão,segundo Fi<strong>de</strong>lino <strong>de</strong> Figueiredo, havia <strong>de</strong>struído a forte crença religiosa,substituindo-a pela dúvida cruel que o torturou durante toda avida. Mas ambos imergindo rizomas profundos no passado – ou noPassado, como gostava <strong>de</strong> escrever Eça –, isto é, na tradição. Tinhamaté mesmo, um e outro, a compulsão à luta pelas idéias que esposaram.Mas foi em Eduardo que Eça encontrou o seu mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> tradiçãomais acentuado. O homem que passava longos meses em viagem,que era um autêntico parigot em Paris e que, voltando ao Brasil, passavatambém longos meses na sua fazenda do Brejão, no interior <strong>de</strong>São Paulo, em contato amoroso com a terra, constituía-se bem num<strong>de</strong>sses exemplares raros <strong>de</strong> nobreza, no puro sentido da palavra.Vendo <strong>de</strong>struídas instituições que se consolidaram, Eduardo revol-85


João <strong>de</strong> Scantimburgo16 AntônioSardinha,Purgatório dasidéias. Lisboa,Livraria Perim,1929, passim.tou-se. Eça o acompanhou <strong>de</strong> longe e, <strong>de</strong>pois, ouviu-lhe a narraçãodos episódios que <strong>de</strong>sfizeram no Brasil uma construção soberba, irreparavelmentecomprometida, como a História fartamente noscomprovou. Consiste a tradição em coser, perpetuamente, o passadoao presente e ao futuro. Regra <strong>de</strong> fé na Igreja Católica ApostólicaRomana, até o Concílio Vaticano II, a tradiçãoéoúnicotônicosuficientementeforte para conter a tendência naturalmente <strong>de</strong>sagregadorado ser humano, tendência acentuada em nossos dias pela revoluçãocomo processo <strong>de</strong> subversão das instituições.Eduardo Prado cumpriu o seu <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> patriota quando a Repúblicafoi proclamada. Manifestou o seu inconformismo. Tinha29 anos. Era rico, bem-nascido. Silva Prado é um dos troncos maisilustres do Brasil. O seu irmão, Antônio, conselheiro do Império,conservador, antigo ministro do gabinete João Alfredo, mais tar<strong>de</strong>a<strong>de</strong>riu à República, e veio a ser fundador do Partido Democrático,que nasceu em 1926 para se opor à oligarquia dominante, o velho ecarcomido – como se dizia na época – Partido Republicano Paulista.Eduardo, porém, não ce<strong>de</strong>u. Intransigente nas suas convicçõesmonárquicas, não aceitou o novo regime. Manteve-se monarquistaaté a morte, em 1901, quando Campos Sales, paulista <strong>de</strong>Campinas, já ocupava a Presidência, e o seu ministro da Fazenda,Joaquim Murtinho, aplicava a doutrina econômica liberal, contrao <strong>de</strong>svario do ‘encilhamento’ dos primeiros anos republicanos.Eduardo cultuava a tradição, era-lhe fi<strong>de</strong>líssimo, mas não tinhanada <strong>de</strong> imobilista. Referindo-se ao prestígio que D. Pedro II gozavanos Estados Unidos, acentuou: “O seu amor à liberda<strong>de</strong>, oseu espírito aberto a todas as novida<strong>de</strong>s do século, a sua ativida<strong>de</strong>,a singeleza da sua pessoa, impressionaram sempre os americanos,que <strong>de</strong> um rei só faziam a idéia <strong>de</strong> um homem ro<strong>de</strong>ado <strong>de</strong> fausto,<strong>de</strong> um <strong>de</strong>fensor do passado contra o espírito inovador.” Esse, oconceito <strong>de</strong> tradição em Eduardo Prado, o <strong>de</strong> permanência na continuida<strong>de</strong>,como a <strong>de</strong>finiu Antônio Sardinha. 1686


Eça <strong>de</strong> Queirós e Eduardo PradoEça, encantado com o amigo brasileiro, fixou-lhe as notas dominantesda personalida<strong>de</strong>, e se pôs em relevo a curiosida<strong>de</strong> intelectual,<strong>de</strong>stacou-lhe também o amor à tradição e, na esfera política, à legitimida<strong>de</strong>do po<strong>de</strong>r, para ele i<strong>de</strong>ntificada exclusivamente com o monarca.Vergastando a ditadura militar dos primeiros anos da República,Eduardo <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>u o primado dos governos legítimos contraos arbitrários, da lei contra a usurpação do po<strong>de</strong>r pelas oligarquiasgalonadas. Esse mal não ficaria restrito aos primeiros anos da República.Vimos que se repetiu, registrando-se intervenções militares naRepública, com uma cadência que já <strong>de</strong>veria ter merecido estudosaprofundados – e fazemos aqui mea culpa – sobre a incompatibilida<strong>de</strong>do regime, ainda hoje, com as origens da nação e sua formaçãoatravés do tempo. Esse, o Eduardo que Eça admirava, o Eduardo datradição, que ia buscar longe, no Mediterrâneo, no catolicismo, naepopéia heróica dos navegadores, na <strong>de</strong>stemida bravura dos ban<strong>de</strong>irantes,nos povoadores, as origens da gente brasileira. Devorado <strong>de</strong>curiosida<strong>de</strong> foi sempre Eduardo Prado, mas também <strong>de</strong>vorado <strong>de</strong>patriotismo, capaz dos maiores sacrifícios por sua e nossa terra.Creio que até mesmo o indigitado anti-semitismo <strong>de</strong> Eduardo tinharelação com esses vínculos telúricos. Católico bem formado, a pessoahumana estava acima <strong>de</strong> falácias <strong>de</strong> sangue ou raça. O que importavapara Eduardo era a fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> à terra, e essa, segundo lendasjá <strong>de</strong>sfeitas, o ju<strong>de</strong>u não a possuía. Mas Eça, também ele, faz referências<strong>de</strong> menosprezo ao ju<strong>de</strong>u. Pagou o tributo <strong>de</strong> sua época.Ninguém que conheça a vida <strong>de</strong> Eduardo Prado o classificariacomo anti-semita, se tivesse ele vivido na década <strong>de</strong> 30, quando a revoluçãonacional-socialista precipitou a Alemanha no <strong>de</strong>svario antisemitae abismou o mundo na terrível Segunda Gran<strong>de</strong> Guerra.Impressionado com a plurocracia americana, preten<strong>de</strong>u ver no judaísmoa fonte <strong>de</strong> exploração capitalista dos Estados Unidos contra ospaíses fracos. Na época, também o catolicismo conservava, ainda,87


João <strong>de</strong> Scantimburgovelhos resíduos, brasa não apagada, do anti-semitismo inquisitorial.Essa posição está <strong>de</strong>finitivamente superada, e Eduardo, homemaberto à compreensão, teria, também ele, se incorporado à correnteque vê a pessoa humana o próximo feito à imagem e semelhança <strong>de</strong>Deus. O que nos importa é o Eduardo menos tradicionalista do quepatrono da tradição, como força <strong>de</strong> conservação social e nacional.Quando expressa o seu amor a Portugal, está cultuando a tradição.“Também o culto do Passado revela, em Eduardo Prado, pelo seucarinho quase filial ao velho torrão Lusitano. Poucos portuguesesamarão Portugal com um amor tão inteligente e crítico, em que nãoentra sentimento atávico, e que todo ele nasce da observação, dacomparação, do estudo atento feito por meio <strong>de</strong> jornadas, <strong>de</strong>poiscompletado por meio <strong>de</strong> leituras, duas fontes do Saber da limpi<strong>de</strong>z<strong>de</strong>sigual, mas ambas agradáveis e recomendadas por Aristóteles.”Eduardo ia buscar em longínquas eras as nossas origens, e as traziaao Brasil, com a força dos crentes. Daí opor-se tenazmente àidéia <strong>de</strong> que <strong>de</strong>veríamos imitar os Estados Unidos do Brasil, comoos Pais Fundadores criaram os Estados Unidos da América. Intuitivamente,Eduardo via nos Estados Unidos um sinal <strong>de</strong> contradição.A sua imensa força política, econômica e social iria <strong>de</strong>sestabilizar asnações americanas, como, <strong>de</strong> fato, historicamente, está comprovadoque seu exemplo mimético introduziu no seio <strong>de</strong> todos os povosibero-americanos elemento altamente perturbador, <strong>de</strong>sses que <strong>de</strong>formamtodas as doutrinas, em sua trasladação <strong>de</strong> uma terra para outra.Octavio Paz <strong>de</strong>finiu muito bem o fenômeno americano. “Agran<strong>de</strong> originalida<strong>de</strong> histórica da nação norte-americana, e, da mesmamaneira, a raiz <strong>de</strong> sua contradição, está inscrita no próprio ato <strong>de</strong>sua fundação. Os Estados Unidos foram fundados para que os seuscidadãos vivam entre eles e com eles mesmos, livres, enfim, do pesoda História e dos fins meta-históricos que o Estado assinalava às socieda<strong>de</strong>sdo passado. Esta foi uma construção contra a História e os88


Eça <strong>de</strong> Queirós e Eduardo Pradoseus <strong>de</strong>sastres, em face do futuro, esta terra incognita com a qual osEstados Unidos se i<strong>de</strong>ntificaram. O culto do futuro se insere naturalmenteno projeto norte-americano; ele é, por assim dizer, a suacondição e o seu resultado. A socieda<strong>de</strong> norte-americana fundou-sepor um ato <strong>de</strong> abolição do passado. Contrariamente aos ingleses, ouaos japoneses, aos alemães ou aos chineses, aos mexicanos ou aosportugueses, os cidadãos dos Estados Unidos não são filhos <strong>de</strong> umatradição mas o seu começo. Eles não perpetuam um passado, elesinauguram um tempo novo.” 17Eduardo, com a sua agudíssima inteligência e a capacida<strong>de</strong> única<strong>de</strong> atravessar névoas espessas da História e da formação <strong>de</strong> povos,percebeu essa diferença, e a apontou como nociva influência no Brasil-República.Os partidários do novo regime, os propagandistas daRepública, os históricos e os <strong>de</strong> data recente – Rui Barbosa, porexemplo – não viram, não souberam ver o fenômeno. Declararam omo<strong>de</strong>lo americano como se tivéssemos a mesma origem, como senão houvéssemos contraído compromisso antigo com o passado remoto.Os republicanos adotaram o presi<strong>de</strong>ncialismo com ligeireza,ou com levianda<strong>de</strong>, pois supuseram que bastava <strong>de</strong>por um monarca,cujo trono constituía um afluente do antigo álveo lusitano, bani-lodo Brasil, por <strong>de</strong>creto, extinguir instituições, adotar nova <strong>de</strong>nominação,que tudo andaria bem, como bem andavam os Estados Unidosda América. Esse enormíssimo erro dos propagandistas e dos republicanosdo dia seguinte, que atabalhoadamente a<strong>de</strong>riram ao novoregime, iria repercutir em todo o funcionamento do regime republicano,nos estados <strong>de</strong> sítio, no <strong>de</strong>sajustamento entre o ‘país legal’ e o‘país real’, nos revezamentos entre autoritarismo e liberalismo, e este,viciadíssimo, por lhe faltarem os suportes que lhe <strong>de</strong>ram relativa regrana União americana. Começamos artificialmente e continuamos,prosseguindo, aos tropeções, nos erros que não reparamos. Eagora é tar<strong>de</strong>.17 OctavioPaz, ibid.89


João <strong>de</strong> ScantimburgoEduardo tudo pressentiu, e não ce<strong>de</strong>u, por amor ao Brasil. Fez-seplanfetário. Segundo Eça, “Eduardo Prado é um incomparável mestredo Panfleto”. Como panfletário <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>u a tradição, a pátria, areligião que nos batizou, pelas mãos <strong>de</strong> frei Henrique <strong>de</strong> Coimbra,na manhã auroral em que o fra<strong>de</strong> franciscano elevou na terra do Brasila hóstia sagrada, diante dos marinheiros da frota <strong>de</strong> Cabral e dosindígenas atônitos. Quando a nova classe dos republicanos, dos a<strong>de</strong>sistase dos conformados – pois o Brasil é o país dos fatos consumados,logo aceitos – subiu no horizonte da nossa História, Eduardo<strong>de</strong>ixou-se ficar no seu posto <strong>de</strong> combate, firmemente agarrado à tradição– ou Tradição, como escreveria Eça –, que ele sabia ser a causasagrada, a única pela qual valeria a pena viver. Eduardo tinha a certeza<strong>de</strong> que se a República, proclamada em 15 <strong>de</strong> novembro, se consolidasse,como se consolidou, as ameaças contra o edifício das suastradições se cumpriram. Mas, assim mesmo, não ensarilhou armas.Continuou o bom combate, pois o que lhe interessava era a causa, enão a eventualida<strong>de</strong>, embora pu<strong>de</strong>sse também a<strong>de</strong>rir ao ver baldadosos seus esforços, como a<strong>de</strong>riu seu irmão, o conselheiro Antônio Prado.Eduardo não se tornaria republicano, não renunciaria ao seu cultoà tradição, não se dobraria.Eça diz que a sua luci<strong>de</strong>z era esparsa, alumiando amplos espaçoscom tenuida<strong>de</strong>, mas concreta, por isso mesmo ricamente intensa,como um fino dardo que vara horizontes. Foi essa luci<strong>de</strong>z que anteviua crise em que iria enredar a República presi<strong>de</strong>ncial, adotada,afobadamente, na manhã <strong>de</strong> 15 <strong>de</strong> novembro, em que o conselheiroAires, no Passeio Público, não chegou a saber o que se passava noCampo <strong>de</strong> Santana, na fron<strong>de</strong>use cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Sebastião do Rio <strong>de</strong>Janeiro, se<strong>de</strong> do governo imperial <strong>de</strong> Sua Majesta<strong>de</strong> D. Pedro II,Bragança da linhagem heróica da Restauração.Na história do Brasil as relações dos monarquistas, dos titularesdo regime, da quase totalida<strong>de</strong> dos membros da Câmara dos Depu-90


Eça <strong>de</strong> Queirós e Eduardo Pradotados, do Senado vitalício, da Justiça, eram sólidas. Mas, naquelamanhã <strong>de</strong> novembro, que <strong>de</strong>veria ser quente, como em geral todas asmanhãs <strong>de</strong> novembro na cálida cida<strong>de</strong> tropical do Rio <strong>de</strong> Janeiro,viu-se que a soli<strong>de</strong>z <strong>de</strong> que se prezava D. Pedro II esboroou-se, e, empoucas horas, passamos <strong>de</strong> monarquia a república. Dentre os quenão ce<strong>de</strong>ram estava Eduardo Prado. A sua firmeza <strong>de</strong> atitu<strong>de</strong> lhe<strong>de</strong>spejaria nos passos do caminho não poucos dissabores. Recenseia-ostodos Sebastião Pagano, 18 em obra bem fundamentada. Oguerrilheiro Eduardo Prado – como o chamou Eça – permaneceu omesmo até o fim da sua curta vida. Plantou-se no mais alto cimo daobservação, <strong>de</strong> arma na mão – a sua arma, a pena, com as idéias quesabia manejar –, e <strong>de</strong>sfechou contra a República recém-inaugurada,enquanto viveu, a munição que pô<strong>de</strong> juntar. Eduardo não foi, comose po<strong>de</strong> supor, um saudosista, que só olhava para trás, atribuindomaior importância ao passado do que ao futuro. Não. Ele sabia que,<strong>de</strong>sprezando o passado, em nome <strong>de</strong> abstrações e cópias subservientes,o futuro do Brasil estaria comprometido. Quem conhece a nossahistória, e a interpreta objetiva e serenamente, não ignora que Eduardoestava com a razão. Cem anos <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> proclamada a República,é tão instável o regime que presi<strong>de</strong>ntes, impostos pelas armas e porseus galões, realizaram a tentativa <strong>de</strong> dar <strong>de</strong> presente ao país uma <strong>de</strong>mocracia.Diz Eça que Eduardo pôs todos os seus dons nas suas campanhas,com estilo claro, límpido, perfeito. “Dentro <strong>de</strong> um tal estilo aexpressão cabe, porque a sua ductilida<strong>de</strong> se presta tanto à grossa risadacomo ao soluço lírico. E Eduardo Prado para tudo o faz servir:lutando ou doutrinando, segundo a necessida<strong>de</strong> da causa santa,ele emprega a ironia alada, o sarcasmo estri<strong>de</strong>nte, a prédica catedráticae <strong>de</strong> toga, a murmuração familiar em chinelos, a rápida e remexidarebusca dos fatos, e mesmo a compassada e pon<strong>de</strong>rosa procissãodas teorias.”18 SebastiãoPagano, EduardoPrado e sua época.São Paulo, OCetro, s.d.,passim.91


João <strong>de</strong> ScantimburgoAs personagens <strong>de</strong> Eça foram compostas, como fazem todos osromancistas, com pedaços <strong>de</strong> seres vivos. Eduardo Prado entroucom a sua parcela, sobretudo em Fradique Men<strong>de</strong>s. Para Eça, no entanto,o que predominou em Eduardo Prado foi o seu intrépido, esclarecido,puro amor à tradição, como elo entre gerações e prolongamentodas lições do passado no futuro. Na linha dos tradicionalistasdo século XIX, Eduardo nunca <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> ser mo<strong>de</strong>rno e <strong>de</strong> quererpara o Brasil o progresso a que seu povo tem direito. Mas lhe repugnousempre o <strong>de</strong>sprezo à Tradição – sempre, como escrevia Eça – <strong>de</strong>que proce<strong>de</strong> o Brasil, a gran<strong>de</strong> matriz lusitana, enriquecida, mas não<strong>de</strong>sfigurada, pela contribuição negra e imigratória. Eduardo Pradoconservou na urna mais cara <strong>de</strong> sua afeição o passado do Brasil ePortugal, por nele ver o sólido bloco sobre o qual ergueram-se a civilizaçãoe a cultura <strong>de</strong>sta nação. Se essa foi em Eduardo uma virtu<strong>de</strong>ou um <strong>de</strong>feito, é tema a ser <strong>de</strong>batido. De nossa parte, vemos EduardoPrado um paladino, uma espécie <strong>de</strong> cavaleiro, não da <strong>de</strong>cadênciada Cavalaria, pois esse ilustre patrício do mais puro paulistismo nãofoi, nem seria, um Quixote, mas, sim, um Bayard que cumpria o seu<strong>de</strong>ver, contra todos os obstáculos. As suas convicções foram para elesacratíssimas. Defen<strong>de</strong>u-se com fé, pois somente com fé se po<strong>de</strong> <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>rconvicções. Como disse Eça, “à planta que ele plantar, nãofaltará nem adubo, nem sacha, nem rega, nem ternos cuidados”. Nãoo conhecem as novas gerações. Iludidas pelos <strong>de</strong>magogos, intoxicadaspelos impostores, enganadas pelos i<strong>de</strong>ólogos, as novas geraçõesse apresentam para contrariar o rumo histórico do Brasil, pois já nãomais se cultua a tradição da nossa límpida origem, do nosso compromissocom o passado.Neste começo <strong>de</strong> milênio, quando o Brasil completou 500 anos,po<strong>de</strong>ríamos atribuir-lhe muito mais, pois ele vem do fundo das ida<strong>de</strong>s,quando se formou, sob o magistério da Igreja, do Portugal, quesairia pelos mares para <strong>de</strong>scobrir novas terras, incorporá-las ao seupatrimônio, civilizá-las e transferi-las a outros governantes.92


Eça <strong>de</strong> Queirós e Eduardo PradoInfelizmente, para nós, o Brasil ficou, todo ele, <strong>de</strong>sfigurado. Acrise maior <strong>de</strong> que sofremos, crise que nos fará, ainda, muito mal, éessa, a da ignorância <strong>de</strong> nossas mais altas tradições. Não dispondo<strong>de</strong>sse bom cimento, as gerações, que se suce<strong>de</strong>m, <strong>de</strong>vem apren<strong>de</strong>r <strong>de</strong>novo as regras <strong>de</strong> convivência, quando podiam aproveitar as liçõesdo passado e prosseguir, no tempo histórico, como fizeram as naçõesque souberam se <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r do processo revolucionário, ao qualo mundo <strong>de</strong>ve responsabilizar o impacto da <strong>de</strong>sestabilização, em cujastenazes se <strong>de</strong>bate. Foi esse homem <strong>de</strong> superior qualida<strong>de</strong>, “que naverda<strong>de</strong> honra o Brasil”, como disse Eça, um gran<strong>de</strong> exemplo <strong>de</strong> paladinoda tradição e inteira entrega a uma causa, que ele consi<strong>de</strong>ravasagrada, por estar diretamente vinculada à suaeànossa pátria. Muitasqualida<strong>de</strong>s possuía esse brasileiro, esse paulista ilustre.Eça as arrolou, acentuando que o fazia sem estudar. Mas com elasse i<strong>de</strong>ntificou, e com uma, ao menos, sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> foi maior, aTradição, pois essa correspondia ao seu permanente amor pelo queridoPortugal, que o vento revolucionário do século XIX iria <strong>de</strong>formar.E o seu gran<strong>de</strong> amor pelo Brasil, que Eduardo, com <strong>de</strong>nodo esacrifício, <strong>de</strong>monstrou profundamente amar. 19 9319 EduardoPrado, Fastosda ditaduramilitar no Brasil.São Paulo,LivrariaMagalhães,1923, passim.


João Guimarães Rosa e os pais, Dona Chiquitinha e Florduardo, quandoos visitou em Belo Horizonte, pouco antes <strong>de</strong> falecer – 1966.


João Guimarães RosaCarlos Heitor ConyOnome do pai – Florduardo – é a chave para a linguagem<strong>de</strong> toda a sua obra. Menino do interior, introvertido, observador,viu neste nome um <strong>de</strong>stino. Todos os pais têm nomes simples.E o seu tinha um que era a mistura <strong>de</strong> flor e Eduardo.Quando começou a escrever, ele procurava juntar palavras, às vezespara criar uma outra, às vezes pelo prazer <strong>de</strong> juntar e ver o resultado.O processo não era exclusivida<strong>de</strong> sua, pois James Joyce (e antes<strong>de</strong> Joyce, outros autores, inclusive o maranhense Sousândra<strong>de</strong>) usaramda aglutinação dos vocábulos para variados efeitos literários.No noite <strong>de</strong> 19 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 1967, sozinho em seu apartamentona rua Francisco Otaviano, em Copacabana, morreu tentandotelefonar para alguém A pessoa que o aten<strong>de</strong>u ouviu-o dizer: “socorro”.O telefone ficou fora do gancho, e a cabeça do escritor tombadasobre a mesa <strong>de</strong> trabalho.Dois dias antes, tomara posse na ca<strong>de</strong>ira n o 2 da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Brasileira</strong><strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, ca<strong>de</strong>ira que pertencera a outro romancista barrococomo ele (Coelho Neto) e cujo último ocupante fora o seu ex-chefeJornalista,romancista,cronista, contista eensaísta. Des<strong>de</strong> oseu romanceO ventre (1958) aO indigitado eA tar<strong>de</strong> da suaausência (2001),publicou cerca <strong>de</strong>trinta livros e fezadaptações <strong>de</strong>obras da literaturauniversal. Por mais<strong>de</strong> 30 anoscolaborou narevista Manchete.Atualmente écronista do jornalFolha <strong>de</strong> S. Paulo.95


Carlos Heitor Conyno Itamaraty, João Neves da Fontoura. A muitos amigos, GuimarãesRosa confi<strong>de</strong>nciara: – “Tenho medo da posse. O coração não vaiagüentar.” Agüentou. Pediu a amigos (Josué Montello entre eles)que o fiscalizassem durante a leitura do discurso. No seu amor pelaperfeição, tomara exercícios <strong>de</strong> empostação <strong>de</strong> voz com PedroBloch. Ouviu a saudação <strong>de</strong> Afonso Arinos <strong>de</strong> Melo Franco com umsorriso que ficava mais no olhar do que nos lábios.Segundo alguns – não precisava da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong>, mas ele precisava<strong>de</strong>la e por isso se emocionava, e por isso temia a morte na tribuna,envolto no fardão, como um clown das letras que encontra o ato finalno próprio palco.Para seu bom gosto, a cena seria exagerada. Ele <strong>de</strong>sejava que tudocorresse bem, socialmente bem (pedira ao presi<strong>de</strong>nte Austregésilo<strong>de</strong> Athay<strong>de</strong> uma banda <strong>de</strong> música) e o <strong>de</strong>senlace no seio da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong>seria sobretudo um trambolho, além <strong>de</strong> uma emoção dispensável.Seu amor pela or<strong>de</strong>m impediu a fraqueza e ele reagiu. Mas sabia-semarcado. Horas mais tar<strong>de</strong>, em sua arena <strong>de</strong> trabalho, na mesmamesa on<strong>de</strong> sofria em busca da palavra exata, da frase perfeita, elesentiu o fim.Na véspera <strong>de</strong> sua posse, encontrei-o pela última vez. O sinal luminosoda Rua Raul Pompéia com a Avenida Rainha Elizabeth fecharae eu reparei em dois homens que atravessavam a rua. Chovia eera noite. Apesar da miopia, da chuva e da noite, os olhos <strong>de</strong> gato <strong>de</strong>Guimarães Rosa me <strong>de</strong>scobriram <strong>de</strong>ntro do carro. A seu lado,Franklin <strong>de</strong> Oliveira, seu amigo e admirador.Guimarães veio, o guarda-chuva pingando, dar-me o boa-noite.O sinal abrira e eu tentei acelerar o carro.– Olha, não me <strong>de</strong>ixe sozinho amanhã. Eu preciso <strong>de</strong> suas palmas.– Você terá muitas palmas. Nem estará sozinho.– Mas vá, assim mesmo.Buzinaram atrás <strong>de</strong> mim, e eu tive <strong>de</strong> avançar. Pelo retrovisor, vi asilhueta dos dois amigos tentando alcançar a calçada oposta. E só96


João Guimarães Rosaentão reparei que Guimarães Rosa falara comigo naturalmente.Antes, quando o encontrava pelas manhãs no Posto Seis, ele a caminhodo Itamaraty e eu a caminho da praia com as minhas filhas, a suasaudação era sempre <strong>de</strong> efeito, literária, barroca:– Salve o pai matinal e audaz!Eu gostava da saudação, e retribuía com uma frase menos barrocamas igualmente amiga:– Salve o honesto menino da primeira comunhão!Com ternos claros, gravata borboleta, rosto lavado e jovem, sempreme <strong>de</strong>u a impressão do menino que vai fazer a primeira comunhão.Ele me prendia até que o seu ônibus chegasse. Não tomavaqualquer carro, tinha um lugar que era só <strong>de</strong>le, se estivesse ocupado,esperava outro.Dali, ele gostava <strong>de</strong> olhar as ruas, as pessoas, o dia e a vida. Masseu pensamento, quanto mais olhava a cida<strong>de</strong>, mais buscava em sipróprio os campos <strong>de</strong> suas Gerais. Uma tar<strong>de</strong>, tentou me explicar adiferença entre um buriti e uma palmeira que até há pouco resistia,ali na Avenida Atlântica. Para resumir, ele terminou dizendo, talvez,uma <strong>de</strong> suas melhores e mais espontâneas frases:– No fundo, dá tudo na mesma.Cordisburgo significa cida<strong>de</strong> do coração. Foi uma palavra inventadapelo missionário que fundou a cida<strong>de</strong>. Padre João <strong>de</strong> Santo Antônio,que <strong>de</strong>sejava homenagear o Sagrado Coração <strong>de</strong> Jesus. Juntou a palavralatina cordis, genitivo <strong>de</strong> cor (coração), com o sufixo anglo-saxônico burgo,que significa burgo mesmo. A explicação do nome <strong>de</strong> sua cida<strong>de</strong> natalfoi dada pelo próprio Guimarães Rosa na abertura do seu discurso<strong>de</strong> posse na <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong>. Mais uma vez <strong>de</strong>monstrava a preocupação comas palavras, que tornam o mundo mágico.Em 1921 publica os primeiros contos. São trabalhos estranhos,escritos numa linguagem <strong>de</strong> folhetim, com personagens estrangeiros,em ambientes sofisticados da Bulgária ou <strong>de</strong> Londres. Alguns <strong>de</strong>seus títulos: O mistério <strong>de</strong> Higmore Hall, Cronos Kay Anagke. A fabulação97


Carlos Heitor Conyera primária, a trama superficial, mas <strong>de</strong>s<strong>de</strong> já se esparramava nahora <strong>de</strong> inventar nomes para seus personagens. Temos assim umaenxurrada <strong>de</strong> Tragywyddol, Affael, Lleoddag, Duw-Rhoddoddag,Inverary, Sviazline.Mais tar<strong>de</strong>, a obsessão o arrastaria a nomes como Miguilim, Manuelzão,Sêo Habão, Joca Ramiro, Zé Bebêlo, Quelemén, Valtêi(“nome mo<strong>de</strong>rno, é o que o povo daqui agora aprecia, o senhorsabe”), Sesfredo, Suzarte, Ana Dazuza, Zéfim Aduzido, AlaricoTostões, etc.Em 1936 escreve um livro <strong>de</strong> poemaseoinscreve num concursona <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Brasileira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>. O título, Magma, também seria achave para o título do livro <strong>de</strong> contos que viria a seguir e que o revelariacomo contista: Sagarana.Foi numa conversa, em seu gabinete, no Itamaraty, que GuimarãesRosa explicou-me esta transformação. Procurara, para o livro <strong>de</strong> poemas,um nome curto que tivesse dois as. Não seria difícil encontrar alguns:mágoa, Magda, vaga, fala. Fixou-se em Magma, e <strong>de</strong>scobriu quequanto mais as tivesse um nome, mais bonito ficaria. Quando escreveuo primeiro livro <strong>de</strong> contos, fez uma relação <strong>de</strong> vários nomes. Pensoudurante algum tempo em savana, mas não queria empregar uma palavraque já tinha um significado preciso. E como pensava em criar umagran<strong>de</strong> saga (Gran<strong>de</strong> Sertão), da palavra saga partiu para sagana, quesoava mal, até chegar a sagarana, que tinha quatro as, mantinha nítida araiz saga e praticamente não significava nada.Para o escritor Guimarães Rosa a carreira estava lançada. Eratempo, também, <strong>de</strong> cuidar <strong>de</strong> sua outra carreira, a diplomática. Nomeadocônsul em Hamburgo, permaneceu na Alemanha até o rompimento<strong>de</strong> relações entre o Brasil e os países do Eixo, ficando retidoem Ba<strong>de</strong>n-Ba<strong>de</strong>n, juntamente com outros diplomatas, até que o Itamaratyprovi<strong>de</strong>nciasse a troca <strong>de</strong> funcionários alemães que exerciamfunções no Rio.98


João Guimarães RosaBogotá é o posto seguinteeénacapital colombiana que encontratempo para rever os contos <strong>de</strong> Sagarana. Dá-lhe o toque final, iria retocartodas as suas obras, ao longo das sucessivas reedições.Nos <strong>de</strong>z anos seguintes, ele concentraria todas as suas energiaspara o salto que o consagraria <strong>de</strong>finitivamente. Em sua vida funcional,continuaria servindo no estrangeiro, voltando a Bogotá. comosecretário-geral da IX Conferência Interamericana e, logo <strong>de</strong>pois,servindo em Paris, como conselheiro da Embaixada. Em 1951, duranteo segundo governo <strong>de</strong> Vargas, é convocado pelo ministro doExterior, João Neves da Fontoura, para chefia <strong>de</strong> seu gabinete.Em 1956, o dilúvio. Logo nos primeiros meses do ano sai Corpo <strong>de</strong>baile, em dois volumes, e em seguida Gran<strong>de</strong> sertão: Veredas. O impactocausado ficou sendo uma espécie <strong>de</strong> hégira da literatura brasileira.Po<strong>de</strong>-se falar em antes e em <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> Guimarães Rosa.Todas as gran<strong>de</strong>s obras-primas da literatura têm uma história linear,sem nada <strong>de</strong> extraordinário. Crime e castigo é a história <strong>de</strong> um estudanteque assassina uma velha para roubar. Dom Quixote nem enredotem: é um louco <strong>de</strong> meia-ida<strong>de</strong> que sai pelo mundo procurandobriga. Madame Bovary é a mulher <strong>de</strong> um médico provinciano que arranjaum amante. E daí?Tal como no caso dos gran<strong>de</strong>s mestres, a história episódica <strong>de</strong> Riobaldoseria transformada pelas mãos do feiticeiro, e <strong>de</strong>ssa transformaçãoresultaria uma poção mágica que não po<strong>de</strong>ria ser tomada <strong>de</strong>um gole só. Precisava <strong>de</strong> conta-gotas, para ser explorada em suas miu<strong>de</strong>zas,em seus muitos atalhos e veredas.Diante da monumentalida<strong>de</strong> da obra, os críticos falaram, inicialmente,em Joyce, fazendo paralelos <strong>de</strong> linguagem e intenções. Em princípio,po<strong>de</strong>-se traçar paralelos entre um livro e outro qualquer livro, porexemplo, entre o Almanaque Capivarol <strong>de</strong> 1942 e a Divina comédia.Para uso próprio, preferimos compará-lo com outra obra-primaproduzida no mesmo século, o Dr. Faustus, <strong>de</strong> Thomas Mann. O compositorAdrianLeverkuhenpersegue a sua obra-prima e ven<strong>de</strong> a sua99


Carlos Heitor Conyalma ao <strong>de</strong>mônio para obter a música <strong>de</strong>sejada, tal como o seu antepassadogoethiano ven<strong>de</strong>ra a alma para recuperar a mocida<strong>de</strong>. “O jagunçoRiobaldo e o compositor Leverkuhen– analisa um crítico –têm, cada qual a seu modo, uma tarefa a cumprir, tarefa que está além<strong>de</strong> suas capacida<strong>de</strong>s. É preciso, então, convocar a energia obscura pormeio do pacto diabólico.” Conquistado o gran<strong>de</strong> fim (a morte dobandido Hermógenes para Riobaldo, a criação da gran<strong>de</strong> música paraLeverkuhen), os dois personagens se retiram para uma espécie <strong>de</strong> aposentadoriasinistra: o compositor, minado pela sífilis, torna-se idiota.Riobaldo, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> graves doenças e <strong>de</strong>lírios, transforma-se num caipirapensativo e estéril. Em ambos os casos, a narração é feita <strong>de</strong> memória,<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> <strong>de</strong>corridos alguns anos dos fatos principais.Thomas Mann e Guimarães Rosa eram, acima <strong>de</strong> tudo, homenseruditos, dois humanistas no sentido pleno e nobre da palavra. Elesespremeriam <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> suas histórias, por mais banais que parecessem,a carga cultural que os condicionava. Daí, muita gente tirou suas conclusõesa respeito do Dr. Faustus e o regime nazista. E pelo mesmo processomuitos leitores e críticos enxergaram na obra <strong>de</strong> GuimarãesRosa uma ontologia, uma metafísica e até mesmo uma teologia. Ocerto é que o romance <strong>de</strong> Rosa guarda todas as proporções <strong>de</strong> umaepopéia medieval–eopróprio Sertão que serve <strong>de</strong> cenário, sujeito epredicado da ação, é uma ilha medieval cravada no imenso corpo doBrasil. O livro, assim, entendido, resulta numa canção <strong>de</strong> gesta, on<strong>de</strong> otrovador (o ex-jagunço Riobaldo) narra ou canta – para um presumívelouvinte – “a sua vida <strong>de</strong> aventura, tendo como leit-motiv o seu amorimpossível por Diadorim e a sua ânsia do absoluto”.Guimarães Rosa não chegou, como querem alguns, a criar umalíngua realmente nova, embora tenha empregado uma linguagem criadapara ele. Quem está habituado a ler os clássicos, sobretudo osquinhentistas, i<strong>de</strong>ntifica o filão que abastece a sua prosa. Lembremoscomo exemplo um texto conhecido, o da carta <strong>de</strong> Pero Vaz Caminha:“Todavia tome Vossa Alteza minha ignorância por boa von-100


João Guimarães Rosata<strong>de</strong>, a qual bem certo creia que, para aformosentar nem afear, a quenão há <strong>de</strong> pôr mais do que aquilo que eu vi e que me pareceu.” Seprocurarmos outros exemplos em Frei Luís <strong>de</strong> Sousa e Gil Vicente,chegaremos à conclusão <strong>de</strong> que Guimarães Rosa revisitou, criativamente,o português arcaico, do qual ainda existem resíduos, ilhasisoladas no arquipélago <strong>de</strong> nossa linguagem oral.Ao perseguir uma expressão antiga, ele chegaria a um processoantigo <strong>de</strong> pesquisar a realida<strong>de</strong>: a anotação gráfica dos pormenores.Evi<strong>de</strong>nte que a memória e, sobretudo, a imaginação dariam os elementos<strong>de</strong>marcatórios <strong>de</strong> sua ficção. Mas o seu amor à verda<strong>de</strong> físicados fatos levou-o ao mesmo processo adotado por tantos outros, inclusivepor Zola: tirar o ca<strong>de</strong>rninho do bolso e registrar tudo. GuimarãesRosa anotava uma palavra que ouvia, tomava apontamentospara <strong>de</strong>screver naturalisticamente uma planta ou um animal.Zola, para fazer Bonheur <strong>de</strong>s dames, gastou cinco ca<strong>de</strong>rnos anotandonomes <strong>de</strong> tecidos, variações <strong>de</strong> tafetás, tipos <strong>de</strong> seda. E seu amor aos<strong>de</strong>talhes fez com que empanturrasse 200 páginas para <strong>de</strong>screver umjardim em La faute <strong>de</strong> l’Abbé Mouret.Guimarães Rosa não fez por menos, por exemplo, ao relacionaros nomes pelos quais o Demônio é mencionado no sertão: “O Arrenegado,o Cão, o Sujo, o Cramulhão, o Indivíduo, o Galhardo, oPé-<strong>de</strong>-Pato, o Homem, o Tisnado, o Coxo, o Temba, o Azarape, oCoisa-Ruim, o Mafarro, o Pé-Preto, o Canho, o Duba-Dubá, oTristonho, o Não-Sei-Que-Diga, o Que-Nunca-Se-Ri, o Rapaz, oSem-Gracejos...A seqüência <strong>de</strong> tantos nomes pitorescos não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> lembrar acélebre passagem <strong>de</strong> outro clássico, Rui Barbosa, que conseguiu alinharuma <strong>de</strong>zena <strong>de</strong> nomes e expressões que significavam, simplesmente,prostituta.De certa forma, Guimarães Rosa tornou-se um autor oficial e oficializado.Nem assim per<strong>de</strong>u o genial contorno que faz <strong>de</strong> sua obraum monumento <strong>de</strong> nossa língua, território glorioso <strong>de</strong> nossa cultura.101


José Lins do Rego, <strong>de</strong> Portinari, 1939Óleo s/tela, 73,4 x 60,2 cmAcervo da ABL.


José Lins do Rego:cem anosMurilo Melo FilhoNeste ano <strong>de</strong> 2001, completa-se exatamente um século donascimento, no Engenho Corredor, município paraibano<strong>de</strong> Pilar, <strong>de</strong> José Lins do Rego Cavalcanti, ou simplesmente Zélins,como é chamado e assim escrito na sua Paraíba.Ele foi um dos principais lí<strong>de</strong>res da revolução que se processouno mo<strong>de</strong>rno romance brasileiro, regionalista e nor<strong>de</strong>stino, ao lado<strong>de</strong> Amando Fontes, José Américo, Graciliano Ramos, Jorge Amadoe Rachel <strong>de</strong> Queiroz, com ênfase nas temáticas da cana-<strong>de</strong>-açúcar,do cangaço, do misticismo e da seca.Ao longo do “ciclo da cana-<strong>de</strong>-açúcar”, sobretudo em Menino <strong>de</strong>engenho (1932), Doidinho (1933), Bangüê (1934) e Fogo morto (1943) –lançado em pleno apogeu do nazi-fascismo – o personagem que permeiaquase todas as suas tramas é o todo-po<strong>de</strong>roso e hegemônicochefão <strong>de</strong> engenho, com suas greis restritas. E o pano <strong>de</strong> fundo quese abre como palcoéodacasa-gran<strong>de</strong> e da senzala. Daí talvez a suaimensa afinida<strong>de</strong> e intensas relações com Gilberto Freyre.O jornalistaMurilo MeloFilho ocupa aCa<strong>de</strong>ira 20 daABL. Trabalha naimprensa <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os18 anos. Comorepórter político,escreveu centenas<strong>de</strong> reportagenssobre o Brasil,entrevistoupersonalida<strong>de</strong>s domundo inteiro etem vários livrospublicados, entreos quais O mo<strong>de</strong>lobrasileiro eTestemunho político.103


Murilo Melo FilhoSeu primeiro livro, Menino <strong>de</strong> engenho, em 1932, foi rejeitado portodos os editores. Só veio à luz custeado pelo bolso do próprio autor,mas teve os dois mil exemplares da sua 1 a edição esgotados emtrês meses, após ter sido saudado efusivamente por João Ribeiro,crítico literário do Jornal do Brasil, que consi<strong>de</strong>rou o romance “um livro<strong>de</strong> primeira or<strong>de</strong>m, escrito numa linguagem nor<strong>de</strong>stina, alheiaao vernaculismo e aos artifícios da literatura corrente”. Com esse seulivro <strong>de</strong> estréia, ganhou o prêmio da Fundação Graça Aranha.Já no “ciclo do cangaço, do misticismo e da seca”, ao qual pertencemUsina (1936), Pedra Bonita (1938) e Os cangaceiros (1953), comvinculações em Moleque Ricardo (1935), Pureza (1937) e Riacho Doce(1939) – era quase um livro por ano –, os protagonistas são quasesempre aqueles errantes bandoleiros do Nor<strong>de</strong>ste, os santeiros, osmessias, os taumaturgos e os beatos, cuja saga é <strong>de</strong>scrita em cores vivase excitantes.Com suas inesgotáveis reservas <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> ficcionista, José Linsconseguiu escrever tantos livros <strong>de</strong> ambiências iguais e assemelhadas,mas <strong>de</strong> interesse distinto e permanente.Memorialista. Ele é um neo-realista do romance posterior aoMo<strong>de</strong>rnismo que, como exímio memorialista, vai buscar na sua meninicee na sua juventu<strong>de</strong> a inspiração para os provocantes enredos,que pren<strong>de</strong>m o leitor da primeira à última página dos seus romances,numa tessitura sobre o feiticismo da paisagem, do vento, do massapê,dos canaviais, dos poentes, dos rios, das chuvas, das cigarras, dasserras, da mata, da várzea, da floresta, da caatinga.Dizia ele: “Sou um literato da cabeça aos pés e nada me arreda <strong>de</strong>arrancar das entranhas da terra a seiva dos meus romances.”A imaginação e a memória são duas vertentes e viés que balizam esinalizam quase toda a área do trabalho zelinsniano, no qual estápresente uma simbiose da pobreza com o <strong>de</strong>samparo, da tristeza104


José Lins do Rego: cem anoscom a carência, da humilda<strong>de</strong> com a submissão, da morte prematuracom a orfanda<strong>de</strong> e do sexo com o lúdico.A sua é quase uma obra sociológica, <strong>de</strong> <strong>de</strong>núncia social contra asterríveis <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s dos grotões e dos mundéus no semi-árido,escrita por um autor i<strong>de</strong>ntificado com o seu chão e o seu povo, exuberante,primitivista e telúrico. Nessas duas fases – da cana-<strong>de</strong>açúcare do cangaço – há uma constante cíclica da ascensão e quedados “coronéis” rurais, como herança inevitável do patriarcalismo,do latifúndio, da escravidão, do feudalismo, do baronato e domandonismo.Ele foi um dos nossos mais ricos e férteis escritores <strong>de</strong> ficção realista,inspirado nas mais legítimas fontes nor<strong>de</strong>stinas, com uma talentosacombinação entre a arte e a realida<strong>de</strong>: a sua infância órfã noSanta Rosa do Menino <strong>de</strong> engenho, o seu internato no Colégio NossaSenhora do Carmo em Doidinho e a figura do seu avô e xará José Linsno personagem do Coronel José Paulino em Fogo morto.Rico, extenso e variado é o seu elenco <strong>de</strong> inesquecíveis figurantes:Carlos <strong>de</strong> Mello, Olívia, Ricardo, Dr. Juca, os cegos Ladislau e Torquato,Lola, Antônio Cavalcanti, Felismina, Maria Paula, Margarida,Antônio Bento, Padre Amâncio, Ester, Edna, Nô, Marta, Luís,Lucas, Feliciano, Sinhá Josefa, Tia Maria, Sinhàzinha e Bento, entremuitos outros.Fascinado pelo estilo <strong>de</strong> Eça, não o imitou em nada. Leitor, aos17 anos, <strong>de</strong> O Ateneu <strong>de</strong> Raul Pompéia e, aos 19, do Memorial <strong>de</strong> Aires<strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis, não copiou nenhum dos dois, po<strong>de</strong>ndo, quandomuito, influenciar-se ligeiramente com Memórias <strong>de</strong> um sargento <strong>de</strong>milícias, <strong>de</strong> Manuel Antônio <strong>de</strong> Almeida, e com O cortiço, <strong>de</strong> Aluísio<strong>de</strong> Azevedo.Como se fosse um John dos Passos, um Steinbeck e um Hemingwaydos trópicos, escreveu um pouco na linha <strong>de</strong> William Faulkner,o retratista da <strong>de</strong>cadência do Sul americano; <strong>de</strong> Thomas Hardy, o105


Murilo Melo Filhopessimista do regionalismo britânico; <strong>de</strong> Maurice Barrès, o cultor doprovincianismo francês, e <strong>de</strong> Marcel Proust, o romancista dos temposperdido e reencontrado.Parodiando André Gi<strong>de</strong>, po<strong>de</strong>r-se-ia dizer que Zélins escreviapara sobreviver, para pôr-se em contato com a vida, a ela se ligandomais intimamente. Escrevia porque podia escrever, porque nascerapara isto e porque vivia.Conflito. Há também uma atmosfera <strong>de</strong> quase permanente conflitoentre os proprietários, <strong>de</strong> um lado, e os “sem-terra”, do outro,como precursores da gran<strong>de</strong> problemática brasileira dos dias atuais,que é a reforma agrária.Pergunto: como se haverá <strong>de</strong> ver, senão sob este prisma, o choquedo Coronel Lula <strong>de</strong> Holanda, senhor do engenho Santa Fé, genro eher<strong>de</strong>iro do Capitão Tomás Cabral – um saudosista <strong>de</strong> tempos gloriosos– com o Mestre Zé Amaro, um humil<strong>de</strong> artesão, fazedor <strong>de</strong>selas e <strong>de</strong> arreios e com Vitorino Carneiro da Cunha, o “Papa-Rabo”, uma grotesca reedição do Quixote, <strong>de</strong> Cervantes?Se a técnica da narrativa <strong>de</strong> José Lins é possante nesse cenário rural,com o linguajar típico da ru<strong>de</strong>za do agreste e com cheiro <strong>de</strong> poeirae <strong>de</strong> gente (camumbembe, lasquinê, bute, furriel, pua, cachenê,cassacos, agulheiro, carpina, chibante, turina, latomia, quenga, etc.),não será menos pujante quando ela se transporta <strong>de</strong>sse horizonte interioranopara o ambiente citadino, como em Água-mãe (Cabo Frio)e Eurídice (Rio <strong>de</strong> Janeiro).Aí já não é mais o promotor público da comarca mineira <strong>de</strong> Manhuaçu,mas o fiscal do imposto <strong>de</strong> consumo no Rio, que, segundoManuel Ban<strong>de</strong>ira, não lavrou uma só multa, e que, segundo Drummond,quase não comparecia ao seu trabalho, mas que era convidadoa fazê-lo pelos seus novos chefes, interessados mais em conhecê-lopessoalmente do que em recriminá-lo.106


José Lins do Rego: cem anosNo auge do macartismo e da “caça às bruxas”, subscreveu um manifesto<strong>de</strong> intelectuais brasileiros contra o generalíssimo Franco eteve negado o visto para entrar nos Estados Unidos.Rubro-negro. Certa vez, em setembro <strong>de</strong> 1954, cheguei a <strong>de</strong>frontar-mecom ele, misturado nas arquibancadas com a massa rubro-negrado seu Flamengo muito querido (do qual viria a ser o presi<strong>de</strong>nte).E, num jogo contra o Vasco, em São Januário, chegou a serpreso pela polícia, durante duas horas, por causa <strong>de</strong> uma briga comtorcedores vascaínos.Nesse mesmo ano, chefiou uma <strong>de</strong>sastrada seleção brasileira <strong>de</strong>futebol, que disputou uma Copa em Assunção e lá foi <strong>de</strong>rrotadapelo Paraguai, o que lhe valeu uma eterna inimiza<strong>de</strong> com o craqueZizinho. Zélins quis <strong>de</strong>mitir-se do Jornal dos Sports e ir embora do Brasil,no que foi dissuadido por Mário Filho.Cronista diário (“Conversa <strong>de</strong> lotação”) e crítico cinematográfico,já estava então empenhado na consolidação <strong>de</strong> sua obra literária,com vários livros: Gordos e magros, Poesia e vida, Homens, seres e coisas e Acasa e o homem (crônicas), além <strong>de</strong> Pedro Américo e Presença do nor<strong>de</strong>stino navida brasileira (ensaios); Meus ver<strong>de</strong>s anos (memórias); Botas <strong>de</strong> sete léguas,Roteiro <strong>de</strong> Israel, Gregos e troianos e Conferências no Prata (viagens); Históriasda velha Totonha (infantil); Dias idos e vividos (antologia) e O vulcão e afonte (póstumo).Acadêmico. Tomou posse na Ca<strong>de</strong>ira n o 25 da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Brasileira</strong><strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, em 15 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1956, substituindo Ataulfo <strong>de</strong> Paiva,a quem se referiu num irreverente e cáustico discurso <strong>de</strong> posse, cujarepercussão seria muito controvertida. Conviveu com a “imortalida<strong>de</strong>”acadêmica durante apenas nove meses, pois morreu a 12 <strong>de</strong> setembrodo ano seguinte. Foi sucedido por Afonso Arinos <strong>de</strong> Melo Francoe pelo atual ocupante, o acadêmico Alberto Venancio Filho.107


Murilo Melo FilhoFaleceu no Hospital dos Servidores. A causa mortis, <strong>de</strong> acordo como boletim médico assinado pelo Dr. Theobaldo Vianna, foi uma cirrosehepática, embora suas relações com o álcool não tenham passado,conforme esclarece o confra<strong>de</strong> Carlos Heitor Cony, <strong>de</strong> uma esporádica<strong>de</strong>mi-bouteille <strong>de</strong> vinho tinto francês, aliás, um hábito saudávele muito igual ao do acadêmico Geraldo França <strong>de</strong> Lima.Desprezava a datilografia e escrevia em ca<strong>de</strong>rnos escolares numaletra miúda, quase ilegível, com suas correções e garranchos dificilmente<strong>de</strong>cifráveis até mesmo por ele próprio. Tentava ler à tar<strong>de</strong>para os amigos, numa praça fronteira, os textos que escrevera pelamanhã.Casado com D. Naná, teve três filhas Marias: Elizabeth, Cristinae da Glória, hoje mais do que nunca irmanadas no culto à sua memória,além <strong>de</strong> muitos e fraternais amigos: o baiano Jorge Amado, ossergipanos Joel Silveira e Amando Fontes; os alagoanos Aurélio Buarque,Wal<strong>de</strong>mar Cavalcanti, Aloísio Branco, Jorge <strong>de</strong> Lima, GracilianoRamos, Carlos Paurílio e Lêdo Ivo; os pernambucanos GilbertoFreyre, Luís Delgado, Aníbal Fernan<strong>de</strong>s, Olívio Montenegro,Osório Borba, João Condé e Luís Jardim; os paraibanos José Américo,Assis Chateaubriand e Odilon Ribeiro Coutinho; a cearense Rachel<strong>de</strong> Queiroz; o maranhense Josué Montello, além <strong>de</strong> OctavioTarquínio, Dinah Silveira <strong>de</strong> Queiroz, Paulo Prado, Tiago <strong>de</strong> Melo,José Olympio, Carlos Drummond, Otto Maria Carpeaux, ÁlvaroLins, Portinari e Santa Rosa, entre vários outros.Incógnita. O Mestre Zé Amaro e o Coronel Lula <strong>de</strong> Holanda sãodois personagens importantes, que ponteiam na urdirura <strong>de</strong> quasetodo o Fogo morto, seu melhor romance. Ambos são homens voluntariosos.Ambos são sertanejos <strong>de</strong> ânimo forte. Ambos são pais <strong>de</strong>duas filhas patologicamente loucas: Marta e Olívia. Ambos são tambémvítimas <strong>de</strong> ataques convulsivos, ao que tudo indica, <strong>de</strong> fundo108


José Lins do Rego: cem anosepiléptico, embora José Lins não tenha usado uma só vez, nesse texto,a palavra epilepsia.Mas, além <strong>de</strong>sses dois personagens, persistem até o fim do livrouma curiosida<strong>de</strong> e uma incógnita, que em parte lembram a obra machadiana,no Dom Casmurro, com o mistério sobre a traição <strong>de</strong> Capitu:a curiosida<strong>de</strong>eaincógnita <strong>de</strong> sabermos se o Mestre Zé Amaro –que, mesmo protegido pelo Capitão Antonio Silvino, termina se suicidandono final – foi ou não foi um lobisomem.Misterioso ou não, a verda<strong>de</strong> é que esse foi José Lins do Rego Cavalcanti,que no dia 3 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 2001, um domingo, foi lembradopelos seus conterrâneos com gran<strong>de</strong>s e comoventes homenagens nasua Paraíba.Ele nos legou, ao fim dos escassos e efêmeros 56 anos <strong>de</strong> vida, aimagem <strong>de</strong> um escritor espontâneo, emocional, simpático, bemhumorado,rústico, franco, sarcástico, quase excêntrico, sem papasna língua, e que foi também um incomparável arquiteto <strong>de</strong> romances,um exímio construtor <strong>de</strong> enredos, um mo<strong>de</strong>lar arquétipo <strong>de</strong> dramas,um inteligente compositor <strong>de</strong> diálogos, um engenhoso mágico<strong>de</strong> trovas e um admirável narrador <strong>de</strong> histórias.109


Louis Pasteur(1822-1895)


Dom Pedro II e omédico sem diplomaCarlos A. LeiteEstá sendo comemorado o 105 o ano da morte <strong>de</strong> Louis Pasteur,a quem a humanida<strong>de</strong> ren<strong>de</strong> os tributos <strong>de</strong> admiração egratidão pela pioneira e incomensurável contribuição no tratamentoda raiva. Nascido em Dôle, no dia 27 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1822, Pasteurcresceu em Arbois, on<strong>de</strong> seu pai tinha uma indústria <strong>de</strong> curtume. Em1848 foi nomeado professor <strong>de</strong> Física no Liceu <strong>de</strong> Dijon, on<strong>de</strong> ficoupor pouco tempo, por não encontrar facilida<strong>de</strong>s laboratoriaispara <strong>de</strong>senvolver suas pesquisas. Já no ano seguinte conheceu a filhado reitor da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>de</strong> Estrasburgo, Ma<strong>de</strong>moiselle Marie Laurent,com quem se casou, <strong>de</strong>la recebendo companheirismo e <strong>de</strong>dicaçãopor mais <strong>de</strong> 45 anos.Sua carreira <strong>de</strong> pesquisador com a tranqüilida<strong>de</strong> doméstica começaentão a ganhar etapas rapidamente. Em 1857, ao ser nomeado diretor<strong>de</strong> estudos científicos da Escola Normal Superior, inicia umasérie <strong>de</strong> pesquisas que por 31 anos lhe iriam dar lugar <strong>de</strong> preeminênciana vida pública e na comunida<strong>de</strong> científica internacional.Aluno doInstituto Pasteur,<strong>de</strong> Paris. DoutorHonoris Causa daUNIG.111


Carlos A. LeiteO Instituto Pasteur <strong>de</strong> Paris, inaugurado em 14 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong>1888, obra perenal, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a sua fundação, teve um especial carinhopara com os cientistas brasileiros que ali trabalharam ou estagiaram,graças sobretudo aos aspectos humanitários marcantes, <strong>de</strong>sconhecidospor muitos, do nosso Imperador Dom Pedro II. Esses predicados<strong>de</strong> Dom Pedro II jamais seriam igualados pelos governantes donovo regime que seguiu à sua queda do po<strong>de</strong>r.Deve-se salientar que a produção científica mais intensa e notável<strong>de</strong> Pasteur seguiu-se ao episódio <strong>de</strong> hemorragia cerebral aos 45 anos<strong>de</strong> ida<strong>de</strong>. Esse médico sem diploma, como acentuou Xavier <strong>de</strong> Prévillena obra editada por Tolra e M. Simonet, confessava que “la sciencen’a pas <strong>de</strong> patrie”. Deste pensamento comungava, entre outros,o nosso Imperador, que nas suas viagens à Europa, ao largo dos prazeresfúteis, freqüentava as reuniões da Société <strong>de</strong> Secours <strong>de</strong>s Amis<strong>de</strong>s Sciences, on<strong>de</strong>, no dia 31 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 1877, discursando numasessão pública e notando a presença do nosso Imperador, Pasteur osaudou com cordiais palavras, adoçadas por respeito e carinho: “...SaMajesté, pendant son <strong>de</strong>rnier voyage à Paris, a été l’un <strong>de</strong>s bienfaiteurs<strong>de</strong> la Société. Vous serez hereux <strong>de</strong> saluer, avec moi, le premier etplus illustre <strong>de</strong>s amis <strong>de</strong> la Science”.Este reconhecimento público da generosida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Dom PedroII, embora intimamente o confortasse, atingia sua modéstia,embora na verda<strong>de</strong> ele tenha sido o último <strong>de</strong> nossos dirigentesa se preocupar com a ciência e <strong>de</strong>dicado aos nossos cientistasapreço e respeito, que nos tempos atuais lhes é negado por umpaís sem memória e sem escrúpulos. No discurso <strong>de</strong> posse na<strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> Francesa ocupando a vaga <strong>de</strong> Émile Littré – que nos<strong>de</strong>ixou, além da gran<strong>de</strong> obra sobre a vida <strong>de</strong> Hipócrates em <strong>de</strong>zvolumes, o dicionário <strong>de</strong> termos médicos que sobrevive até os112


Dom Pedro II e o médico sem diplomanossos dias – Pasteur acentuou as palavras que mais tar<strong>de</strong> iriamcompor o panegírico <strong>de</strong> Rui Barbosa na ausência <strong>de</strong> OsvaldoCruz: “...a gran<strong>de</strong>za das ações humanas me<strong>de</strong>-se pela inspiraçãoque lhe <strong>de</strong>u o ser. Feliz <strong>de</strong> quem traz em si um Deus, um i<strong>de</strong>al <strong>de</strong>beleza e lhe obe<strong>de</strong>ce: um i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> arte, i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> ciência, i<strong>de</strong>al <strong>de</strong>Pátria, i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> virtu<strong>de</strong>s do Evangelho, são estes os mananciaisvivos dos gran<strong>de</strong>s pensamentos e das gran<strong>de</strong>s ações. Todas elas,todos eles se alumiam dos reflexos do infinito...”. Dom PedroII, mesmo comandando um Brasil sem as facilida<strong>de</strong>s da comunicaçãoque po<strong>de</strong>mos contar nos dias <strong>de</strong> hoje, mantinha-se ligadoao Velho Mundo, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> surgiam as novida<strong>de</strong>s científicas. Em1882, após uma comunicação <strong>de</strong> Pasteur feita à <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> dasCiências e <strong>de</strong> Medicina, sobre as doenças microbianas, inclusivea febre amarela, Pasteur recebeu uma carta <strong>de</strong> nosso Imperadorconvidando-o a vir ao Brasil “estudar o micróbio da febre amarelae preparar uma vacina”. Esta carta foi entregue pessoalmentepelo Dr. Gorceix, diretor da Escola <strong>de</strong> Minas <strong>de</strong> Ouro Preto– está nos Arquivos do Instituto Pasteur <strong>de</strong> Paris – e <strong>de</strong>monstraa antevisão do progresso existente na mente sã <strong>de</strong> nosso Imperador,reforçando a amiza<strong>de</strong> que unia ambos humanistas.Após o anúncio no memorável 26 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 1885 da <strong>de</strong>scobertado tratamento preventivo da raiva, Pasteur adoeceu gravementeem Nice. Seu amigo brasileiro passou-lhe um telegrama:“... longue vie à celui qui a tant fait pour prolonger celle <strong>de</strong>s autres..”.A doença <strong>de</strong> Pasteur e o Prêmio “Jean Reynaud” conferidopela <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>de</strong> Ciências, ao final <strong>de</strong> 1886, apressaram asubscrição para a “Fundation Pasteur”, que culminaria com ainauguração do Institut Pasteur <strong>de</strong> Paris na rua Dutôt, hoje ruaDocteur Roux (médico <strong>de</strong> quem se valeu Pasteur, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1878,113


Carlos A. Leitepara evitar as críticas que sofria quando se apresentava pelas estradasda Medicina sem possuir o diploma legal <strong>de</strong> formação), naestação do Metrô Pasteur. À inauguração compareceram 600pessoas que pu<strong>de</strong>ram presenciar dois bustos, à direita e à esquerdada entrada principal, correspon<strong>de</strong>ntes a dois gran<strong>de</strong>s benfeitores:o Tzar da Rússia e o Imperador do Brasil. O reconhecimentopúblico <strong>de</strong> Pasteur manifestou-se mais uma vez no discurso: “SaMajesté le Sultanvoulait être un<strong>de</strong> nos souscripteurs; l’Empereur<strong>de</strong> Brésil, cet homme <strong>de</strong> science, inscrivait son nom avec lejoie d’un confrère, et le Tsar saluait le rétour <strong>de</strong>s russes qui nousavions traités par undonvraiment imperial.”Após ser <strong>de</strong>posto e exilado, D. Pedro II foi viver em Portugal e aoenviuvar transferiu-se para a França, residindo em Cannes e Paris. Onosso Dom Pedro d’Alcântara, como assinava então, continuava arespirar o ar das ciências e procurar o saber nas visitas às bibliotecas,museus e aca<strong>de</strong>mias. O inverno rigoroso <strong>de</strong> 1891 preparou a armadilhamortal. Em final <strong>de</strong> novembro, o nosso Dom Pedro foi acometido<strong>de</strong> episódio febril por pneumonia e no dia 5 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro ocorreuo óbito no Hôtel Bedford, na rua d’Arca<strong>de</strong> n. 17, no 8ème arrondissement.O Hôtel Bedford, em respeito ao ilustre e fiel hóspe<strong>de</strong>do apartamento 212, mantém a inscrição numa placa <strong>de</strong> bronze:“Dans cette maison a vécu ses <strong>de</strong>rniers jours l’Empereur <strong>de</strong> BrésilDon Pedro II. Grand patriote, protecteur <strong>de</strong>s sciences et <strong>de</strong>s arts,ami <strong>de</strong> son peuple.”Pasteur viria a falecer em 28 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 1895, porém oInstitut <strong>de</strong> Paris colocou na biblioteca, próximo à cripta <strong>de</strong> Pasteur,o busto em mármore branco do nosso Imperador ao lado do<strong>de</strong> Pasteur com a inscrição: “S.M. Don Pedro II Empereur duBrésil à l’Institut Pasteur, 1890.” A história da vida <strong>de</strong>sses dois114


Dom Pedro II e o médico sem diplomahomens unidos pelo <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> ajudar a humanida<strong>de</strong>, com lugarproeminente no panteão <strong>de</strong> benfeitores, forjou um elo in<strong>de</strong>strutívelno relacionamento dos cientistas brasileiros e franceses queperdura até os nossos dias, mantendo viva a chama do dístico: ACiência não tem Pátria.115


Pessoa: personagense poesiaMilton Vargas A psique do poetaSerá sem dúvida tarefa difícil e perigosa enfocar a poesia sob oponto <strong>de</strong> vista psicológico. No entanto, o aparecimento simultâneo<strong>de</strong> uma filosofia das formas simbólicas, <strong>de</strong> uma psicologia dos símbolose da poesia simbolista no fim do século passado e início doatual, tornou quase irresistível a tentação <strong>de</strong> um tal enfoque.Não pretendo, porém, <strong>de</strong> forma alguma dizer que o símbolo, ecom ele a poesia, sejam inteiramente redutíveis ao psicológico. Pelocontrário, foi o símbolo que assumiu em nossa época uma realida<strong>de</strong>na qual se radicam tanto a poesia como a psicologia.Se tivéssemos que escolher cinco gran<strong>de</strong>s poetas da primeira meta<strong>de</strong>do século XX para exemplificar a tese acima mencionada, sem dúvidacolocaríamos Fernando Pessoa entre eles. Os primeiros cinqüentaanos do século foram extraordinariamente ricos em poesia: Rilke,Yeats, Pound, Eliot, Ungaretti, Maiakovski, Lorca, Antônio Macha-Milton Vargas éprofessor daEscolaPolitécnica daUniversida<strong>de</strong> <strong>de</strong>São Paulo emembro da<strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong>Paulista <strong>de</strong><strong>Letras</strong>.117


Milton Vargasdo... Seria fácil enumerar <strong>de</strong>z gran<strong>de</strong>s poetas que emprestaram, paradoxalmente,à época do triunfo da tecnologia e das guerras mundiais,uma atmosfera poética comparável à dos períodos mais criativos dahistória. Ora, esses poetas, <strong>de</strong> um modo ou <strong>de</strong> outro, mostraram suafiliação ao Simbolismo e a melhor crítica <strong>de</strong> poesia que se fez entãotambém adotou o ponto <strong>de</strong> vista do símbolo.Depois disso, a fonte <strong>de</strong> criativida<strong>de</strong> poética parece vir se extinguindo.Depois do esplendor dos anos 20 a 40, fulgurou ainda achama <strong>de</strong> um St. John-Perse e o fogo lentamente se apagou. Mas estefenômeno talvez seja aparente, pois é possível que a crítica agora dominante,tanto a analítico-informática, quanto a <strong>de</strong> origem marxista,tenham sido incapazes <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificar uma nova poesia <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> valor.As correntes críticas citadas partem do princípio <strong>de</strong> que a poesiaé tão-somente produção <strong>de</strong> uma pessoa: o poeta. Se a poesia, porém,emerge do símbolo (o que se subenten<strong>de</strong> no pensamento simbólico)e o símbolo não é um produto pessoal, <strong>de</strong>ve-se concluir que a poesiatranscen<strong>de</strong> a instância meramente individual. É verda<strong>de</strong> que o momentopoético eclo<strong>de</strong> na mente do poeta, mas mesmo assim po<strong>de</strong>não ser produzido por ele, como pessoa. Lembremos a esse respeitoo inconsciente coletivo, na conceituação <strong>de</strong> Jung, como fonte possívelda fantasia criadora. Ele não é meu, não é teu, nem foi produzidopor alguém. Em suas camadas mais profundas, nem mesmo se po<strong>de</strong>dizer que pertença à humanida<strong>de</strong>, pois suas raízes mergulham na ancestralida<strong>de</strong>telúrica do orgânico, atingindo abismos insondáveis,que po<strong>de</strong>m ser assimilados ao que sempre se chamou <strong>de</strong> divino. Unea or<strong>de</strong>m urânica dos céus e as profundida<strong>de</strong>s da terra com o mundoe os homens. Põe o homem <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma realida<strong>de</strong> que ao mesmotempo é <strong>de</strong>le e o ultrapassa.A idéia romântica e pré-simbolista da poesia como verda<strong>de</strong> já aretira do contexto <strong>de</strong> produto do poeta. Para Hei<strong>de</strong>gger, a obra <strong>de</strong>arte é uma coisa feita pelo homem, mas não é isto que a estabelece118


Pessoa: personagens e poesiacomo obra <strong>de</strong> arte. Para ser obra <strong>de</strong> arte, essa coisa-feita-pelo-homem<strong>de</strong>ve revelar algo como verda<strong>de</strong>. Assim, pois, esse momento essencialda obra <strong>de</strong> arte está além do produzir humano, uma vez quepara a filosofia romântica a verda<strong>de</strong> é uma totalida<strong>de</strong> transcen<strong>de</strong>nte.A poesia como <strong>de</strong>svelamento é in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte e diversa do modo outécnica mediante os quais o produto foi produzido.Para o Simbolismo, a poesia é sempre uma manifestação do símboloatravés da palavra. As palavras teriam cargas simbólicas, conotações,que se enriqueceriam ao serem habilmente justapostas na poesia.Caberia, pois, ao poeta, o manejo dos símbolos, mas estes nãoseriam <strong>de</strong> forma alguma produto do poeta. Seriam como que átomos<strong>de</strong> criativida<strong>de</strong> ou fontes <strong>de</strong> realida<strong>de</strong>, cuja trajetória se dariaatravés do inconsciente que não pertence ao poeta como indivíduo.A poesia <strong>de</strong> Fernando Pessoa, cujas raízes simbolistas são evi<strong>de</strong>ntes,constitui uma excelente ilustração do que foi dito acima. Manifesta-sepor si mesma, como que in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte da pessoa que a produziu,e <strong>de</strong> forma alguma é explicável a partir <strong>de</strong> Pessoa como indivíduo.Este <strong>de</strong>sdobrava-se em pelo menos quatro personagens distintos.Como produto <strong>de</strong> uma pessoa, ou dos vários personagens, talpoesia não guarda característica alguma que a distinga univocamente.Mas <strong>de</strong>la brota algo <strong>de</strong> quem a fez: uma das maiores vozes poéticas<strong>de</strong> seu tempo.O conceito <strong>de</strong> pessoa tem duas acepções em português: a <strong>de</strong> umcentro <strong>de</strong> consciência e reflexão, como a <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> que “a almaimortal é, para o cristão, uma pessoa”. Aqui, a palavra indica um sernão só capaz <strong>de</strong> conhecer-se a si mesmo e à sua circunstância, comotambém <strong>de</strong> estabelecer uma relação <strong>de</strong> sujeito-objeto com as coisasque o ro<strong>de</strong>iam, além <strong>de</strong> uma relação intersubjetiva com as pessoas,sem que necessariamente com elas se confunda, ou nelas se perca. Asegunda acepçãoéa<strong>de</strong>pessoa como personagem, isto é, <strong>de</strong> alguémque <strong>de</strong>sempenha uma função, tal como na frase: “A pessoa impo-119


Milton Vargasnente do Imperador escondia um fraco.” A palavra liga-se aqui, etimologicamente,ao seu significado original <strong>de</strong> persona: máscara usadapelos atores do teatro antigo. O limite superior do primeiro significadoou acepção é a divinda<strong>de</strong>; e o limite inferior, a aparência do farsante.Aceitemos, pelo menos como hipótese <strong>de</strong> trabalho, que a estruturada alma humana seja a <strong>de</strong> um ápice consciente, enraizado numsubstrato inconsciente. No ápice, estará a pessoa humana, enquantoque o substrato carece <strong>de</strong> toda personalida<strong>de</strong> e individualida<strong>de</strong>.Confun<strong>de</strong>-se, assim, não só com o orgânico da humanida<strong>de</strong>, mastambém com a região psíquica on<strong>de</strong> se encontram os mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong>todo o comportamento humano. C.G. Jung chamou às camadasmais profundas <strong>de</strong>ssa região <strong>de</strong> “inconsciente coletivo”, e aos mo<strong>de</strong>los<strong>de</strong> comportamento, <strong>de</strong> “arquétipos do inconsciente coletivo”.A palavra pessoa po<strong>de</strong> então significar a harmoniosa organizaçãoda alma em torno <strong>de</strong> um centro que garanta a sua individualida<strong>de</strong>.Mas po<strong>de</strong> também significar um segmento da psique coletiva que,ao invadir a alma, domina o consciente, fazendo com que o indivíduose confunda com sua função social. É o fenômeno comum, nasocieda<strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rna, do indivíduo dominado por sua profissão: o senhorDiretor, o senhor Governador, etc.O primeiro significado correspon<strong>de</strong> aproximativamente ao queJung <strong>de</strong>nominou Si-mesmo e o segundo, à persona.Mas das profun<strong>de</strong>zas do inconsciente coletivo po<strong>de</strong>m também irromperna consciência figuras numinosas (os arquétipos), a mododaqueles “estranhos <strong>de</strong>uses que vêm e vão” na floresta do que somos,vindos daquilo que não sabemos até a clareira do nosso eu conhecido(Lawrence). Sob esse ponto <strong>de</strong> vista, o poeta é o ser particularmenteaberto à irrupção dos símbolos que vêm das profun<strong>de</strong>zas,do “antiquíssimo <strong>de</strong> nós”, tal como se exprime Fernando Pessoa, regiãoque não mais nos pertence, abrangendo toda a humanida<strong>de</strong> e120


Pessoa: personagens e poesiaancestralida<strong>de</strong>. Esta é a região do sagrado, do divino, para além dohumano.Fernando Pessoa, o poeta uno e múltiplo, mostrou-nos através <strong>de</strong>seus heterônimos como a conjunção do eu consciente do poeta coma multiplicida<strong>de</strong> da poesia po<strong>de</strong> dar-se. Fernando Pessoa é AlbertoCaeiro, o mestre <strong>de</strong> Álvaro <strong>de</strong> Campos, mas é também este último eo seu oposto: Ricardo Reis. E é também o outro Fernando Pessoa,ele mesmo.A Álvaro <strong>de</strong> Campos, o mais lúcido <strong>de</strong>ntre eles, coube explicar opor quê <strong>de</strong>ssa pluralida<strong>de</strong>:Quanto mais eu sinta, quanto mais eu sinta como várias pessoas,Quanto mais personalida<strong>de</strong> eu tiver,Quanto mais intensamente, estri<strong>de</strong>ntemente as tiver,Quanto mais simultaneamente sentir com todas elas,Quanto mais unificadamente diverso, dispersamente atentoEstiver, sentir, viver, for,Mais possuirei a existência total do universo,Mais completo serei pelo espaço inteiro fora,Mais análogo serei a Deus, seja ele quem for,Porque, seja ele quem for, com certeza que é tudoE fora d’Ele há só Ele, e Tudo para Ele é pouco.Essa fragmentação da personalida<strong>de</strong> não ameaçará o poeta, enquantoum centro interior as mantiver harmoniosamente consteladas,centro esse <strong>de</strong> certa forma análogo ao divino. No caso em questão,este centro consciente é Fernando Pessoa, ele mesmo, capaz <strong>de</strong>conhecer a gênese dos seus heterônimos. Diz ele: “O que FernandoPessoa escreve pertence a duas categorias <strong>de</strong> obras a que po<strong>de</strong>moschamar <strong>de</strong> ortônimas e heterônimas. Não se po<strong>de</strong>rá dizer que sãoanônimas ou pseudônimas; porque <strong>de</strong>veras não o são. A obra pseu-121


Milton Vargasdônima é do autor fora <strong>de</strong> sua pessoa, <strong>de</strong> uma individualida<strong>de</strong> completamentefabricada por ele, como seriam os dizeres <strong>de</strong> qualquerpersonagem <strong>de</strong> qualquer drama seu.”Foi o próprio Fernando Pessoa quem contou, em carta a CasaisMonteiro, que no dia 8 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 1914, inclinado sobre uma cômodaalta, escrevera, <strong>de</strong> um só jato, trinta e tantos poemas <strong>de</strong> AlbertoCaeiro, numa espécie <strong>de</strong> transe. Como a obra <strong>de</strong> Alberto Caeiro éconstituída pelos 49 poemas do “Guardador <strong>de</strong> rebanhos” e mais35 poemas inconclusos, datados <strong>de</strong> 1911 a 1915, conclui-se que naquelanoite houve a verda<strong>de</strong>ira e quase única irrupção do personagemCaeiro, na mente consciente do poeta.Contra essa versão há o fato do manuscrito do “Guardador <strong>de</strong> rebanhos”ser datado <strong>de</strong> 1911 a 1912; no mesmo manuscrito, só algunspoemas têm a data da mencionada noite <strong>de</strong> 7a8<strong>de</strong>março ao10 <strong>de</strong> maio seguinte.Imediatamente <strong>de</strong>pois, diz ele, escrevi os seis poemas que constituema “Chuva oblíqua”, <strong>de</strong> Fernando Pessoa. Diz ainda na mesmacarta: “Foi a reação <strong>de</strong> Fernando Pessoa contra a sua inexistênciacomo Alberto Caeiro.” Essa frase, entretanto, faz supor que o próprioFernando Pessoa fosse um outro, pondo-se no mesmo nível <strong>de</strong>Alberto Caeiro e disputando com ele a existência. Mas há um centro<strong>de</strong> consciência, em Pessoa, que mantém o controle da individualida<strong>de</strong>,sem o que o poeta po<strong>de</strong>ria per<strong>de</strong>r-se na noite da loucura.Suponho, aqui, que pela madrugada daquela noite memorável escrevesse,ao voltar a poetar como Caeiro, o final do último poema dasérie (o atual poema XLVI do “Guardador <strong>de</strong> rebanhos”):Isto sinto e isto escrevoPerfeitamente sabedor e sem que não vejaQue são cinco horas do amanhecerE o sol ainda não mostrou a cabeça122


Pessoa: personagens e poesiaPor cima do muro do horizonte,Ainda assim já se lhe vêem as pontas dos <strong>de</strong>dosAgarrando o cimo do muroDo horizonte cheio <strong>de</strong> montes baixos.E então, como na tragédia antiga, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> finda a luta dos <strong>de</strong>usese mortos os heróis, a vida retoma sua normalida<strong>de</strong>. A manhã <strong>de</strong>fim <strong>de</strong> inverno alvoreceu e o poeta contemplou <strong>de</strong> sua janela o porto,a igreja, a feira, o mundo, num dia <strong>de</strong> chuva oblíqua, entremeada<strong>de</strong> raios <strong>de</strong> sol, e centrou-se <strong>de</strong> novo em si mesmo, escrevendo:Atravessa esta paisagem o meu sonho dum porto infinitoE a cor das flores é transparente <strong>de</strong> as velas <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s navios.Difícil não ver nessa chuva oblíqua <strong>de</strong> madrugada a transição doinconsciente Caeiro para o consciente Pessoa, transformando-selentamente um no outro. Mas, uma vez concluída a transformação,como são diversos! O mesmo tornou-se, alquimicamente, o outro. Caeiro, o mestre do sensívelPor que teria sido Alberto Caeiro, tal como Fernando Pessoa o<strong>de</strong>clarou, o mestre dos três outros heterônimos? Sem dúvida, é ele opoeta do sensível. O que nos faz lembrar Aristóteles: nada há no intelectoque primeiro não estivesse nos sentidos. Assim, a primazia <strong>de</strong>Caeiro como mestre, afirma a primazia da sensibilida<strong>de</strong> que nele começando,passa para a intelectualida<strong>de</strong> dos outros. Caeiro é, portanto,o corpo dos outros. Se pensa, seu pensamento é sobre as sensações,tal como o diz no poema IX do “Guardador <strong>de</strong> rebanhos”:Sou um guardador <strong>de</strong> rebanhosO rebanho é os meus pensamentos123


