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Relíquias de Casa Velha

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os livros. Gonçalves esquecia com facilida<strong>de</strong>, ora um recado, ora uma carta, sapatos, charutos,papéis. Quintanilha supria-lhe a memória. Às vezes, na Rua do Ouvidor, vendo passar asmoças , Gonçalves lembrava-se <strong>de</strong> uns autos que <strong>de</strong>ixara no escritório. Quintanilha voava abuscá-los e tornava com eles, tão contente que não se podia saber se eram autos, se a sortegran<strong>de</strong>; procurava-o ansiosamente com os olhos, corria, sorria, morria <strong>de</strong> fadiga.-- São estes?-- São; <strong>de</strong>ixa ver, são estes mesmos. Dá cá.-- Deixa, eu 1evo.A princípio, Gonçalves suspirava:-- Que maçada que <strong>de</strong>i a você!Quintanilha ria do suspiro com tão bom humor que o outro, para não o molestar, não seacusou <strong>de</strong> mais nada; concordou em receber os obséquios. Com o tempo, os obséquiosficaram sendo puro ofício. Gonçalves dizia ao outro: "Você hoje há <strong>de</strong> lembrar-me isto eaquilo". E o outro <strong>de</strong>corava as recomendações, ou escrevia-as, se eram muitas. Algumas<strong>de</strong>pendiam <strong>de</strong> horas; era <strong>de</strong> ver como o bom Quintanilha suspirava aflito, à espera quechegasse tal ou tal hora para ter o gosto <strong>de</strong> lembrar os negócios ao amigo. E levava-lhe ascartas e papéis, ia buscar as respostas, procurar as pessoas, esperá-las na estrada <strong>de</strong> ferro, faziaviagens ao interior. De si mesmo <strong>de</strong>scobria-lhe bons charutos, bons jantares, bonsespetáculos. Gonçalves já não tinha liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> falar <strong>de</strong> um livro novo, ou somente caro, quenão achasse um exemplar em casa.-- Você é um perdulário, dizia-lhe em tom repreensivo.-- Então gastar com letras e ciências é botar fora? É boa! concluía o outro.No fim do ano quis obrigá-lo a passar fora as férias. Gonçalves acabou aceitando, e o prazerque lhe <strong>de</strong>u com isto foi enorme. Subiram a Petrópolis. Na volta, serra abaixo, como falassem<strong>de</strong> pintura, Quintanilha advertiu que não tinham ainda uma tela com o retrato dos dous, emandou fazê-la. Quando a levou ao amigo, este não pô<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> lhe dizer que não prestavapara nada. Quintanilha ficou sem voz.-- É uma porcaria, insistiu Gonçalves.-- Pois o pintor disse-me...-- Você não enten<strong>de</strong> <strong>de</strong> pintura, Quintanilha, e o pintor aproveitou a ocasião para meter aespiga. Pois isto é cara <strong>de</strong>cente? Eu tenho este braço torto?-- Que ladrão !-- Não, ele não tem culpa, fez o seu negócio; você é que não tem o sentimento da arte, nemprática, e espichou-se redondamente. A intenção foi boa, creio...-- Sim, a intenção foi boa.-- E aposto que já pagou?-- Já.Gonçalves abanou a cabeça, chamou-lhe ignorante e acabou rindo. Quintanilha, vexado eaborrecido, olhava para a tela, até que sacou <strong>de</strong> um canivete e rasgou-a <strong>de</strong> alto a baixo. Como

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