12.07.2015 Views

O Abajur de Cildo Meireles e a paisagem contemporânea. - CBHA

O Abajur de Cildo Meireles e a paisagem contemporânea. - CBHA

O Abajur de Cildo Meireles e a paisagem contemporânea. - CBHA

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

ISSN 2236-0719ANAIS DO XXXII COLÓQUIO <strong>CBHA</strong> 2012OrganizaçãoAna Maria Tavares CavalcantiEmerson Dionisio Gomes <strong>de</strong> OliveiraMaria <strong>de</strong> Fátima Morethy CoutoMarize MaltaUniversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> BrasíliaOutubro 2012


O <strong>Abajur</strong> <strong>de</strong> <strong>Cildo</strong> <strong>Meireles</strong> e a <strong>paisagem</strong><strong>contemporânea</strong>Carla Hermann (Doutoranda - UERJ - PPGArtes)Jacqueline Siano (Professora - EAV - Parque Lage)Resumo: Propomos uma análise da obra <strong>Abajur</strong>, <strong>de</strong><strong>Cildo</strong> <strong>Meireles</strong>, a partir das suas relações com ospanoramas do século XIX e problematizando a <strong>paisagem</strong>na obra <strong>contemporânea</strong>. Enquanto o panorama querconvencer o sujeito da visão panorâmica e fazê-lo sesentir pertencente àquilo que a vista abarca, esta obra<strong>contemporânea</strong> não <strong>de</strong>seja escon<strong>de</strong>r a força motriz doseu movimento, revelando que a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> progresso seconstrói sobre o suor e do sacrifício humano. Com issonos colocamos perante às questões sobre as quais a<strong>paisagem</strong> opera nos dias <strong>de</strong> hoje, do questionamentodo olhar, do posicionamento do observador e daresponsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua visão sobre o mundo.Palavras-chave: <strong>Cildo</strong> <strong>Meireles</strong>. Paisagem. Panorama.Abstract: This paper proposes an analysis of <strong>Cildo</strong><strong>Meireles</strong> <strong>Abajur</strong>, as from its relationship with thepanoramas of the nineteenth century and in or<strong>de</strong>r toquestion the role of landscape in the contemporaryartwork. While the panorama wants to convince thesubject with an overall sight and make him feel like hebelongs to what he sees, this contemporary work doesnot want to hi<strong>de</strong> the driving forces of its movement,


XXXII Colóquio <strong>CBHA</strong> 2012 - Direções e Sentidos da História da Arteand it reveals us that the i<strong>de</strong>a of progress is built onthe sweat and human sacrifice. Therefore it puts usquestions such as how the landscape operates todayand the need of questioning the look and the positioningof the observer and the responsibility of his vision of theworld.Keyword: <strong>Cildo</strong> <strong>Meireles</strong>. Landscape. Panorama.’Stamos em pleno mar... Dois infinitosAli se estreitam num abraço insanoAzuis, dourados, plácidos, sublimes...Qual dos dois é o céu? Qual o oceano?...’Stamos em pleno mar... abrindo as velasAo quente arfar das virações marinhas,Veleiro brigue corre à flor dos maresComo roçam na vaga as andorinhas. 1Ao longe, uma <strong>paisagem</strong> marítima. Tanto mar, tantomar! Uma caravela navega suave em plácido mar <strong>de</strong>almirante. Céu límpido com algumas gaivotas que indicama proximida<strong>de</strong> <strong>de</strong> terra e <strong>de</strong> novos saberes. O vento afavor embala aventuras rumo ao exótico que se escon<strong>de</strong>atrás do horizonte. A embarcação singra, talvez, por maresnunca dantes navegados. Diante <strong>de</strong> tal visão os corpos se1ALVES, Castro. Tragédia no mar 1ª. In: O Navio Negreiro http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000074.pdf Acesso em 12 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 2012748