Milton VargasE os meus pensamentos são todos sensações.Penso com os olhos e os ouvidosE com as mãos e os pésE com o nariz e a boca.Pensar uma flor é vê-la e cheirá-laE comer um fruto é saber-lhe o sentido.Por isso quando num dia <strong>de</strong> calorMe sinto triste <strong>de</strong> gozá-lo tanto,E me <strong>de</strong>ito ao comprido na erva,E fecho os olhos quentes,Sinto meu corpo <strong>de</strong>itado na realida<strong>de</strong>Sei a verda<strong>de</strong> e sou feliz.Eis o corpo! A realida<strong>de</strong> constituída pela totalida<strong>de</strong> das sensações,alcançada pelo mergulho do corpo inteiro no mar da sensibilida<strong>de</strong>.A estória do Menino Jesus contada no poema VII é uma tentativa<strong>de</strong> trazer o paraíso cristão para o reino da sensibilida<strong>de</strong>: o Meninofoge do céu, on<strong>de</strong> não há sensibilida<strong>de</strong>, e vem brincar na terra,com raios <strong>de</strong> luz e com flores e pedras, cuja gran<strong>de</strong> glóriaéa<strong>de</strong>simplesmenteexistirem na plenitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> suas cores, odores e tangibilida<strong>de</strong>.Esse poema revela uma nova maneira <strong>de</strong> viver, engolfada no sensível,que é, também, uma religião. Sem dúvida alguma há, nesse poema,uma antevisão do movimento hippie, cujo Deus, necessariamenteimanente, é a Criança Nova:A Criança Nova que habita on<strong>de</strong> vivoDá-me uma mão a mimE a outra a tudo que existeE assim vamos os três pelo caminho que houver,Saltando e cantando e rindo124


Pessoa: personagens e poesiaE gozando o nosso segredo comumQue é o saber por toda a parteQue não há mistério no mundoE que tudo vale a pena.Dessa religião <strong>de</strong> um Deus imanente que parece dominar o pensamentoreligioso atual, nasce uma ética da sensibilida<strong>de</strong>, já prenunciada,por exemplo, por um D.H. Lawrence.Veja-se como soa lawrenciano o final do poema XXXII:(Louvado seja Deus que não sou bom,E tenho o egoísmo natural das floresE dos rios que seguem o seu caminhoPreocupados sem o saberSó com fluir e ir correndo.É essa a única missão no mundoEssa – existir claramenteE saber fazê-lo sem pensar nisso)E o homem calara-se, olhando o poente.Mas que tem com o poente quem o<strong>de</strong>ia e ama?Compare-se esses versos com o que disse aquele suave e terrívelaristocrata, filho <strong>de</strong> mineiro, que viveu na Inglaterra nessa mesmaépoca:And whoever forces himself to love anybodybegets a mur<strong>de</strong>r in his own body.Entretanto, Caeiro, no seu Penúltimo Poema, admite que a realida<strong>de</strong>,além das sensações, tem mais uma componente. Há que fazerconjeturas sobre as sensações, e isto é o que distingue o poeta dosoutros seres, pois em suas conjeturas ele chega à verda<strong>de</strong>:125


Milton VargasTambém sei fazer conjeturasHá em cada coisa aquilo que ela é que a anima.Na planta está por fora e é uma ninfa pequena.No animal é um ser interior longínquo,No homem é a alma que vive com ele eéjáele.Nos <strong>de</strong>uses tem o mesmo tamanhoÉ o mesmo espaço que o corpoE é a mesma cousa que o corpo.Por isso se diz que os <strong>de</strong>uses nunca morrem.Por isso os <strong>de</strong>uses não têm corpo e almaMas só corpo e são perfeitosO corpo é que lhes é almaE têm a consciência na própria carne divina.Estranha conclusão, tão lógica, a que Caeiro chega, sobre a corporalida<strong>de</strong>dos <strong>de</strong>uses. Se a realida<strong>de</strong> é inicialmente sensação sobre aqual o poeta <strong>de</strong>ve conjeturar, é evi<strong>de</strong>nte a corporalida<strong>de</strong> dos <strong>de</strong>uses,uma vez que eles são a fonte da realida<strong>de</strong>. Só eles po<strong>de</strong>rão usufruir atotalida<strong>de</strong> do real.Sabe-se, através <strong>de</strong> Fernando Pessoa, que Alberto Caeiro só teveinstrução primária. Era órfão <strong>de</strong> pai e mãe. Nasceu em 1889 e nãoteve profissão. Viveu quase toda a sua vida no campo, em companhia<strong>de</strong> uma tia, meia avó. Porém, com uma vida tão simples e esquemática,Caeiro é talvez o mais coerente, íntegro e conciso dos quatroheterônimos. E por isso mereceu ser o mestre <strong>de</strong> todos, recolhendoos dados da sensibilida<strong>de</strong> que <strong>de</strong>pois foram elaborados pelos outros. Fernando Pessoa ortônimoMas Fernando Pessoa não é só Caeiro; é também os três outros,sem que o ser quádruplo lhe turve a personalida<strong>de</strong> única. E entre osquatro, sem distinção possível, está o seu ortônimo: Fernando Pessoa.126


Pessoa: personagens e poesiaJá se tentou mostrar como seria possível interpretar a passagem<strong>de</strong> Caeiro a Pessoa através <strong>de</strong> um dos últimos poemas do “Guardador<strong>de</strong> rebanhos”, e os primeiros versos <strong>de</strong> “Chuva oblíqua”, escritosna mesma famosa madrugada já citada. Foi o final da paixãonoturna, quando a sensibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Caeiro <strong>de</strong>rramou-se, ao romperdo dia, em Fernando Pessoa. Finda a alegria dos sentidos, veio atristeza da constatação do infortúnio que ro<strong>de</strong>ia o poeta – ser estranho,lançado num mundo inóspito Caeiro não pensa, mas é coerente.Fernando Pessoa per<strong>de</strong>-se no tumulto do pensamento e fogedas sensações, procurando refúgio no que não é real. Aparece entãoa figura do poeta, como um fingidor que finge completamente ador que <strong>de</strong>veras sente.E os que lêem o que escreveuNa dor lida sentem bemNão as duas que ele teveMas só as que ele não tem.Assim, segundo o que o próprio Fernando Pessoa publicou nonúmero 17 da revista Presença, aquilo que Pessoa escreve sob outronome, não é obra pseudônima, em seu sentido mais simples, mas ortônima.A obra <strong>de</strong> Fernando Pessoa não po<strong>de</strong>ria ser simplesmente divididaem própria e heterônima, e muito menos em própria e sinônima. Ela éortônima e heterônima. Ora, ortônima quer dizer a que é certamenteprópria, enquanto heterônima é aquela que é certamente <strong>de</strong> outro.Atrever-nos-emos agora a formular a seguinte teoria, <strong>de</strong>slocandoa abordagem para uma análise literária e não psicológica da obra <strong>de</strong>Fernando Pessoa. O poeta, ao escrever, adotando o nome do indivíduofísico Fernando Pessoa, não se confundiria com o cidadão portuguêsque viveu sob aquele nome em Lisboa, entre 1920 e 1935.127


Milton VargasA expressão “em sua pessoa”, <strong>de</strong>signando o autor, sugere que,embora não sendo o mesmo que a pessoa física, constitui o centroconsciente que dá unida<strong>de</strong> aos <strong>de</strong>mais. É a pessoa <strong>de</strong> Fernando Pessoaaquele centro a que nos referimos, <strong>de</strong>finindo a primeira das duasacepções do termo e equiparando-a ao Si-mesmo <strong>de</strong> Jung. Os heterônimos:Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro <strong>de</strong> Campos são personagensparciais, emergências do plural interior do poeta, advindas<strong>de</strong> um fundo abissal inconsciente.Aliás, o próprio Fernando Pessoa confirma tal coisa, ao dizer quesua poesia tem o sentido teatral do drama. Isto é um fato e, como tal,po<strong>de</strong>ria ser analisado objetivamente pela psicologia. Entretanto, essaanálise não é nossa meta, a não ser inci<strong>de</strong>ntalmente, para <strong>de</strong>scobrircertos condicionamentos da criativida<strong>de</strong> poética. A estrutura do psiquismo<strong>de</strong> Pessoa parece-nos realmente reveladora <strong>de</strong> algo necessárioa toda criativida<strong>de</strong> poética. A pessoa (na primeira acepção do termo)do poeta é marcada in<strong>de</strong>levelmente por uma unicida<strong>de</strong> inabalável– fonte don<strong>de</strong> jorra o poema que sempre traz em si a marca única<strong>de</strong> seu criador. Mas, paradoxalmente, o poeta é também aquele que écapaz <strong>de</strong> falar através <strong>de</strong> personagens, isto é, <strong>de</strong> livrar-se <strong>de</strong> sua personalida<strong>de</strong>própria, aparecendo como outro. É capaz <strong>de</strong> “fingir” e,fingindo, comparece como personagem.Dessa forma, a poesia <strong>de</strong> Pessoa é extremamente esclarecedorapara explicar o fenômeno psicológico da criativida<strong>de</strong> poética.Segundo C.G. Jung, a psicologia po<strong>de</strong> aparecer na obra literária<strong>de</strong> duas formas: nas chamadas obras <strong>de</strong> caráter psicológico e nas <strong>de</strong>caráter visionário. Nas primeiras, o autor discorre conscientementesobre fatos e questões que envolvem a psicologia. Em geral, esse repertóriose refere a uma série <strong>de</strong> preconceitos, crenças ou constataçõessubjetivas do próprio autor. No máximo, po<strong>de</strong>rá haver emergênciasdo seu inconsciente pessoal. Já na obra visionária nada se encontra<strong>de</strong> puramente subjetivo. O que aparece, através <strong>de</strong> símbolos e128


Pessoa: personagens e poesiamitos, fatos e atos, diz respeito não à psicologia do autor, mas à psicologiacoletiva. No primeiro caso, há uma fabulação consciente doautor; no segundo, irrompem forças do psiquismo, que escapam aocontrole do criador. Trata-se <strong>de</strong> estratos do inconsciente coletivo –que forma o embasamento inconsciente <strong>de</strong> toda a psique humana,espécie <strong>de</strong> repositório <strong>de</strong> toda a experiência da humanida<strong>de</strong>. Comoexemplos <strong>de</strong>sses dois tipos <strong>de</strong> obra literária, Jung cita as duas partesdo Fausto, <strong>de</strong> Goethe. Na primeira, trata-se do relato claro e conscientedo drama psicológico pessoal <strong>de</strong> Fausto e <strong>de</strong> Margarida. Na segunda,já não se trata <strong>de</strong> Fausto, mas <strong>de</strong> todo o <strong>de</strong>monismo e <strong>de</strong>sejo<strong>de</strong> salvação inatos na alma humana. Em lugar <strong>de</strong> Margarida apareceHelena e o Eterno Feminino.É verda<strong>de</strong>, como diz Jung, que “a essência da obra <strong>de</strong> arte não éconstituída pelas particularida<strong>de</strong>s pessoais que pesam sobre ela(quanto mais numerosas forem as particularida<strong>de</strong>s, menos se trata<strong>de</strong> arte). Pelo contrário, consiste no fato <strong>de</strong> elevar-se muitoacima do pessoal”. No entanto, o psiquismo do poeta é como acrisálida on<strong>de</strong> se conforma o poema e, portanto, este, <strong>de</strong> algummodo, mantém a forma mentis do poeta. Há aqui um paradoxoque o próprio Jung indica ao afirmar: “Todo ser criador representauma dualida<strong>de</strong> ou uma síntese <strong>de</strong> dualida<strong>de</strong>s paradoxais;por um lado, é homem e pessoal e, por outro, é um processo semprehumano, mas impessoal.”É inevitável, lendo esta frase, <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> pensar na dualida<strong>de</strong> <strong>de</strong>Fernando Pessoa como ortônimo e como seus três heterônimos.Note-se bem que, segundo o próprio Pessoa, não se trata <strong>de</strong> alguémcujo nome oficial é Fernando Pessoa e que assina alguns <strong>de</strong> seus poemasconstruídos <strong>de</strong> modo peculiar, com pseudônimos correspon<strong>de</strong>ntes.Trata-se <strong>de</strong> uma estrutura psicológica constituída por umcentro consciente – que se chama Fernando Pessoa–e<strong>de</strong>personagensque, como nós <strong>de</strong> energia psíquica, irrompem no consciente,129


Milton Vargas<strong>de</strong>le se apo<strong>de</strong>rando, e <strong>de</strong>le fazendo seu instrumento. Segundo a concepçãojunguiana expressa em “Psicologia e poesia” e en<strong>de</strong>reçando-aa Fernando Pessoa por minha conta: “Em última análise, o que oanima e nele quer não é ele mesmo enquanto instância pessoal, mas aobra <strong>de</strong> arte a criar.”Para conferirmos esta temática com a realida<strong>de</strong>, seria necessáriorecorrer a alguém que tivesse convivido com ele, e dotado <strong>de</strong> sensibilida<strong>de</strong>para captar os sinais que confirmassem ou negassem o que foidito. Esse alguém felizmente existiu. Foi Casais Monteiro, que nosforneceu os dados que confirmam a teoria.Neste sentido, Casais Monteiro cita dois pontos <strong>de</strong> real importância.Primeiro, testemunha que os heterônimos não são “invençõesda inteligência” <strong>de</strong> Fernando Pessoa, antes, brotando “instintivae subconscientemente” <strong>de</strong> sua mente. De início, os personagensbrotam autônomos, como no caso <strong>de</strong> Alberto Caeiro na noite<strong>de</strong> 8 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 1914. Só então é que o centro consciente <strong>de</strong> Pessoaos “fixa em mol<strong>de</strong>s <strong>de</strong> realida<strong>de</strong>”, como diz o próprio poeta emcarta a Casais Monteiro: “Graduei as influências, conheci as amiza<strong>de</strong>s,ouvi <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> mim as discussões e as divergências <strong>de</strong> critérios,e, em tudo isso, me parece que fui eu, criador <strong>de</strong> tudo, o menos que alihouve. Parece que tudo se passou in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente <strong>de</strong> mim. E pareceque assim se passa.”O segundo ponto importante no <strong>de</strong>poimento <strong>de</strong> Casais Monteiroé sua observação acerca da intemporalida<strong>de</strong> e da falta <strong>de</strong> evolução dapoesia <strong>de</strong> Fernando Pessoa, confirmada e admitida pelo próprio poeta.Diz ele: “Tenho uma vaga idéia <strong>de</strong> ter escrito a Fernando Pessoamais ou menos neste teor: a sua obra me parecia testemunha <strong>de</strong> umaintemporalida<strong>de</strong> quase absoluta, não havendo nela nem passado, nemfuturo; mas apenas um eterno atual, que é o verda<strong>de</strong>iro tempo em que<strong>de</strong> fato vivem os gran<strong>de</strong>s imaginativos.” Ao que respon<strong>de</strong>u FernandoPessoa: “O que sou essencialmente por trás das máscaras involuntárias130


Pessoa: personagens e poesiado poeta, do raciocinador e do que mais haja – é dramaturgo. O fenômenoda minha <strong>de</strong>spersonalização instintiva... conduz naturalmente aessa <strong>de</strong>finição. Sendo assim, não evoluo: VIAJO.”Ora, a intemporalida<strong>de</strong> é uma característica fundamental do inconscientecoletivo. Nele, presente, passado e futuro se presentificamnos símbolos oníricos que vêm da mais longínqua antiguida<strong>de</strong> enos presságios que freqüentemente acompanham as irrupções do inconsciente.Nada evolui, tudo é o que sempre foi na origem e talcomo é agora no inconsciente. Por isso, nos sonhos, essa região aparececomumente como a dos mortos, dos túmulos e do que permaneceenterrado na memória. É interessante notar como FernandoPessoa substitui a evolução pela viagem. É que a viagem está ligadasimbolicamente ao transpassar através das fronteiras do espaço e dotempo para as regiões <strong>de</strong>sconhecidas e ocultas do originário: o quepermanece sempre aquilo que é.“Impressões do crepúsculo” é uma das primeiras revelações <strong>de</strong>Fernando Pessoa, ortônimo. Numa seleção da Poesia <strong>de</strong> FernandoPessoa, feita e prefaciada por Adolfo Casais Monteiro (EditorialConfluência, Lisboa, 1945), tal poema consta <strong>de</strong> duas partes. Naprimeira, comparece a origem: “Ó sino da minha al<strong>de</strong>ia, / Dolentena tar<strong>de</strong> calma, / Cada tua badalada / Soa <strong>de</strong>ntro da minha alma.”Mas é na segunda que o poeta universal diz quem é, ou, pelo, menos,quem foi <strong>de</strong> início:Pauis <strong>de</strong> roçarem ânsias pela minh’alma em ouro...Dobre longínquo <strong>de</strong> Outros Sinos... Empali<strong>de</strong>ce o louroTrigo na cinza do poente... Corre um frio carnal por minh’almaTão sempre a mesma, a Hora!... Balançar <strong>de</strong> cimos <strong>de</strong> palma!.......................................................................................................Címbalos <strong>de</strong> Imperfeição... Ó tão Antiguida<strong>de</strong>A Hora expulsa <strong>de</strong> si-Tempo! Onda <strong>de</strong> recuo que inva<strong>de</strong>131


Milton VargasO meu abandonar-me a mim próprio até <strong>de</strong>sfalecer,E recordar tanto o Eu presente que me sinto esquecer!...Fluido <strong>de</strong> auréola, transparente <strong>de</strong> Foi, oco <strong>de</strong> ter-se...O Ministério sabe-me a eu ser outro... Luar sobre o não-conter-se...Apesar <strong>de</strong> Casais Monteiro ter afirmado que o próprio FernandoPessoa renegara esses poemas como um compromisso do “futurismo”com o público do Portugal <strong>de</strong> então, talvez por isso mesmo elesnos dêem a impressão <strong>de</strong> uma confidência do que é a gente <strong>de</strong> línguaportuguesa. Gente espalhada pelos cinco continentes, tão separada eno entanto tão unida por essa <strong>de</strong>lirante ânsia <strong>de</strong> futuro radicada nopassado. Esse constante estar só e em outras partes, esperando e seaventurando em coisas impossíveis do futuro. Esse atirar-se para asvisões futuras do espaço sem fim, sonhando e esperando, porémsempre saudosa do passado originário.Já se disse que a preocupação máxima <strong>de</strong> Fernando Pessoa ortônimoera a luci<strong>de</strong>z. Gilberto Kujawski observou, porém, com exatidão:“Todo afã <strong>de</strong> luci<strong>de</strong>z <strong>de</strong> Fernando Pessoa se reduz à consciência obsessiva<strong>de</strong> seus estados <strong>de</strong> consciência.” Em outro ensaio, Kujawskidiz: “A psicologia da própria criação artística e da contemplação domundo era objeto <strong>de</strong> sua lúcida consciência.” Mas, do que era autoconscienteo poeta? Ele se sabia, primeiramente, poeta, intermediárioentre os <strong>de</strong>uses e seu povo. Isto se evi<strong>de</strong>ncia no poema XIII dos“Passos da Cruz”:Emissário <strong>de</strong> um rei <strong>de</strong>sconhecido,Eu cumpro informes instruções do além,E as bruscas frases que aos meus lábios vêmSoam-me a um outro e anômalo sentido...Inconscientemente me dividoEntre mim e a missão que o meu ser tem,132


Pessoa: personagens e poesiaE a glória do meu Rei dá-me o <strong>de</strong>sdémPor este humano povo entre quem lido...Mas não advertia talvez que sua missão, como poeta, era a <strong>de</strong> dizero que ainda não fora dito: aquilo que se situa no limiar do inaudito.Mas efetivamente disse o que jamais fora dito; por exemplo:Ó tocadora <strong>de</strong> harpa, se eu beijasseTeu gesto, sem beijar tuas mãos,E, beijando-o, <strong>de</strong>scesse p’los <strong>de</strong>svãosDo sonho, até que enfim eu o encontrasseTornado Puro Gesto, gesto-faceDa medalha sinistra – reis cristãosAjoelhando, inimigos e irmãosQuando processional o andor passasse!Não creio que se tenha conseguido maior beleza em versos portugueses.Mas o que é esse gesto musical inatingível, tão real e tão ligadoao sonho? Será o indizível essencial que há por <strong>de</strong>trás <strong>de</strong> toda agloriosa e exuberante festa do existir? O inefável gesto por <strong>de</strong>trás daexistência nua da mão que tange a harpa. Creio que o poeta conseguiurevelar a beleza cristalina daquilo que é único, eterno e perfeitopor <strong>de</strong>trás das aparências fugazes. Ricardo ReisDe acordo ainda com a célebre carta sobre a origem dos heterônimos,enviada por Pessoa a Casais Monteiro, Ricardo Reis apareceu(sem que o poeta o percebesse), por volta <strong>de</strong> 1912, quando lheveio à mente escrever poemas <strong>de</strong> índole pagã, em versos irregulares.A idéia não vingou, os poemas não saíram; mas foi entrevisto “um133


