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Almerinda da Silva Lopes - Artigo - CBHA

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Arte Conceitual: Ativismo Político e Marginali<strong>da</strong>de<strong>Almerin<strong>da</strong></strong> <strong>da</strong> <strong>Silva</strong> <strong>Lopes</strong>Professora <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de Federal do Espírito SantoPesquisadora de Produtivi<strong>da</strong>de do CNPqMembro do <strong>CBHA</strong>À mu<strong>da</strong>nça do epicentro artístico <strong>da</strong> Europa paraos Estados Unidos no pós-guerra seguem-se profun<strong>da</strong>stransformações nos diferentes campos do saber, quandoto<strong>da</strong>s as certezas são postas em xeque e ocorremmodificações nos modos de vi<strong>da</strong>, no discurso legitimador<strong>da</strong>s vanguar<strong>da</strong>s, nos paradigmas e no estatuto <strong>da</strong> arte. Apartir <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de1960, a arte se desmaterializa, tornaseexperimental, efêmera, híbri<strong>da</strong>, múltipla, fragmentária,paródica e o conceito de obra de arte seria problematizadoe radicalizado.No Brasil, a situação adversa imposta pelo regimemilitar não conseguiria dirimir a catálise criativa ou freara fertili<strong>da</strong>de e a originali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s proposições poéticassurgi<strong>da</strong>s nos anos anteriores, de modo especial até operíodo imediato à promulgação do AI-5, quando seacentua a interferência <strong>da</strong> censura na produção artística ecultural. Sem se deixarem abater pelo desalento, desilusãoe medo, muitos artistas revelaram inconformismo eassumiram uma postura de resistência e de enfrentamentoà arbitrarie<strong>da</strong>de e à opressão. Na mesma proporção quecresciam os reveses e atitudes repressoras acentuava-se oteor irreverente, crítico e subversivo <strong>da</strong>s práticas criativas,se exacerbava a vontade dos jovens de descontextualizar


XXXI Colóquio <strong>CBHA</strong> 2011 - [Com/Con]tradições na História <strong>da</strong> Artee desterritorializar as imagens e imprimir novos rumos àsrespectivas praxes. Como bem observou Otília Arantes,essas reações apenas confirmavam que “até à revanchedo regime – boa parte dos artistas brasileiros pretendia, aofazer arte, estar fazendo política”. 1Mas se em meio a esse cenário alguns pareciamacreditar, ain<strong>da</strong>, na potência e no caráter revolucionário<strong>da</strong> arte, enquanto instrumento de protesto e meio deconscientização e transformação <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de políticosocial,outros artistas preferiam investir em ações e atitudescriativas experimentais e vivenciais, que tanto convocavamcomo envolviam individual ou coletivamente o público emprocessos de interação, descoberta, participação, reflexão,transformação, realiza<strong>da</strong>s não raramente fora do âmbitoinstitucional. Por meio dessas “situações-limite” quepropugnavam estabelecer novas relações artista/objeto/público, artistas como Hélio Oiticica, Lygia Clak, LygiaPape, Antonio Manuel, Cildo Meireles, Wesley Duke Lee,entre outros, diluíam as fronteiras entre arte e vi<strong>da</strong>.Apoiando-se na ideia de socialização e de interaçãoatravés <strong>da</strong> arte, as propostas de expressivo númerode jovens revelavam a investi<strong>da</strong> na desmistificação eno deslocamento dos valores estéticos tradicionais,identificando-se, sobretudo, com a ironia duchampiana,o irracionalismo, a anarquia e o niilismo <strong>da</strong><strong>da</strong>ísta, comoconstatou Ronaldo Brito:Há nessa leitura jurídica do gesto de Duchamp uma espéciede redução moral, uma vontade de ver<strong>da</strong>de que elimina sua Dorconstitutiva. Os Objects Trouvés não são a sumária desmistificação1ARANTES. Depois <strong>da</strong>s vanguar<strong>da</strong>s, 1973, p. 5.610


