agasalhava muito, que o beijava, que cobria o rosto para preservá-lo do sereno. Ao entrar naRua da Guarda <strong>Velha</strong>, Cândido Neves começou a afrouxar o passo. --Hei <strong>de</strong> entregá-lo o maistar<strong>de</strong> que pu<strong>de</strong>r, murmurou ele. Mas não sendo a rua infinita ou sequer longa, viria a acabá-la;foi então que lhe ocorreu entrar por um dos becos que ligavam aquela à Rua da Ajuda.Chegou ao fim do beco e, indo a dobrar à direita, na direção do Largo da Ajuda, viu do ladooposto um vulto <strong>de</strong> mulher; era a mulata fugida. Não dou aqui a comoção <strong>de</strong> Cândido Nevespor não podê-lo fazer com a intensida<strong>de</strong> real. Um adjetivo basta; digamos enorme. Descendoa mulher, <strong>de</strong>sceu ele também; a poucos passos estava a farmácia on<strong>de</strong> obtivera a informação,que referi acima. Entrou, achou o farmacêutico, pediu-lhe a fineza <strong>de</strong> guardar a criança porum instante; viria buscá-la sem falta.--Mas...Cândido Neves não lhe <strong>de</strong>u tempo <strong>de</strong> dizer nada; saiu rápido, atravessou a rua, até ao pontoem que pu<strong>de</strong>sse pegar a mulher sem dar alarma. No extremo da rua, quando ela ia a <strong>de</strong>scer a<strong>de</strong> S. José, Cândido Neves aproximou-se <strong>de</strong>la. Era a mesma, era a mulata fujona. --Arminda!bradou, conforme a nomeava o anúncio.Arminda voltou-se sem cuidar malícia. Foi só quando ele, tendo tirado o pedaço <strong>de</strong> corda daalgibeira, pegou dos braços da escrava, que ela compreen<strong>de</strong>u e quis fugir. Era já impossível.Cândido Neves, com as mãos robustas, atava-lhe os pulsos e dizia que andasse. A escravaquis gritar, parece que chegou a soltar alguma voz mais alta que <strong>de</strong> costume, mas enten<strong>de</strong>ulogo que ninguém viria libertá-la, ao contrário. Pediu então que a soltasse pelo amor <strong>de</strong> Deus.--Estou grávida, meu senhor! exclamou. Se Vossa Senhoria tem algum filho, peço-lhe poramor <strong>de</strong>le que me solte; eu serei tua escrava, vou servi-lo pelo tempo que quiser. Me solte,meu senhor moço! -- Siga! repetiu Cândido Neves. --Me solte! --Não quero <strong>de</strong>moras; siga!Houve aqui luta, porque a escrava, gemendo, arrastava-se a si e ao filho. Quem passava ouestava à porta <strong>de</strong> uma loja, compreendia o que era e naturalmente não acudia. Arminda iaalegando que o senhor era muito mau, e provavelmente a castigaria com açoutes,--cousa que,no estado em que ela estava, seria pior <strong>de</strong> sentir. Com certeza, ele lhe mandaria dar açoutes.--Você é que tem culpa. Quem lhe manda fazer filhos e fugir <strong>de</strong>pois? perguntou CândidoNeves.Não estava em maré <strong>de</strong> riso, por causa do filho que lá ficara na farmácia, à espera <strong>de</strong>le.Também é certo que não costumava dizer gran<strong>de</strong>s cousas. Foi arrastando a escrava pela Ruados Ourives, em direção à da Alfân<strong>de</strong>ga, on<strong>de</strong> residia o senhor. Na esquina <strong>de</strong>sta a lutacresceu; a escrava pôs os pés à pare<strong>de</strong>, recuou com gran<strong>de</strong> esforço, inutilmente. O quealcançou foi, apesar <strong>de</strong> ser a casa próxima, gastar mais tempo em lá chegar do que <strong>de</strong>vera.Chegou, enfim, arrastada, <strong>de</strong>sesperada, arquejando. Ainda ali ajoelhou-se, mas em vão. Osenhor estava em casa, acudiu ao chamado e ao rumor.--Aqui está a fujona, disse Cândido Neves. -- É ela mesma. --Meu senhor! --Anda, entra...Arminda caiu no corredor. Ali mesmo o senhor da escrava abriu a carteira e tirou os cem milréis<strong>de</strong> gratificação. Cândido Neves guardou as duas notas <strong>de</strong> cinqüenta mil-réis, enquanto osenhor novamente dizia à escrava que entrasse. No chão, on<strong>de</strong> jazia, levada do medo e da dor,e após algum tempo <strong>de</strong> luta a escrava abortou.O fruto <strong>de</strong> algum tempo entrou sem vida neste mundo, entre os gemidos da mãe e os gestos <strong>de</strong><strong>de</strong>sespero do dono. Cândido Neves viu todo esse espetáculo. Não sabia que horas eram.Quaisquer que fossem, urgia correr à Rua da Ajuda, e foi o que ele fez sem querer conhecer asconseqüências do <strong>de</strong>sastre.Quando lá chegou, viu o farmacêutico sozinho, sem o filho que lhe entregara. Quis esganá-lo.
