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O Brasil escravista - Simonsen

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Realidade <strong>Brasil</strong>eira_________________________________________________________Capítulo 3CAPÍTULO 3O <strong>Brasil</strong> <strong>escravista</strong>Escravidão: sinônimo de perversidade e covardia,extinta a quase duzentos anos. Extinta ou mascarada,em formas de preconceito e descriminação?A escravidão é o elemento central na formação da sociedade brasileira. Emnossos quinhentos anos de história (se considerarmos o Descobrimento, em 1500,como o início), ela durou mais de trezentos. Começou com a escravização dosíndios, no começo da colonização, até ser substituída pela escravidão africana, quegerava mais renda, pois o comércio transatlântico era muito lucrativo, inclusive parao governo, já que pagava-se imposto de importação. A escravidão só deixou deexistir legalmente no <strong>Brasil</strong> há menos de centro e vinte anos, em 1888.Já no período colonial, em 1711, um padre jesuíta escrevia que os escravoseram “as mãos e os pés do senhor”. Ou seja, já era apontada a importância docativo para o funcionamento de toda a engrenagem econômica da Américaportuguesa. O primeiro grande livro de História do <strong>Brasil</strong>, O Abolicionismo (1883), dopolítico e diplomata pernambucano Joaquim Nabuco, identificou na escravidão otraço fundamental da nossa história. Segundo ele, o cativeiro formou as relaçõessociais e as instituições brasileiras: era o elemento que unia o rico e o pobre, ohomem do campo e o da cidade, o senhor e o escravo. Para Nabuco, a longa vidada escravidão entre nós se devia ao fato de que ela podia beneficiar qualquer um:do grande proprietário, que podia ser dono de centenas ou milhares de escravos, atémesmo um ex-escravo. Isso mesmo: não era fato raro um ex-escravo comprar umescravo para si com suas primeiras economias após conseguir a liberdade. Amentalidade escravocrata era universal.Os números variam: há quem diga que o <strong>Brasil</strong> possuiu cerca de 3,5 milhõesde escravos. Outros dizem que foram 13,5 milhões. Alguns preferem um meio-termoe afirmam ter sido 6 ou 7 milhões. Ao contrário do que geralmente se pensa, osO <strong>Brasil</strong> <strong>escravista</strong> 1


Realidade <strong>Brasil</strong>eira_________________________________________________________Capítulo 3escravos africanos que chegaram ao <strong>Brasil</strong> não eram caçados por brasileiros ouportugueses na África: eram capturados, em sua grande maioria, por outras tribosafricanas, tomados como prisioneiros de guerra e vendidos a comerciantes europeusou brasileiros que os traziam como escravos para o <strong>Brasil</strong>, vendendo-os emmercados no Rio de Janeiro, Salvador, Recife ou qualquer outro porto movimentado.Os negros (a palavra era sinônimo de escravo até o século XIX) eramutilizados em todos os tipos de trabalho braçal: tinham que derrubar as matas elimpar os terrenos para as plantações, tomar conta das plantas, cuidar do gado, abrirvias de comunicação entre as fazendas e as cidades. Deviam também construir ascasas dos seus senhores, as igrejas, as senzalas (que eles mesmos habitavam ounas quais ficavam presos). Também eram utilizados nas cidades como carpinteiros,pedreiros, barbeiros, carregadores etc. Muitos eram alugados por seus senhores noscentros urbanos, e outros deviam trabalhar para levar dinheiro para os seus donos(eram os chamados “negros ao ganho”).O sociólogo pernambucano Gilberto Freyre, no seu livro Casa-grande eSenzala (1933), foi o primeiro a considerar positivamente a contribuição dosafricanos para a construção do “modo de ser” dos brasileiros. Submetidos a umsistema extremamente opressor, no qual era tratado como mercadoria, comoferramenta de trabalho, como coisa, o negro de origem africana nem sempre aceitoupassivamente a situação à qual estava submetido. Apesar da duração e dadisseminação da escravidão como um valor na sociedade brasileira, não forampoucas as ocasiões em que estas pessoas se rebelaram contra a ordem, emrevoltas, fugas, desobedecendo os seus senhores, sabotando engenhos, tirando avida de senhores e capatazes violentos e, às vezes, a própria.Mas vários traços culturais trazidos pelos africanos, que pertenciam a váriassociedades e culturas diferentes, foram incorporados à vida do brasileiro, comodemonstrou Gilberto Freyre. Do modo cantado e adocicado de falar, diferente doduro português falado em Portugal, à apimentada culinária baiana, passando pelareligiosidade, pela sexualidade e pela musicalidade de grande parte da população, apresença africana (incluindo aí todas as mazelas herdadas da escravidão, como oO <strong>Brasil</strong> <strong>escravista</strong> 2