Milton Vargasvago retrato da pessoa que estava a fazer aquilo.” Somente um anoe meio a dois anos <strong>de</strong>pois, com a intenção <strong>de</strong> burlar-se <strong>de</strong> Sá Carneiro– seu amigo suicida – “inventou” um poeta bucólico: AlbertoCaeiro, que aparece pronto e acabado na noite <strong>de</strong> 8 <strong>de</strong> março <strong>de</strong>1914. “Aparecido Alberto Caeiro, tratei logo <strong>de</strong> lhe <strong>de</strong>scobrir instintivae subconscientemente uns discípulos. Arranquei do seu falsopaganismo o Ricardo Reis latente, escolhi-me o nome e ajustei-oa si mesmo, porque nessa altura já o via.” Surgiu então, entreoutros, o poema:As rosas amo dos jardins <strong>de</strong> Adônis,Essas volucres amo, Lídia, rosas,Que em o dia em que nascem,Em esse dia morrem.A luz para elas é eterna, porqueNascem nascido já o sol e acabam.Lendo os versos acima, compreen<strong>de</strong>r-se-á o que <strong>de</strong>sse heterônimodiz Pessoa: “Pus em Ricardo Reis toda a minha disciplina mental,vestida da maneira que lhe é própria.” Ricardo Reis, nascido em1887 no Porto, formou-se em medicina e imigrou para o Brasil em1919, por ser monarquista, e on<strong>de</strong> vivia ainda em 1935. Era baixo eforte “<strong>de</strong> um vago moreno mate”, homem cuja <strong>de</strong>liberada abstraçãosó se concretizava em o<strong>de</strong>s que, em certos momentos, lhe vinham <strong>de</strong>repente. Sem dúvida um epicurista, transformava as circunstânciasem algo semelhante ao que ele imaginava ser o mundo clássico em<strong>de</strong>cadência, uma vez que o epicurismo assim era entendido em suaépoca. O que transparece nos seus versos é que há um mundo da naturezaanterior a nós, no qual estamos imersos. E a felicida<strong>de</strong> coinci<strong>de</strong>com uma entrega total <strong>de</strong> si mesmo à sabedoria, sem preten<strong>de</strong>r àglória ou a qualquer compensação <strong>de</strong>la <strong>de</strong>corrente. É o que exprimenestes versos:134


Pessoa: personagens e poesiaAntes <strong>de</strong> nós nos mesmos arvoredosPassou o vento, quando havia vento,E as folhas não falavamDe outro modo do que hoje.Passamos e agitamo-nos <strong>de</strong>bal<strong>de</strong>Não fazemos mais ruído no que existeDo que as folhas das árvoresOu os passos do vento.Tentemos pois com abandono assíduoEntregar nosso esforço à NaturezaE não querer mais vidaQue a das árvores ver<strong>de</strong>s.Para o poeta, assim como para os gregos da <strong>de</strong>cadência, além danatureza há um outro mundo –oda“alta praia on<strong>de</strong> o mar é tempo”.Tal mundo não nos pertence, mas aos <strong>de</strong>uses que tão distantesestão <strong>de</strong> nós, nesta época <strong>de</strong> carência. Apegamo-nos à certeza e à evidênciaimediata da natureza. Mas, apesar disso:Acima da Verda<strong>de</strong> estão os <strong>de</strong>uses,A nossa ciência é uma falhada cópiaDa certeza com que elesSabem que há o Universo.Pois bem, para ler as “O<strong>de</strong>s” <strong>de</strong> Ricardo Reis é necessário envolver-nosna ataraxia epicurista – aquela nobre e bela atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong>distância em que “todo <strong>de</strong>sejo inquieto se dissolve no amor da verda<strong>de</strong>ira‘sabedoria’... por on<strong>de</strong> se po<strong>de</strong> alcançar a verda<strong>de</strong>ira ‘liberda<strong>de</strong>’.E acima disso há a divinda<strong>de</strong>: incorruptível, livre <strong>de</strong> preocupaçõese cuidados, acima <strong>de</strong> qualquer ira, assim como também <strong>de</strong> qual-135


Milton Vargasquer benevolência”. Tanto o ódio como o amor são fraquezas humanas,incompatíveis com a perfeição dos <strong>de</strong>uses. Esperar serenamentea morte, quando nos tornamos “Vultos solenes <strong>de</strong> repenteantigos”. A morte é a verda<strong>de</strong>ira libertadora <strong>de</strong> todo o terreno e dolorosoapego às coisas e às pessoas. E quando chegar o momento:Não tenhas nada nas mãosNem uma memória na alma,Que quando te puseremNas mãos o óbolo último,Ao abrirem-te as mãosnada te cairá.Que trono te querem darQue Atropos te não tire?Que louros que não foremNos arbítrios <strong>de</strong> Minos?Que horas que te tornemDa estatura da sombraQue serás quando foresNa noite e ao fim da estrada?Colhe as flores, mas larga-as,Das mãos mal as olhaste.Senta-te ao sol. AbdicaE sêrei <strong>de</strong> ti próprio.Compare-se isto com o fragmento <strong>de</strong> Epicuro: “Habitua-te apensar que a morte nada é para nós, visto que todo mal e todobem se encontram na sensibilida<strong>de</strong>: e a morte é a privação da sensibilida<strong>de</strong>.”É sob a impressão profunda da ataraxia helenística que se <strong>de</strong>ve lera “O<strong>de</strong>” seguinte:136


Pessoa: personagens e poesiaVem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio.Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamosQue a vida passa, e não estamos <strong>de</strong> mãos enlaçadas.(Enlacemos as mãos.)................................................................................................Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos,Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.Mais vale saber passar silenciosamenteE sem <strong>de</strong>sassocegos gran<strong>de</strong>s.................................................................................................E se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio,Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me <strong>de</strong> ti.Ser-me-ás suave à memória, lembrando-te assim – à beira-rio.Pagã triste e com flores no regaço.E <strong>de</strong>sse pedaço <strong>de</strong> mármore frio roubado às minas <strong>de</strong> uma cida<strong>de</strong>antiga pelo “brasileiro” Ricardo Reis, passemos à labareda do últimodos heterônimos <strong>de</strong> Pessoa. Álvaro <strong>de</strong> CamposEm abril <strong>de</strong> 1915 apareceu o primeiro número da revista Orfeu,eem maio, o segundo e último. No primeiro número publicou-se a“O<strong>de</strong> triunfal” e, no segundo, a “O<strong>de</strong> marítima”, ambas do poeta“futurista” Álvaro <strong>de</strong> Campos, um outro Fernando Pessoa. Em1917, o único número da revista <strong>de</strong> Almada Negreiros, Portugal Futurista,publica o “Ultimato” <strong>de</strong> Álvaro <strong>de</strong> Campos, que se classificaraa si mesmo como poeta sensacionista. Tanto os poemas como o“manifesto” correspon<strong>de</strong>m à onda <strong>de</strong> insurreição insuflada por Marinettique, nessa época, abalou a crítica <strong>de</strong> arte.137


Milton VargasÁlvaro <strong>de</strong> Campos apareceu como uma reação a Ricardo Reis,pois logo que Fernando Pessoa conseguiu “ver” Ricardo Reis, bateua máquina, num jato, a “O<strong>de</strong> triunfal”. Assim surgiu, diz FernandoPessoa, “a O<strong>de</strong> com esse nome, e o homem com o nome que tem”.Na mesma carta a Casais Monteiro, Pessoa revela que “Álvaro <strong>de</strong>Campos nasceu em Trevira, no dia 15 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 1890, à uma emeia da tar<strong>de</strong> (feito o horóscopo a essa hora, está certo)... é engenheironaval (por Glasgow), mas agora está aqui em Lisboa, em inativida<strong>de</strong>...é alto (1,75 m <strong>de</strong> altura, mais 2 cm do que eu), magro eum pouco ten<strong>de</strong>nte a curvar-se... Cara raspada... entre branco e moreno,tipo vagamente <strong>de</strong> ju<strong>de</strong>u português, cabelo, porém, liso e normalmenteapartado ao lado, monóculo”.Fernando Pessoa, ao explicar a gênese dos heterônimos, <strong>de</strong>clara-sehistérico ou hístero-neurastênico e afirma: “Se eu fosse mulher– na mulher os fenômenos histéricos rompem em ataque e coisas parecidas–, cada poema <strong>de</strong> Álvaro <strong>de</strong> Campos (o mais histericamentehistérico em mim) seria um alarme para a vizinhança.” Portanto,Álvaro <strong>de</strong> Campos seria para Fernando Pessoa rumor e estardalhaço,em reação à calma ataraxia <strong>de</strong> Ricardo Reis. Conseqüentemente, assim<strong>de</strong>ve ser lido e entendido. Po<strong>de</strong>r-se-ia dizer que os poemas <strong>de</strong>Álvaro <strong>de</strong> Campos são os que mais correspon<strong>de</strong>m à imagem que setem da vida real <strong>de</strong> Pessoa. Vivendo em Lisboa <strong>de</strong> 1914 a 1936, daprimeira Gran<strong>de</strong> Guerra até o expurgo stalinista, sua situação nãodifere essencialmente da <strong>de</strong> Yeats, <strong>de</strong> Eliot, <strong>de</strong> Pound, que vivem emLondres ou Paris. São poetas <strong>de</strong> um tempo <strong>de</strong> carência (na expressão<strong>de</strong> Höl<strong>de</strong>rlin), enquanto uma arte menor que a <strong>de</strong>les explo<strong>de</strong> e sefragmenta nos diversos movimentos mo<strong>de</strong>rnistas e futuristas. Sãoeles os poetas “D’entre <strong>de</strong>ux guerres”, cujo valor só será estabelecidoem termos a<strong>de</strong>quados em 1945 e <strong>de</strong>pois. São filhos tardios do Simbolismoe embora também contaminados pela iconoclastia revolucionáriado Futurismo, conservam a preocupação do arcaísmo, implícitoem tudo que é simbólico. Não é Alberto Caeiro, nem Ricardo138


Pessoa: personagens e poesiaReis, ou Fernando Pessoa que mais agudamente participam <strong>de</strong>ssa situação.Álvaro <strong>de</strong> Campos é quem a vive intensamente. É ele, emFernando Pessoa, o poeta europeu, irmão dos gran<strong>de</strong>s <strong>de</strong> seu tempo,com eles participando do que <strong>de</strong>veria ser vivido e transmitido ao seupovo. Po<strong>de</strong>-se dizer, <strong>de</strong> certo modo, que Álvaro <strong>de</strong> Campos é maisFernando Pessoa do que o próprio Fernando Pessoa. É ele quem falano “antiquíssimo <strong>de</strong> nós”, no fragmento da O<strong>de</strong> que começa:Vem, Noite, antiquíssima e idêntica,Noite Rainha nascida <strong>de</strong>stronada,Noite igual por <strong>de</strong>ntro ao silêncio, NoiteCom as estrelas lantejoulas rápidasNo teu vestido franjado <strong>de</strong> Infinito.Vem, vagamente,Vem, levemente,Vem sozinha, solene,..........................................................................................Nossa SenhoraDas coisas impossíveis que procuramos em vão,Dos sonhos que vem ter conosco ao crepúsculo, à janela..........................................................................................Vem, e embala-nos,Vem e afaga-nosBeija-nos silenciosamente na fronteTão levemente na fronte que não saibamos que nos beijamSenão por uma diferença na alma.E um vago soluço partindo melodiosamenteDo antiquíssimo <strong>de</strong> nósOn<strong>de</strong> têm raiz todas essas árvores <strong>de</strong> maravilhaCujos frutos são os sonhos que afagamos e amamosPorque os sabemos fora <strong>de</strong> relação com o que há na vida.139


Milton VargasPensemos nos “instructors” <strong>de</strong> Yeats, na figura do “jardim dasrosas” <strong>de</strong> Eliot, no “Anjo terrível” <strong>de</strong> Rilke, nas “personae” <strong>de</strong>Pound, e compreen<strong>de</strong>remos a unida<strong>de</strong> da gran<strong>de</strong> poesia européia daprimeira meta<strong>de</strong> do século XX.Na origem <strong>de</strong> nossa cultura, o protótipo <strong>de</strong>sta poesia se encontrano “Hino à Noite”, <strong>de</strong> Orfeu: 1Eu vou cantar aquela que gerou homens e <strong>de</strong>uses, eu vou cantar a Noite.A Noite é a fonte do universo, Cipris é também seu nome.Ouve-nos, divinda<strong>de</strong> bem-aventurada, cintilante <strong>de</strong> estrelas,Negro Sol, que alegra e torna calmo o sono múltiplo.Ó felicida<strong>de</strong>, ó <strong>de</strong>slumbramento, Rainha das vigílias, Mãe dos sonhos,Ó Consoladora, que acalmas todas as misérias.Ó adormentadora, Cavaleira, Luz negra, Amiga universal,Ó Inacabada, que ora pertences ao céu, ora à terra:Ó arredondada, que brincas com tenebrosos ímpetos,Ó tu que expulsas a luz do reino dos mortos e a ele retornas.A terrível Fatalida<strong>de</strong> é <strong>de</strong> todas as coisas a soberana!Ó Noite bem-aventurada, fartura <strong>de</strong> <strong>de</strong>lícias, ó universal ternura,Escutando a voz que, súplice, te implora, possas, ó Indulgente,Livrar-nos dos terrores que brilham na sombraE ser-nos propícia.1 Tradução <strong>de</strong>Dora Ferreirada SilvaEsta matriz órfica revela-se claramente na O<strong>de</strong> fragmentária <strong>de</strong>Álvaro <strong>de</strong> Campos. Mãe e Fonte <strong>de</strong> todo o imaginário, o “antiquíssimo<strong>de</strong> nós” é uma antevisão poética do inconsciente coletivo.O transbordamento <strong>de</strong>sses sonhos do profundíssimo toma,muitas vezes, a forma <strong>de</strong> um ilimitado amor pela natureza, oupelo mundo mo<strong>de</strong>rno, tal como é, com toda a sua problemática,ou então se manifesta num exaltado sentimento <strong>de</strong> fraternida<strong>de</strong>humana. Tudo isso, num tom em que se percebe o acento lamen-140


Pessoa: personagens e poesiatoso e ambivalente <strong>de</strong> um amor infeliz. Po<strong>de</strong>mos percebê-lo na“O<strong>de</strong> triunfal” e na “O<strong>de</strong> marítima” e também na “Saudação aWalt Whitman”: “Amo-vos a todos, a tudo, como uma fera /Amo-vos carnivoramente, / Pervertidamente e enroscando aminha vista / Em vós, ó coisas gran<strong>de</strong>s, banais, úteis, inúteis / Ócoisas todas mo<strong>de</strong>rnas.” E não é raro que esse frenético amor pelahumanida<strong>de</strong> seja transfigurado no simbolismo da viagem –enamais simbólica das viagens: a marítima –, percorrendo os maresque abraçam, mas que também separam toda a humanida<strong>de</strong>.Como <strong>de</strong>ve ressoar fortemente para um português “o chamamentoconfuso das águas”:E eu, que amo a civilização mo<strong>de</strong>rna, eu que beijo com a alma as máquinasEu o engenheiro, eu o civilizado, eu o educado no estrangeiro,Gostaria <strong>de</strong> ter outra vez ao pé da minha vista só veleiros e barcos <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira,De não saber doutra vida marítima que a antiga vida dos mares!Porque os mares antigos são a Distância Absoluta,O Puro Longe, liberto do peso do Atual...E ah, como aqui tudo me lembra essa vida melhor,Esses mares, maiores, porque se navega mais <strong>de</strong>vagar.Esses mares misteriosos, porque se sabia menos <strong>de</strong>les.A princípio, a “O<strong>de</strong> marítima” é a evocação da viagem comoaventura pelos mares do mundo, a encontrar estranha gente em lugaresestranhos. Mas logo se transforma no mergulho pelos mares tenebrososda obscura interiorida<strong>de</strong>, on<strong>de</strong> há piratas terríveis, se<strong>de</strong>ntos<strong>de</strong> sangue, cheios <strong>de</strong> cruelda<strong>de</strong> e paroxismo. Mas tudo termina,num tom ao mesmo tempo sarcástico e seco, pela retomada da regularida<strong>de</strong>exigida pelo tráfego comercial, dirigido por faturas e cartasprotocolares, que garantem a segurança da carga a ser conduzida a<strong>de</strong>stino certo.141


Milton VargasNa “Saudação a Walt Whitman”, logo percebemos a i<strong>de</strong>ntificaçãodo poeta Álvaro <strong>de</strong> Campos com o poeta americano. Se, antes,na “O<strong>de</strong> marítima” se entregara femininamente a todas as violações,<strong>de</strong> tudo participando na própria carne, na “Saudação” é uma pessoaobjetiva como totalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> irrestrito amor por tudo o que há: maresdo mundo e subjetivida<strong>de</strong> profunda, corpo e alma, <strong>de</strong>ntro e fora:E conforme tu sentiste tudo, sinto tudo, e cá estamos <strong>de</strong> mãos dadas,De mãos dadas, Walt, <strong>de</strong> mãos dadas, dançando o universo na alma.Ó sempre mo<strong>de</strong>rno e eterno, cantor dos concretos absolutos,Concubina fogosa do universo disperso,Gran<strong>de</strong> pe<strong>de</strong>rasta roçando-te contra a diversida<strong>de</strong> das coisas,................................................................................................Cantor da fraternida<strong>de</strong> feroz e terna com tudo.É impossível não ver nessa imagem do amante incondicional datotalida<strong>de</strong>, que quer ser ativamente masculino e, ao mesmo tempo,mulher violentada em sua ânsia amorosa por tudo, o poeta português,muito mais do que Walt Whitman. Nessa saudação, que émuito mais o retrato do primeiro do que do segundo, compreen<strong>de</strong>moso modo <strong>de</strong> ser <strong>de</strong> Pessoa, e muito pouco do poeta <strong>de</strong> Leaves ofGrass. Caeiro – a sensação e o corpo <strong>de</strong> todos os heterônimos e dopróprio Pessoa – parece intervir em certas passagens:Não quero intervalos no mundo!Quero a contigüida<strong>de</strong> penetrada e material dos objetos!Quero que os corpos físicos sejam um dos outros como as almas,Não só dinamicamente, mas estaticamente também!É o mesmo transbordamento insaciável que dá prosseguimento à“Passagem das horas”, poema <strong>de</strong> 1916:142


Pessoa: personagens e poesiaTrago <strong>de</strong>ntro do meu coraçãoComo num cofre que se não po<strong>de</strong> fechar <strong>de</strong> cheio,Todos os lugares on<strong>de</strong> estive,Todos os portos a que cheguei,Todas as paisagens que vi através <strong>de</strong> janelas ou vigias,Ou <strong>de</strong> tombadilhos, sonhando,E tudo isso, que é tanto, é pouco para o que eu quero.Mas aqui já começa a <strong>de</strong>silusão <strong>de</strong> tudo querer imaginativamente.Desilusão filha da ina<strong>de</strong>quação entre o que é imaginado e o que há.Dói-me a imaginação entre o que é imaginado e o que há.Declina <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> mim o sol no alto mar........................................................................................Eu sinto que ficou fora do que imaginei tudo o que quero,Que embora eu quisesse tudo, tudo me faltou.Esse estado <strong>de</strong> espírito parece sofrer uma interrupção melancólicaem “A Casa branca Nau preta”, escrito em 1916. Álvaro <strong>de</strong> Campos,o sensacionista, <strong>de</strong>saparece, para reaparecer como o suicida potencial,no recado enviado a Daisy, sob a forma do “Soneto já antigo”,datado <strong>de</strong> 1922. Em 1923, Lisboa foi revisitada por Álvaro <strong>de</strong>Campos:Não, não quero nadajá disse que não quero nada.Não me venham com conclusões!A minha única conclusão é morrer.............................................................................................Ó mágoa revisitada, Lisboa <strong>de</strong> outrora e <strong>de</strong> hoje!Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.143