Felizmente, o farmacêutico explicou tudo a tempo; o menino estava lá <strong>de</strong>ntro com a família, eambos entraram. O pai recebeu o filho com a mesma fúria com que pegara a escrava fujona <strong>de</strong>há pouco, fúria diversa, naturalmente, fúria <strong>de</strong> amor. Agra<strong>de</strong>ceu <strong>de</strong>pressa e mal, e saiu àscarreiras, não para a Roda dos enjeitados, mas para a casa <strong>de</strong> empréstimo com o filho e oscem mil-réis <strong>de</strong> gratificação. Tia Mônica, ouvida a explicação, perdoou a volta do pequeno,uma vez que trazia os cem mil-réis. Disse, é verda<strong>de</strong>, algumas palavras duras contra a escrava,por causa do aborto, além da fuga. Cândido Neves, beijando o filho, entre lágrimas,verda<strong>de</strong>iras, abençoava a fuga e não se lhe dava do aborto.--Nem todas as crianças vingam, bateu-lhe o coração.CAPÍTULO PRIMEIROMARIA CORAUMA NOITE, voltando para casa, trazia tanto sono que não <strong>de</strong>i corda ao relógio. Po<strong>de</strong> sertambém que a vista <strong>de</strong> uma senhora que encontrei em casa do comendador T... contribuíssepara aquele esquecimento; mas estas duas razões <strong>de</strong>stróem-se. Cogitação tira o sono e o sonoimpe<strong>de</strong> a cogitação; só uma das causas <strong>de</strong>via ser verda<strong>de</strong>ira. Ponhamos que nenhuma, efiquemos no principal, que é o relógio parado, <strong>de</strong> manhã, quando me levantei, ouvindo <strong>de</strong>zhoras no relógio da casa.Morava então (1893) em uma casa <strong>de</strong> pensão no Catete. Já por esse tempo este gênero <strong>de</strong>residência florescia no Rio <strong>de</strong> Janeiro. Aquela era pequena e tranqüila. Os quatrocentoscontos <strong>de</strong> réis permitiam-me casa exclusiva e própria; mas, em primeiro lugar, já eu ali residiaquando os adquiri, por jogo <strong>de</strong> praça; em segundo lugar, era um solteirão <strong>de</strong> quarenta anos,tão afeito à vida <strong>de</strong> hospedaria que me seria impossível morar só. <strong>Casa</strong>r não era menosimpossível. Não é que me faltassem noivas. Des<strong>de</strong> os fins <strong>de</strong> 1891 mais <strong>de</strong> uma dama, -- enão das menos belas, -- olhou para mim com olhos brandos e amigos. Uma das filhas docomendador tratava-me com particular atenção. A nenhuma <strong>de</strong>i corda, o celibato era a minhaalma, a minha vocação, o meu costume, a minha única ventura. Amaria <strong>de</strong> empreitada e por<strong>de</strong>sfastio. Uma ou duas aventuras por ano bastavam a um coração meio inclinado ao ocaso e ànoite.Talvez por isso <strong>de</strong>i alguma atenção à senhora que vi em casa do comendador, na véspera. Erauma criatura morena, robusta, vinte e oito a trinta anos, vestida <strong>de</strong> escuro; entrou às <strong>de</strong>z horas,acompanhada <strong>de</strong> uma tia velha. A recepção que lhe fizeram foi mais cerimoniosa que asoutras; era a primeira vez que ali ia. Eu era a terceira. Perguntei se era viúva.-- Não; é casada.-- Com quem?-- Com um estancieiro do Rio Gran<strong>de</strong>.-- Chama-se?-- Ele? Fonseca, ela Maria Cora.-- O marido não veio com ela?-- Está no Rio Gran<strong>de</strong>.Não soube mais nada; mas a figura da dama interessou-me pelas graças físicas, que eram ooposto do que po<strong>de</strong>riam sonhar poetas românticos e artistas seráficos. Conversei com elaalguns minutos, sobre cousas indiferentes, -- mas suficientes para escutar-lhe a voz, que era