Realidade <strong>Brasil</strong>eira_________________________________________________________Capítulo 3grande número de pessoas negras ou afro-descendentes abaixo da linha depobreza) é inegável no <strong>Brasil</strong> de hoje.Cozinha negraO escravo africano dominou a cozinha colonial, enriquecendo-a de umavariedade de sabores novos. (...)No regime alimentar brasileiro, a contribuição africana afirmou-seprincipalmente pela introdução do azeite de dendê e da pimenta malagueta, tãocaracterísticos da cozinha baiana; pela introdução do quiabo; pelo maior uso dabanana; pela grande variedade na maneira de preparar a galinha e o peixe.Várias comidas portuguesas ou indígenas foram no <strong>Brasil</strong> modificadas pelacondimentação ou pela técnica culinária do negro; alguns dos pratos maiscaracteristicamente brasileiros são de técnica africana: a farofa, o quibebe, ovatapá.Dentro da extrema especialização de escravos no serviço doméstico dascasas-grandes, reservaram-se sempre dois, às vezes três indivíduos, aostrabalhos de cozinha. De ordinário, grandes pretalhonas; às vezes negrosincapazes de serviço bruto, mas sem rival no preparo de quitutes e doces.Negros sempre amaricados; uns até usando por baixo da roupa de homemcabeção picado de renda, enfeitado de fita cor de rosa; e ao pescoço tetéias demulher. Foram estes, os grandes mestres da cozinha colonial; continuam a seros da moderna cozinha brasileira.(Trecho extraído de FREYRE, Gilberto. Casa-grande e Senzala: Formação dafamília brasileira sob o regime de economia patriarcal. 5ª edição. Vol. 2. Rio deJaneiro: Livraria José Olympio, 1946, pág. 724.)O <strong>Brasil</strong> <strong>escravista</strong> 3


Realidade <strong>Brasil</strong>eira_________________________________________________________Capítulo 3A ordem <strong>escravista</strong>Fotografia de um senhor com seus escravos, feita em São Paulo por MilitãoAugusto Azevedo, por volta de 1870.O homem branco é o senhor, dono, proprietário dos cinco outros homensnegros e mulatos. Está na frente, na posição de autoridade e domínio. Os outros seencontram atrás. O primeiro à esquerda do senhor é mulato, está bem vestido. Aocontrário dos outros, deixou o cabelo meio liso crescer, penteou-o, fez uma risca dolado esquerdo, como o seu senhor. Mas não pode usar sapatos, privilégio e marcadistintiva dos livres e libertos. Tirar fotografia era uma operação demorada.Ninguém podia se mexer durante quase dois minutos. Outras tentativas já podiamter falhado. O fotógrafo Militão, que fez essa foto em São Paulo, deve terreclamado. Por isso ou por outras razões mais secretas, o senhor está zangado, decara amarrada. O escravo situado à sua direita, assustado, encolheu-se. Naextrema esquerda, o homem com a varinha na mão – pastor de cabras ou de vacaleiteira na cidade – tem um olhar altivo, talvez porque traga nas mãos o objeto deseu ofício, que o distingue dos outros cativos, paus para toda obra. Na extremadireita, o homem de branco se mexeu: estragou a foto da ordem <strong>escravista</strong>programada pelo seu senhor. Vai apanhar. No seu rosto fora de foco vislumbra-se omedo. Vai apanhar.(Trecho extraído de ALENCASTRO, Luiz Felipe de (org.). História da Vida Privadano <strong>Brasil</strong>. Vol. II. Companhia das Letras, 1997, pág. 18)O <strong>Brasil</strong> <strong>escravista</strong> 4

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