O <strong>Abajur</strong> <strong>de</strong> <strong>Cildo</strong> <strong>Meireles</strong> e a <strong>paisagem</strong> <strong>contemporânea</strong> - Carla Hermann e Jacqueline Sianopermitem capturar por um lampejo <strong>de</strong> contemplação. Osolhos buscam uma miragem, um momento <strong>de</strong> beleza econforto. Tomados pelo cansaço <strong>de</strong> percorrer as galeriasda 29ª Bienal <strong>de</strong> Arte <strong>de</strong> São Paulo, a visão da bela imagemimpulsiona uma nova experiência.Ao chegar ao topo da escada – um tanto íngreme eprecária que conduz a uma plataforma circular que introduzo visitante no espaço instalativo, e que persiste em afirmáloa cada <strong>de</strong>grau galgado como participador da obra –, talvisitante <strong>de</strong>scobre-se frente a frente com uma peça emescala monumental, espécie <strong>de</strong> luminária giratória giganteque remete aos antigos panoramas – misto <strong>de</strong> inovaçãotecnológica e virtuosismo pictórico que se manteveoperante nos fins do século XIX como uma atração notávelvoltada para o entretenimento. Nesses dispositivos, efeitos<strong>de</strong> luz e som, assim como alguns objetos arranjados nopiso próximo à tela, estimulavam a sensação <strong>de</strong> realida<strong>de</strong>dada pela cena que completava o espetáculo. Os temasvariavam <strong>de</strong>s<strong>de</strong> representações <strong>de</strong> batalhas, paisagensurbanas e naturais a cenas bíblicas. Rotundas <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>sproporções foram construídas para abrigar esses outrosespaços e que receberam vários nomes; diorama,cosmorama, moving panorama, mareorama – o quealiás, mais se aproxima <strong>de</strong> nosso caso – proporcionandouma experiência imersiva e uma nova relação entreespectador e as imagens representadas. No mareoramaexibido na Exposição Universal <strong>de</strong> Paris (1900), um naviocenográfico representava os transatlânticos da épocaque circunavegavam os oceanos. Artistas contratados749


XXXII Colóquio <strong>CBHA</strong> 2012 - Direções e Sentidos da História da Arterepresentavam a rotina das ações comuns às ativida<strong>de</strong>smarítimas. Oculto sob a plataforma, um sistema hidráulicocomplexo operava movimentos similares ao das ondas.No ar, pairava o aroma <strong>de</strong> algas difundido por potentesventiladores enquanto a iluminação simulava o passar dashoras. 2A escala monumental trazia também a função <strong>de</strong> nãopermitir a visualização do mecanismo operacional, assimcomo a base e o topo da tela, o que influenciava tambémo modo <strong>de</strong> experimentar o próprio espaço, além <strong>de</strong> seduziro público com sua presença grandiosa. Nos panoramasoperava a mesma lógica da monumentalida<strong>de</strong>, compaisagens <strong>de</strong> até 16 m <strong>de</strong> altura colocadas na pare<strong>de</strong> semjanelas <strong>de</strong> uma sala fechada circular e giratória, formandouma vista <strong>de</strong> 360º a ser vista do centro da sala. (Figura 1) 3Figura 1 - Panorama Robert Baker. Estudo para um panorama <strong>de</strong> Robert Barker, 17872Disponível em http://andreparente.net/figurasna<strong>paisagem</strong>/#/panoramas/ - Acesso em23 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 2012.3I<strong>de</strong>m.750


O <strong>Abajur</strong> <strong>de</strong> <strong>Cildo</strong> <strong>Meireles</strong> e a <strong>paisagem</strong> <strong>contemporânea</strong> - Carla Hermann e Jacqueline SianoDes<strong>de</strong> o início do século XIX os panoramas estiverampresentes nas capitais europeias, espalhando uma noção<strong>de</strong> relação com a pintura <strong>de</strong> <strong>paisagem</strong> que era por si sóa constituição da sensibilida<strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rna. Para enten<strong>de</strong>ra função <strong>de</strong>stas construções, capazes <strong>de</strong> instaurar certadúvida da existência do sujeito na contemplação, ao mesmotempo em que eram capazes <strong>de</strong> criar uma experiência total(aspecto <strong>de</strong> experiência completa que certamente é evocadoem <strong>Abajur</strong> – voltaremos a esse ponto <strong>de</strong>pois), vamosrecorrer a um dos mais famosos panoramas da <strong>paisagem</strong>carioca. Referimo-nos ao Panorama do Rio <strong>de</strong> Janeiro <strong>de</strong>Felix-Émilie Taunay, realizado em 1822, e composto poruma sequência <strong>de</strong> oito aquarelas medindo cada uma 51cm x 39 cm. (Figura 2) Sabe-se que uma gran<strong>de</strong> ampliação<strong>de</strong>sta obra foi feita por Fré<strong>de</strong>ric Guillaume Ronmy e exibidaem Paris, no ano <strong>de</strong> 1824, em uma rotunda já <strong>de</strong>struídana Passage <strong>de</strong>s Panoramas. Devido ao sucesso damostra parisiense, inúmeras tiragens <strong>de</strong>sta vista do Rio <strong>de</strong>Janeiro foram gravadas, e por isso encontramos hoje estepanorama em alguns arquivos e coleções particulares, 4 porvezes com pequenas diferenças em relação ao <strong>de</strong>senhooriginal, pertencente à coleção privada dos her<strong>de</strong>iros <strong>de</strong>Synphorien Meunié, arquiteto aluno <strong>de</strong> Grandjean <strong>de</strong>Montigny, e integrante pouco conhecido da Missão ArtísticaFrancesa <strong>de</strong> 1826. 54Aqui trabalhamos com o exemplar da Fundação Biblioteca Nacional no Rio <strong>de</strong>Janeiro, on<strong>de</strong> a atribuição <strong>de</strong> autoria é, inclusive, dada ao realizador na França, Ronmy.Disponível para visualização em: http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_iconografia/icon408452.jpg5PEREIRA. Margareth da Silva. Romantismo e objetivida<strong>de</strong>: notas sobre um panoramado Rio <strong>de</strong> Janeiro. In: Anais do Museu Paulista. São Paulo. N. Ser. V.2, pp. 169-195. Jan./Dez. 1994. P. 174.751