Arte Conceitual: Ativismo Político e Marginali<strong>da</strong>de - <strong>Almerin<strong>da</strong></strong> <strong>da</strong> <strong>Silva</strong> <strong>Lopes</strong><strong>da</strong> figura do Gênio, a sumária denúncia do arbitrário <strong>da</strong> arte, o risodiante <strong>da</strong> flagrante impostura ideológica. São muito mais: fraturassimbólicas, cicatrizes expondo à esquizoidia o sujeito moderno – a faltade nexos entre ele e o mundo, a confusão que o envolve e diferenciaindistintamente. A sua dispersão essencial, resumindo o paradoxo. 2Ampliava-se e diversificava-se o naipe de materiais,com a substituição <strong>da</strong>s tradicionais telas, tintas, pincéis,por detritos e objetos industriais (metal, plástico e espuma),papel de jornal, para não citar outros. Recorrendo amateriais precários, colagens e recortes de jornais erevistas, os jovens propunham tanto a ruptura com oconceito tradicional de pereni<strong>da</strong>de <strong>da</strong> arte, quanto odeslocamento do conceito de obra acaba<strong>da</strong> para o deobjeto inacabado. Alguns buscavam nos jargões, frases deordem e manchetes extraí<strong>da</strong>s do anedotário político e <strong>da</strong>crônica policial, maneiras inusita<strong>da</strong>s de alertar ou denunciaras perseguições e arbitrarie<strong>da</strong>des políticas, protestandocontra a falta de liber<strong>da</strong>de.Não faltaram, ain<strong>da</strong>, referências críticas àinternacionalização, submissão ideológica, dependênciaeconômica do país, exploração desordena<strong>da</strong> do meioambiente e às manobras do mercado de arte, expressaspor meio de ações conceituais, propostas sensoriais eambientais repletas de ironia e cinismo.Se parecia inevitável que os jovens artistas brasileiroscotejassem e se deixassem contaminar por determina<strong>da</strong>smanifestações artísticas internacionais, não se tratava sesimples absorção, mas de submetê-las a um processopeculiar de transformação e transfiguração, sintonizando-as,2BRITO, R. Experiência flutuante, 1973, p. 58.611


XXXI Colóquio <strong>CBHA</strong> 2011 - [Com/Con]tradições na História <strong>da</strong> Artede alguma maneira, com a própria reali<strong>da</strong>de. É nesseuniverso que transitam as emblemáticas Inscrições emcircuitos ideológicos de Cildo Meireles (que mantinhamalguma analogia com trabalhos antecedentes, comoCifrão (1966), de Waldemar Cordeiro), Porco empalhado,de Nelson Leirner, Trouxas de carne, de Arthur Barrio, oshappenings: O Grande espetáculo <strong>da</strong>s Artes, de WesleyDuke Lee e a Exposição não exposição, organiza<strong>da</strong> peloGrupo Rex 3 para marcar de maneira ruidosa o fim <strong>da</strong>sativi<strong>da</strong>des <strong>da</strong> Rex Gallery & Sons (maio de 1967), na capitalpaulista e o Estilingue gigante de Atílio Gomes Ferreira, emVitória (1970).Para transformar o encerramento <strong>da</strong> Rex Gallerynum evento marcante, o público foi convocado, atravésde anúncios no jornal Rex Time, a comparecer ao espaçomantido até então pelo Grupo Rex, com direito a levarpara casa as obras expostas, o que resultou na completadepre<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> galeria. Tal proposta atestava tanto adimensão do engajamento político dos artistas, quanto esua intenção de transgredir a ordem, instigar e provocardiferentes reações do público.Embora o motivo alegado para o fechamento <strong>da</strong>galeria tenha sido o prejuízo financeiro e o desinteresse dopúblico, esse happening não deixava de traduzir a toma<strong>da</strong>de consciência do Grupo sobre a natureza dos objetos eproposições elabora<strong>da</strong>s por seus respectivos membros,que pareciam não mais se adequar às exposiçõesconvencionais, nem ao espaço asséptico <strong>da</strong>quela galeria.3O Grupo era formado por Geraldo de Barros, Nelson Leirner, Wesley Duke Lee, CarlosFajardo, Frederico Nasser e José Resende.612


Arte Conceitual: Ativismo Político e Marginali<strong>da</strong>de - <strong>Almerin<strong>da</strong></strong> <strong>da</strong> <strong>Silva</strong> <strong>Lopes</strong>Essas e outras ações conceituais permitem atinartanto para o calibre criativo e crítico <strong>da</strong>s proposições dosbrasileiros, como evidenciavam a intenção de pôr emxeque ou sob suspeita tanto os processos tradicionais quealimentavam o mercado, quanto o território sacralizado <strong>da</strong>sinstituições culturais, inapropria<strong>da</strong>s às novas démarchesartísticas. Espaços alternativos ou não institucionaistornavam-se, então, locais privilegiados para a realizaçãode propostas de caráter efêmero e underground.Se preterir as instituições culturais constituía atode insubordinação e rebeldia dos jovens artistas, estestambém iriam perceber que as novas proposições eintervenções em espaços públicos tendiam a não se fixarna memória e a se perder no tempo, se não fizessem oregistro documental <strong>da</strong>s mesmas. Recorreram para tanto,às tecnologias disponíveis naquela época, o que permitiuque propostas experimentais ou efêmeras se perpetuassemem arquivos de imagens visuais: fotografias, vídeos, filmes,que acabariam, paradoxalmente, sendo incorporados aosacervos institucionais, e também comercializados.O processo de ruptura artística no Espírito SantoA efervescência criativa supracita<strong>da</strong> foi de tal ordem,que mesmo no ambiente cultural periférico e retrógrado<strong>da</strong> capital do Espírito Santo, onde a pintura e a esculturaconvencional continuavam dominando a cena artística,alguns jovens artistas buscaram meios originais de refutaro provincianismo, o atraso cultural e a acomo<strong>da</strong>ção local.613


