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Relíquias de Casa Velha

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que o escravo <strong>de</strong> contrabando, apenas comprado no Valongo, <strong>de</strong>itava a correr, sem conheceras ruas da cida<strong>de</strong>. Dos que seguiam para casa, não raro, apenas ladinos, pediam ao senhor quelhes marcasse aluguel, e iam ganhá-lo fora, quitandando.Quem perdia um escravo por fuga dava algum dinheiro a quem lho levasse. Punha anúnciosnas folhas públicas, com os sinais do fugido, o nome, a roupa, o <strong>de</strong>feito físico, se o tinha, obairro por on<strong>de</strong> andava e a quantia <strong>de</strong> gratificação. Quando não vinha a quantia, vinhapromessa: "gratificar-se-á generosamente", -- ou "receberá uma boa gratificação". Muita vez oanúncio trazia em cima ou ao lado uma vinheta, figura <strong>de</strong> preto, <strong>de</strong>scalço, correndo, vara aoombro, e na ponta uma trouxa. Protestava-se com todo o rigor da lei contra quem o acoutasse.Ora, pegar escravos fugidios era um ofício do tempo. Não seria nobre, mas por serinstrumento da força com que se mantêm a lei e a proprieda<strong>de</strong>, trazia esta outra nobrezaimplícita das ações reivindicadoras. Ninguém se metia em tal ofício por <strong>de</strong>sfastio ou estudo; apobreza, a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma achega, a inaptidão para outros trabalhos, o acaso, e algumavez o gosto <strong>de</strong> servir também, ainda que por outra via, davam o impulso ao homem que sesentia bastante rijo para pôr or<strong>de</strong>m à <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m.Cândido Neves, -- em família, Candinho,-- é a pessoa a quem se liga a história <strong>de</strong> uma fuga,ce<strong>de</strong>u à pobreza, quando adquiriu o ofício <strong>de</strong> pegar escravos fugidos. Tinha um <strong>de</strong>feito graveesse homem, não agüentava emprego nem ofício, carecia <strong>de</strong> estabilida<strong>de</strong>; é o que ele chamavacaiporismo. Começou por querer apren<strong>de</strong>r tipografia, mas viu cedo que era preciso algumtempo para compor bem, e ainda assim talvez não ganhasse o bastante; foi o que ele disse a simesmo. O comércio chamou-lhe a atenção, era carreira boa. Com algum esforço entrou <strong>de</strong>caixeiro para um armarinho. A obrigação, porém, <strong>de</strong> aten<strong>de</strong>r e servir a todos feria-o na cordado orgulho, e ao cabo <strong>de</strong> cinco ou seis semanas estava na rua por sua vonta<strong>de</strong>. Fiel <strong>de</strong>cartório, contínuo <strong>de</strong> uma repartição anexa ao Ministério do Império, carteiro e outrosempregos foram <strong>de</strong>ixados pouco <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> obtidos.Quando veio a paixão da moça Clara, não tinha ele mais que dívidas, ainda que poucas,porque morava com um primo, entalhador <strong>de</strong> ofício. Depois <strong>de</strong> várias tentativas para obteremprego, resolveu adotar o ofício do primo, <strong>de</strong> que aliás já tomara algumas lições. Não lhecustou apanhar outras, mas, querendo apren<strong>de</strong>r <strong>de</strong>pressa, apren<strong>de</strong>u mal. Não fazia obras finasnem complicadas, apenas garras para sofás e relevos comuns para ca<strong>de</strong>iras. Queria ter em quetrabalhar quando casasse, e o casamento não se <strong>de</strong>morou muito.Contava trinta anos. Clara vinte e dous. Ela era órfã, morava com uma tia, Mônica, e cosiacom ela. Não cosia tanto que não namorasse o seu pouco, mas os namorados apenas queriammatar o tempo; não tinham outro empenho. Passavam às tar<strong>de</strong>s, olhavam muito para ela, elapara eles, até que a noite a fazia recolher para a costura. O que ela notava é que nenhum <strong>de</strong>leslhe <strong>de</strong>ixava sauda<strong>de</strong>s nem lhe acendia <strong>de</strong>sejos. Talvez nem soubesse o nome <strong>de</strong> muitos.Queria casar, naturalmente. Era, como lhe dizia a tia, um pescar <strong>de</strong> caniço, a ver se o peixepegava, mas o peixe passava <strong>de</strong> longe; algum que parasse, era só para andar à roda da isca,mirá-la, cheirá-la, <strong>de</strong>ixá-la e ir a outras.O amor traz sobrescritos. Quando a moça viu Cândido Neves, sentiu que era este o possívelmarido, o marido verda<strong>de</strong>iro e único. O encontro <strong>de</strong>u-se em um baile; tal foi--para lembrar oprimeiro ofício do namorado, -- tal foi a página inicial daquele livro, que tinha <strong>de</strong> sair malcomposto e pior brochado. O casamento fez-se onze meses <strong>de</strong>pois, e foi a mais bela festa dasrelações dos noivos. Amigas <strong>de</strong> Clara, menos por amiza<strong>de</strong> que por inveja, tentaram arredá-lado passo que ia dar. Não negavam a gentileza do noivo, nem o amor que lhe tinha, nem aindaalgumas virtu<strong>de</strong>s; diziam que era dado em <strong>de</strong>masia a patuscadas.--Pois ainda bem, replicava a noiva; ao menos, não caso com <strong>de</strong>funto. --Não, <strong>de</strong>funto não;mas é que...Não diziam o que era. Tia Mônica, <strong>de</strong>pois do casamento, na casa pobre on<strong>de</strong> eles se foram

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