XXXII Colóquio <strong>CBHA</strong> 2012 - Direções e Sentidos da História da ArteFigura 2- Panorama do Rio <strong>de</strong> Janeiro. Panorama do Rio <strong>de</strong> Janeiro <strong>de</strong> Felix-ÉmilieTaunay, realizado em 1822. Fundação Biblioteca Nacional.Em se tratando <strong>de</strong> uma <strong>paisagem</strong> do séculoXIX, a noção <strong>de</strong> cida<strong>de</strong> se confun<strong>de</strong> com a sua próprianatureza, que se torna bastante presente. Daí a <strong>de</strong>finiçãodas montanhas e escarpas, a iluminação que confun<strong>de</strong>construções e a colina na parte esquerda do panorama. Aimagem <strong>de</strong> uma cida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sconhecida, mas que <strong>de</strong>veria sereportar ao velho continente, não apenas como um lugar<strong>de</strong> características peculiares, como também um lugar noqual cabia uma mirada mo<strong>de</strong>rna. Mirada esta, percebidaatravés da i<strong>de</strong>ntificação dos elementos naturais da faunae da flora, dispostos <strong>de</strong> maneira quase documental, <strong>de</strong>ntro<strong>de</strong> um sistema embalado pelo i<strong>de</strong>al cientificista, o quereforça o caráter científico como registro <strong>de</strong> um instantehistórico recém-ocorrido à época: a figura <strong>de</strong> D. Pedro I,já proclamado imperador, acompanhado por uma comitiva.A construção perspectiva parece trazer o espectadordo fundo da baía gradualmente até o centro urbano – <strong>de</strong>nsoe povoado. A cida<strong>de</strong> e a natureza, tornadas em unida<strong>de</strong>,752


O <strong>Abajur</strong> <strong>de</strong> <strong>Cildo</strong> <strong>Meireles</strong> e a <strong>paisagem</strong> <strong>contemporânea</strong> - Carla Hermann e Jacqueline Sianoservem como receptáculo da única ação da extensa cena,a do imperador da jovem nação há pouco in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte.A i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> uma unida<strong>de</strong> – tanto no <strong>de</strong>senho quanto naapresentação do panorama – procura engendrar umarealida<strong>de</strong> da cida<strong>de</strong> do Rio <strong>de</strong> Janeiro que hoje nos parecedada como um fato histórico apreendido pelo artista, mascapaz <strong>de</strong> convencer o sujeito observador.Formalmente isso se traduz numa configuração que<strong>de</strong>forma a realida<strong>de</strong> geográfica em prol da necessida<strong>de</strong><strong>de</strong> se construir uma obra linear, como se fosse capaz <strong>de</strong>capturar a visão <strong>de</strong> 360 graus obtida a partir do morro doCastelo. Planificar o esférico, um movimento cartográfico <strong>de</strong>representação do espaço, já era sabidamente impossívelno século XIX. Também a transposição da realida<strong>de</strong> nãoera o principal objetivo <strong>de</strong>ssas obras produzidas pelosviajantes. Cabe a nós, passados quase 200 anos da suarealização, perceber a agenda por trás dos registros, ecapturar a relação entre o homem e a natureza que animaas representações.753


