Boletim SBH Setembro/2013 - Sociedade Brasileira de Hepatologia

| Seção Células de Kupffer |ao PORCOTIRANO e sua LEIHEDIONDA,Mário Reis Álvares-da-Silva (RS)nosso CUSPEe nosso DESPREZOSim, chegaram as novas drogas!,eu disse que iam chegar, não disse?,que bom, doutor, agora, sim, eu voume curar, pois é, os inibidores deprotease já estão aí, dá uma olhada,esta é a portaria nova, que capa linda,doutor, que beleza, que bons essesremédios que inibem a protease, e ogoverno já comprou?, que maravilha,e comprou bastante?, muitos tratamentos?,isto é ótimo, não vão faltarcomo aqueles outros, não é?, dizemque tem comprimidos pra muitagente, e eles já estão em algum lugarda cidade, mas... cadê o tratamento,doutor?, e aí? - e eu fico imaginandoem algum estoque de Porto Alegreas drogas compradas a peso de ouroficando mais velhas, velhinhas, vaique vencem daqui a pouco, e agoravai ser usado o sistema A, em breveo sistema B, sabe-se lá, sicranos vãoautorizar, agora não vão mais, temchamada para outro treinamento,amanhã tem reunião, professor!,leva a sua farmacêutica, a tia é muitorigorosa, só vai dar o remédio praquem fizer tudo direitinho!, eu voulá olhar, não me enganem, quero vercomo vocês se estruturaram, ai, ai,ai, médico faz mesmo tudo errado...esqueçam tudo, vai ficar como eraantes, a gente resolveu que vai serassim e pronto!, quer, quer, não quer,azar é seu, e olha que eu não deixo oseu serviço entrar, hein?, vem cá queeu vou te ensinar como se preencheo formulário X, o Y, o ZZZZ, e podeser que mude de novo, é assim!, ah!e a senhora, por favor, pegue o seusexames e leve para autorizar lá nasecretaria, que não é mais aqui, mas,doutor, o senhor ficou com essespapéis na sua mão por 3 meses, quase4, e eu espero há quase 2 anos, porquenão entrei com o pedido do tratamentoantes?, o senhor poderia ter meavisado, eu perdi tempo, eu sei, minhasenhora, eu sei, mas... é que mudou,e penso que a fibrose pode ser lentamas vai aumentando, as plaquetaspodem daqui a pouco não se segurarmais, e esta albumina que insiste emdiminuir, ano passado não era assim,onde vai parar, pois é, veja bem, agorajá não tenho tanta segurança em lhetratar, a senhora entende, parece quea doença piorou um pouco mais, temuma água aqui..., e o pior é que seique é minha culpa, sim, máxima!, osistema não funciona porque eu tenhoculpa, eu saboto o SUS e me açoitotodas as noites depois da leitura dealgum artigo, tentando tirar de mimeste pecado mortal de haver me interessadopela Medicina só para ganhardinheiro, andar de carrão, só para terstatus, só para olhar para o lado e darum bofetão na cara de todo mundoquando respondo – eu, o que eu faço?,sou MÉÉDICO!, assim, estendendo oÉ, bem sádico, que eu sou sádico, eruim, muito ruim, e adoro filas, gentesno chão, emergência lotada, sangue,fígado cirrótico, variz sangrando,ascite daquelas bem tensas, as hérniasexplodindo, encefalopatias, mortesno meio-fio, falta de material, falta deexames, falta de leitos, pouco transplante,e quando faltam inibidores deprotease, aí, então, ... orgasmos múltiplos!Aprendi nos últimos meses quesou o culpado, o bode expiatório detoda esta crise: burguês, sustentadopelo Estado, daqueles que estudouem escola privada desde o jardimde infância, explorando a sociedade,e depois estudei em uma faculdadepública, onde me locupletei com osangue dos trabalhadores, porqueestudei mais ainda e passei em umaresidência concorrida na minhacidade, mesmo, nem viajar precisei,o cretino, e ainda recebi do governouma bolsa para me especializar. Criaturaamoral! Pária! Chupim do povobrasileiro! Por que segui estudando– já notou como vagabundo gosta deestudar? – mestrado, doutorado, pós--doutorado, livre-docência, sempre emfaculdades públicas, sempre usandodo bem público para meu mórbidoprazer pessoal. Parasita! Animal,lendo artiguinho, livrinho na mão,não pega uma enxada, não pega nemônibus! Por que sempre, desde minhamais tenra idade médica, atendi apacientes do SUS – ou, melhor, apacientes, pois não faço nenhumadistinção entre eles; porque ensinoos meus alunos a terem genuíno interessee compromisso com os pacientes,respeito, atenção; porque conheço aeles pelo nome, sei de suas famílias,de suas histórias, de suas dificuldades,dou a mão, abraços, beijos, mas(perdão, perdão, grande senhor!), nãoatuo nas periferias e, sim, no centrode uma grande cidade, em um centroespecializado de um grande hospitalpúblico universitário (que funciona),sim, eu sei que eu sou desumano.Hipócrita e desumano. Aproveitador!Por isso já não sou mais nem médico,a senhora fez bem, que médico noBrasil agora é só quem corta – vivamos cirurgiões! - e por enquanto, porquevão voltar os barbeiros!, “para repararum erro histórico”, o discurso do “elessempre fizeram isto” da esquerdasanitária. E eu, hepatologista, senhorda teoria e amarrado pela falta decomo tratar a meus pacientes, enroladoe servil, fazendo nada, dia desses,que eu não faço mesmo nada, e o queeu faço, cá entre nós, qualquer umcom ensino médio, um ouvido ou bemalfabetizado pode fazer, ouvi aquelamúsica, Dylan/Ramil, a do louco dochapéu azul, linda, e um versinhoficou comigo “Ao porco tirano e sualei hedionda, nosso cuspe e o nossodesprezo!”. 2014, nos falamos depoisda Copa. •56 | Boletim SBHBoletim SBH | 57