Milton VargasDeixem-me em paz!Não tardo, que eu nunca tardo...Enquanto tarda o abismo e o silêncio, quero estar sozinho!Foi porém em abril <strong>de</strong> 1926, após a segunda “Lisbon Revisited”,que o poeta confessa:Nada me pren<strong>de</strong> a nada.Quero cinqüenta coisas ao mesmo tempo.Anseio como uma angústia <strong>de</strong> fome <strong>de</strong> carneO que não sei que seja.E então o suicida aparece em Álvaro <strong>de</strong> Campos. Ou teria aparecidoem Fernando Pessoa e só testemunhado por Álvaro <strong>de</strong> Campos?Se te queres matar, por que não te queres matar?Ah, aproveita! Que eu tanto amo a morte e a vida,Se ousasse matar-me, também me mataria....................................................................................Encara-te a frio, e encara a frio o que somos...Se queres matar-te, mata-te...Não tenhas escrúpulos morais, receios da inteligência!Que escrúpulos ou receios tem a mecânica da vida?Mas tudo, em Álvaro <strong>de</strong> Campos, <strong>de</strong>ve ser adiado. Até a morte<strong>de</strong>sejada e o suicídio.Depois <strong>de</strong> amanhã, sim, só <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> amanhã.Levarei amanhã a pensar em <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> amanhã,E assim será possível; mas hoje não...A poesia <strong>de</strong> Álvaro <strong>de</strong> Campos provém do mais espontâneo eprofundo e, portanto, do mais verda<strong>de</strong>iro <strong>de</strong> Fernando Pessoa. Elabrota do “antiquíssimo <strong>de</strong> nós”, é propiciada pela Noite, no sentido144


Pessoa: personagens e poesiaórfico da palavra, fonte obscura <strong>de</strong> toda realida<strong>de</strong>, Gran<strong>de</strong> Mãe, se<strong>de</strong>da paixão criadora. É a poesia da totalida<strong>de</strong> do que existe: da extremadoçura à mais cruel violência. Vai <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a percepção direta(como lhe ensinou a perceber seu mestre Caeiro) até a mais intrincadaconjetura, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o absurdo irracional até a mais alta especulação,que só a razão po<strong>de</strong> acolher.Creio, porém, que não só a essência da poesia <strong>de</strong> Álvaro <strong>de</strong> Campos,mas também a própria essência do que é ser poeta po<strong>de</strong>rá serencontrada em dois <strong>de</strong> seus poemas. O primeiro assim começa: “Aovolante do Chevrolet pela estrada <strong>de</strong> Sintra”. O poeta é aquele que,sempre em viagem pelos gran<strong>de</strong>s caminhos do mundo, ou pelas infindáveisveredas da imaginação, sempre espera pela nova partida, ehá, sempre, que arrumar as malas. Às vezes, entretanto, po<strong>de</strong> ocorrertambém que “Hoje é a véspera <strong>de</strong> não partir nunca”. O poeta segue,contudo, “sem haver Lisboa <strong>de</strong>ixado ou Sintra a que ir ter”. Sempreestará “na estrada <strong>de</strong> Sintra, ou na estrada do sonho, ou na estrada davida...” e inclusive diante da gran<strong>de</strong> viagem que o levará ao que nãopo<strong>de</strong> encarar <strong>de</strong>veras.Guiando o Chevrolet emprestado, <strong>de</strong>sconsoladamentePerco-me na estrada futura, sumo-me na distância que alcançoE, num <strong>de</strong>sejo terrível, súbito, violento, inconcebível,Acelero...Mas o meu coração ficou no monte <strong>de</strong> pedras, <strong>de</strong> que me <strong>de</strong>sviei ao vê-lo semvê-lo.Todas as viagens levam, porém, a parte alguma senão ao centro <strong>de</strong>si mesmo, àquele em que se está sozinho, “enquanto tarda o Abismoe o Silêncio”.Na “Tabacaria”, o poeta se <strong>de</strong>fine pela negativa: “Não sou nada./ Nunca serei nada. / Não posso querer ser nada. / À parte isso, te-145


Milton Vargasnho em mim todos os sonhos do mundo.” Observador inserido navida e no mundo, o poeta observa e dá sentido a tudo, como se estivessefora <strong>de</strong>le. E nessa posição se divi<strong>de</strong> entre a exteriorida<strong>de</strong> do quevêesente,eainteriorida<strong>de</strong> do que pensa e imagina, a ambas tendocomo reais e irreais.A tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por foraE a sensação <strong>de</strong> que tudo é sonho, como coisa real por <strong>de</strong>ntro.Eterno fracassado é o poeta, diante <strong>de</strong> si e do mundo, sonhandoganhar batalhas ganhas pelos generais, sonhando construir obras queos arquitetos constroem, sonhando fazer a filosofia que os filósofosescrevem. Ele é sempre “o que não nasceu para isso”, “o que só tinhaqualida<strong>de</strong>s”, o que “Cantou a cantiga do Infinito numa capoeira / Eouviu a voz <strong>de</strong> Deus num poço tapado”. “Escravos cardíacos das estrelas”,os poetas conquistam o universo antes <strong>de</strong> se levantarem dacama.” Permanece, no entanto, “A caligrafia rápida <strong>de</strong>stes versos, /Pórtico partido para o Impossível”.Entre as inspiradoras formas femininas e o mundo real que vê,por fora, como estrangeiro em viagem, longe da pátria, é o poeta, noentanto, que confere realida<strong>de</strong> a tudo o que vê: “Porque é possível fazera realida<strong>de</strong> <strong>de</strong> tudo isso, sem fazer nada disso.” Há os poemasque o poeta faz, e há a tabuleta da Tabacaria. Tudo passará, com otempo, e no entanto “sempre haverá gente fazendo coisas como versose vivendo por baixo <strong>de</strong> coisas como tabuletas”. Mas o mundosempre e continuamente restitui o poeta ao imediato, como nos últimosversos <strong>de</strong> “Tabacaria”:Com um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.Acenou-me a<strong>de</strong>us, gritei-lhe A<strong>de</strong>us ó Esteves! e o universoReconstruiu-se-me sem i<strong>de</strong>al sem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.146


Pessoa: personagens e poesia Afinal Fernando Pessoa, ele mesmoMas afinal, <strong>de</strong>ntre essa profusão <strong>de</strong> personagens, quem era o autor?Quem era Fernando Pessoa, ele mesmo? De quem, a consciêncialúcida, capaz <strong>de</strong> manter harmoniosamente a sensibilida<strong>de</strong> física <strong>de</strong>Caeiro, a pura inteligência <strong>de</strong> Ricardo Reis e o sensacionismo total<strong>de</strong> Álvaro <strong>de</strong> Campos? De quem eram esse corpo, essa alma e esse espírito<strong>de</strong>ssa pessoa <strong>de</strong> gênio, mal reconhecida, vivendo uma vidamarginal num país periférico? O pobre e infeliz escrevente, tradutorcomercial, a<strong>de</strong>pto do ocultismo, fazedor <strong>de</strong> horóscopos, que viveuem Lisboa, entre 1914 e 1936?Fernando Pessoa nasceu em 1888, no Largo <strong>de</strong> São Carlos, “a suaal<strong>de</strong>ia”. Passou a infância na África do Sul, on<strong>de</strong> seu padrasto era cônsulportuguês. Teve uma educação inglesa. Por isso, estreou comopoeta <strong>de</strong> língua inglesa, em 1908. Em 1918 publica a plaquete 35Sonnets, que mereceu então um comentário indulgente num jornal inglês.Seu único livro publicado em vida foi Mensagem, em 1934, concorrendoa um concurso literário que per<strong>de</strong>u. Em 1913 apareceramseus poemas Impressões do crepúsculo e Hora absurda. Mas só a partir do primeironúmero da revista Orfeu (1914), aparece o Pessoa ortônimo. Osheterônimos continuaram a ser publicados na revista <strong>de</strong> Coimbra Presença,até fins <strong>de</strong> 1938, mais <strong>de</strong> dois anos após sua morte. Só em 1942apareceram suas Obras completas e, a partir <strong>de</strong>ssa data, a presença múltipla<strong>de</strong>sse homem que foi vários pô<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>senhada como esse núcleouno e intenso que se chama Fernando Pessoa.147


Pieter Bruegel, Provérbios flamengos, <strong>de</strong>talhe, 1559Óleo sobre painel, 116,8 x 162,8 cmMuseu Estadual <strong>de</strong> Cultura da Prússia, BerlimIlustração <strong>de</strong> capa <strong>de</strong> Os viventes – poesia, <strong>de</strong>Carlos Nejar. Rio <strong>de</strong> Janeiro, Record, 1999.


Os viventesCésar LealMitos, pessoas a animais formam o núcleo <strong>de</strong>sse livro <strong>de</strong>Carlos Nejar. Sendo um escritor com acentuada consciência<strong>de</strong> seu tempo, não parece disposto a contaminar-se pelospostulados teóricos dos que falam <strong>de</strong> poesia em extinção. Portanto,não submisso ao profetismo hegeliano que no século XIX anunciouo fim da arte, tese frustrada por Bau<strong>de</strong>laire, ao dar-lhe a<strong>de</strong>quada respostateórica, não só em sua praxis poética, mas também em seus estudos<strong>de</strong> estética que lhe permitiram retirar do limbo os materiais eas formas fundadoras da poesia da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>.No início do século XX, o pintor Piet Mondrian também fezprevisões sobre o fim da arte, chegando a assinalar os motivos e aépoca em que ocorreria o seu <strong>de</strong>saparecimento, indo além do que fizeraHegel no século anterior. Deduz-se da trágica profecia <strong>de</strong> Mondrianque,ao <strong>de</strong>saparecer a arte, <strong>de</strong>sapareceria também a figura doartista. Mas como viver o homem numa socieda<strong>de</strong> em que a arte nãomais existisse? Tal é a pergunta que fazemos. Para Camus, o homemPoeta, ensaísta,crítico literário,jornalista,professor <strong>de</strong>Teoria daLiteratura. Suaobra poética eensaística éextensa, a partirda publicação <strong>de</strong>Invenções da noitemenor (1957),<strong>de</strong>stacando-se osensaios Dante e osmo<strong>de</strong>rnos e Literatura:a palavra como forma<strong>de</strong> ação, os livros <strong>de</strong>poesia A quintaestação, prefácio <strong>de</strong>Cassiano Ricardo,e Os heróis.149


César Lealpo<strong>de</strong>rá viver sem a arte, mas não viveria bem. Mondrian não especuloumuito sobre esse aspecto, mas sua afirmativa não quer dizer quea arte <strong>de</strong>ixará <strong>de</strong> existir. O que ocorrerá é o término <strong>de</strong> uma ativida<strong>de</strong>que sempre existira <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que o homem aparecera na terra. Isso querdizer que a arte continuaria sua vida institucional, como fragmentosda história do espírito: no Museu, na Ópera, na Biblioteca, on<strong>de</strong> todospo<strong>de</strong>riam ver esculturas <strong>de</strong> Fídias ou Miguelângelo, quadros <strong>de</strong>Leonardo ou <strong>de</strong> Picasso, ouvir composições <strong>de</strong> Bach ou <strong>de</strong> Beethoven,ou ler poemas <strong>de</strong> Homero, Dante ou Shakespeare. Será que oshomens do futuro ficariam satisfeitos em viver nesse estranho universoda ‘arte realizada’, tal como vivemos no meio da Natureza?Carlos Nejar, poeta que não <strong>de</strong>monstra nenhuma adoração aosídolos da era técnica, resiste à idéia <strong>de</strong> que a arte, em particular a poesia,venha a <strong>de</strong>saparecer. As linguagens criadas pela cultura são monumentos,e os monumentos, ensina-nos Ernst Cassirer, costumam‘durar’, pois não <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m <strong>de</strong> transmissibilida<strong>de</strong> hereditária. Daíacreditar – assim pensava Eliot – que a cultura não se herda: conquista-secom muito esforço. E uma vez conquistada, não se <strong>de</strong>ixahipnotizar, como ocorre com largos segmentos das massas humanas,pela mídia sofisticada, repressiva, <strong>de</strong>sidiosa que domina os mo<strong>de</strong>rnosmeios <strong>de</strong> comunicação, a serviço <strong>de</strong> interesses políticos e da economia<strong>de</strong> mercado.Carlos Nejar publicou seus primeiros livros na década <strong>de</strong> 60.Des<strong>de</strong> seu aparecimento, goza <strong>de</strong> sólida reputação nos meios intelectuais.O ‘fim’ da arte, possivelmente, está presente aos movimentos<strong>de</strong> seu espírito, mas ele faz o quanto é possível, em seu relato épico-lírico,para anular nas obras que escreve aquilo a que Luc Ferry<strong>de</strong>nomina as partes subjetivas da aparência. Thomas Mann, com rigor,exuberância e beleza, mostrou-nos a “tragédia da arte mo<strong>de</strong>r-150


Os viventesna”, em um <strong>de</strong> seus últimos gran<strong>de</strong>s romances: o Doutor Fausto, <strong>de</strong>nunciando-a,como um trabalho do Demônio. Tais <strong>de</strong>núncias <strong>de</strong>ssaspessimistas visões sobre o futuro da arte contemporânea reforçama confiança <strong>de</strong> Carlos Nejar na persistência da arte, através dostempos, ao invés <strong>de</strong> aceitá-las como válidas, como fazem as vanguardassibilinas e filisteínas, sempre atentas em atrair à sua re<strong>de</strong> <strong>de</strong> mentirase mistificações o leitor <strong>de</strong>sprevenido.Há um eco do profetismo hegeliano no pensamento <strong>de</strong> Mondrian.Para o pintor holandês, não estamos distante daquele momento emque a realização do puramente escultórico, na realida<strong>de</strong>, substituirá aobra <strong>de</strong> arte. Então não haverá necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> quadros. O que tinha <strong>de</strong>ser feito já o fizeram os pintores anteriores ao nosso tempo. Mondrianfala <strong>de</strong> uma ‘contra-natureza’, que será adotada e nela <strong>de</strong>sapareceráo artista. Assim, iremos viver em meio da arte realizada. Para Mondrian,essa contra-natureza será a construção elevada à ‘categoria <strong>de</strong> ídolo’.Tal contra-natureza será orientada – diz o pintor – pelo cientismo epela técnica. Acredito que há um forte componente <strong>de</strong> ironia nas afirmações<strong>de</strong> Mondrian. Se assim for, Mondrian está <strong>de</strong> nosso lado.Mas, quando ele afirmou isso, podia estar a falar com toda a serieda<strong>de</strong>.A ironia só é ironia quando comporta elevados índices <strong>de</strong> ambigüida<strong>de</strong>.Não po<strong>de</strong>mos duvidar <strong>de</strong> um artista teoricamente bem armado,quando ele diz que “a arte <strong>de</strong>saparecerá na medida em que a vida tenhamais equilíbrio, na medida simplesmente em que tenha adotado anova ‘contra-natureza’, e nela <strong>de</strong>saparecido”. De qualquer forma –ironia ou não – se Mondrian assim fala, tendo em vista principalmentea pintura, então po<strong>de</strong>mos esten<strong>de</strong>r sua profecia às <strong>de</strong>mais artes, como,em relação à música, Thomas Mann fez o Demônio <strong>de</strong>monstrar, coma mais rica erudição histórica e filosófica, ser contra as obras,emuma<strong>de</strong> suas conversas com Adrian Leverkühn.151


César LealO poeta <strong>de</strong> Os viventes resiste à elástica simplicida<strong>de</strong> dos que, emborase julgando artistas, são incapazes <strong>de</strong> distinguir a arte da não-arte,o falso do verda<strong>de</strong>iro. Carlos Drummond <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, ao escreversobre o livro <strong>de</strong> Nejar, por ocasião <strong>de</strong> seu aparecimento em 1979,afirmou que Os viventes é uma criação on<strong>de</strong> o próprio Drummondsentia o calor existencial, “é obra que, suce<strong>de</strong>ndo ao canto, anterior,e antecipando o canto que continuará extraindo <strong>de</strong> sua mina poética,nos dá um belo exemplo <strong>de</strong> permanência e invenção contínua”, escreveuo autor <strong>de</strong> O sentimento do mundo ao proclamar a importância<strong>de</strong>sse livro.Os viventes se divi<strong>de</strong>m em oito partes, a começar com o Anel do vento eterminando com O Livro das Bestas. Entre essa coor<strong>de</strong>nada bipolar estãoos gran<strong>de</strong>s poemas bíblicos, os profetas, Moisés, Lázaro, os pequenose os gran<strong>de</strong>s do Velho e do Novo Testamento. No canto inicial, se lêque nos Viventes tudo é julgado, ou é julgamento in progress.Viventes o que sabeis– que mundo o poema! – ?Em sua terranada se queima.Viventes o que sabeisda morte e o restose nem sabemos <strong>de</strong> nósno anel do vento?Como diria o Dr. Richards, na poesia <strong>de</strong> Nejar po<strong>de</strong>mos observarum conjunto <strong>de</strong> aspectos dos quais “participam não só os acontecimentosmentais, mas também todos os acontecimentos”. Assim é nopoema a “Casa dos nomes”. Indaga-se, inicialmente, pela Casa Amarelae a resposta é que tal casa, ao iniciar o seu processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>smoro-152


Os viventesnamento, arrasta consigo a infância, e os próprios nomes se dispersampela casa em ruínas. Po<strong>de</strong>mos ‘escorar’ essas ruínas (Eliot), masnada impedirá o <strong>de</strong>sabamento das pare<strong>de</strong>s <strong>de</strong> suas salas, <strong>de</strong> seus alpendres,<strong>de</strong> seus quartos, dispensas e outros lugares on<strong>de</strong> são guardados– simbolicamente, é claro – velhos objetos, leitos <strong>de</strong>smontados,velhas arcas, ecos <strong>de</strong> vozes apagadas, garrafas vazias, faltandoapenas a velha rameira <strong>de</strong> que nos fala Yeats, a que conta as moedas eas guarda em sua caixa preta, dando-nos, assim, uma vaga e válidaimagem do inconsciente, tal como lemos numa das estrofes <strong>de</strong> “A<strong>de</strong>serção dos animais do circo”. O processo pelo qual registramos anossa vida é lento, mas tem um duplo efeito: o efeito Letes-Eunoè,esquecimento x lembrança, horror x beleza, morte x renascimento,porque a memória permanece no tempo e sempre vê <strong>de</strong> pé a casa <strong>de</strong>molida.O que procura Carlos Nejar é aproximar <strong>de</strong> sua experiência a experiênciado leitor. A leitura <strong>de</strong> poemas exige tranqüilida<strong>de</strong> e fortalecidaconsciência <strong>de</strong> que a língua poética não é a língua da comunicação.Para mim, não seria difícil falar sobre a experiência da casa emruínas. A que nasci era uma casa gran<strong>de</strong>, com oito quartos, no sertãodos Inhamuns: o quarto escuro – o dos morcegos – o quarto dos pesa<strong>de</strong>los.O quarto do anjo <strong>de</strong>golado, on<strong>de</strong> se guardava o ossuário dafamília em gran<strong>de</strong> urna <strong>de</strong> mármore italiano. O quarto <strong>de</strong> AnnaAngélica e <strong>de</strong> Anna Aurora. Não conheci essas tias-bisavós, massempre as vi em sonhos. A força do poeta está em saber como aproximartais experiências das experiências do leitor, pois afinal todostiveram suas casas, todos recordam seus tios, o carinhos dos avós,enfim, “as afeições domésticas”, diria Alfredo Antunes ao escreversobre o sentimento <strong>de</strong> ‘sauda<strong>de</strong>’ em Fernando Pessoa. Ou como, aorecordar a casa, <strong>de</strong>sfila diante <strong>de</strong> nós a vida, tal como nos mostra umdos mais belos poemas <strong>de</strong> Emílio Moura: “A casa”.153


César LealÉ por essas e outras razões que <strong>de</strong>vemos resistir, como faz CarlosNejar, às teses do fim da Arte, do fim da poesia. Como ele diz:A casa ia ruindocom o rigor dos anoso ruídorancoroso dos canos,o ruído plangentedo sótãoe dos nomes.São manifestações existenciais, algo situado na área fenomenológica,e utilizo o termo na acepção que lhe foi dada por Lambert, oseu criador. A linguagem <strong>de</strong> Carlos Nejar em Os viventes nãoéaexpressão<strong>de</strong> um temperamento romântico, quando fala em Mafalda,Paulo, Sadi. “On<strong>de</strong> Paulo e Sadi?” – indaga e ele próprio respon<strong>de</strong>:Estão correndo e era o pátio com os curvos pessegueiros. Cristina, Graça, Mira, aRosa sobre o ventre das janelas ver<strong>de</strong>s, palavras suficientes, necessárias, nãoexcessivas, pois quando se usa a linguagem com precisão ela nunca éexcesso. A economia da linguagem não engran<strong>de</strong>ce a língua. É antesum maneirismo, já que não enriquece o idioma como sistema socialnem como língua poética. É por isso que se <strong>de</strong>ve recordar MuriloMen<strong>de</strong>s, um latifundiário <strong>de</strong> palavras. Palavras produtivas, comoprodutiva é a palavra em todo poeta forte. Não esqueçam Shakespeare,que usava <strong>de</strong>masiadamente as palavras, nem Malherbe, que aseconomizava em <strong>de</strong>masia. Façam uma reflexão sobre os dois e digam– não é preciso indagar a ninguém – quem foi o vencedor. A línguacriadora <strong>de</strong> ‘monumentos’ é rica em palavras, símbolos e alegorias,como em Dante, ou plena <strong>de</strong> imagens e metáforas, como em Shakespeare.Quem mais contribuiu para a gran<strong>de</strong>za da língua inglesa noséculo XVII foi Shakespeare, porque a usou como se fosse a corren-154


Os viventesteza <strong>de</strong> um imenso rio <strong>de</strong> imagens e <strong>de</strong> metáforas. Engana-se quemdiz que Dante foi econômico no uso da linguagem. Como? se foi elequem mobilizou todos as palavras, todos os dialetos, todos os recursosque lhe possibilitaram criar um novo idioma, em uma época emque o latim era, por ele próprio, consi<strong>de</strong>rado uma língua criada porsábios? Ao falar sobre “Ofícios terrestres e divinos”, Nejar põe naboca <strong>de</strong> Samuel estas palavras:Além <strong>de</strong> mim,Prosseguirão plantando.Prosseguirão nogueiras e planetas.E gerações.Ou ainda, como na parte V – “Bal<strong>de</strong>ações” – ao dizer:A senha é a porta. Não haverá outra.O tempo está postonos remos.Essa magia <strong>de</strong> linguagem, <strong>de</strong> que Rimbaud foi um dos mais altosrepresentantes, constitui o núcleo da poesia da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>. A mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>,cujo fim já foi anunciado por tantos, continua muitoviva. E vai durar muito tempo, justamente por ser um conceito temporal.Mas, talvez, se justifiquem outros conceitos. A baixa-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>,termo proposto por Eduardo Portella, para <strong>de</strong>nominar o quechamamos ‘pós-mo<strong>de</strong>rno’, torna-se um conceito operacional importanteporque proporciona ao poeta, ao pintor, ao compositor,algo que não elimina a idéia <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, já que um ‘pós’ isto ou‘pós’ aquilo não significa coisa alguma. Todos os ‘pós’ nos conduzemao teorema do Nada. Ou, então, fale-se <strong>de</strong> ultra-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, termoproposto pelo jovem filósofo francês Luc Ferry, do Ministério da155


César LealEducação da França, professor na Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Caen. Pelo caminho<strong>de</strong> Os viventes transitam Adão, com o conhecimento do Mal,Abel, qual ovelha muda em vôo para Deus, ou Paulo, que viu o primeirocéu com seu rio <strong>de</strong> fogo. E se literatura se faz com literatura,então falem os poetas:Humano amor celeste,cuja voz não confundoe ao pulsar, pulso junto.E tal um vinho em florborbulha no odre surdo,o som <strong>de</strong> seu amorcom a eternida<strong>de</strong> escuto.Assim, é preciso voltar à “Casa dos nomes” e lembrar a flor, a flornão como o índice <strong>de</strong> uma idéia renascentista, neoclássica ou românticaflor azul, cor da flor <strong>de</strong> Novalis: a flor como símbolo, comosímbolo ou imagem restante, continuada, que po<strong>de</strong>mos ver a afastar-se,a flor em um muro <strong>de</strong> vento, a usura das horas, metonímico<strong>de</strong> tempo, a cinza, a cinza. Coração febril da infância. A flor em CarlosNejar per<strong>de</strong> o significado tradicional para ser muro <strong>de</strong> vento palpitante,a secura do tempo, o pó. As fotografias dos avós <strong>de</strong>scolorem.A lonjura dos olhos e das roupas.Caladas laranjasjunto ao sanguea casamurcha.156


Os viventesAs imagens não buscam semelhanças a serem alcançadas, ou reconhecidaspor sugestão. O que faz Nejar é ampliar a noção <strong>de</strong> ‘visibilida<strong>de</strong>’do real. Tudo o que ele diz une aquelas duas experiências antescitadas, <strong>de</strong> forma a que autor / leitor caminhem juntos na compreensãoe interpretação do poema. Mas o conhecimento <strong>de</strong>ssa linguagemnão é tão fácil, quando somos convocados a dar respostas aindagações como estas:Que distância pai, entre a casa e a rua?Há nessa pergunta uma suspensão do pensamento, uma atmosferavaga, imprecisa, já que o verso “se foi <strong>de</strong>smoronada” não é o quese espera da indagação “Que distância, pai, entre a casa e a rua?”. Éuma situação mais apropriada à análise das artes plásticas. Não é só acasa que <strong>de</strong>smorona. Também a rua po<strong>de</strong> <strong>de</strong>saparecer, dando lugar auma praça, um mercado, uma escola, um asilo, ou algo que representaameaça à vida dos vizinhos, por exemplo: um quartel. O poetaprocura romper não só com a idéia <strong>de</strong> ritmo, equilíbrio, unida<strong>de</strong>,mas também com a lógica do pensamento, tal como não a reconheceriaa linguagem da comunicação, para dar lugar à expressão idiomática,poética, portanto. O poema intitula-se “Casa dos nomes”. Eos nomes têm muita importância em poesia, como o comprova opoema <strong>de</strong> Dante, tão clássico e tão mo<strong>de</strong>rno, escrito com os nomes<strong>de</strong> pessoas que efetivamente tiveram vida histórica, aos quais se associaramalguns mitos, que, afinal, como nos ensina o poeta do Ulisses,são “nada” e são “tudo”.A força das alusões e o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> associação também estão presentes,quando fala dos avós Georgina e Antônio Miguel, <strong>de</strong>itados, à semelhançados personagens <strong>de</strong> “Evocação do Recife”, ambos dormindoprofundamente. Suas fotografias, ao per<strong>de</strong>rem a cor, alu<strong>de</strong>mà viagem no tempo, a marcar a distância dos olhos e das roupas <strong>de</strong>s-157


César Lealcoloridas. Caladas laranjas junto ao sangue, imagens <strong>de</strong> surpreen<strong>de</strong>ntemo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, ao menos para aqueles que lêem a poesia mundial –que <strong>de</strong>ve ser lida diariamente.Assim, tanto o leitor comum quanto os críticos especializadosterão a seu alcance referenciais seguros, ao avaliar a importância dospoemas escritos no Brasil, país on<strong>de</strong> se escreve boa poesia. E para oseu prazer – do leitor e do crítico – ao ler os mil estilos <strong>de</strong> poesia quese escreve no mundo, não busquem louvar, apenas por capricho ou máconsciência, apenas o lixo que se escreve em língua portuguesa com onome <strong>de</strong> ‘poesia’, às vezes inspirada na filosofia do nada,emumcontextocultural on<strong>de</strong> se cultiva tão pouco a filosofia da arte. A tal pontoque, em breve, sistematizaremos tal filosofia e acabaremos formandodoutores em Teorema do Nada. No Brasil, não há sentimentos fraternaisentre poetas e críticos, mas apenas idiossincrasias, que anulam reciprocamenteos melhores valores <strong>de</strong> nossa literatura, ficando as obrasliterárias entregues a colunistas preconceituosos, <strong>de</strong>spreparados, a serviçoexclusivo <strong>de</strong> grupos sectários, além <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>iros ‘Guardas <strong>de</strong>Sião’ das editoras, como os <strong>de</strong>nominava o gran<strong>de</strong> Ernst Robert Curtius.É tal espírito que Antero <strong>de</strong> Quental viu na poesia portuguesa emsuas Conferências no Cassino Lisboense, ao mostrar o “quadro <strong>de</strong> insignificância”a que chegaram Portugal e Espanha entre os séculos XVII e oséculo XIX. “Saímos <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> homens vivos, movendo-seao ar livre; entramos num recinto sepulcral, com uma atmosfera turvapelo pó <strong>de</strong> livros velhos, e habitado por espectros <strong>de</strong> doutores” – diziaele, acusando a poesia portuguesa <strong>de</strong> haver se transformado em meracópia do passado, interessada apenas em traduções e sem nenhum espíritoinventivo. Claro que precisamos <strong>de</strong> traduções. Todavia, maisimportante é a criação <strong>de</strong> obras sérias e não “brincos <strong>de</strong> crianças”, <strong>de</strong>que falava Quental em seus discursos no Cassino. Tal espírito–oespíritoinventivo – era consi<strong>de</strong>rado um perigo pelos autores da época.Por isso, o poeta <strong>de</strong> Os viventes diz:158


Os viventesPo<strong>de</strong> o coraçãocorrer com a luae sair aos tropeçõesda morte?Tal é o clima dos legítimos afetos, quando dois gran<strong>de</strong>s inovadores,Marino e Gôngora, impõem a italianos e espanhóis, e <strong>de</strong>pois aomundo, uma visão renovada do modo <strong>de</strong> ver e estruturar a ponte quevai ligar o Clássico e o Barroco, continuando cada um com seu engenho,sua agu<strong>de</strong>za e sua arte. É assim que vejo a “Casa dos nomes” emOs viventes. Uma obra in progress, como diriam os ingleses.159


Largo do Pelourinho, visto da Casa <strong>de</strong> Jorge Amado.


Nosso DickensJosé Guilherme MerquiorNão serão as i<strong>de</strong>ologias por acaso a <strong>de</strong>sgraça do nosso tempo? O pensamentocriador submergido, afogado pelas teorias, pelos conceitos dogmáticos, oavanço do homem travado por regras imutáveis?Jorge Amado, O Menino GrapiúnaQue significa – nos seus setenta anos – a figura <strong>de</strong> JorgeAmado na literatura latino-americana? Antes <strong>de</strong> maisnada, um caso <strong>de</strong> forte enraizamento popular da obra literária, numuniverso on<strong>de</strong> o livro culto permanece objeto do consumo <strong>de</strong> luxo, eos escritores vivem vidas inteiras na nostalgia <strong>de</strong> imensos públicospotenciais – os únicos que correspon<strong>de</strong>m ao tamanho das populaçõesluso- ou hispanófonas. Entretanto essa amplitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> leitura ainda équase nula, comparada com o best-seller das verda<strong>de</strong>iras “culturas dolivro”, a começar, naturalmente, pela anglo-saxônica. Gabriela, cravo eEstudopublicado noJornal do Brasil,10-8-82, e emO elixir doapocalipse. Rio,Nova Fronteira,1983, p.178-181.O ensaísta JoséGuilhermeMerquior(1941-1991)ocupou aCa<strong>de</strong>ira n o 36da ABL.161


José Guilherme Merquiorcanela levou uns bons vinte anos para alcançar um milhão <strong>de</strong> exemplares– tiragem entre nós espetacular, mas banal no mundo do romanceem inglês, já que ao alcance da primeira edição <strong>de</strong> qualquerHarold Robbins, Leon Uris ou Arthur Hailey, o tal <strong>de</strong> Aeroporto, Hotel,Hospital, etc.; e somente agora, que ele caiu tanto <strong>de</strong> nível, <strong>de</strong> GarciaMárquez, com essa lamentável Crônica <strong>de</strong> uma morte anunciada.Não é, portanto, no seu uso que resi<strong>de</strong> a robusta vocação popularda obra amadiana: é antes na sua forma, conteúdo e mensagem (emprego<strong>de</strong> propósito essas duas últimas palavras, seqüestradas pela pedantocraciaformalista que usurpou o discurso crítico na atualida<strong>de</strong>).Mas aqui, o “caso” Jorge Amado é um mar <strong>de</strong> equívocos. Nossoescritor duplamente mais popular, assim que purgou seus livros dacatequese política, viu-se confrontado com os catões da i<strong>de</strong>ologia.Quando Gabriela surgiu, o plantão da ortodoxia comunista con<strong>de</strong>nou-lhea visão “amoral e carnavalesca” – visão, segundo o mesmocensor, própria apenas das classes altas e marginais, como se a saga<strong>de</strong> Mundinho, Nacib e sua saborosa cozinheira exprimisse tão-só aótica “<strong>de</strong>ca<strong>de</strong>nte” da grã-finagem e do lumpemproletariado, indignada virtu<strong>de</strong> proletária... Não admira que uma das nossas mediocrida<strong>de</strong>smais pretensiosas tenha consi<strong>de</strong>rado o livro uma encomendapartidária, escrita pelo ex-staliniano autor dos Subterrâneos da liberda<strong>de</strong>para bajular a política revisionista <strong>de</strong> Kruschev!Quanto à crítica propriamente dita, se não engrossou tanto, nempor isso <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> brandir preconceitos. “Populismo literário”, diziamos bem-pensantes do progressismo –, e torciam o nariz a tamanhafuga aos ditames do realismo crítico. São Lukács, invocado paraa canonização <strong>de</strong> Graciliano, servia para a excomunhão ritual do autor<strong>de</strong> Jubiabá, no entanto publicado no mesmo fecundo triênio – omeio dos anos 30 – que viu nascer São Bernardo e Angústia.O que constrangia toda essa crítica, dona da verda<strong>de</strong> e senhorado Sentido da História, era a irredutível constante “romântica”162


Nosso Dickens<strong>de</strong> Jorge Amado. Os mesmos intelectuais que caíam em perplexida<strong>de</strong>hostil diante do expressionismo com molho direitista do teatro<strong>de</strong> Nelson Rodrigues recusavam enfastiados o romantismo<strong>de</strong> esquerda <strong>de</strong> Jorge Amado. Em ambos, o melodrama não morrera–eemambos,atingia em cheio leitor e platéia, dando quinausobre quinau às anêmicas arlequinagens da vanguarda e aos diktatsda crítica “radical”.Não foi a crítica e sim Rubem Braga quem percebeu que o Baldo<strong>de</strong> Jubiabá está muito mais perto <strong>de</strong> Macunaíma do que do MolequeRicardo. Porém Baldo é um pícaro com coração <strong>de</strong> cavaleiro andante:não é à toa que se chama Balduíno e idolatra Lindinalva, dulcinéiacaída no prostíbulo... Há sempre um lado Amadis em Amado.Oswald <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, antes <strong>de</strong> escrever sobre ele algumas enormida<strong>de</strong>sditadas pela paixão política, falou nas figuras ‘homéricas’ das estóriasamadianas. Ora, homérico é, sob esse aspecto, todo personagem<strong>de</strong> ficção romântica, no sentido largo do termo – todo caráterinteiriço, herói ou vilão, metido em trama <strong>de</strong> epopéia ou folhetim. Oromance <strong>de</strong> talhe coletivista <strong>de</strong> Jorge Amado estava pre<strong>de</strong>stinado aessa forma épico-romântica. Sua própria <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong> <strong>de</strong>mográfica excluíaos espaços interiores da análise psicológica – mas, em compensação,assegurava uma multiplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> tipos bem gráficos, Fáceis<strong>de</strong> reter na memória do público.Em literatura, romantismo e realismo não se excluem – e romantismoe costumismo chegam a se implicar um ao outro. Daí a naturalida<strong>de</strong>com que, nos anos 40, Jorge Amado partiu, já com arte maismadura, para a seqüência ficcional, no díptico <strong>de</strong> Terras do Sem Fim aSão Jorge dos Ilhéus; e daí a evolução posterior para o que WilsonMartinschamou <strong>de</strong> “ciclo da comédia baiana” – o mundo citadino eburlesco <strong>de</strong> Gabriela e Quincas Berro d’Água.Por outro lado, a narrativa <strong>de</strong> costumes com um mínimo <strong>de</strong> pátinahistórica, nutrida do exotismo <strong>de</strong> um passado bem <strong>de</strong>finido163


José Guilherme Merquiorem termos <strong>de</strong> lugar, é a alma do regionalismo. E foi o regionalismo,em Jorge Amado, que acabou engolindo o romance social “<strong>de</strong> tese”que ele articulou sem nunca, a rigor, <strong>de</strong>senvolver. Mas qual o seupapel, no rico elenco dos nossos regionalistas? Fundada, justamente,pelo romantismo caboclo <strong>de</strong> Alencar, a ficção regionalista seprestaria, neste século, a mais <strong>de</strong> uma fórmula feliz: a versão memorialística<strong>de</strong> Lins do Rego e a psicológica <strong>de</strong> Graciliano; o romancesocial do Herberto Sales <strong>de</strong> Cascalho e o romance histórico<strong>de</strong> AutranDourado (Os sinos da agonia); a variante ‘gótica’ <strong>de</strong> AdoniasFilho (Memórias <strong>de</strong> Lázaro) e a farsesca <strong>de</strong> José Cândido <strong>de</strong> Carvalho(O coronel e o lobisomem); o epos órfico <strong>de</strong> Guimarães Rosaeaintrigapolítica <strong>de</strong> Mário Palmério (Vila dos Confins); o gran<strong>de</strong> formatodo “romanfleuve” (O tempo e o vento <strong>de</strong> Érico Veríssimo; Os tambores<strong>de</strong> São Luís <strong>de</strong> Josué Montello) e a extensão mirim do conto(Bernardo Élis, Jorge Medauar).Nessa ampla galeria, Jorge Amado prima pela seiva cômicosentimentaldo seu narrar, combinada com a abrangência do seu registrosocial. Numa palavra: ele é o Dickens do nosso regionalismo– mas um Dickens, é claro, que tivesse trocado o <strong>de</strong>coro vitorianopela sensualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cama e mesa da tradição baiana. E assim comoo mui romântico autor <strong>de</strong> Gran<strong>de</strong>s esperanças impregnava seu notávelrealismo social <strong>de</strong> pathos e humor, nosso Dickens moreno conjugaprotesto socialista com uma apologia rabelaisiana da carne e do prazer.O perfume da prosa amadiana lembra Di<strong>de</strong>rot: “felicida<strong>de</strong> eprosperida<strong>de</strong> só po<strong>de</strong>m existir numa socieda<strong>de</strong> em que a lei reconheceo instinto”. Eis aqui a raiz do generoso perspectivismo moral quepresi<strong>de</strong> as novelas <strong>de</strong> Os velhos marinheiros ou <strong>de</strong> Os pastores da noite –ejálevava O menino grapiúna a sentir a liberda<strong>de</strong> como uma carícia. Perspectivismoimpossível se a obra <strong>de</strong> Jorge Amado não tivesse sido,conforme viu Antônio Houaiss, uma po<strong>de</strong>rosa “antena para captar,anunciar e <strong>de</strong>nunciar i<strong>de</strong>ologias”.164


Nosso DickensQuando Ernest Gellner, um dos mais argutos sociólogos do nossotempo, quis conhecer o Brasil, pediu-me que lhe indicasse algunsestudos introdutórios (à parte Casa-gran<strong>de</strong> & senzala, ele estava a zeroem matéria <strong>de</strong> brasiliana). Na sua partida, perguntei-lhe que ensaiolhe havia ensinado mais sobre nós e nossa história mo<strong>de</strong>rna. “Nãofoi bem um ensaio”, respon<strong>de</strong>u ele; “foi Gabriela, cravo e canela.”Eantesque algum puritano do espírito se atreva a tachar essa resposta <strong>de</strong>“folclórica”, quero lembrar uma velha idéia <strong>de</strong> Antonio Cândido: noBrasil, foi a literatura que fez as vezes <strong>de</strong> conhecimento sociológico,e nos ajudou a nos interpretarmos e criticarmos a nós mesmos. Hácerta sabedoria poética no fato <strong>de</strong> Jorge Amado ocupar, na <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong>,a ca<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis.165

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