XXXII Colóquio <strong>CBHA</strong> 2012 - Direções e Sentidos da História da ArteAs pinturas <strong>de</strong> <strong>paisagem</strong> tradicionais ora evocamlugares cativantes – <strong>de</strong>stacando o aspecto pitoresco dasrepresentações instituído pela escola italiana ou aquelado sublime romântico – ora um lado <strong>de</strong>scritivo advindoda escola holan<strong>de</strong>sa que tem por base a cartografia e asvistas topográficas. Para Svetlana Alpers, não havia umadistinção nítida entre arte pictórica e a maneira elaboradadas representações cartográficas “numa época em queos mapas eram consi<strong>de</strong>rados um tipo <strong>de</strong> pintura, e emque as pinturas <strong>de</strong>safiavam os textos como uma maneirafundamental <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r o mundo, a distinção nãoera nítida”. 6 O gosto pelos mapas se fez para além <strong>de</strong>fonte <strong>de</strong> transmissão <strong>de</strong> conhecimento através do registro<strong>de</strong> áreas específica <strong>de</strong> interesse – fosse comercial,científico, militar ou <strong>de</strong> gestão <strong>de</strong> bens naturais –, eque combinava ainda os levantamentos topográficose <strong>de</strong>senhos elaborados, não havendo uma distinçãoclara entre cartógrafos e artistas na arte holan<strong>de</strong>sa doséculo XVII. Voltados para a expansão <strong>de</strong> seus domínioseconômicos, os holan<strong>de</strong>ses se aventuraram por paísestão distantes quanto o Brasil, on<strong>de</strong> fundaram a NovaHolanda, governada por Mauricio <strong>de</strong> Nassau.As imagens produzidas pelos artistas Frans Post eAlbert Eckhout tinham por função o registro da flora e dafauna, assim como dos costumes e vistas topográficasda região, a fim <strong>de</strong> <strong>de</strong>spertar o interesse <strong>de</strong> investidoreseuropeus no então vasto e admirável domínio holandês6ALPERS, Svetlana. O Impulso Cartográfico na Arte Holan<strong>de</strong>sa. In: A Arte <strong>de</strong> Descrever:A arte Holan<strong>de</strong>sa no Século XVII. São Paulo: Editora da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo,1999, pp.241-317.754


O <strong>Abajur</strong> <strong>de</strong> <strong>Cildo</strong> <strong>Meireles</strong> e a <strong>paisagem</strong> <strong>contemporânea</strong> - Carla Hermann e Jacqueline Sianono Brasil, que se estendia entre a província <strong>de</strong> Alagoas ado Maranhão. 7Alpers <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> a expertise da arte holan<strong>de</strong>sa noque tange a uma <strong>de</strong>scrição minuciosa sem prece<strong>de</strong>ntes,e que influenciou a imagética brasileira.A equipe sem prece<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> observadores ou <strong>de</strong>scritores(se assim po<strong>de</strong>mos chamá-los) que o príncipe <strong>de</strong> Mauricio reuniuincluía homens peritos em história natural e em cartografia, e tambémem <strong>de</strong>senho e pintura. [...] Eles reuniram um registro pictórico únicoda terra brasileira, seus habitantes, sua flora e suas coisas exóticas.Albert Eckhout produziu as primeiras pinturas <strong>de</strong> nativos brasileirosem tamanho natural.Todo um repertório <strong>de</strong>scritivo passa a compor aescola <strong>de</strong> pintura <strong>de</strong> gênero holan<strong>de</strong>sa fundamentado nosregistros topográficos, nas amplas vistas panorâmicasdos campos e nos perfis das cida<strong>de</strong>s que se elevam comorecortes – on<strong>de</strong> constava além das vistas das cida<strong>de</strong>s,uma excelente qualida<strong>de</strong> formal e elevado domínio <strong>de</strong>distintos meios gráficos <strong>de</strong> representação que passam aimpulsionar a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> viajar nos artistas e a influenciaros modos <strong>de</strong> ver a <strong>paisagem</strong> e <strong>de</strong> representá-la.Essas pinturas <strong>de</strong> <strong>paisagem</strong> aproximam oobservador daquilo que vê. O artista passa então a sairdo ateliê, para registrar o mais realisticamente possívelo que <strong>de</strong> fato existia no ambiente natural ou urbano,tornando-se um <strong>de</strong>sbravador; um viajante. É <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>stecontexto que surgem as pinturas <strong>de</strong> <strong>paisagem</strong> e as vistastopográficas das cida<strong>de</strong>s. Alpers assinala ainda que a7Além dos artistas citados também integraram a missão maurícia o geógrafo Johannes<strong>de</strong> Laet e o cartógrafo e astrônomo Georg Macgraf.755


