Espectroscopia dinâmica <strong>de</strong> líquidos4O estudo dos estados gasoso e sólido ocupa fraçãoconsi<strong>de</strong>rável <strong>de</strong> livros-texto <strong>de</strong> Físico-Química e,portanto, do programa <strong>de</strong> cursos universitários, masmenos atenção é dada à discussão do estado líquido.Enquanto a teoria cinética dos gases e o teorema <strong>de</strong> Blochpara sólidos cristalinos oferecem uma representaçãorelativamente satisfatória para esses estados da matéria,diferentes teorias têm sido propostas para a <strong>de</strong>scrição doestado líquido. O principal objetivo <strong>de</strong> uma teoria doestado líquido é a compreensão microscópica, ou seja, apartir das forças intermoleculares, das proprieda<strong>de</strong>smacroscópicas obtidas experimentalmente, por exemplo,proprieda<strong>de</strong>s Termodinâmicas ou coeficientes <strong>de</strong>transporte, como viscosida<strong>de</strong>, difusão etc... A relaçãoentre proprieda<strong>de</strong>s moleculares, como calculadas porQuímica Quântica, e proprieda<strong>de</strong>s Termodinâmicas éefetivada pelo formalismo da Mecânica Estatística.No nosso grupo <strong>de</strong> pesquisa do Laboratório <strong>de</strong>Espectroscopia Molecular (LEM) empregamosespectroscopia Raman no estudo <strong>de</strong> dinâmica <strong>de</strong> líquidos.O uso mais comum da espectroscopia Raman é comouma técnica <strong>de</strong> espectroscopia vibracional que ofereceinformações complementares à espectroscopia <strong>de</strong>absorção no infravermelho. No entanto, a espectroscopiaRaman também oferece dados sobre a dinâmicavibracional intermolecular e <strong>de</strong> processos <strong>de</strong> relaxação dolíquido. Utilizamos espectroscopia Raman no estudo <strong>de</strong>líquidos super-resfriados em função da temperatura, a fim<strong>de</strong> acompanhar a evolução da dinâmica microscópicadurante a transição vítrea do material. Os principaissistemas investigados pelo nosso grupo <strong>de</strong> pesquisa sãolíquidos iônicos e eletrólitos poliméricos. Os líquidosiônicos são sais com ponto <strong>de</strong> fusão baixo. Esses sistemasiônicos são normalmente compostos por cátions ouânions orgânicos volumosos, <strong>de</strong> tal modo que o sal é umlíquido em temperatura ambiente. Os líquidos iônicos têm<strong>de</strong>spertado gran<strong>de</strong> interesse tecnológico como solventesalternativos para diversas sínteses <strong>de</strong> Química Orgânica etambém no <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> novos eletrólitos parabaterias <strong>de</strong> lítio. Os eletrólitos poliméricos são soluçõessólidas <strong>de</strong> íons dispersos numa matriz polimérica, aliandoproprieda<strong>de</strong>s mecânicas interessantes e condutivida<strong>de</strong>iônica relativamente alta. Estes sistemas têm sidoestudados no nosso grupo <strong>de</strong> pesquisa por meio <strong>de</strong>simulação computacional pelo método <strong>de</strong> DinâmicaMolecular. Simulações computacionais <strong>de</strong> líquidospermitem o cálculo <strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong>s termodinâmicas,estruturais e dinâmicas a partir da resolução numérica dasequações <strong>de</strong> movimento que <strong>de</strong>screvem a evolução dosistema. Por exemplo, as figuras apresentadas ao ladomostram uma configuração instantânea gerada porDinâmica Molecular <strong>de</strong> um eletrólito polimérico no qualo sal é um líquido iônico típico. Portanto, o nosso grupoprocura o uso coor<strong>de</strong>nado <strong>de</strong> experimento, teoria esimulação para a interpretação e a previsão <strong>de</strong>proprieda<strong>de</strong>s macroscópicas <strong>de</strong> materiais a partir daelucidação da estrutura e dinâmica microscópicas dosmesmos.Figura 1. Configuração obtida por simulação computacional <strong>de</strong> umsegmento da ca<strong>de</strong>ia polimérica <strong>de</strong> poli(oxietileno) solvatando o cátion1-butil-3-metilimidazólio. Os círculos ver<strong>de</strong>s mostram a localização<strong>de</strong> dois ânions PF6 vizinhos [Luciano T. Costa, Mauro C. C. Ribeiro,J. Chem. Phys. 124, 184902 (2006); 127, 164901 (2007)]Figura 2. Este equipamento foi adquirido em 1990 com verbaFAPESP. O <strong>de</strong>tector é uma fotomulplicadora e as radiações excitantesvêm <strong>de</strong> dois lasers coerentes Ar+ e Kr+ e um laser <strong>de</strong> corante. Nelesão <strong>de</strong>senvolvidos todos os trabalhos <strong>de</strong> Raman ressonante, dispersãoRaman e perfis <strong>de</strong> bandas, temas em <strong>de</strong>senvolvimento no LEM.Prof. Dr. Mauro Carlos Costa Ribeiro (IQ<strong>USP</strong>)Linha <strong>de</strong> pesquisa: Espectroscopia dinâmica <strong>de</strong> líquidosEspectroscopia Raman e simulações pelo método <strong>de</strong> dinâmica molecular(MD) são utilizadas em conjunto no estudo <strong>de</strong> líquidos, com ênfase emsistemas iônicos com ponto <strong>de</strong> fusão baixo (room temperature molten salts),os chamados líquidos iônicos. Espectros Raman são analisados na região <strong>de</strong>frequências baixas, a qual resulta diretamente da dinâmica intermolecular dolíquido, e também na região <strong>de</strong> frequências elevadas, on<strong>de</strong> as formas dasbandas dos modos intramoleculares resultam <strong>de</strong> processos <strong>de</strong> relaxaçãovibracional e reorientacional. Investigamos efeitos <strong>de</strong> polarização em váriasproprieda<strong>de</strong>s estruturais e dinâmicas <strong>de</strong> sais fundidos, por exemplo, acondutivida<strong>de</strong> iônica.Mo<strong>de</strong>los para a flutuação da polarizabilida<strong>de</strong><strong>de</strong>vido à dinâmica intermolecular do líquido sãoutilizados para o cálculo <strong>de</strong> espectros Raman pormeio <strong>de</strong> simulações MD. Efetuamos simulaçõesMD <strong>de</strong> líquidos precursores <strong>de</strong> vidro, on<strong>de</strong>relaxação da estrutura são caracterizadas pormeio <strong>de</strong> funções <strong>de</strong> correlação <strong>de</strong> <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong>.
5A exemplo do que acontece com inúmeros outros renomados docentes do nosso <strong>Instituto</strong><strong>de</strong> Química, a nossa entrevistada <strong>de</strong>sta edição do <strong>Alquimista</strong> <strong>de</strong> março também é oriunda<strong>de</strong> uma família bastante humil<strong>de</strong>. Filha <strong>de</strong> imigrantes poloneses que se evadiram das tropasnazistas pouco antes do início da II Gran<strong>de</strong> Guerra (1939-1945), a Profa. Shirley Schreierrecebeu a nossa reportagem na tar<strong>de</strong> do último dia 26 <strong>de</strong> fevereiro. Em <strong>de</strong>scontraída emuito amável entrevista, falou-nos da sua vida e da sua profícua carreira acadêmica.Acompanhe, a seguir, os principais pontos do seu expressivo <strong>de</strong>poimento.<strong>Alquimista</strong>: Por favor, conte-nos um pouco da sua vida e porque optou pelo estudo da Química?S.S.: Meus pais eram imigrantes vindos da Polônia (hojeUcrânia). Meu pai veio em 1936 e a minha mãe em 39, noúltimo navio que partiu da Polônia antes da invasão alemã.Meu pai vendia roupa na rua e a minha mãe era costureira.Depois eles tiveram uma pequena loja no bairro operário doIpiranga, on<strong>de</strong> cresci. A loja era na frente e a casa, atrás.Inicialmente dormíamos os quatro num quarto: eu, meu irmão,meu pai e minha mãe. Sempre estu<strong>de</strong>i em escola pública,exceto no primeiro ginasial.<strong>Alquimista</strong>: E como se <strong>de</strong>u, então, a sua escolha pelaQuímica?S.S.: Fiz o primário no Grupo Escolar José Bonifácio e oginásio no Alexandre Gusmão. No equivalente colegial <strong>de</strong>hoje, ia fazer clássico para estudar Direito ou Literatura. Mas,naquele ano acabou o clássico e uma amiga minha me disseque o científico era melhor. Assim, <strong>de</strong>cidi fazer o científico.No entanto, tive um professor <strong>de</strong> Química espetacular, quehavia estudado Química na <strong>USP</strong>. O Prof. Wilson Silva eraótimo, mas largou o magistério por causa dos baixos salários efoi trabalhar nos laboratórios da polícia. Como sempre quisser professora, pensei em lecionar Química e foi assim que<strong>de</strong>cidi fazer o curso. Meu pai teve muita influência na minhavalorização e interesse pelo estudo, pois apesar <strong>de</strong> não termuita instrução, ele era muito culto. Assinava e liadiariamente o Estadão. E ele me dizia: “olha, vai ter umseminário na tua faculda<strong>de</strong> amanhã”, porque a cada quinzedias havia um seminário lá na Alameda Glete. E, na verda<strong>de</strong>,durante o curso é que fui <strong>de</strong>scobrindo a pesquisa. Inicialmentepensei em fazer orgânica, mas aí tive aulas <strong>de</strong> bioquímica como Prof. Cilento e me senti muito atraída pela matéria.