XXXI Colóquio <strong>CBHA</strong> 2011 - [Com/Con]tradições na História <strong>da</strong> ArteA geração lidera<strong>da</strong> por Paulo Herkenhoff, Alberto Harrigan,Carmen Có, Pedro Philho (Pedro José Rodrigues Filho),Atílio Gomes Ferreira (o Nenna) e Hilal Sami Hilal, serevelaria afina<strong>da</strong> com o pensamento artístico internacionale com as novas mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des expressivas engendra<strong>da</strong>snos principais pólos culturais do país.Se alguns desses jovens transformaram o corpoem matéria, motor e caixa de ressonância dos eventosperformáticos, de natureza conceitual e sensorial por elesrealizados, numa época em que as tecnologias de ponta,por questões que deixamos de analisar, eram ain<strong>da</strong> poucoutiliza<strong>da</strong>s pelos artistas brasileiros na produção de imagense ações, alguns capixabas iriam recorrer ao Super 8,Vídeo, fotografia, entre outros processos.Atuando em Vitória, ou no Rio de Janeiro - para ondealguns se transferiram temporária ou definitivamente, embusca de melhores condições para produzir e angariarreconhecimento – aqueles jovens artistas buscaramimprimir novos rumos à arte, negando os paradigmas eos modelos her<strong>da</strong>dos do passado. Promoveram desdeo final dos anos 60, proposições criativas (intervençõespúblicas, happenings, performances, instalações, mail-art,vídeotapes), ironizando ou criticando a reali<strong>da</strong>de local, acensura e a tortura política. Para tanto, os jovens artistasrecorreram à associação insólita de objetos e materiais,como a textos de jornais que se referiam a prisões políticas,tortura, violência e morte.Questionaram o poder instituído e o significadodos espaços culturais como veículos de difusão e de614


Arte Conceitual: Ativismo Político e Marginali<strong>da</strong>de - <strong>Almerin<strong>da</strong></strong> <strong>da</strong> <strong>Silva</strong> <strong>Lopes</strong>legitimação <strong>da</strong> arte, transformando ruas, praças e outrosespaços públicos em locais privilegiados para a realizaçãode eventos conceituais de natureza individual. Propunhamsetransformar o mundo num museu aberto, sem limites,livre de convenções e sem fronteiras à interativi<strong>da</strong>de eà participação do interlocutor. Tais jovens admitiam anecessi<strong>da</strong>de de formação de um novo público, disposto adeixar a posição passiva ou contemplativa, para tornar-seagente participativo e criativo, o que não deixava de ter umsentido transformador ou político.Na impossibili<strong>da</strong>de de abarcar nesta comunicaçãoa diversi<strong>da</strong>de de proposições artísticas dos capixabasque emergiram entre o final <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 60 e início<strong>da</strong> seguinte, optamos por centrar o foco deste texto emalgumas <strong>da</strong>s ações conceituais desenvolvi<strong>da</strong>s entre 1970e 1972 por Atílio Gomes Ferreira (1951), mais conhecidopelo pseudônimo de Nenna B (depois Nenna), um dosmais precoces, irreverentes e talentosos artistas de suageração. [Figura 1]Estratégias de subversão do tradicionalismo artísticoNo início <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1970, o então estu<strong>da</strong>nte <strong>da</strong>Escola de Belas Artes do Espírito Santo, com apenas18 anos de i<strong>da</strong>de, abalava o renitente conservadorismoartístico local, contrapondo a essa reali<strong>da</strong>de, a potênciacriativa, ousadia, ineditismo e insubordinação de suasproposições conceituais, e o caráter irônico de imagensfotográficas e vídeotapes.615


XXXI Colóquio <strong>CBHA</strong> 2011 - [Com/Con]tradições na História <strong>da</strong> ArteFigura 1 - Atílio Gomes Ferreira (Nenna)Estilingue, 1970 (Vitória) - Árvore, plástico, gessoFoto: Jorge Luís SagriloEm perfeita sintonia com seu tempo poético ehistórico, Nenna afrontava a pintura tradicional, medianteações e intervenções públicas de caráter subversivo, quenão encontraram na época de sua apresentação a espera<strong>da</strong>interlocução, nem tiveram seu teor crítico devi<strong>da</strong>mentecompreendido e redimensionado.A potência <strong>da</strong> ação participativa e efêmera por elerealiza<strong>da</strong> e logo apeli<strong>da</strong><strong>da</strong> de Estilingue gigante (1970)deve ser redimensiona<strong>da</strong>, considerando que sua realizaçãoocorreu em uma capital periférica, que sequer dispunhade museus e galerias de arte. Esse cenário impedia que ainformação cultural e as linguagens artísticas mais radicaisfossem ali veicula<strong>da</strong>s e integrassem os discursos de âmbitoacadêmico.616


Arte Conceitual: Ativismo Político e Marginali<strong>da</strong>de - <strong>Almerin<strong>da</strong></strong> <strong>da</strong> <strong>Silva</strong> <strong>Lopes</strong>Para instalar o Estilingue, Nenna recorreu a umaárvore (popularmente conheci<strong>da</strong> como chapéu de sol oucastanheira), na Praia do Canto, bairro nobre <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de,local que foi por ele escolhido não por acaso. A intençãodo jovem artista era provocar e desestabilizar o gostoe a concepção romântica de arte que imperava entreos integrantes dessa elite endinheira<strong>da</strong>, acomo<strong>da</strong><strong>da</strong> econservadora. A bifurcação do tronco <strong>da</strong> árvore, a certaaltura em relação ao plano do chão, sugeriu-lhe a formade forquilha, à qual iria prender as atiradeiras do estilingue,após revesti-la com gesso pintado de amarelo. No extremodessas alças de plástico fixou um retângulo vermelho(similar ao que nos brinquedos convencionais suporta oempuxo do arremesso dos projéteis: pedras, sementes,bolinhas de gude). As cores (amarelo, vermelho e preto),seja pelas linhas verticais pendendo <strong>da</strong> árvore, quantopelos elementos estruturadores do objeto, remetiam, dealguma maneira, à pintura abstrata.Ao incorporar na instalação elementos concretos, oartista ironizava a representação ilusória e postiça <strong>da</strong> pinturatradicional, redimensionando e recodificando o conceito deespaço <strong>da</strong> arte. Nenna propunha, assim, a instauração deum embate com a pintura de paisagem, predominante nogosto <strong>da</strong>s elites capixabas, que naquele momento ain<strong>da</strong>refutavam as linguagens modernas, de modo especial asque rompiam com a figuração.Se o Estilingue gigante interferia, interagia eproblematizava o espaço ambiental, também modificavaa percepção <strong>da</strong> árvore e de tudo o que a circun<strong>da</strong>va,617


XXXI Colóquio <strong>CBHA</strong> 2011 - [Com/Con]tradições na História <strong>da</strong> Artetornando-se uma espécie um núcleo integrador ediferenciador desse micro-ambiente.Os habituais caminhantes de final de semana foramsurpreendidos por esse objeto insólito, elaborado durantea madruga<strong>da</strong> de domingo, 14 de junho de 1970. Emboracausasse estranhamento a uns e tivesse sido ignoradopor outros, o estilingue de dimensões descomunais logopassaria a instigar a memória e a percepção de grandeparte dos transeuntes que se aproximaram <strong>da</strong> árvore,circularam ao redor dela, fizeram suposições sobre ainquietante instalação, interrogaram a respeito dela e doseu significado, e até posicionaram a “atiradeira” sobreas costas, penetrando literalmente no objeto, como se ovestissem. O interlocutor atinava, então, que o estilingue, deinofensivo brinquedo, tornava-se uma armadilha perversae ameaçadora, capaz de arremessar simbolicamente osindivíduos à distância, fazendo-os desaparecer, como numpasse de mágica. [Figura 2]Figura 2 - Atílio Gomes Ferreira (Nenna) - Estilingue, 1970 (Vitória), Árvore, plástico,gesso. Foto: Jorge Luís Sagrilo618


Arte Conceitual: Ativismo Político e Marginali<strong>da</strong>de - <strong>Almerin<strong>da</strong></strong> <strong>da</strong> <strong>Silva</strong> <strong>Lopes</strong>No ato de dialogar com o estilingue, o públicointerativo criava espontaneamente textos sonoros, visuaise corporais, o que remetia à improvisação teatral. O artistae seus amigos músicos, os irmãos Marcos e José RenatoMoraes, tocavam violão, violino e flauta, posicionadosnas proximi<strong>da</strong>des <strong>da</strong> instalação do estilingue, como parteintegrante do evento, que era registrado discretamentepela câmera do fotógrafo Jorge Luís Sagrilo. Tais atributosimprimiam serie<strong>da</strong>de e erudição à intervenção pública,isentando-a, de qualquer suspeita por parte <strong>da</strong> polícia,perfila<strong>da</strong> atentamente à distância.Contrariando a lógica dos acontecimentos ea expectativa do artista e de seus colaboradores -considerando que nos “anos de chumbo” qualqueragrupamento de pessoas em lugar público era logodebelado por levantar suspeita - os “defensores <strong>da</strong> ordem”não iriam interrogar ou molestar o autor ou os participantesdo evento, por não atinarem, evidentemente, para anatureza e o teor crítico nele implicados.Certo de que a polícia iria solicitar-lhe ao menosuma autorização <strong>da</strong> Prefeitura Municipal para arealização <strong>da</strong> proposição artística em local público, bemcomo a apropriação <strong>da</strong> cita<strong>da</strong> árvore, o artista redigiuantecipa<strong>da</strong>mente um documento em papel timbrado, queera assinado por um pseudo José Joaquim <strong>da</strong> <strong>Silva</strong> Xavier(cópia <strong>da</strong> assinatura do herói <strong>da</strong> Inconfidência Mineiraextraí<strong>da</strong> de um documento do século XVIII), identificadosarcasticamente como funcionário do órgão competente<strong>da</strong> prefeitura local. Como a solicitação não ocorreu, o619


XXXI Colóquio <strong>CBHA</strong> 2011 - [Com/Con]tradições na História <strong>da</strong> Artedocumento permaneceu de posse do artista, o que significaque, de alguma maneira, o teor político e marginal doevento não atingiu o efeito esperado, ou se concretizou emsua plenitude.Se a idéia de happening remete a uma ação efêmera,que se desenrola e é finaliza<strong>da</strong> num tempo determinadoa priori pelo autor, a interação com o objeto que odesencadeou introduzia um novo paradigma artístico,punha em xeque o conceito tradicional de representação ea utopia <strong>da</strong> pereni<strong>da</strong>de do objeto de arte. Tais prerrogativasnão foram determinantes para que o Estilingue logo caísseno esquecimento, permanecendo na memória não só doartista e <strong>da</strong>queles que o aju<strong>da</strong>ram a concebê-lo, como dopúblico que interagiu ou simplesmente se deparou com ele,ao transitar pela Praia do Canto naquele domingo de 1970. 4O significado <strong>da</strong> ação e a ironia que nela se imbricavatambém não foram devi<strong>da</strong>mente compreendidos na épocapelos articulistas <strong>da</strong> imprensa local, que iriam se limitar adescrever o objeto, o que impediu que o teor político doevento encontrasse maior amplitude e repercussão. Mas oEstilingue não passaria incólume à imprensa alternativa doRio de Janeiro, merecendo destaque na coluna que LuizCarlos Maciel, assinava no Pasquim, que observou entreoutras coisas:Atílio é uma <strong>da</strong>s pessoas mais incríveis que transa artesplásticas no Brasil. Lembro dos seus trabalhos em Vitória, onde tudo4Prova inconteste disso é o memorial construído recentemente no local onde foireplanta<strong>da</strong>, algum tempo depois, a ilustre castanheira, que serviu de suporte aoEstilingue. Impediu-se assim que a mesma fosse corta<strong>da</strong>, quando <strong>da</strong> construção deaterro, tal como ocorreu com as demais árvores ali existentes. Aventa-se também aproposta de tombamento dessa árvore.620


Arte Conceitual: Ativismo Político e Marginali<strong>da</strong>de - <strong>Almerin<strong>da</strong></strong> <strong>da</strong> <strong>Silva</strong> <strong>Lopes</strong>estava começando, as primeiras loucuras, e o Estilingue Gigante foiuma coisa que aconteceu e como aconteceu... 5Após a publicação do texto de Maciel é que algunsarticulistas <strong>da</strong> imprensa local atentaram para a importância<strong>da</strong> ação pública realiza<strong>da</strong> pelo jovem, chamando-a de“primeira manifestação plástica de vanguar<strong>da</strong>” realiza<strong>da</strong>em Vitória.O evento teria sido referen<strong>da</strong>do, também, por HélioOiticica, com quem o capixaba manteve relação deamizade, participando com ele <strong>da</strong> produção e colaboraçãonas edições do jornal alternativo Presença. Nenna eOiticica se encontrariam em 1973, nos Estados Unidos,convivência que o jovem provinciano afirmara ter sido paraele reveladora:Lá, é que, em longos papos com Hélio Oiticica, em seu loft naSegun<strong>da</strong> Aveni<strong>da</strong>, fiquei realmente conhecendo como funcionava o´métier` <strong>da</strong>s artes. Meus sonhos adolescentes se diluíam na reali<strong>da</strong>demesquinha que o Hélio me apresentava. Ver<strong>da</strong>deiro aprendizado dechoque. 6Atílio Gomes nunca ocultou a admiração pela potênciacriativa e reflexiva de Hélio Oiticica, e em depoimentosconcedidos, na época, à imprensa revelou ter consciênciade pertencer a uma geração mais jovem, que devia a elee outros antecessores a abertura de caminhos, que lhepermitiram iniciar uma trajetória artística própria, sem que5MACIEL, L. C. O Gigante do Estilingue, 1971. O artista capixaba aproximou-se deMaciel, que chegou inclusive a visitar Vitória, tornando-se colaborador do jornalalternativo por ele criado, Rolling Stones.6NENNA. Depoimento ao Projeto Taru, 2002; Id. Bíblia, 2003, s. p.621


XXXI Colóquio <strong>CBHA</strong> 2011 - [Com/Con]tradições na História <strong>da</strong> Arteprecisasse começar necessariamente pelo exercício <strong>da</strong>pintura. Reafirmando sua gratidão ao amigo e descobridor<strong>da</strong> Tropicália, o capixaba iria render-lhe homenagem nolivro, Vere<strong>da</strong> Tropicália (1985), de sua autoria, obra essaproduzi<strong>da</strong> com projeto gráfico bastante ousado para aépoca.Nenna voltava a provocar polêmica e a balançar aala conservadora <strong>da</strong> Escola de Belas Artes do EspíritoSanto, ao inscrever no I Salão de Alunos e Ex-Alunospromovido pelo Centro de Artes, <strong>da</strong> Ufes (outubro de1971), três trabalhos: Inscrição I, Inscrição II e Amor.Convocado para entregar as obras quando <strong>da</strong> montagemdo Salão, desnorteou a comissão organizadora aoentregar na<strong>da</strong> mais na<strong>da</strong> menos que as mesmas fichas deinscrição, amplia<strong>da</strong>s nas medi<strong>da</strong>s 20x27 cm, devi<strong>da</strong>mentepreenchi<strong>da</strong>s e xerocopia<strong>da</strong>s (mencionando como técnica<strong>da</strong>s duas primeiras obras “Xerox”, e <strong>da</strong> última, “to<strong>da</strong>s”).Para atender às determinações regulamentares do Salão,e evitar ser recusado, o jovem artista tomou o cui<strong>da</strong>do deemoldurar as obras inscritas.Os embates entre alguns membros <strong>da</strong> comissãoorganizadora foram inevitáveis. Enquanto uns defendiama exclusão do jovem estu<strong>da</strong>nte do Salão, por ignorarem oconceito <strong>da</strong> proposta, outros não viam como refutar a suaparticipação, por ele atender às normas preconiza<strong>da</strong>s peloregulamento. A polêmica iria acirrar-se ain<strong>da</strong> mais entre osmembros do júri de premiação, presidido pelo professor<strong>da</strong> instituição e artista cinético, Maurício Salgueiro. Este,depois de prestar aos colegas os devidos esclarecimentos622


Arte Conceitual: Ativismo Político e Marginali<strong>da</strong>de - <strong>Almerin<strong>da</strong></strong> <strong>da</strong> <strong>Silva</strong> <strong>Lopes</strong>sobre a proposta, conseguiu persuadi-los a concederemao jovem participante o principal prêmio do Salão. To<strong>da</strong>via,a decisão de premiá-lo iria provocar críticas, protestos eperplexi<strong>da</strong>de. Alguns chegaram a in<strong>da</strong>gar sobre os critériosadotados pelo júri, observando: como pode alguémparticipar de um salão de arte sem apresentar obras dearte, e ain<strong>da</strong> ser o premiado?Nenna voltaria a afrontar as trincheiras maisrenitentes do meio artístico capixaba ao participar de outroseventos realizados em Vitória, no mesmo ano de 1971. Noentanto, os trabalhos por ele apresentados deixarão de serabor<strong>da</strong>dos por ultrapassarem o formato do texto.Em outra proposição conceitual denomina<strong>da</strong>Brasiliana (1972) apresenta<strong>da</strong> por Nenna em eventopromovido pelo Serviço de Turismo <strong>da</strong> Prefeitura Municipalde Vitória, recorreu a um cubo minimalista branco, quebalizava a idéia de urna vazia. Remetia, assim, tanto àinterdição do direito de votar impingido pelo governo militaraos ci<strong>da</strong>dãos brasileiros, quanto ao vazio e à pasmaceiraexistencial do período.O público era estimulado a utilizar uma almofa<strong>da</strong> detinta e um carimbo, posicionados ao lado <strong>da</strong> caixa, paracarimbar sobre versos de autoria do artista, impressos nasfaces alvas do cubo, o slogan: “Amo-o & So Long”. Essedístico, embora entendido pelos articulistas <strong>da</strong> imprensalocal como aludindo à despedi<strong>da</strong> do artista, que partiatemporariamente para Nova York 7 em exílio voluntário,7O artista viveu e trabalhou em Nova York durante todo o ano de 1973, quanto se dedicouprincipalmente à captação de instigantes imagens fotográficas do lixo depositado noCentral Park e em outras áreas <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de americana.623


XXXI Colóquio <strong>CBHA</strong> 2011 - [Com/Con]tradições na História <strong>da</strong> Artefugindo do ambiente repressor e enfadonho <strong>da</strong> época, tinhana ver<strong>da</strong>de outra intenção. Parodiava o lema difundido peladitadura militar “Brasil, ame-o ou deixe-o”, criado em plenorecrudescimento do regime militar (1970), 8 que emboramantivesse um propósito ufanista, empanava um sentidode advertência ou ameaça.O público, ao carimbar sobre os textos poéticos ocitado dístico irônico, modificava e obstruía gra<strong>da</strong>tivamenteos signos gráficos e a sintaxe <strong>da</strong>s palavras, até anular,inteiramente, o encadeamento, a estrutura e o sentido dosversos. Essa ação em que o público se revezava na utilizaçãodo carimbo, acabaria se desenrolando de maneira imprevistaou imprevisível num tempo determinando pelo autor, comoocorre nos happenings. Quanto mais carimbava, maisos dísticos iam se sobrepondo, impossibilitando assim aleitura e a compreensão <strong>da</strong> linguagem poética, <strong>da</strong> maneiracomo a concebera o autor ao criar e imprimir os versos.Mas o próprio slogan, depois de inúmeras carimba<strong>da</strong>s, queiam se sobrepondo umas sobre as obras, também acabariase tornando ilegível. O ato de carimbar estabelecia assimum paradoxo semântico e visual: instituía-se como vontadede “anular a anulação”, no sentido de que invali<strong>da</strong>vasimbolicamente o efeito <strong>da</strong> própria interdição de acesso àurna.Se a impossibili<strong>da</strong>de de decodificar a linguagempoética nas faces do cubo potencializava e (re) dimensionavao sentimento de vazio e de frustração, o espaço/tempo8Aproveitando a euforia por ocasião <strong>da</strong> conquista <strong>da</strong> Copa do Mundo no México, pelaseleção brasileira, o governo militar iria incentivar e apoiar a música ufanista, usando-acomo instrumento de propagan<strong>da</strong> política, a exemplo de Pra frente Brasil e Eu te amomeu Brasil, grava<strong>da</strong>s pela ban<strong>da</strong> Os Incríveis.624


Arte Conceitual: Ativismo Político e Marginali<strong>da</strong>de - <strong>Almerin<strong>da</strong></strong> <strong>da</strong> <strong>Silva</strong> <strong>Lopes</strong>compreendido entre o apreender o significado dos códigosdos poemas pulsando sobre a superfície do sólido, até suatotal obstrução pelo dístico carimbado, estabelecia um jogodúbio: presença e ausência, visível e invisível, oclusão edesven<strong>da</strong>mento, ordem e desordem.A obstrução ou a anulação <strong>da</strong> estrutura visual e dosignificado sintático dos poemas pelo ato de carimbartraduziam a prática imposta pelos órgãos repressoresdo regime militar para invali<strong>da</strong>r o título de eleitor, o queequivalia à decretação de sentença que destituía o direitoao exercício pleno <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia, tolhia a liber<strong>da</strong>de civil,relegando os indivíduos ao obscurantismo e ao silêncio.Tal como nos eventos anteriores, o caráter irônico<strong>da</strong> proposta também não seria devi<strong>da</strong>mente absorvido ecompreendido pelos capixabas que ain<strong>da</strong> tinham dificul<strong>da</strong>dede refletir sobre um gênero de proposição artística que nãolhes era familiar, tanto pelo seu ineditismo, quanto pelarejeição <strong>da</strong>s proposições poéticas que se desviassem <strong>da</strong>tradição.Ao propor uma participação coletiva de visível sentidoirônico, numa época em que to<strong>da</strong>s as atitudes e iniciativasdessa natureza eram logo desarticula<strong>da</strong>s ou coibi<strong>da</strong>s, oartista assumia conscientemente uma posição subversiva,com o intuito de denunciar e se insurgir contra a ordemestabeleci<strong>da</strong>.Mas Brasiliana também não deixava de pôr em relevoo conceito de obra partilha<strong>da</strong> ou em processo, isto é, deobjeto artístico que se modifica, se completa e ganhanovo significado mediante a ação interativa e participativa625


XXXI Colóquio <strong>CBHA</strong> 2011 - [Com/Con]tradições na História <strong>da</strong> Artedo interlocutor que, nesse caso, interferia, transformava,instaurava novo sentido e se tornava uma espécie deparceiro criativo. O objeto, ao invés de estático, acabadoe perene, mantinha-se em permanente transformação,modificava-se a ca<strong>da</strong> participação de novos interlocutores.Considerando que esse gênero de ação se desenrolano aqui e agora, preconiza o imprevisto e o novo, isto é,transcorre como uma espécie de jogo em que as regrasnão se estabelecem a priori, mas vão se constituindo noato de jogar, o artista não exerceu inteiro controle sobreo evento, nem poderia antever a priori o desfecho ou oresultado final.Para se entender melhor a ousadia e o ineditismo<strong>da</strong>s propostas do capixaba, em sintonia com a irreverênciacriativa <strong>da</strong>s principais tendências <strong>da</strong> pós-vanguar<strong>da</strong>, talvezse possa afirmar que Atílio Gomes antecipou determina<strong>da</strong>sproposições <strong>da</strong> arte conceitual. Vale ressaltar que opernambucano Paulo Bruscky, e um dos mais refinadose perspicazes artistas conceituais, elaborou entre outrosemblemáticos trabalhos de arte postal ou mail art,“Cancelado” (1977), que consistia na cópia de seu própriotítulo de eleitor, inutilizado pela palavra do título, carimba<strong>da</strong>na diagonal do documento. Se tal proposta permite-nosestabelecer alguma relação com a cita<strong>da</strong> Brasiliana deautoria do capixaba, a recorrência ao uso do carimbocom um sentido de irônico e de contestação política nãodeixa de manter algum parentesco com outros trabalhosconceituais realizados no país, entre o final dos anos 60 ea déca<strong>da</strong> seguinte.626


Arte Conceitual: Ativismo Político e Marginali<strong>da</strong>de - <strong>Almerin<strong>da</strong></strong> <strong>da</strong> <strong>Silva</strong> <strong>Lopes</strong>Sem a intenção de estabelecer aqui qualquer analogiaentre essa e outras proposições conceituais, o exemploapenas ilustra como, no campo artístico, as iniciativascria<strong>da</strong>s e veicula<strong>da</strong>s nas diferentes locali<strong>da</strong>des brasileiras,ain<strong>da</strong> não foram devi<strong>da</strong>mente analisa<strong>da</strong>s, estu<strong>da</strong><strong>da</strong>s econtextualiza<strong>da</strong>s, o que impede tanto a construção de umquadro mais completo do legado, em especial dos anos60/70, quanto desfazer equívocos e injustiças cometi<strong>da</strong>scontra muitos artistas que permanecem esquecidos ouà margem <strong>da</strong> historiografia brasileira. Embora o projetopoético de Nenna não se restringisse às propostas aquiabor<strong>da</strong><strong>da</strong>s, sem contar que ele continua ativo e produzindoain<strong>da</strong> hoje, nosso objetivo não foi abarcar to<strong>da</strong> a trajetóriado capixaba, mas mostrar especifici<strong>da</strong>des de umalinguagem que revelou ousadia e engenhosi<strong>da</strong>de no âmbito<strong>da</strong>s propostas conceituais, o que atesta sua marcantecontribuição à arte produzi<strong>da</strong> no país a partir <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de1970.Referências Bibliográficas:ARANTES, Otília. Depois <strong>da</strong>s vanguar<strong>da</strong>s. Arte em Revista, ano 5, no. 7, São Paulo,ago. 1973, p. 5-20.BRITO, Ronaldo. Experiência flutuante. Arte em Revista, ano 5, no. 7, São Paulo, 1973,p.58-59.MACIEL, L.C. O Gigante do Estilingue. Rio de Janeiro: O Pasquim, agosto de 1971,s.n. p.NAPOLITANO, Marcos. Cultura brasileira: utopia e massificação (1950-1980). SãoPaulo: Contexto, 2001.NENNA. Depoimento ao Projeto Taru, abril de 2002; e no catálogo Bíblia,Vitória: Ediçãodo Autor,.2003, s.n. p.__________. Depoimento ao jornal O Diário, Vitória, maio de 1971, s.n. p.“Rex Time”, in Anos 60. Arte em Revista, Ano 1, no. 1, jan/mar.1979; maio/81, 2ª edição,p. 80-85.627

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