XXXII Colóquio <strong>CBHA</strong> 2012 - Direções e Sentidos da História da Arteescola holan<strong>de</strong>sa se fundamenta nas imagens cartográficas<strong>de</strong>s<strong>de</strong> Van Goyen, Ruisdael e Koninck, que produziramvisões panorâmicas em suas pinturas “com frequênciaconsi<strong>de</strong>radas como a mais importante contribuição feitapelos pintores holan<strong>de</strong>ses para a imagem da <strong>paisagem</strong>”. 8Diferentemente do referido panorama e <strong>de</strong> tantosoutros <strong>de</strong> sua época, on<strong>de</strong> nos parece “que com aquelastelas fixamos o olhar em tudo que nos envolve, apenasapren<strong>de</strong>mos a revestir o visível da noção <strong>de</strong> espetáculosem conseguir interrogar [...] sobre a própria operaçãoque cada um realiza”, 9 o <strong>Abajur</strong> <strong>de</strong> <strong>Cildo</strong> <strong>Meireles</strong> jamais<strong>de</strong>sejou escon<strong>de</strong>r a força motriz <strong>de</strong> seu movimento. Eleusa como interface uma construção cultural aparentementeneutralizada pela or<strong>de</strong>nação da <strong>paisagem</strong> <strong>de</strong> natureza<strong>de</strong>sbravada pelo homem, quando, na verda<strong>de</strong>, é construídoem cima do suor e do sacrifício do trabalho. (Figura 3)Antes que a imagem con<strong>de</strong>ne olho e corpo à meracontemplação, lentamente, e sem pieda<strong>de</strong>, a audição éacionada subjugando a visão a outros caprichos advindos<strong>de</strong> invasivas sonorida<strong>de</strong>s discor<strong>de</strong>s. Sons agudoscomeçam a <strong>de</strong>smanchar a imagem da beleza. O estri<strong>de</strong>ntegrasnar <strong>de</strong> gaivotas sobrevoa a idílica <strong>paisagem</strong> ecoandono espaço. Outro som, grave monótono e abafado, remetea alguma maquinaria em funcionamento. A <strong>paisagem</strong> é,sem dúvida, sonora-visual, e não po<strong>de</strong> mais escon<strong>de</strong>r dosolhos o que acontece abaixo do horizonte. Sob os pés doespectador se encontram os homens que fazem movera pesada engrenagem. O monumento documenta outra8ALPERS, Svetlana. Op. Cit., pp. 271-272.9PEREIRA. Margareth da Silva. Op. Cit., p. 171756


XXXII Colóquio <strong>CBHA</strong> 2012 - Direções e Sentidos da História da Artehomens a aprisionamentos tão antigos quanto à vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong>or<strong>de</strong>namento civilizatório. A luz que emana <strong>de</strong> <strong>Abajur</strong> não sócompleta a questão da unida<strong>de</strong> do panorama, como ameaçalamber os restos da indiferença que habitavam o visitanteantes <strong>de</strong> perceber a presença daqueles homens que,continuamente, fazem girar o mecanismo da obra. Preten<strong>de</strong>ativar o espaço que ocupa, mas também voltar-se para simesma, <strong>de</strong>safiando sua dimensão estética e seu estatuto<strong>de</strong> obra pública, já que ao mesmo tempo em que instigauma reflexão crítica, nos coloca na posição <strong>de</strong> sujeitos doquestionamento, na i<strong>de</strong>ntificação <strong>de</strong> que somos todos nósfrutos <strong>de</strong>sse processo mo<strong>de</strong>rno, ao mesmo tempo em queacreditamos na chave do progresso.A função da obra <strong>de</strong> arte da <strong>paisagem</strong> <strong>contemporânea</strong>é geralmente entendida como a ativação do espaço, datransformação dos lugares, atuando diretamente no espaçoda obra, sem se limitar à relação entre objeto e espaçoexterior. Ao contrário, pensa na modificação perene outemporária do espaço, público ou privado. <strong>Cildo</strong> <strong>Meireles</strong>,entretanto, opta pela construção <strong>de</strong> um objeto que emboraatual estabelece conexões bastante claras com a pintura<strong>de</strong> gênero paisagístico do século XIX, insistindo nahorizontalida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ste meio e na presença <strong>de</strong> uma obra que,por mais que transbor<strong>de</strong> para o seu entorno, permanece<strong>de</strong>ntro dos seus limites físicos. A reverberação ocorre namemória do visitante, tal como <strong>de</strong>screvemos no início daapresentação.Ao organizar assim <strong>Abajur</strong>, o artista consegue nostransportar para outro tempo histórico e suas realida<strong>de</strong>s e758


O <strong>Abajur</strong> <strong>de</strong> <strong>Cildo</strong> <strong>Meireles</strong> e a <strong>paisagem</strong> <strong>contemporânea</strong> - Carla Hermann e Jacqueline Sianoconsequências sociais. A opção, assim, parece ter sido a<strong>de</strong> tensionar o próprio olhar e a experiência do espectadorcom a sua transposição para esse tempo passado. A funçãoda <strong>paisagem</strong> <strong>contemporânea</strong>, neste caso específico darecuperação da forma panorâmica (ou da construção <strong>de</strong>um panorama às avessas) é a <strong>de</strong> pôr em questão todae qualquer mirada espetacular capaz <strong>de</strong> escon<strong>de</strong>r umaproblemática social. É revelar o que a construção da história,com seus recortes e eleições <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminados fatos, tentouvarrer para <strong>de</strong>baixo do tapete.Se os panoramas ofereciam a chamada “visão<strong>de</strong> pássaro” 10 que pretendia alcançar a realida<strong>de</strong> emsua totalida<strong>de</strong>, o <strong>Abajur</strong> <strong>de</strong> <strong>Cildo</strong> nos leva ao passado e,imediatamente <strong>de</strong>pois, nos coloca no presente. Ao invésda ilusão <strong>de</strong> controle sobre o espaço da cida<strong>de</strong> crescente euma nova visão normativa do mundo, a obra nos faz per<strong>de</strong>ro chão e o controle sobre a história. Temos a dura realida<strong>de</strong>e a vergonha do passado. A<strong>de</strong>mais, <strong>de</strong>smascarando otruque da rotunda, cria uma impressão parecida com a queJeff Wall engendra em Restoration (1993) um trabalho cujomotivo é a restauração <strong>de</strong> um dos poucos panoramas doséculo XIX ainda existentes, chamado “Bourbaki”, pintadooriginalmente em 1881 e localizado em Lucerne, na Suiça. 11Ao colocar a presença dos restauradores na foto,chamando a atenção para a mulher que olha para o espaço,contemplando o interior do panorama, Wall nos diz queapesar <strong>de</strong> sabermos da artificialida<strong>de</strong> da imagem criada pelo10Della Dora, Veronica. Putting the World into a Box: A Geography of Nineteenth-century'Travelling Landscapes'. Geogr. Ann., 89 B p. 289.11Para o Panorama Bourbaki, acessar: http://www.bourbakipanorama.ch/fr/in<strong>de</strong>x.html759


XXXII Colóquio <strong>CBHA</strong> 2012 - Direções e Sentidos da História da Artedispositivo, a criação final ainda nos fascina, nos <strong>de</strong>sperta ointeresse da contemplação, tal como <strong>Abajur</strong>, que encanta,perturba e enoja em seguida.Em suma, a <strong>paisagem</strong> nos dias <strong>de</strong> hoje seguequestionando o olhar, o posicionamento do observadore da responsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua visão sobre o mundo –questionamentos agora colocados também sobre o outro <strong>de</strong>nós mesmos e das relações com o mundo que nos cerca eafeta.Referências Bibliográficas:ALPERS, Svetlana. O Impulso Cartográfico na Arte Holan<strong>de</strong>sa. In: A Arte <strong>de</strong> Descrever: Aarte Holan<strong>de</strong>sa no Século XVII. São Paulo: Editora da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo, 1999,pp.241-317.ALVES, Castro. Tragédia no mar 1ª. In: O Navio Negreiro http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000074.pdf Acesso em 12 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 2012DELLA DORA, Veronica. Putting the World into a Box: A Geography of Nineteenth-century‘Travelling Landscapes’. Geogr. Ann., 89 B pp. 287-306.PEREIRA. Margareth da Silva. Romantismo e objetivida<strong>de</strong>: notas sobre um panorama doRio <strong>de</strong> Janeiro. In: Anais do Museu Paulista. São Paulo. N. Ser. V.2, Jan./Dez. 1994. pp.169-195.760

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!