<strong>Alquimista</strong>: Toda a sua graduação foi na Glete?S.S: Quando comecei a pós-graduação o curso <strong>de</strong> Química, doentão Departamento <strong>de</strong> Química da Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Filosofia,Ciências e Letras, ainda era lá. Quando comecei a dar aulas,em 1965, era lá também. Nesse ano, <strong>de</strong>i laboratório paraGeologia e Química. Eu ainda não tinha terminado odoutorado. Naquela época éramos contratados sem terminar odoutorado. Em 66 nos mudamos para cá. Foi uma épocapoliticamente muito tumultuada, era uma “barra”. Eu e o Prof.Oswaldo Serra (hoje em Ribeirão Preto) dávamos aulas paraFísica, diurno e noturno. Começamos o laboratório aqui naCida<strong>de</strong> Universitária. Então, <strong>de</strong> repente, faltava um tubo <strong>de</strong>ensaio e corríamos para o almoxarifado para busca-lo. Apesar<strong>de</strong> serem cem alunos, sabíamos o nome <strong>de</strong> todos, pois aconvivência era muito próxima. Serra e eu chegávamos eperguntávamos: “cadê Fulano?” “Ah, Fulano não pô<strong>de</strong> virporque a polícia está atrás <strong>de</strong>le.”. “Cadê Sicrano?. “Sicranonão pô<strong>de</strong> vir porque está sendo procurado.”<strong>Alquimista</strong>: De fato, aquela foi uma época terrível não?S.S.: Há pouco tempo contei isso numa cerimônia na SantaCasa em homenagem a um primo, estudante <strong>de</strong> medicina,morto pela Ditadura. No final, uma pessoa se aproximou edisse: “Eu sou um daqueles alunos que não podiam ir à aula”.Olhei para ele e, passados quarenta anos, lembrei do nome:“Otoni!”<strong>Alquimista</strong>: Des<strong>de</strong> o seu ingresso no vestibular da <strong>USP</strong>, em1958, até hoje transcorreram 50 anos. Que balanço a senhorafaz <strong>de</strong>sse período todo, cotejando o presente em relação aopassado. E, a<strong>de</strong>mais, o que a senhora espera para o futuro danossa universida<strong>de</strong>?S.S.: Eu gosto muito <strong>de</strong> ensinar. Acho muito bom adquirir umasérie <strong>de</strong> conhecimentos e po<strong>de</strong>r passar para outros tudo o que seapren<strong>de</strong>u. Creio que, sob alguns aspectos, a situação atual <strong>de</strong>ixaa <strong>de</strong>sejar. Sendo a Química uma ciência experimental, aaquisição <strong>de</strong> muitos conceitos e o <strong>de</strong>senvolvimento doraciocínio químico <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m da realização <strong>de</strong> trabalhoexperimental. Por exemplo, no meu caso, quando cheguei noCanadá para o pós-doc, nunca tinha visto o aparelho com oqual ia trabalhar, o espectrômetro <strong>de</strong> ressonância paramagnéticaeletrônica (EPR). Aqui eu só tinha usado um espectofotômetroobsoleto, já consi<strong>de</strong>rado peça <strong>de</strong> museu, balança <strong>de</strong> cavaleiro eum fluorímetro. Não tínhamos muitos recursos materiais, maséramos muito bem treinados. Na graduação o Prof. PascoalSenise era o professor <strong>de</strong> teoria e o Prof. Geraldo Vicentini erao professor no laboratório <strong>de</strong> Química Analítica. Ambos eramótimos. As aulas do Prof. Senise e os colóquios do Prof.Geraldo obrigavam o aluno a raciocinar. No Canadá, apesar dafalta <strong>de</strong> experiência com recursos mais sofisticados, tinha muitoboa base teórica. Trabalhei um total <strong>de</strong> quase seis anos noNational Research Council (NRC), a melhor instituição <strong>de</strong>pesquisa do Canadá, e tive excelentes resultados nesse período.<strong>Alquimista</strong>: O que tem marcado a sua atuação ao longo dosseus tantos anos <strong>de</strong> trabalho aqui no IQ?S.S.: Estudar os aspectos estruturais e conformacionais <strong>de</strong>moléculas biológicas, através do emprego <strong>de</strong> técnicasespectroscópicas e <strong>de</strong> abordagens físico-químicas é o que eugosto <strong>de</strong> fazer. Uma colocação essencial no nosso trabalho é aênfase na relação estrutura-função, ou seja, a função éconseqüência da estrutura e da dinâmica das moléculas. Assim,esses estudos contribuem para a compreensão, em nívelmolecular, do mecanismo <strong>de</strong> ação (e /ou toxicida<strong>de</strong>) <strong>de</strong>moléculas com ativida<strong>de</strong> biológica e/ou farmacológica. Dessaforma po<strong>de</strong>mos, eventualmente, contribuir para o<strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> produtos aplicados (medicamentos). Porexemplo, ao se estudar a topografia <strong>de</strong> uma proteína, esseconhecimento po<strong>de</strong>rá permitir o <strong>de</strong>senho <strong>de</strong> um fármaco. Essefármaco po<strong>de</strong>rá, por exemplo, encaixar-se na proteína, atuandocomo um inibidor. Assim, eu me vejo fazendo aquilo <strong>de</strong> quegosto e para o que fui treinada, e esperando que os resultadosobtidos possam contribuir para o melhor conhecimento <strong>de</strong>aspectos biológicos, farmacêuticos ou clínicos, levando, nofinal da ca<strong>de</strong>ia, a uma melhora da qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida.