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Apontamentos - Introdução à Medicina Legal - Plano de estudos do ...

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Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> da Universida<strong>de</strong> <strong>do</strong> Porto<strong>Medicina</strong> <strong>Legal</strong> / <strong>Introdução</strong>1ABRANGÊNCIA, OBJECTIVOS E COMPETÊNCIAS DA MEDICINA LEGAL E DE OUTRASCIÊNCIAS FORENSES. ACTIVIDADE PERICIALA medicina legal inclui um vasto leque <strong>de</strong> serviços localiza<strong>do</strong>s na interface entre a práticacientífica e o direito, situan<strong>do</strong>-se, actualmente, no âmbito da medicina social.No passa<strong>do</strong>, a medicina legal, apesar <strong>de</strong> integrar o currículo escolar das escolas médicasrestringia-se, apenas, <strong>à</strong> tanatologia. Na verda<strong>de</strong>, ao longo da história, sempre foi atribuí<strong>do</strong> aosmédicos o papel <strong>de</strong> prestar cuida<strong>do</strong>s <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> <strong>à</strong>s pessoas <strong>do</strong>entes ou traumatizadas sem que sevalorizassem certos aspectos fundamentais <strong>de</strong> natureza legal, sen<strong>do</strong> a recolha <strong>de</strong> vestígios <strong>de</strong>crimes ou a análise das consequências <strong>de</strong> casos <strong>de</strong> violência, por exemplo, frequentementenegligenciada. Esta falta negava, inadvertidamente, o direito <strong>à</strong> obtenção <strong>de</strong> meios <strong>de</strong> provaquan<strong>do</strong> secundariamente aos ferimentos surgiam questões legais, quer fossem <strong>de</strong> naturezacriminal, civil, <strong>do</strong> trabalho ou outras.Entretanto, gran<strong>de</strong>s mudanças se operaram no último século na nossa socieda<strong>de</strong>, vin<strong>do</strong> alterar aabrangência da medicina legal e restantes ciências forenses, nomeadamente no que se refere aoseu papel social. Entre estas mudanças <strong>de</strong>stacam-se:a) o aumento da violência voluntária (agressões, crimes sexuais, etc.) e involuntária (aci<strong>de</strong>ntes)que está na origem <strong>de</strong> inúmeras situações simultaneamente médicas e legais;b) o <strong>de</strong>senvolvimento da ciência médica, quer a nível <strong>do</strong>s cuida<strong>do</strong>s <strong>de</strong> emergência (o quepermite, cada vez mais, a sobrevida <strong>de</strong> pessoas <strong>à</strong> custa <strong>de</strong> sequelas graves), quer a níveltecnológico (o que obriga a repensar, em cada dia, a melhor solução para a readaptação ereintegração <strong>de</strong>ssas pessoas);c) a noção mais abrangente <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> e <strong>do</strong> papel social <strong>do</strong> médico e da medicina, registan<strong>do</strong>-sealterações importantes no âmbito da reinserção social e <strong>do</strong>s mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> actuação;d) o posicionamento <strong>do</strong> direito e da lei face <strong>à</strong> tomada <strong>de</strong> consciência sobre os direitos humanos;e) o alargamento <strong>do</strong>s cuida<strong>do</strong>s <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> a toda a população e a extensão <strong>de</strong>sses cuida<strong>do</strong>s nãosó <strong>à</strong>s acções assistenciais curativas ou paliativas mas, também, <strong>à</strong>s acções <strong>de</strong> prevenção daviolência, surgin<strong>do</strong> a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolver programas <strong>de</strong> prevenção fundamenta<strong>do</strong>sem <strong>estu<strong>do</strong>s</strong>, cientificamente aprofunda<strong>do</strong>s, sobre este fenómeno.Estes e outros factos têm leva<strong>do</strong> a que os médicos, bem como outros profissionais, sobretu<strong>do</strong> dasciências biológicas, sejam, cada vez mais, chama<strong>do</strong>s a examinar e a pronunciar-se sobresituações variadas e por vezes <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> complexida<strong>de</strong>, relacionadas com questões <strong>de</strong> direito,


Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> da Universida<strong>de</strong> <strong>do</strong> Porto<strong>Medicina</strong> <strong>Legal</strong> / <strong>Introdução</strong>seja <strong>do</strong> âmbito penal, civil, <strong>do</strong> trabalho, administrativo ou da família e menores. Estas situaçõespo<strong>de</strong>m incluir, por exemplo, o estu<strong>do</strong> <strong>de</strong> casos mortais ou não mortais <strong>de</strong> situações <strong>de</strong> violência(colheita <strong>de</strong> vestígios; diagnóstico diferencial entre uma etiologia criminosa, aci<strong>de</strong>ntal ou natural;<strong>de</strong>finição das consequências temporárias e permanentes para a vítima <strong>de</strong> um traumatismo), aavaliação <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> toxico<strong>de</strong>pendência, a <strong>de</strong>terminação <strong>do</strong> sexo, a i<strong>de</strong>ntificação <strong>de</strong> corpos ourestos cadavéricos, a <strong>de</strong>terminação da imputabilida<strong>de</strong>, o estu<strong>do</strong> da filiação, a pesquisa <strong>de</strong> drogas<strong>de</strong> abuso ou outros tóxicos em amostras biológicas, etc.Esta complexida<strong>de</strong> e varieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> temas levou <strong>à</strong> necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar a medicina legalcomo uma especialida<strong>de</strong>, capaz <strong>de</strong> formar e habilitar profissionais para o cumprimento <strong>de</strong> tarefasque exigem, além <strong>de</strong> conhecimentos e capacida<strong>de</strong>s técnicas muito específicas, um gran<strong>de</strong> rigorcientífico, uma actualização permanente e uma elevada capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> isenção e imparcialida<strong>de</strong>,<strong>de</strong> forma a não colocar em risco o interesse público, os direitos individuais e, portanto, a justiça.De facto, o efeito <strong>do</strong>s pareceres médico-legais a nível <strong>do</strong> sistema judicial não po<strong>de</strong> sermenospreza<strong>do</strong>, po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> eles significar a diferença entre uma sentença <strong>de</strong> inocência ou culpa(punin<strong>do</strong> inocentes e <strong>de</strong>ixan<strong>do</strong> criminosos incólumes), entre uma in<strong>de</strong>mnização a<strong>de</strong>quada ou umainjustamente atribuída.Assim, até há pouco <strong>de</strong>finida como a ciência que aplica os conhecimentos médicos e biológicos <strong>à</strong>resolução das questões <strong>de</strong> direito, a medicina legal confronta-se, actualmente, com as exigênciascada vez mais complexas relativamente <strong>à</strong> activida<strong>de</strong> probatória científica.Trata-se <strong>de</strong> uma ciência em constante expansão, o que implica que as suas matérias e méto<strong>do</strong>sse adaptem <strong>à</strong>s novas tecnologias, <strong>à</strong>s <strong>de</strong>scobertas científicas e, também, <strong>à</strong>s mudanças sociais e<strong>do</strong> direito. O seu posicionamento privilegia<strong>do</strong> entre as ciências biológicas e o direito, confere aesta ciência uma perspectiva transdisciplinar e interinstitucional fundamental para a resolução <strong>de</strong>questões cada vez mais complexas que tocam a pessoa, enquanto cidadão, em to<strong>do</strong>s os<strong>do</strong>mínios <strong>do</strong> seu ser. Assim, no seu quotidiano, faz apelo <strong>à</strong>s ciências e tecnologias não médicas,incluin<strong>do</strong> as ciências sociais. Ao mesmo tempo, <strong>de</strong>ve preocupar-se com a assistência médiasócio-jurídicapara assegurar não só a garantia <strong>de</strong> certos princípios mas, também, a melhoraplicação das normas <strong>do</strong> direito relativamente <strong>à</strong> normalida<strong>de</strong> das relações sociais e <strong>à</strong> protecção<strong>do</strong>s direitos individuais e colectivos, ten<strong>do</strong> em conta a integração <strong>do</strong> cidadão no seu meio social.Desta forma, consi<strong>de</strong>ra-se que compete <strong>à</strong> medicina legal, como ciência social, não só odiagnóstico <strong>do</strong> caso mas, também, a contribuição, através da perícia, para a «terapêutica» dassituações e, sobretu<strong>do</strong>, para a sua prevenção e reabilitação/reintegração/reinserção.De uma forma genérica, a medicina legal compreen<strong>de</strong> as seguintes áreas:a) <strong>Medicina</strong> forense- tanatologia forense;- clínica médico-legal;


Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> da Universida<strong>de</strong> <strong>do</strong> Porto<strong>Medicina</strong> <strong>Legal</strong> / <strong>Introdução</strong>- psiquiatria forense;b) Outras ciências forenses- toxicologia forense;- genética e biologia forense;- anatomia-patológica forense;- psicologia forense;- criminalística;- antropologia forense;- o<strong>do</strong>ntologia forense; etc.Relativamente <strong>à</strong> medicina forense, ou seja, <strong>à</strong>quela mais estritamente ligada <strong>à</strong> medicina, espera-seque os seus profissionais sejam capazes <strong>de</strong>:a) seleccionar, preservar, colher e acondicionar vestígios;b) i<strong>de</strong>ntificar e caracterizar lesões físicas, psicológicas e sociais (frequência, causas queincluem a etiologia social, mecanismos e tipos) e proce<strong>de</strong>r <strong>à</strong> sua interpretação;c) i<strong>de</strong>ntificar, caracterizar e avaliar as consequências permanentes <strong>de</strong>ssas lesões (sequelasno corpo, capacida<strong>de</strong>s, subjectivida<strong>de</strong> e situações da vida diária);d) <strong>de</strong>terminar a relação entre lesões e sequelas (nexo <strong>de</strong> causalida<strong>de</strong>);e) <strong>de</strong>terminar a relação entre consequências físicas, psicológicas e sociais;f) esclarecer sobre a forma como as lesões e traumatismos po<strong>de</strong>m afectar <strong>de</strong> maneiraparticular o <strong>de</strong>senvolvimento físico e psicológico das crianças e jovens ou a in<strong>de</strong>pendênciae autonomia <strong>de</strong> uma pessoa, particularmente no caso das pessoas i<strong>do</strong>sas;g) i<strong>de</strong>ntificar e <strong>de</strong>spistar vítimas potenciais;h) articular-se com os profissionais das outras ciências forenses para melhor esclarecer eestudar os casos (ex: i<strong>de</strong>ntificar vestígios encontra<strong>do</strong>s num corpo através <strong>de</strong> <strong>estu<strong>do</strong>s</strong> <strong>de</strong>DNA, <strong>de</strong>terminar a alcoolémia ou concentração <strong>de</strong> outras drogas numa morte suspeita,estudar uma bala numa suspeita <strong>de</strong> homicídio);i) conhecer e colaborar nos procedimentos segui<strong>do</strong>s na investigação <strong>de</strong> crimes contrapessoas;j) trabalhar em conjunto com os serviços médicos em geral e outros serviços <strong>de</strong> apoio avítimas, ten<strong>do</strong> em vista orientar o seu tratamento e reintegração/reinserção;k) compreen<strong>de</strong>r e aten<strong>de</strong>r <strong>à</strong>s questões éticas e legais levantadas pela prática médico-legal;l) apresentar <strong>de</strong> forma clara, ao sistema <strong>de</strong> justiça, o resulta<strong>do</strong> das perícias efectuadas,através <strong>de</strong> relatórios médico-legais objectivos e bem sistematiza<strong>do</strong>s.


Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> da Universida<strong>de</strong> <strong>do</strong> Porto<strong>Medicina</strong> <strong>Legal</strong> / <strong>Introdução</strong>O objectivo geral da medicina legal é contribuir para auxiliar o direito na aplicação da justiça,através da prestação <strong>de</strong> serviços. Além <strong>de</strong>ste papel assistencial inclui, também, uma vertenteligada <strong>à</strong> investigação e ao ensino e formação profissional, ten<strong>do</strong> em vista uma cada vez melhorarticulação transdisciplinar no melhor interesse das vítimas <strong>de</strong> violência, bem como a prevençãoda violência e promoção <strong>de</strong> estratégias <strong>de</strong> segurança.Nesta última perspectiva e no <strong>do</strong>mínio específico da violência, a medicina legal engloba um leque<strong>de</strong> perspectivas sobre as consequências pessoais da violência, que po<strong>de</strong>mos resumir em quatroáreas:a) as lesões mortais e não mortais, relativamente <strong>à</strong>s causas, mecanismo e tipos;b) o impacto das consequências físicas, psicológicas e sociais nos sobreviventes;c) o contexto legal em que o dano resultante se organiza e resolve;d) as intervenções ten<strong>do</strong> em vista gerir o impacto pessoal <strong>de</strong> uma situação <strong>de</strong> violência.Deste mo<strong>do</strong>, a medicina legal po<strong>de</strong> contribuir, ainda relativamente <strong>à</strong>s questões da violência,para:a) melhorar a compreensão sobre o fenómeno:- <strong>de</strong>finin<strong>do</strong> a problemática (magnitu<strong>de</strong>, âmbito e características);- i<strong>de</strong>ntifican<strong>do</strong> os factores <strong>de</strong> risco e <strong>de</strong> protecção;- colaboran<strong>do</strong> na programação e implementação <strong>de</strong> intervenções para prevenir oproblema;b) encontrar respostas para o mesmo:- procuran<strong>do</strong> estabelecer linhas <strong>de</strong> orientação e canais <strong>de</strong> comunicação para umaabordagem transdisciplinar das questões (uma re<strong>de</strong> <strong>de</strong> profissionais que inclui pessoalda saú<strong>de</strong>, da educação, das polícias, <strong>do</strong> serviço social e <strong>do</strong> direito);- prevenin<strong>do</strong> a re-vitimização;- treinan<strong>do</strong> e sensibilizan<strong>do</strong> profissionais para trabalhar estas questões <strong>de</strong> formaa<strong>de</strong>quada.A activida<strong>de</strong> pericial está regulada nos artigos 151º a 170º <strong>do</strong> Código <strong>do</strong> Processo Penal.Um exame constitui uma observação, cientificamente efectuada, que po<strong>de</strong> constituir um meio <strong>de</strong>prova.


Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> da Universida<strong>de</strong> <strong>do</strong> Porto<strong>Medicina</strong> <strong>Legal</strong> / <strong>Introdução</strong>Uma perícia é uma activida<strong>de</strong> <strong>de</strong> interpretação <strong>de</strong> factos a provar (po<strong>de</strong> incluir a activida<strong>de</strong> <strong>de</strong>observação - exame) que, constituin<strong>do</strong> um meio <strong>de</strong> prova, é efectuada por um profissionalespecialmente habilita<strong>do</strong> para tal.A prova pericial apresenta-se sob a forma <strong>de</strong> um relatório on<strong>de</strong> se <strong>de</strong>screve o resulta<strong>do</strong> <strong>do</strong> ou <strong>do</strong>sexames efectua<strong>do</strong>s e se interpreta esses resulta<strong>do</strong>s, elaboran<strong>do</strong>-se uma conclusão <strong>de</strong>vidamentefundamentada. O relatório <strong>de</strong>verá obe<strong>de</strong>cer a normas específicas <strong>de</strong> maneira a satisfazercabalmente os objectivos a que se <strong>de</strong>stina <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>n<strong>do</strong>, tal, <strong>do</strong> âmbito <strong>do</strong> direito em que temlugar. Deve apresentar uma <strong>de</strong>scrição clara, objectiva, pormenorizada e sistematizada dasobservações feitas e a indicação das fontes da informação; os conceitos usa<strong>do</strong>s <strong>de</strong>vem ser<strong>de</strong>fini<strong>do</strong>s e os tempos verbais a<strong>de</strong>qua<strong>do</strong>s <strong>à</strong> realida<strong>de</strong> <strong>do</strong> caso e rigor das informações; a medida einterpretação <strong>do</strong> dano <strong>de</strong>ve ser isenta e imparcial, i<strong>de</strong>ntifican<strong>do</strong>-se os tipos/méto<strong>do</strong>s <strong>de</strong>instrumentos utiliza<strong>do</strong>s (ex: escalas, tabelas).A função <strong>do</strong> perito é saber dar resposta ao objectivo da perícia, <strong>de</strong> forma imparcial e objectiva, etraduzir a sua complexida<strong>de</strong> por palavras simples para que juristas e outros profissionais apossam apreciar sobre bases concretas, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> a que a <strong>de</strong>cisão judicial seja a<strong>de</strong>quada. É ele oresponsável pela elaboração <strong>do</strong> relatório pericial (no qual <strong>de</strong>verá integrar as eventuais opiniões <strong>de</strong>outros especialistas).Pensar numa meto<strong>do</strong>logia <strong>de</strong> exame e relatório pericial implica equacionar questões como:a) o objecto da perícia;b) a linguagem e conceitos usa<strong>do</strong>s, bem como a nomina anatómica;c) as normas e os mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> relatórios periciais (visan<strong>do</strong> reduzir as disparida<strong>de</strong>s naapreciação pericial, por vezes na origem <strong>de</strong> situações <strong>de</strong> injustiça social).


Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> da Universida<strong>de</strong> <strong>do</strong> Porto<strong>Medicina</strong> <strong>Legal</strong> / <strong>Introdução</strong>2A ORGANIZAÇÃO MÉDICO-LEGALOs estatutos <strong>do</strong> serviço nacional <strong>de</strong> medicina legal estão consigna<strong>do</strong>s no Dec.-Lei 96/2001, <strong>de</strong> 26<strong>de</strong> Março e em alguns artigos, ainda não revoga<strong>do</strong>s, <strong>do</strong> Dec.-Lei 11/1998, <strong>de</strong> 29/1.Este serviço organiza-se em torno <strong>do</strong> Instituto Nacional <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> <strong>Legal</strong>. A activida<strong>de</strong> pericial é<strong>de</strong>senvolvida nas Delegações (Coimbra, Lisboa e Porto) e nos Gabinetes Médico-Legais,encontran<strong>do</strong>-se estes distribuí<strong>do</strong>s pelo país e sob a direcção da Delegação respectiva.Os Gabinetes Médico-Legais realizam activida<strong>de</strong> pericial apenas no âmbito da TanatologiaForense e Clínica Médico-<strong>Legal</strong>. As Delegações compreen<strong>de</strong>m vários Serviços, aos quaiscompetem as seguintes activida<strong>de</strong>s:a) Serviço <strong>de</strong> Tanatologia Forense: compete-lhe a realização das autópsias médico-legaisrespeitantes aos óbitos verifica<strong>do</strong>s nas comarcas <strong>do</strong> âmbito territorial <strong>de</strong> actuação da <strong>de</strong>legaçãorespectiva. Quan<strong>do</strong> as circunstâncias <strong>do</strong> facto ou a complexida<strong>de</strong> da perícia o justifiquem, oprocura<strong>do</strong>r-geral distrital po<strong>de</strong> <strong>de</strong>ferir <strong>à</strong> <strong>de</strong>legação, ouvi<strong>do</strong> o respectivo director, a realização <strong>de</strong>perícias relativas a outras comarcas da respectiva área médico-legal. Compete ainda ao Serviço<strong>de</strong> Tanatologia Forense a realização <strong>de</strong> outros actos neste <strong>do</strong>mínio, <strong>de</strong>signadamente <strong>de</strong>i<strong>de</strong>ntificação <strong>de</strong> cadáveres e <strong>de</strong> restos humanos, <strong>de</strong> embalsamamento e <strong>de</strong> estu<strong>do</strong> <strong>de</strong> peçasanatómicas.b) Serviço <strong>de</strong> Clínica Médico-<strong>Legal</strong>: compete-lhe a realização <strong>de</strong> exames e perícias empessoas, para <strong>de</strong>scrição e avaliação <strong>do</strong>s danos provoca<strong>do</strong>s na integrida<strong>de</strong> psico-física, nosdiversos <strong>do</strong>mínios <strong>do</strong> direito, <strong>de</strong>signadamente no âmbito <strong>do</strong> direito penal, civil e <strong>do</strong> trabalho, nascomarcas <strong>do</strong> âmbito territorial <strong>de</strong> actuação da <strong>de</strong>legação. Quan<strong>do</strong> as circunstâncias <strong>do</strong> facto ou acomplexida<strong>de</strong> da perícia o justifiquem, o procura<strong>do</strong>r-geral distrital po<strong>de</strong> <strong>de</strong>ferir <strong>à</strong> <strong>de</strong>legação,ouvi<strong>do</strong> o respectivo director, a realização <strong>de</strong> perícias relativas a outras comarcas da respectivaárea médico-legal.c) Serviço <strong>de</strong> Toxicologia Forense: compete-lhe assegurar a realização <strong>de</strong> perícias e exameslaboratoriais químicos e toxicológicos no âmbito das activida<strong>de</strong>s da <strong>de</strong>legação e <strong>do</strong>s gabinetesmédico-legais que se encontrem na sua <strong>de</strong>pendência, bem como a solicitação <strong>do</strong>s tribunais, daPolícia Judiciária, da Polícia <strong>de</strong> Segurança Pública, da Guarda Nacional Republicana darespectiva área e <strong>do</strong> presi<strong>de</strong>nte <strong>do</strong> conselho directivo.


Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> da Universida<strong>de</strong> <strong>do</strong> Porto<strong>Medicina</strong> <strong>Legal</strong> / <strong>Introdução</strong>observar um outro tipo <strong>de</strong> consequências da violência e, <strong>de</strong>sta forma, compreen<strong>de</strong>r toda a suamagnitu<strong>de</strong>.O confronto com as interrogações e o sofrimento <strong>do</strong>s outros, é complexo; implica tempo,disponibilida<strong>de</strong> e preparação específica <strong>do</strong>s profissionais forenses, mas é <strong>de</strong>monstrativo daelevada dimensão humana da medicina legal.Na medicina legal encontramos vítimas <strong>de</strong> situações diversas. Num gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> casostratam-se <strong>de</strong> crimes, alguns <strong>de</strong>les muito violentos, mas noutras situações são vítimas <strong>de</strong> mortesúbita (muitas vezes natural) ou <strong>de</strong> aci<strong>de</strong>ntes. Os casos <strong>de</strong> suicídio têm também uma importanteexpressão nesta activida<strong>de</strong>, representan<strong>do</strong> a resposta que <strong>de</strong>terminadas pessoas encontram pararesolver a questão que as vitima.Assim, e apesar <strong>de</strong> <strong>à</strong> vitimologia clássica interessar, sobretu<strong>do</strong>, o estu<strong>do</strong> das vítimas <strong>de</strong> crimes,numa abordagem médico-legal da vítima, que tem como objectivo contribuir para a melhorcompreensão <strong>do</strong> processo <strong>de</strong> vitimação em geral, e das suas consequências, em particular, porforma a auxiliar no planeamento <strong>de</strong> intervenções efectivas e eficazes, que permitam minorar asconsequências <strong>do</strong> dano pós-traumático e, se possível, preveni-lo, a vítima terá <strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>radanuma perspectiva mais alargada.Lembremos que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início da história da humanida<strong>de</strong> que as pessoas são vítimas <strong>de</strong> actoscriminosos e <strong>de</strong> diversos tipos <strong>de</strong> violência, alguns <strong>de</strong>les constituin<strong>do</strong> traumas, com importantesconsequências, que nem sempre têm si<strong>do</strong> i<strong>de</strong>ntificadas ou tratadas da forma mais a<strong>de</strong>quada.Apesar <strong>de</strong>sta longínqua história <strong>de</strong> vitimação, até ao século XX a vítima teve sempre um papelpouco relevante, quer em termos sociais, quer no processo legal envolvente quer, mesmo, nainvestigação científica a ela dirigida.Em mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong> século XX <strong>de</strong>vi<strong>do</strong>, entre outros, <strong>à</strong> emergência <strong>do</strong> aporte teórico da vitimologia, asvítimas começaram a receber maior atenção por parte <strong>do</strong>s investiga<strong>do</strong>res e <strong>do</strong>s profissionais einstituições responsáveis pela administração da justiça criminal e pelo serviço social.A reflexão sobre a noção <strong>de</strong> vítima leva-nos, pois, a colocar quatro questões:1. O que po<strong>de</strong> vitimizar uma pessoa?2. Quem <strong>de</strong>ve ser consi<strong>de</strong>rada vítima?3. Quan<strong>do</strong> <strong>de</strong>ve uma pessoa ser consi<strong>de</strong>rada vítima?4. Porque é que uma pessoa é vitimizada?As respostas a estas questões são altamente complexas e po<strong>de</strong>rão variar <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com a áreaprofissional ao nível da qual é feita a sua análise. Assim, a sociologia, o direito, a medicina ou apsicologia, por exemplo, po<strong>de</strong>riam respon<strong>de</strong>r diferentemente a estas questões, <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com os


Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> da Universida<strong>de</strong> <strong>do</strong> Porto<strong>Medicina</strong> <strong>Legal</strong> / <strong>Introdução</strong>seus instrumentos (conceitos) e objectivos <strong>de</strong> intervenção. Tal, ainda que natural e teoricamenteaté muito enriquece<strong>do</strong>r, pelo aporte <strong>de</strong> diferentes pontos <strong>de</strong> vista, po<strong>de</strong> não ser a<strong>de</strong>qua<strong>do</strong> a partir<strong>do</strong> momento em que o objectivo seja planear intervenções multidisciplinares articuladas.Tentaremos dar resposta a estas questões <strong>de</strong> uma forma simples e sistematizada.a) Violência, crime e traumaConfrontamo-nos diariamente, <strong>de</strong> forma directa ou indirecta, com casos <strong>de</strong> inequívoca e graveviolência como, por exemplo, guerras, atenta<strong>do</strong>s, sequestros, homicídios, torturas, crimes sexuaisou maus-tratos. Outras situações, com menos impacto, estão até muito banalizadas nacomunida<strong>de</strong> actual, não <strong>de</strong>ixan<strong>do</strong>, contu<strong>do</strong>, <strong>de</strong> serem consi<strong>de</strong>radas como formas <strong>de</strong> violência; é ocaso das ofensas contra a integrida<strong>de</strong> física simples, resultantes <strong>de</strong> rixas ou querelas, e asinjúrias.Estas situações, por to<strong>do</strong>s aceites como violentas, das quais resultam vítimas, implicam o recursovoluntário <strong>à</strong> força para atingir o outro na sua vida ou integrida<strong>de</strong> física e(ou) psicológica.Algumas <strong>de</strong>las constituem crimes, outras não, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>n<strong>do</strong> tal circunstância das normas jurídicolegaisda socieda<strong>de</strong> on<strong>de</strong> o acontecimento tem lugar mas não <strong>de</strong>ixan<strong>do</strong>, por esse motivo, <strong>de</strong>configurar uma situação violenta.Por outro la<strong>do</strong>, existem crimes que não são violentos, apesar <strong>de</strong> vitimarem alguém.Qualquer uma <strong>de</strong>stas situações po<strong>de</strong> constituir um trauma para quem a vive e, nessa medida, tergraves consequências para o próprio, para os seus próximos e, até, para a socieda<strong>de</strong>. Noentanto, em <strong>de</strong>terminadas circunstâncias, a situação, ainda que criminosa e(ou) violenta, po<strong>de</strong> serultrapassada por quem a sofre, sem consequências importantes, não chegan<strong>do</strong> por vezes,sequer, a ser experienciada como traumática.Importa, pois, <strong>de</strong>finir os conceitos <strong>de</strong> violência, crime e trauma, conceitos estes que não sen<strong>do</strong>lineares (<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m <strong>do</strong> tipo <strong>de</strong> abordagem) nem pacíficos (enquanto consensuais), po<strong>de</strong>rãoconstituir pistas para a resposta <strong>à</strong> primeira pergunta: O que po<strong>de</strong> vitimizar uma pessoa?A violência constitui um grave problema social que só muito recentemente começou a serencara<strong>do</strong> como tal, passan<strong>do</strong> a assumir algum relevo a concepção criminológica e vitimológica<strong>do</strong>s comportamentos violentos e abusivos.Etimologicamente, a palavra violência <strong>de</strong>riva <strong>do</strong> latim vis, que significa força. Neste senti<strong>do</strong>, aviolência será uma forma particular <strong>de</strong> força, <strong>de</strong>stinada a exercer uma coacção.Assim, <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com a concepção criminológica e congregan<strong>do</strong> os conceitos propostos pordiversos autores po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>finir violência como um comportamento (acto ou propósito agressivo)activo, espontâneo ou voluntário, directo ou indirecto, que surge num contexto <strong>de</strong> interacção ourelação entre duas (ou mais) partes envolvidas, em situação <strong>de</strong> <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, e que se


Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> da Universida<strong>de</strong> <strong>do</strong> Porto<strong>Medicina</strong> <strong>Legal</strong> / <strong>Introdução</strong>caracteriza pelo uso da força, coacção ou intimidação, <strong>de</strong> carácter individual ou colectivo, exercidapelo homem sobre o homem, comportan<strong>do</strong> vários graus <strong>de</strong> gravida<strong>de</strong> e atingin<strong>do</strong>-o nas suasnecessida<strong>de</strong>s, na sua integrida<strong>de</strong> física, na sua integrida<strong>de</strong> moral, nos seus bens e(ou) nas suasparticipações simbólicas e culturais, causan<strong>do</strong> prejuízo, dano e sofrimento; assenta em níveisdiversos como a fé, a liberda<strong>de</strong> ou a integrida<strong>de</strong> física, constituin<strong>do</strong> um ataque ao exercício <strong>de</strong> umdireito reconheci<strong>do</strong> como fundamental ou a uma concepção <strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvimento humano possívelnum da<strong>do</strong> momento, ou seja, comporta sempre uma violação; esta violência apenas tem comoobjectivo final a <strong>de</strong>struição ou a vingança.Po<strong>de</strong>remos consi<strong>de</strong>rar a violência física, a psicológica e emocional e a sexual.A violência física é a forma que assume maior visibilida<strong>de</strong>, po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> ser <strong>de</strong>finida como o usomaterial da força (ataque directo, corporal), contra um indivíduo, <strong>de</strong> forma voluntária, que lhecausa um prejuízo mais ou menos grave.No entanto, segun<strong>do</strong> a Organização Mundial <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> o termo violência <strong>de</strong>ve ser usa<strong>do</strong> parareferir a violência intencional (homicídios, violência interpessoal, violência juvenil, maus tratos acrianças, mulheres e i<strong>do</strong>sos, violência sexual, violência auto-inflingida, violência colectiva, guerra,etc.), enquanto o termo violência não intencional po<strong>de</strong>rá ser usa<strong>do</strong> para <strong>de</strong>signar os aci<strong>de</strong>ntes(aci<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> viação, <strong>de</strong> trabalho, industriais, <strong>do</strong>mésticos, <strong>do</strong> <strong>de</strong>sporto, e outros).Assim, <strong>de</strong>terminadas circunstâncias, quan<strong>do</strong> violentas, mesmo que involuntárias, po<strong>de</strong>rão serconsi<strong>de</strong>radas como uma forma <strong>de</strong> violência e, nessa medida, termos <strong>do</strong>is tipos <strong>de</strong> violência: avoluntária ou intencional e a involuntária ou não intencional.Do ponto <strong>de</strong> vista social, a violência <strong>de</strong>ve ser situada numa perspectiva que permita captar arealida<strong>de</strong> multiforme e complexa. Wieviorka distingue duas formas <strong>de</strong> violência: privada ecolectiva:- A violência privada subdivi<strong>de</strong>-se em violência criminal, que po<strong>de</strong> ser mortal (homicídio),corporal (ofensa <strong>à</strong> integrida<strong>de</strong> física) e sexual (abuso ou violação), e violência nãocriminal (suicídio ou aci<strong>de</strong>nte).- A violência colectiva subdivi<strong>de</strong>-se em violência <strong>do</strong>s grupos organiza<strong>do</strong>s contra o po<strong>de</strong>r(terrorismo, greve, revolução), violência <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r contra os cidadãos (terrorismo <strong>de</strong>Esta<strong>do</strong>, violência institucional) e violência paroxística (guerra).Os problemas da violência, <strong>de</strong>signadamente da violência voluntária, estão, ainda, liga<strong>do</strong>s arepresentações sociais que os codificam positiva ou negativamente, segun<strong>do</strong> o tipo admiti<strong>do</strong> ourecusa<strong>do</strong> pelas categorias em presença. A violência <strong>do</strong>s grupos sociais oprimi<strong>do</strong>s, por exemplo,que se revoltam contra as diversas injustiças <strong>de</strong> que são objecto, será menos facilmente admitidae legitimada, uma vez que é consi<strong>de</strong>rada como <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m. Em contrapartida, a violência exercidapelo po<strong>de</strong>r para reprimir actos <strong>de</strong> vandalismo será entendida como legítima e necessária, porque


Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> da Universida<strong>de</strong> <strong>do</strong> Porto<strong>Medicina</strong> <strong>Legal</strong> / <strong>Introdução</strong>repõe a or<strong>de</strong>m das coisas. Num caso, a violência é uma expressão <strong>de</strong> <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m, no outro, aexpressão <strong>de</strong> uma or<strong>de</strong>m social.Associa<strong>do</strong> ao conceito <strong>de</strong> violência voluntária surgem outros conceitos: abuso, agressão eagressivida<strong>de</strong>.O termo abuso tem si<strong>do</strong> usa<strong>do</strong> para <strong>de</strong>finir qualquer comportamento segui<strong>do</strong> por uma pessoapara controlar outra. Existem vários tipos <strong>de</strong> abuso: físico, psicológico, emocional, sexual,económico e aban<strong>do</strong>no.O termo agressão <strong>de</strong>signa, em situações <strong>de</strong> interacção, um tipo <strong>de</strong> comportamento através <strong>do</strong>qual um indivíduo ofen<strong>de</strong> (ataca) outro (vítima), para lhe causar dano. Nesta <strong>de</strong>finição aten<strong>de</strong>-seapenas ao aspecto interindividual, sem valorizar as dimensões institucionais nas quais seproduzem as agressões. Mas este termo po<strong>de</strong> ser entendi<strong>do</strong> como uma forma <strong>de</strong> violência socialse se apreen<strong>de</strong>r, simultaneamente, como conduta individual e expressão <strong>de</strong> um mo<strong>do</strong> <strong>de</strong>funcionamento social. Neste caso, será necessário integrá-Io numa perspectiva que tenha emconsi<strong>de</strong>ração o peso <strong>do</strong> contexto social, as condições económicas nas quais vivem os indivíduose os seus valores culturais.A noção <strong>de</strong> agressão <strong>de</strong>ve, portanto, ser abordada nas suas múltiplas componentes, em função<strong>do</strong> seu enquadramento, das normas que a aprovam ou reprovam, em relação a categorias sociaismais ou menos valorizadas, relativamente a actos mais ou menos tolera<strong>do</strong>s ou reprimi<strong>do</strong>s.A agressão reveste-se <strong>de</strong> formas muito variadas que po<strong>de</strong>m ser classificadas, por exemplo, <strong>de</strong>acor<strong>do</strong> com a codificação sócio-cultural <strong>de</strong> que é objecto, o seu tipo ou motivação:a) Segun<strong>do</strong> a codificação sócio-cultural <strong>de</strong> que é objecto: legitimada/não legitimadaDe facto, existem formas <strong>de</strong> agressão aceites e legitimadas socialmente (pelas normas oupelas regras culturais), enquanto outras o não são. Essas normas permitem separar <strong>do</strong>isfactores legitima<strong>do</strong>res da violência: o apoio normativo (referi<strong>do</strong> a formas <strong>de</strong> violênciarelativamente <strong>à</strong>s quais se consi<strong>de</strong>ra terem o apoio <strong>do</strong> grupo social) e as consequênciassupostamente benéficas <strong>do</strong> comportamento agressivo (em certos casos, o recurso <strong>à</strong> violência élegitima<strong>do</strong> pelo facto <strong>de</strong> se tratar <strong>de</strong> um meio para alcançar um fim superior, consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>positivo por to<strong>do</strong>s; assim, a guerra po<strong>de</strong> ser julgada como uma razão transcen<strong>de</strong>nte,suficientemente importante para levantar as proibições relativas <strong>à</strong> aniquilação da vida <strong>de</strong>outrem).b) Segun<strong>do</strong> o seu tipo (natureza e a intensida<strong>de</strong> <strong>do</strong> comportamento agressivo propriamente dito):- agressão activa (bater, proferir insultos) / agressão passiva (recusar ajudar alguém);- agressão física / agressão verbal;- agressão directa / agressão indirecta.c) Segun<strong>do</strong> a sua motivação:


Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> da Universida<strong>de</strong> <strong>do</strong> Porto<strong>Medicina</strong> <strong>Legal</strong> / <strong>Introdução</strong>- agressão hostil, que consiste em causar directamente dano a alguém;- agressão instrumental, que constitui um meio para atingir um objectivo específico,diferente da agressão;- agressão expressiva, que consiste numa afirmação <strong>de</strong> si através <strong>de</strong> um comportamentoagressivo.A noção <strong>de</strong> agressão <strong>de</strong>ve, pois, ser permanentemente o objecto <strong>de</strong> uma avaliação crítica emreferência a situações, circunstâncias e contextos, que constituem uma fonte <strong>de</strong> informação sobrea sua legitimida<strong>de</strong> e o seu carácter apropria<strong>do</strong> ou não.A agressivida<strong>de</strong> <strong>de</strong>signa uma tendência especificamente humana marcada pelo carácter ouvonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> cometer um acto violento sobre outrem. Laplanche e Pontalis <strong>de</strong>finiram-na como «umatendência ou conjunto <strong>de</strong> tendências que se actualizam em condutas reais ou fantasmáticas, asquais visam causar dano a outrem, <strong>de</strong>struí-Io, coagi-lo, humilhá-Io, etc.».A agressivida<strong>de</strong> reproduz-se, <strong>de</strong> forma transgeracional (<strong>de</strong> pais para filhos) e <strong>do</strong> agressor para avítima (que se torna, por sua vez, agressor, sen<strong>do</strong> um outro a nova vítima), através <strong>de</strong> váriosprocessos:a) I<strong>de</strong>ntificação introjectiva <strong>de</strong>fensiva: a vítima aceita como certo, justo e bom aquilo que oagressor fez e i<strong>de</strong>ntifica-se a esse comportamento, que mais tar<strong>de</strong> reproduz. É omecanismo mais conheci<strong>do</strong> <strong>de</strong> reprodução da agressivida<strong>de</strong>.b) Projecção i<strong>de</strong>ntificativa <strong>de</strong>fensiva: a vítima projecta sobre outra pessoa a imagem <strong>do</strong>anterior agressor, confundin<strong>do</strong>-a com aquele e exercen<strong>do</strong>, então, a vingança sobre ele.Trata-se <strong>de</strong> um fenómeno <strong>de</strong> projecção <strong>do</strong> objecto interno arbitrário.c) I<strong>de</strong>ntificação projectiva <strong>de</strong>fensiva: o indivíduo vê na vítima a criança <strong>de</strong>svalida eagredida que foi (fenómeno <strong>de</strong> projecção <strong>de</strong> uma imagem <strong>do</strong> próprio, <strong>de</strong> uma parte dasua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> - projecção nuclear). Assim, o comportamento da vítima faz disparar noagressor a intolerável memória afectiva <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> traumático, tornan<strong>do</strong>-se imperioso<strong>de</strong>struir essa ressurgência mnésica.Diz Alice Miller: «Uma criança que receba maus tratos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> muito ce<strong>do</strong>, terá <strong>de</strong> contar <strong>de</strong> algummo<strong>do</strong> a injustiça que se cometeu com ela e, se isto não acontecer, se ela não encontrar umalinguagem apropriada para o fazer, só po<strong>de</strong>rá contar fazen<strong>do</strong> aos outros aquilo que lhe fizeram aela.»Bowlby afirma que num estu<strong>do</strong> feito sobre <strong>de</strong>linquentes foi encontra<strong>do</strong> entre eles um maiornúmero <strong>de</strong> crianças aban<strong>do</strong>nadas <strong>do</strong> que <strong>de</strong> crianças maltratadas. Isto não é aliás mais que aconfirmação <strong>do</strong> que foi verifica<strong>do</strong> por Aichom, educa<strong>do</strong>r e contemporâneo <strong>de</strong> Freud, que dirigiaum orfanato para jovens <strong>de</strong>linquentes <strong>de</strong> que gran<strong>de</strong> parte tinham si<strong>do</strong> crianças aban<strong>do</strong>nadas.


Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> da Universida<strong>de</strong> <strong>do</strong> Porto<strong>Medicina</strong> <strong>Legal</strong> / <strong>Introdução</strong>O crime po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> como uma manifestação da tendência anti-social, <strong>de</strong>rivan<strong>do</strong> datransgressão das normas jurídico-legais estabelecidas para uma <strong>de</strong>terminada socieda<strong>de</strong> e numa<strong>de</strong>terminada época. Marques-Teixeira refere, no entanto, que algumas teorias <strong>de</strong> cunhoambientalista têm assumi<strong>do</strong> uma perspectiva mais abrangente, i<strong>de</strong>ntifican<strong>do</strong> o crime como algoarbitrariamente <strong>de</strong>senha<strong>do</strong>, quer pelas forças populares (normas e costumes) quer pelas forçaseconómicas.Mas, ao falarmos <strong>de</strong> crime, falamos, antes <strong>de</strong> mais, na percepção <strong>de</strong> <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> comportamentocomo crime por uma dada socieda<strong>de</strong> e que resulta, necessariamente, <strong>do</strong> enquadramento que lheé da<strong>do</strong> pelo Direito Penal. Este conjunto <strong>de</strong> normas traduz uma série <strong>de</strong> opções <strong>de</strong> políticacriminal relativas <strong>à</strong> <strong>de</strong>finição e hierarquização <strong>do</strong>s valores sociais fundamentais da socieda<strong>de</strong> edas vias instrumentais para os proteger, <strong>de</strong>finin<strong>do</strong> o conjunto <strong>de</strong> pressupostos <strong>de</strong> que <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> averificação <strong>de</strong> uma consequência ou <strong>de</strong> um efeito jurídicos e estabelecen<strong>do</strong> as reacções ousanções que ao crime se encontram juridicamente ligadas.O Direito Penal constitui, pois, <strong>do</strong> ponto <strong>de</strong> vista formal (como emanação <strong>do</strong> exercício da funçãolegislativa <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>) e institucional (como conjunto <strong>de</strong> normas cuja aplicação se impõe <strong>à</strong>sinstituições <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r judicial), a linha da frente da reacção social ao crime, cujo estu<strong>do</strong> éfundamental para a justificação e legitimação das respostas que a socieda<strong>de</strong> escolhe dar aoscomportamentos criminosos.Assim, <strong>de</strong>fini<strong>do</strong> pela lei processual penal como «o conjunto <strong>de</strong> pressupostos <strong>de</strong> que <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> aaplicação ao agente <strong>de</strong> uma pena ou medida <strong>de</strong> segurança» (cfr. art. 1º, alínea a) <strong>do</strong> CPP), crimeé to<strong>do</strong> o facto voluntário <strong>de</strong>clara<strong>do</strong> punível pela lei penal, excluin<strong>do</strong>-se os actos reflexos e oscometi<strong>do</strong>s no esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> inconsciência, bem como os leva<strong>do</strong>s a cabo com carência total <strong>de</strong>vonta<strong>de</strong>.Para se falar em crime tem que se falar no conjunto <strong>de</strong> normas jurídicas que fixam ospressupostos <strong>de</strong> aplicação <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminadas reacções legais: as reacções criminais, queenglobam as penas e as medidas <strong>de</strong> segurança. A Constituição da República Portuguesa <strong>de</strong>fineos parâmetros constitucionais, e os limites materiais e formais da criminalização, estabelecen<strong>do</strong>os limites ao arbítrio da <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> comportamentos que hão-<strong>de</strong> ser crime ou não (cfr. art. 18º daCRP). Po<strong>de</strong>m constituir crimes condutas que ofendam o conjunto <strong>de</strong> valores que sãoindispensáveis <strong>à</strong> pessoa humana para a sua subsistência e a sua afirmação com autonomia edignida<strong>de</strong>, ou os valores indispensáveis ao funcionamento da legalida<strong>de</strong> <strong>de</strong>mocrática dasinstituições <strong>de</strong>mocráticas.É em obediência aos parâmetros atrás enuncia<strong>do</strong>s que o legisla<strong>do</strong>r penal po<strong>de</strong> classificar<strong>de</strong>termina<strong>do</strong> comportamento como crime (cfr. art. 10º <strong>do</strong> CP).Os elementos <strong>do</strong> conceito <strong>de</strong> crime comuns a to<strong>do</strong> o facto punível são a tipicida<strong>de</strong>, a ilicitu<strong>de</strong> (aantijuricida<strong>de</strong>) e a culpa. Por isso se diz <strong>do</strong> comportamento criminal que ele é típico, ilícito e


Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> da Universida<strong>de</strong> <strong>do</strong> Porto<strong>Medicina</strong> <strong>Legal</strong> / <strong>Introdução</strong>culposo. Mas, antes <strong>de</strong> mais, o crime é constituí<strong>do</strong> por um comportamento humano que se traduznum acto material __ nullum crimen sine actione __ (não ocorrem crimes que tenham umaexistência meramente espiritual), mas é ainda necessário que o facto material pratica<strong>do</strong> sejalesivo <strong>do</strong>s interesses protegi<strong>do</strong>s __ nullum crimen sine injurie __ e que tenha si<strong>do</strong> pratica<strong>do</strong> comculpa __ nullum crimen sine culpa. A consi<strong>de</strong>ração <strong>de</strong> que o comportamento humano é o ponto <strong>de</strong>partida da construção <strong>do</strong> conceito <strong>de</strong> crime coloca a questão da causalida<strong>de</strong> da relacionaçãodaquele com este, por forma a que se possa atribuir ou imputar a existência <strong>do</strong> facto aocomportamento. A acção é equiparada <strong>à</strong> omissão, nos termos <strong>do</strong> nº 2 <strong>do</strong> art.10º, consagran<strong>do</strong>-seuma verda<strong>de</strong>ira extensão da punibilida<strong>de</strong>, como consequência das exigências resultantes <strong>do</strong>princípio nullum crimen sine lege.Para se afirmar a ilicitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma conduta (art. 31º <strong>do</strong> CP), não basta a sua subsunção formal aum tipo legal: importa, ainda, que ela não seja enquadrável num tipo <strong>de</strong> causa (<strong>de</strong> justificação) <strong>do</strong>comportamento humano que exclua a ilicitu<strong>de</strong> da conduta. São causas <strong>de</strong> justificação: a legítima<strong>de</strong>fesa (art. 32º CP), o exercício <strong>de</strong> um direito (art. 31º CP), o cumprimento <strong>de</strong> um <strong>de</strong>ver impostopor or<strong>de</strong>m legítima da autorida<strong>de</strong> (art. 31º CP), o consentimento <strong>do</strong> ofendi<strong>do</strong> (art. 38º CP), odireito <strong>de</strong> necessida<strong>de</strong> (art. 34º), o conflito <strong>de</strong> <strong>de</strong>veres (art. 36º), o consentimento presumi<strong>do</strong> (art.39º) e outras causas justificativas que eventualmente resultem da pon<strong>de</strong>ração <strong>do</strong>s valores emconflito na situação concreta.A existência <strong>de</strong> culpa (a formulação <strong>de</strong> um juizo <strong>de</strong> censura ética) pelo comportamento écondição indispensável da aplicação <strong>de</strong> uma pena, constituin<strong>do</strong> uma exigência jurídicoconstitucional(cfr. a aplicação conjugada <strong>do</strong>s art.s 1º, 13º e 25º <strong>do</strong> CP). O princípio nullum poenasine culpa vem plasma<strong>do</strong> no art. 13º <strong>do</strong> CP: só é punível o facto pratica<strong>do</strong> com <strong>do</strong>lo, ou, noscasos especialmente previstos na lei, com negligência.A culpabilida<strong>de</strong> po<strong>de</strong> manifestar-se como culpabilida<strong>de</strong> pelo facto individual, na qual seconsi<strong>de</strong>ram os factores da atitu<strong>de</strong> interna juridicamente censurável que se manifestam <strong>de</strong> formaimediata na acção típica, ou como culpabilida<strong>de</strong> na condução da vida (a culpa na formação dapersonalida<strong>de</strong>, na construção teórica <strong>de</strong> Eduar<strong>do</strong> Correia), em que o juizo <strong>de</strong> culpabilida<strong>de</strong> seamplia a toda a personalida<strong>de</strong> <strong>do</strong> autor e ao seu <strong>de</strong>senvolvimento. A nossa lei penal pareceacolher a união <strong>de</strong> ambas as concepções, ao mandar aten<strong>de</strong>r, na <strong>de</strong>terminação da medida dapena (art. 62º, nº 2, alínea f) <strong>do</strong> CP) <strong>à</strong> «gravida<strong>de</strong> da falta da preparação para manter umaconduta lícita manifestada no facto, quan<strong>do</strong> essa falta <strong>de</strong>va ser censurada através da aplicaçãoda pena». O conceito <strong>do</strong>gmático <strong>de</strong> culpa integra três noções fundamentais: a) a imputabilida<strong>de</strong>(factores endógenos): existência <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong>s pessoais que possibilitam o juízo <strong>de</strong> censura aoagente; constitui o primeiro elemento que repousa sobre o juízo <strong>de</strong> culpa); b) a não-exigibilida<strong>de</strong>(factores exógenos): situações que tornam inexigível outro tipo <strong>de</strong> comportamento por parte <strong>do</strong>agente; c) a graduação: o <strong>do</strong>lo (violação intencional da norma) e a negligência (o <strong>de</strong>scui<strong>do</strong>, a


Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> da Universida<strong>de</strong> <strong>do</strong> Porto<strong>Medicina</strong> <strong>Legal</strong> / <strong>Introdução</strong>violação <strong>do</strong> <strong>de</strong>ver objectivo <strong>de</strong> cuida<strong>do</strong>). A culpa (o <strong>do</strong>lo) é excluída pela inimputabilida<strong>de</strong> e pelainexigibilida<strong>de</strong>.A inimputabilida<strong>de</strong> po<strong>de</strong> verificar-se em razão da ida<strong>de</strong> (art. 19º <strong>do</strong> CP): a ida<strong>de</strong> inferior a 16 anosé um obstáculo <strong>à</strong> culpa, já que esta pressupõe a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão, existin<strong>do</strong> uma presunçãoabsoluta <strong>de</strong> inimputabilida<strong>de</strong>, através <strong>de</strong> um critério biológico, sem ter que se averiguar sequer oesta<strong>do</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento individual da criança ou <strong>do</strong> jovem e a sua capacida<strong>de</strong> intelectual evolitiva.A inimputabilida<strong>de</strong> po<strong>de</strong>, ainda, verificar-se em razão <strong>de</strong> anomalia psíquica (art. 20º <strong>do</strong> CP): a<strong>de</strong>terminação da inimputabilida<strong>de</strong> referida no nº 1 <strong>do</strong> art. 20º está condicionada <strong>à</strong> existência <strong>de</strong>um pressuposto biológico (anomalia psíquica) e <strong>de</strong> um pressuposto psicológico ou normativo (aincapacida<strong>de</strong> para avaliar a ilicitu<strong>de</strong> <strong>do</strong> facto ou se <strong>de</strong>terminar <strong>de</strong> harmonia com essa avaliação).O nº 2 <strong>do</strong> art. 20º prevê a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>claração da imputabilida<strong>de</strong> diminuída. Se o tribunalenten<strong>de</strong>r que o efeito psicológico da inimputabilida<strong>de</strong> só parcialmente se verifica, mas encontraruma base biológica grave permanente, não <strong>do</strong>minan<strong>do</strong> o agente os seus efeitos, po<strong>de</strong> <strong>de</strong>clarar oagente como inimputável, ten<strong>do</strong> presente o indício previsto no nº 3 <strong>do</strong> mesmo artigo, ou seja, aincapacida<strong>de</strong> <strong>do</strong> agente para se <strong>de</strong>ixar influenciar pelas penas.A não exigibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> conduta diferente da realizada pelo agente <strong>de</strong> um facto criminalmentepunível está cristalizada em situações-tipo: a) esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sculpabilizante (art. 35º);b) excesso asténico <strong>de</strong> legítima <strong>de</strong>fesa; c) obediência <strong>de</strong>vida <strong>de</strong>sculpabilizante; d) o erro sobre ascircunstâncias <strong>do</strong> facto (art. 16º) ; e) o erro sobre a ilicitu<strong>de</strong> (2ª parte <strong>do</strong> nº1 <strong>do</strong> art. 16º e a falta <strong>de</strong>valoração e interiorização <strong>do</strong> juízo <strong>de</strong> valor prevista no art. 17º).A culpa é atenuada por: a) erro censurável sobre a ilicitu<strong>de</strong>; b) excesso <strong>de</strong> legítima <strong>de</strong>fesa;c) esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sculpabilizante.Sintetizan<strong>do</strong> e articulan<strong>do</strong> as diferentes noções e categorias referidas, po<strong>de</strong>mos concluir que aculpa resulta <strong>do</strong> juízo segun<strong>do</strong> o qual o agente <strong>de</strong>veria agir <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com a norma porque podiaactuar <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com ela, o que pressupõe a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão (pois só assim se po<strong>de</strong>ráconsi<strong>de</strong>rar responsável o agente por ter pratica<strong>do</strong> o acto, em vez <strong>de</strong> <strong>do</strong>minar os impulsoscriminais) e uma <strong>de</strong>cisão correcta (a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> querer <strong>de</strong>ve andar associada <strong>à</strong> capacida<strong>de</strong> paraajuizar os valores uma vez que sem ela as <strong>de</strong>cisões humanas não po<strong>de</strong>rão ser <strong>de</strong>terminadas pornormas <strong>de</strong> <strong>de</strong>ver). Com a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão pren<strong>de</strong>m-se as questões relacionadas com aimputabilida<strong>de</strong>; com a correcção da <strong>de</strong>cisão pren<strong>de</strong>-se a problemática <strong>do</strong> erro sobre ascircunstâncias <strong>do</strong> facto e sobre a ilicitu<strong>de</strong>.A <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> trauma po<strong>de</strong> variar <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com a perspectiva teórica e prática em que oconceito assenta.Quan<strong>do</strong> se fala em trauma pensamos, muitas vezes, em traumatismo físico, da mesma formaque quan<strong>do</strong> se fala em dano corporal (conceito médico-legal) pensamos, geralmente, apenas na


Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> da Universida<strong>de</strong> <strong>do</strong> Porto<strong>Medicina</strong> <strong>Legal</strong> / <strong>Introdução</strong>sua vertente orgânica. Trata-se <strong>de</strong> um hábito ancestral, que remonta a alguns milénios antes <strong>de</strong>Cristo e para o qual ainda continua a remeter-nos o sistema <strong>de</strong> peritagem médico-tabelar.Procura-se, <strong>de</strong>sta forma, a organicida<strong>de</strong> <strong>do</strong> dano, que facilita o estabelecimento <strong>do</strong> seu nexo <strong>de</strong>causalida<strong>de</strong> com o traumatismo permitin<strong>do</strong>, assim, <strong>de</strong>screvê-Io <strong>de</strong> maneira objectiva e,supostamente, orientar concretamente o tratamento/reintegração da vítima e a atribuição <strong>de</strong> umaeventual in<strong>de</strong>mnização.Mas os eventos traumáticos po<strong>de</strong>m ser <strong>de</strong> múltiplas etiologias, não correspon<strong>de</strong>n<strong>do</strong>,necessariamente, to<strong>do</strong>s eles, a situações <strong>de</strong> violência e, muito menos <strong>de</strong> lesão orgânica. Poroutro la<strong>do</strong>, mesmo no caso <strong>de</strong> existirem lesões orgânicas, além das suas sequelas maisobjectiváveis (no corpo, nas capacida<strong>de</strong>s e nas situações <strong>de</strong> vida), po<strong>de</strong>rão existir outrassubjectivas, relacionadas não só com a vivência pessoal <strong>do</strong> trauma mas, também, com apercepção que a pessoa tem <strong>do</strong> seu dano corporal.Depen<strong>de</strong>n<strong>do</strong> da natureza da força que causa o trauma, po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>signá-lo por <strong>de</strong>sastre (forçada natureza), ou atrocida<strong>de</strong> (força <strong>de</strong> outro ser humano).Ainda que <strong>de</strong> forma muito incompleta, po<strong>de</strong>m sistematizar-se da seguinte maneira algumasetiologias <strong>do</strong> trauma:1. Desastre sofri<strong>do</strong> pelo próprio ou por terceiros:a) <strong>de</strong> origem natural (ex.: terramoto);b) <strong>de</strong> origem humana (ex.: aci<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> viação);2. Assalto pessoal violento ao próprio ou a terceiros:a) Crime contra a integrida<strong>de</strong> física;b) Crime sexual;c) Maus-tratos;d) Tortura;e) Rapto;3. Guerra, ataque terrorista e atenta<strong>do</strong>4. Diagnóstico <strong>de</strong> <strong>do</strong>ença ameaça<strong>do</strong>ra da vida, no próprio ou em terceiros5. Sequelas mais ou menos graves, <strong>de</strong> um traumatismo ou <strong>do</strong>ença, sofridas pelo próprio oupor terceiros6. Questão relacional:a) Separação;b) Divórcio;c) Conflito grave (laboral ou familiar);d) Injúrias graves ou falsas acusações;7. Questão <strong>de</strong> sobrevivência:a) Problema económico grave;


Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> da Universida<strong>de</strong> <strong>do</strong> Porto<strong>Medicina</strong> <strong>Legal</strong> / <strong>Introdução</strong>b) Desemprego prolonga<strong>do</strong> e inespera<strong>do</strong>;c) Burla, frau<strong>de</strong> ou falsificação;d) Roubo;8. Perda <strong>de</strong> terceiros:a) Morte por suicídio ou homicídio;b) Morte súbita <strong>de</strong> causa aci<strong>de</strong>ntal ou natural.Assim, o conceito <strong>de</strong> trauma, <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com o ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong> vários autores traduz um evento(choque), que ocorre súbita e inesperadamente, <strong>de</strong> forma irreversível, que não é familiar <strong>à</strong> vítimae está fora <strong>do</strong> seu controlo não lhe sen<strong>do</strong> por isso possível a tomada <strong>de</strong> acções correctivasdirectas e que ameaça o seu bem-estar psicológico, directa ou indirectamente, constituin<strong>do</strong> umaexperiência muito stressante que requer uma adaptação psicológica, po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> originar sequelas,<strong>de</strong>signadamente psicológicas.A mudança imposta pelo trauma inclui a percepção <strong>de</strong> si próprio, a percepção <strong>do</strong>s outros e apercepção da vida circundante, na medida em que implica a vivência <strong>de</strong> emoções intensas e aassumpção cognitiva da vulnerabilida<strong>de</strong> pessoal.Todas estas formas <strong>de</strong> trauma têm consequências <strong>de</strong>finitivas, mais ou menos graves, que se irãomarcar e ter repercussões na vida da pessoa que o viveu.São os eventos traumáticos súbitos e inespera<strong>do</strong>s, incontroláveis, fora <strong>do</strong> comum, crónicos ecom culpa <strong>de</strong> terceiros, que produzem mais dificulda<strong>de</strong>s psicológicas para o indivíduo que osvive.As alterações psicológicas e a capacida<strong>de</strong> para ultrapassar todas estas dificulda<strong>de</strong>s econtrarieda<strong>de</strong>s, reencontran<strong>do</strong> o gosto anterior <strong>de</strong> viver, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m:1. <strong>do</strong> tipo <strong>de</strong> trauma: severida<strong>de</strong> e duração;2. da disposição individual: esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> prévio da pessoa, da sua experiênciaanterior, <strong>do</strong> nível da vida da vítima (um trauma na infância e na velhice temconsequências muito particulares; os i<strong>do</strong>sos sofrem mais repercussões <strong>do</strong> stress queos jovens), das crenças e práticas culturais, <strong>de</strong> factores <strong>de</strong>mográficos;3. da percepção individual: percepção <strong>do</strong> trauma, expectativas e motivação relativamente<strong>à</strong> reabilitação/reintegração, tipo <strong>de</strong> práticas usadas contra o stress (como o exercícioou uma alimentação a<strong>de</strong>quada);4. <strong>do</strong> suporte <strong>de</strong> terceiros: características <strong>do</strong> seu meio e da sua situação social e cultural,da existência <strong>de</strong> suporte <strong>de</strong> amigos e da família.Desta forma po<strong>de</strong>mos compreen<strong>de</strong>r que nem to<strong>do</strong>s os abusos são traumáticos, sen<strong>do</strong> para talimportante a percepção da pessoa relativamente ao evento. Se não houver violência, um abuso


Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> da Universida<strong>de</strong> <strong>do</strong> Porto<strong>Medicina</strong> <strong>Legal</strong> / <strong>Introdução</strong>sexual <strong>de</strong> um menor po<strong>de</strong> não ser percebi<strong>do</strong> como tal e, por isso, não ser traumatizante (noimediato), uma vez que não percebe o evento como uma ameaça <strong>de</strong> séria lesão ou dano.As situações traumáticas, pela sua natureza, confrontam as pessoas com os sentimentosmáximos <strong>de</strong> aban<strong>do</strong>no, incapacida<strong>de</strong> e terror. Não sen<strong>do</strong> a severida<strong>de</strong> <strong>do</strong> trauma mensurável,po<strong>de</strong>, no entanto, caracterizar-se pelo seu po<strong>de</strong>r em inspirar os sentimentos referi<strong>do</strong>s.Há três elementos que transformam um evento numa situação <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>iro trauma: aincapacida<strong>de</strong> da pessoa para o controlar e o resulta<strong>do</strong> da falta <strong>de</strong>sse controlo na segurançaindividual; a atribuição <strong>de</strong> uma elevada valência negativa ao evento; o facto da experiência serinesperada.A capacida<strong>de</strong> para controlar um evento torna-o mais previsível e a capacida<strong>de</strong> para o prever tornao seu controlo mais fácil. No entanto, a previsibilida<strong>de</strong> não é, necessariamente, um elementoessencial para o processo <strong>de</strong> trauma. Mesmo que um evento seja previsível, po<strong>de</strong>rá sertraumatizante se senti<strong>do</strong> como incontrolável e altamente negativo (ex: abuso sexual reitera<strong>do</strong> <strong>de</strong>criança; neste caso a previsibilida<strong>de</strong> po<strong>de</strong> até torná-lo mais traumático na sequência <strong>do</strong> stress etensão <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> <strong>à</strong> espera <strong>do</strong> abuso incontrolável).A valência negativa é <strong>de</strong>vida <strong>à</strong> percepção ou <strong>à</strong> presença <strong>de</strong> lesão e(ou) sofrimento físico ouemocional. As características <strong>de</strong>sta valência negativa <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m <strong>de</strong> factores subjectivos quevariam <strong>de</strong> indivíduo para indivíduo. Por exemplo, testemunhar a tortura ou morte <strong>de</strong> uma pessoapo<strong>de</strong> ser senti<strong>do</strong> como negativo em <strong>de</strong>terminadas circunstâncias (quan<strong>do</strong> se trate dum próximoou ente queri<strong>do</strong>) ou positivo (quan<strong>do</strong> por exemplo se tratar <strong>de</strong> um inimigo <strong>de</strong> guerra).O facto <strong>de</strong> ser inespera<strong>do</strong> constitui, também, um elemento chave <strong>do</strong> processo <strong>de</strong> trauma. Oseventos discretos que surgem <strong>de</strong> forma abrupta po<strong>de</strong>m causar mais terror e ser mais traumáticos<strong>do</strong> que aqueles que são vivi<strong>do</strong>s gradualmente, durante um longo perío<strong>do</strong> <strong>de</strong> tempo, uma vez queeste tempo permite uma adaptação cognitiva e emocional ao esquema individual e <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> emre<strong>do</strong>r.Assim, respon<strong>de</strong>n<strong>do</strong> <strong>à</strong> pergunta inicial, “O que po<strong>de</strong> vitimizar uma pessoa?”, diríamos quepo<strong>de</strong>mos ser vitimiza<strong>do</strong>s por circunstâncias que nos são adversas e causam dano físico,psicológico e(ou) social, seja um crime ou outra situação <strong>de</strong> violência, mesmo que não criminosa,situações estas que, pelas suas características po<strong>de</strong>m configurar um trauma, resultan<strong>do</strong> daí orisco <strong>de</strong> maior dano bio-psico-social, temporário ou permanente, para a vítima.b) Vítima e vitimação. Níveis e tipos <strong>de</strong> vitimaçãoA raiz <strong>do</strong> termo vítima está ligada aos verbos latinos vincire (ligar, atar) ou vincere (<strong>de</strong>rrotar,<strong>de</strong>sarmar).


Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> da Universida<strong>de</strong> <strong>do</strong> Porto<strong>Medicina</strong> <strong>Legal</strong> / <strong>Introdução</strong>Este substantivo usa-se frequentemente em criminologia e na medicina legal mas raramente nodireito, que prefere os termos “ofendi<strong>do</strong>”, “pessoa ofendida”, “parte lesada” ou, ainda, “sujeitopassivo <strong>do</strong> crime”, entendi<strong>do</strong> como “o titular <strong>do</strong> bem jurídico tutela<strong>do</strong> da norma incriminatóriaviolada”.To<strong>do</strong>s somos vítimas <strong>de</strong> próximos e <strong>de</strong> <strong>de</strong>sconheci<strong>do</strong>s, da socieda<strong>de</strong> e das tecnologias, até <strong>de</strong>nós próprios.... Ser consi<strong>de</strong>rada vítima faz pressupor que se sofreu qualquer tipo <strong>de</strong> “agressão” aque frequentemente se chama violência. Essa forma <strong>de</strong> violência, como se referiu, não tem <strong>de</strong> sersempre intencional. Há pessoas que têm tendência para sofrer aci<strong>de</strong>ntes repeti<strong>do</strong>s, porapresentarem <strong>de</strong>terminadas características pessoais ou <strong>do</strong> seu contexto que favorecem esseacontecimento. Serão vítimas <strong>de</strong> aci<strong>de</strong>ntes, aci<strong>de</strong>ntes que o po<strong>de</strong>m ser, <strong>de</strong> facto, mas quetambém po<strong>de</strong>m resultar <strong>de</strong> <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> tipo <strong>de</strong> culpa <strong>de</strong> terceiros (negligência).Muitos, são vítimas não só <strong>de</strong>stas ocorrências, como da forma como posteriormente são trata<strong>do</strong>spelas estruturas a que têm <strong>de</strong> recorrer (<strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, <strong>de</strong> justiça, por exemplo) e pela comunida<strong>de</strong> emgeral. Outros são vítimas indirectas ou vicariantes.De uma forma clássica a vítima po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rada como a pessoa ferida ou lesada por outroou outros, que se sente prejudicada, que partilha essa experiência e procura assistência ereparação, e que é reconhecida como vítima e possivelmente assistida por organismoscomunitários públicos ou priva<strong>do</strong>s. Nesta <strong>de</strong>finição a vítima é entendida como um indivíduo, masas instituições, corporações, estabelecimentos comerciais e grupos <strong>de</strong> pessoas po<strong>de</strong>m, também,ser vitimiza<strong>do</strong>s e reclamar o seu estatuto <strong>de</strong> vítima. De facto po<strong>de</strong>m ser vítimas pessoas físicas ouentes jurídicos (ex: o Esta<strong>do</strong>) e também sujeitos passivos in<strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s (ou seja, nos casos emque o ofendi<strong>do</strong> pertence genericamente a uma colectivida<strong>de</strong> não <strong>de</strong>limitada mas concreta - ex:crimes contra a integrida<strong>de</strong> e saú<strong>de</strong> da raça, contra a incolumida<strong>de</strong> pública, o sentimento religiosoe a pieda<strong>de</strong> <strong>do</strong>s <strong>de</strong>funtos).Têm-se afirma<strong>do</strong> que o crime po<strong>de</strong> não ter uma vítima mas tal é apenas <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> <strong>à</strong> invisibilida<strong>de</strong> davítima; quanto mais não fosse, o Esta<strong>do</strong> seria a vítima, como tutelar <strong>do</strong> interesse da resolução <strong>do</strong>conflito e da paz social.Para dar resposta <strong>à</strong>s perguntas: quem <strong>de</strong>ve ser consi<strong>de</strong>rada vítima? quan<strong>do</strong> <strong>de</strong>ve uma pessoaser consi<strong>de</strong>rada vítima?, analisaremos os diversos níveis a consi<strong>de</strong>rar relativamente ao estatuto<strong>de</strong> vítima. Assim, no processo <strong>de</strong> vitimação po<strong>de</strong>mos distinguir quatro níveis, segun<strong>do</strong> Viano:1º nível - O indivíduo experimenta um dano e sofrimento causa<strong>do</strong> por outra pessoa ou instituição,sem o enten<strong>de</strong>r como uma forma <strong>de</strong> vitimação;2º nível - Alguns <strong>de</strong>sses indivíduos enten<strong>de</strong>m esse dano como imereci<strong>do</strong> e injusto e sentem-sevítimas;


Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> da Universida<strong>de</strong> <strong>do</strong> Porto<strong>Medicina</strong> <strong>Legal</strong> / <strong>Introdução</strong>3º nível - Outros, ainda, sentin<strong>do</strong>-se lesa<strong>do</strong>s ou vitimiza<strong>do</strong>s, tentam encontrar alguém (familiar,amigo, profissional, autorida<strong>de</strong>) que reconheça essa vitimação e o dano sofri<strong>do</strong>;4º nível - Destes, os que encontram reconhecimento para o seu estatuto <strong>de</strong> vítima tornam-se“oficialmente” vítimas, po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> beneficiar <strong>de</strong> vários tipos <strong>de</strong> apoio.- Primeiro nívelO primeiro nível remete-nos para o dano e suas causas.De acor<strong>do</strong> com o ponto <strong>de</strong> vista tradicional, o elemento essencial <strong>do</strong> estatuto <strong>de</strong> vítima é apresença <strong>de</strong> dano, sofrimento e(ou) lesão, causa<strong>do</strong> por um crime. No entanto, alguns consi<strong>de</strong>ramque não existe nenhuma razão que <strong>de</strong>va limitar a causa <strong>do</strong> dano a um acto criminoso cometi<strong>do</strong>por um indivíduo contra outro. A vitimação institucional, o abuso <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r, a vitimação colectiva eas acções governamentais ilegais ou ilegítimas também <strong>de</strong>vem ser consi<strong>de</strong>radas causas <strong>de</strong>vitimação. Da mesma forma, <strong>de</strong>vem ser consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s não só os actos <strong>de</strong> comissão mas tambémos <strong>de</strong> omissão. Em que medida é que as vítimas <strong>de</strong> <strong>de</strong>sastres naturais, guerra, poluiçãoambiental, encerramento <strong>de</strong> fábricas, etc., <strong>de</strong>vem ser aqui incluídas, é discutível. Algunsconsi<strong>de</strong>ram que o motivo e a forma <strong>do</strong> dano é irrelevante e o que conta é estar em crise, serlesa<strong>do</strong>, feri<strong>do</strong> e necessitar <strong>de</strong> recuperação, <strong>de</strong> reparação e <strong>de</strong> adquirir, novamente, autonomia.Assim, como atrás referi<strong>do</strong>, a vítima po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rada como alguém que sofre um dano, nasequência <strong>de</strong> um crime ou <strong>de</strong> um acto violento não criminoso, que em certas circunstância po<strong>de</strong>configurar um trauma.No entanto, uma pessoa po<strong>de</strong> experimentar um dano sem se auto-consi<strong>de</strong>rar vítima (mesmo emcaso <strong>de</strong> dano e sofrimento causa<strong>do</strong> por outro). A cultura, tradição e cre<strong>do</strong>s religiosos po<strong>de</strong>mpermitir uma racionalização que os leve a consi<strong>de</strong>rar eles próprios como responsáveis pelo danoque estão a sofrer e a culpar-se a eles mesmos e não ao perpetra<strong>do</strong>r. As vítimas po<strong>de</strong>m acreditarque são responsáveis pela sua vitimação, surgin<strong>do</strong> sintomas <strong>de</strong> stress, ansieda<strong>de</strong> e culpa,associa<strong>do</strong>s com a vitimação (perturbação <strong>de</strong> stress pós-traumático). A violência conjugal, oscrimes sexuais e o assédio sexual são exemplos clássicos que estão na origem <strong>de</strong>ste tipo <strong>de</strong>racionalizações.Os conceitos <strong>de</strong> susceptibilida<strong>de</strong>, vulnerabilida<strong>de</strong> e estilo <strong>de</strong> vida são instrumentos importantes naabordagem <strong>de</strong>sta dimensão. Por essa razão, muitos autores consi<strong>de</strong>ram que a vitimologia não<strong>de</strong>veria incluir este nível, <strong>de</strong>ven<strong>do</strong> antes partir <strong>do</strong> momento em que a pessoa compreen<strong>de</strong> e sesente vitimizada ou, melhor ainda, <strong>do</strong> momento em que esta sente necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> revelar o factoe o seu estatuto <strong>de</strong> vítima é publicamente reconheci<strong>do</strong>.Outros discordam e consi<strong>de</strong>ram que as questões levantadas a partir <strong>de</strong>ste primeiro nível e na suatransposição para o nível seguinte facultam uma importante e útil investigação. Por outro la<strong>do</strong>,este nível fornece-nos uma forte fundamentação para efectivos esforços <strong>de</strong> prevenção, uma vezque nos permite articular questões <strong>do</strong> tipo: como reduzir o grau <strong>de</strong> dano das pessoas quan<strong>do</strong>


Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> da Universida<strong>de</strong> <strong>do</strong> Porto<strong>Medicina</strong> <strong>Legal</strong> / <strong>Introdução</strong>estas não se consi<strong>de</strong>ram vítimas? O que significa um aumento da taxa <strong>de</strong> vitimação para umasocieda<strong>de</strong>? Que reestruturação fundamental é necessária para interromper a vitimação?- Segun<strong>do</strong> nívelA transição entre o primeiro nível (sofrer um dano) e o segun<strong>do</strong> nível (sentir-se vítima) é crucial etem si<strong>do</strong> negligenciada, talvez <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> <strong>à</strong> recente ênfase dada <strong>à</strong> macro-pesquisa orientadasociologicamente (ex: sondagens nacionais <strong>de</strong> vitimação) versus as micro-abordagens orientadas<strong>do</strong> ponto <strong>de</strong> vista psicológico.Um <strong>do</strong>s maiores obstáculos ao reconhecimento da vitimação, mesmo por parte da vítima, éfrequentemente a sua tolerância pública silenciosa. Tal tolerância po<strong>de</strong> resultar <strong>de</strong> um sistema <strong>de</strong>valores, crenças e leis que activamente sustentem, justifiquem e legitimem a vitimação.O facto <strong>de</strong> altos cargos religiosos e alguns padres terem recentemente reconheci<strong>do</strong> <strong>de</strong> formaexplícita, a existência e as activida<strong>de</strong>s <strong>do</strong> crime organiza<strong>do</strong>, tem causa<strong>do</strong> sensação, não tanto porrevelarem algo <strong>de</strong> novo mas porque <strong>de</strong>safiam o código <strong>do</strong> silêncio, tradicionalmente aceite, e apretensão <strong>de</strong> que nada estava erra<strong>do</strong>.A aceitação tácita da vitimação po<strong>de</strong> ser o resulta<strong>do</strong> <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ologia “não consciente”, umsistema <strong>de</strong> crenças e atitu<strong>de</strong>s, que são implicitamente aceites mas que não estãoconscencializadas, <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> aos estereótipos que prevalecem. Po<strong>de</strong> ser, também, <strong>de</strong>vida ao facto<strong>de</strong> algumas vezes não existirem alternativas disponíveis, possíveis ou imagináveis. Para evitar oaparecimento da dissonância cognitiva perturba<strong>do</strong>ra, a consciência das injustiças e prevaricaçõesé apagada e a normalida<strong>de</strong> é restaurada através da legitimação e incorporação da vitimação nosvalores e formas <strong>de</strong> vida aceites numa dada socieda<strong>de</strong>.É frequentemente preciso mudanças sociais drásticas como a industrialização, a urbanização, ocrescimento <strong>de</strong> oportunida<strong>de</strong>s educacionais e <strong>de</strong> carreiras e a abertura <strong>de</strong> estilos <strong>de</strong> viaalternativos para abanar o status quo e levantar questões importantes. Isto por sua vez educa asvítimas acerca da sua vitimação, aumenta a sua consciência, encoraja a busca pela mudança e,acima <strong>de</strong> tu<strong>do</strong>, leva-as a assumirem-se como vítimas <strong>de</strong> um sistema injusto. A percepção <strong>de</strong> que“isto não me <strong>de</strong>veria ter aconteci<strong>do</strong>”, “eu não merecia isto”, ou “as coisas não têm <strong>de</strong> ser assim”,constitui a dinâmica psicológica chave neste complexo processo. A dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> atingir estameta resulta <strong>do</strong> facto <strong>de</strong> crenças, valores e sistemas bem enraiza<strong>do</strong>s terem <strong>de</strong> ser questiona<strong>do</strong>s ealtera<strong>do</strong>s e as figuras <strong>de</strong> li<strong>de</strong>rança rejeitadas, sem garantia imediata <strong>de</strong> sucesso. Este riscoemparelha com a consciência <strong>de</strong> que a <strong>de</strong>rrota agravaria mais ainda o processo <strong>de</strong> vitimação (ummal maior).A principal razão porque as pessoas têm dificulda<strong>de</strong> em se assumirem como vítimas é a novelaameaça<strong>do</strong>ra e abala<strong>do</strong>ra da experiência <strong>de</strong> ser vitimiza<strong>do</strong>. Geralmente uma atmosfera <strong>de</strong>segurança e harmonia social suporta as nossas activida<strong>de</strong>s. Ser vitimiza<strong>do</strong> não é uma realida<strong>de</strong>que normalmente se nos <strong>de</strong>para. Se há algum pensamento <strong>de</strong> vitimação a tendência é pensar “sei


Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> da Universida<strong>de</strong> <strong>do</strong> Porto<strong>Medicina</strong> <strong>Legal</strong> / <strong>Introdução</strong>que acontece mas não me acontecerá a mim”. Antes da ocorrência a vitimação é no máximo umapossibilida<strong>de</strong> vazia, com a qual normalmente não nos preocupamos na nossa rotina diária.Ser vitimiza<strong>do</strong> é a alvorada <strong>de</strong> uma nova configuração <strong>do</strong> significa<strong>do</strong> e ocorre naexperiência real através <strong>de</strong> um processo <strong>de</strong>senvolvimental. No início <strong>de</strong>ste processo apresenta-secomo estranha, <strong>de</strong>senquadrada, não familiar, talvez problemática e confusa. Mesmo quan<strong>do</strong> avitimação se torna uma realida<strong>de</strong> viva, a <strong>de</strong>scrença expressa nos relatos das vítimas indica queela ainda é um tipo relativamente vazio <strong>de</strong> quase realida<strong>de</strong>. Ela ainda não foi completamentearticulada, apercebida e compreendida. Isto acontece porque o mun<strong>do</strong> <strong>de</strong> significa<strong>do</strong> prévio dapessoa era basea<strong>do</strong> na segurança e harmonia social. Quan<strong>do</strong> que estas estruturas são abaladas,a vítima é entregue a uma nova realida<strong>de</strong> estranha, não familiar, chocante e dificilmente credível,fora das normas usuais e das normais experiências <strong>de</strong> vida.A vitimização (ou pelo menos uma sua primeira fase) é originalmente surpreen<strong>de</strong>nte, alígena eimprevisível, já que <strong>de</strong>spedaça o mun<strong>do</strong> da pessoa. Assim, mesmo quan<strong>do</strong> se torna claro para apessoa que a sua situação preferida está a ser <strong>de</strong>struída por outra pessoa, o que resulta é umaespécie <strong>de</strong> vazio que só gradualmente começa a ser entendi<strong>do</strong>. A vítima foi arrancada da sua vidae lançada noutra que é contrária <strong>à</strong> primeira, esvazian<strong>do</strong> assim o seu mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> seu significa<strong>do</strong>usual.Há três componentes principais da vitimação que a tornam particularmente ameaça<strong>do</strong>ra e difícil<strong>de</strong> assumir:1. a capacida<strong>de</strong> da vítima para controlar as perdas, fican<strong>do</strong> in<strong>de</strong>fesa, vulnerável e isolada;2. a dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> ace<strong>de</strong>r aos sistemas <strong>de</strong> apoio social e cooperativo;3. o facto <strong>de</strong> alguém ter invadi<strong>do</strong> a sua vida e <strong>de</strong>struí<strong>do</strong>, a vários níveis, o seu bem-estar.Ver-se como vítima e aceitar a sua vitimação é importante por outra razão crucial: po<strong>de</strong> ser oinício <strong>do</strong> processo <strong>de</strong> recuperação. Compreen<strong>de</strong>r, permite ultrapassar o choque e a confusão eabre o caminho para encetar a luta.Este segun<strong>do</strong> nível alerta-nos para a importância da educação pública e <strong>do</strong> <strong>de</strong>spertar dasconsciências, para que as pessoas possam transcen<strong>de</strong>r explicações particulares e justificaçõesda vitimação e agarrem a natureza sistémica e alargada <strong>do</strong> dano que as afecta. Isto <strong>de</strong>veráconduzi-las ao <strong>de</strong>senvolvimento <strong>do</strong> sentimento <strong>de</strong> raiva e da <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> que algo tem <strong>de</strong> ser feitopara mudar a situação, não só num caso particular mas em toda uma classe <strong>de</strong> vítimas oupotenciais vítimas, o que atacaria assim o problema nas suas raízes, resolven<strong>do</strong>-o na sua forma<strong>de</strong>finitiva.Alguns peritos acreditam que as pessoas que foram vítimas <strong>de</strong> um dano <strong>de</strong>veriam ser capazes <strong>de</strong>se consi<strong>de</strong>rarem elas próprias vítimas antes ainda da vitimologia as consi<strong>de</strong>rar vitimizadas. Outros


Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> da Universida<strong>de</strong> <strong>do</strong> Porto<strong>Medicina</strong> <strong>Legal</strong> / <strong>Introdução</strong><strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m que nenhuma fase isolada constitui o ponto fulcral da vitimologia e que, em vez disso, avitimologia <strong>de</strong>ve concentrar-se em to<strong>do</strong> o processo <strong>de</strong> vitimação.- Terceiro nívelO terceira nível correspon<strong>de</strong> <strong>à</strong> assunção <strong>do</strong> estatuto e papel <strong>de</strong> vítima, pela própria.Após um indivíduo reconhecer uma experiência <strong>de</strong> vitimação ele <strong>de</strong>ve <strong>de</strong>cidir o que fazer acercadisso. Várias possibilida<strong>de</strong>s, formais e informais se abrem <strong>à</strong> vítima. Há provas <strong>de</strong> que as vítimasvalidam a sua experiência e as suas conclusões com uma pessoa <strong>de</strong> confiança, maisfrequentemente <strong>do</strong> que se pensa. Tal validação influencia fortemente o facto <strong>de</strong> eles participaremoficialmente (polícia, agências <strong>de</strong> protecção) ou não. Muitas variáveis afectam a <strong>de</strong>cisão da vítimarelativamente <strong>à</strong> participação pública da vitimação: a opinião sobre a probabilida<strong>de</strong> da políciaencontrar o culpa<strong>do</strong>; a quantida<strong>de</strong> <strong>do</strong> dano e sofrimento <strong>de</strong>vi<strong>do</strong>s <strong>à</strong> revelação; a relação com ovitimiza<strong>do</strong>r; o impacto social da participação; os obstáculos, <strong>de</strong>spesas e tempo envolvi<strong>do</strong> naparticipação; a percepção da complexida<strong>de</strong> <strong>do</strong> complexo burocrático; o me<strong>do</strong> <strong>de</strong> ser ridiculariza<strong>do</strong>ou <strong>de</strong> sofrer retaliação e vingança; a falta <strong>de</strong> privacida<strong>de</strong> nos níveis iniciais da participação; o local<strong>de</strong> residência (os habitantes rurais participam mais dificilmente).Assim, factores sociais, culturais e psicológicos po<strong>de</strong>m impedir a vítima <strong>de</strong> reclamar publicamenteesse estatuto. Tal po<strong>de</strong> levar, por vezes, <strong>à</strong> perpetuação da vitimação com o vitimiza<strong>do</strong>r a tirarparti<strong>do</strong> da falta <strong>de</strong> acção por parte da vítima.Um factor <strong>de</strong>cisivo para dar algum espaço <strong>de</strong> manobra <strong>à</strong> vítima é a importância colocada no facto<strong>de</strong> ganhar ou <strong>de</strong> ser bem sucedida na socieda<strong>de</strong>. Aos olhos <strong>de</strong> muitos, a vítima é um per<strong>de</strong><strong>do</strong>r,mesmo que inocente; como resulta<strong>do</strong>, a vítima po<strong>de</strong> ter um preço alto a pagar quan<strong>do</strong> reconhecea vitimação. É por isso que é mais difícil ao sexo masculino admitir, participar a sua vitimação eprocurar ajuda apropriada.Nas socieda<strong>de</strong>s em que estabelecer os limites da activida<strong>de</strong> sexual é estritamente daresponsabilida<strong>de</strong> das mulheres, a violação é um crime sério.Percebe-se, assim, a relutância da vítima para participar um acontecimento vitimizante. Participálopo<strong>de</strong>rá ser o equivalente a passar uma sentença <strong>de</strong> morte a si próprio ou, pelo menos, pôr emsério risco o seu estatuto social, a respeitabilida<strong>de</strong> e aceitação na comunida<strong>de</strong>, bem como oestatuto social da sua família. Enfim, po<strong>de</strong> significar a estigmatização ou até a exclusão social.Por outras palavras, on<strong>de</strong> a culpabilização da vítima é prevalecente, e pior que isso, interiorizadapela própria vítima, o preço psicológico e social a pagar pela revelação po<strong>de</strong> ser muito alto.Da mesma forma a percepção da vítima <strong>de</strong> que po<strong>de</strong>rá não ser acreditada, po<strong>de</strong>, efectivamente,fechar todas as vias para revelar e procurar a reparação por um perío<strong>do</strong> in<strong>de</strong>termina<strong>do</strong> <strong>de</strong> tempo,e po<strong>de</strong> conduzir a uma vitimação prolongada. Para além disso, a <strong>de</strong>svalorização social <strong>do</strong>consentimento para revelar, po<strong>de</strong> fazer da vítima um alvo fácil para assédio e revitimização, nas


Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> da Universida<strong>de</strong> <strong>do</strong> Porto<strong>Medicina</strong> <strong>Legal</strong> / <strong>Introdução</strong>mãos <strong>do</strong> vitimiza<strong>do</strong>r ou <strong>de</strong> outros. Exemplos <strong>de</strong>stas vitimizações incluem o incesto, assédiosexual, violência <strong>do</strong>méstica e abuso <strong>do</strong>s i<strong>do</strong>sos.A relutância em reclamar o estatuto ou papel <strong>de</strong> vítima não se confina <strong>à</strong>s vítimas. Corporações,empresas e mesmo os governos, po<strong>de</strong>m não participar serem vítimas <strong>de</strong> vitimação, paramanterem uma certa imagem, por razões <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m prática (ex: empresa po<strong>de</strong> não participar umainvasão <strong>de</strong> vírus ou perda <strong>de</strong> segurança nos seus computa<strong>do</strong>res, preferin<strong>do</strong> arcar com as perdaspara evitar má publicida<strong>de</strong> que po<strong>de</strong>ria abalar a confiança <strong>do</strong>s clientes e afectar a sua capacida<strong>de</strong><strong>de</strong> funcionamento).A aquisciência <strong>de</strong> pequenos e mesmo gran<strong>de</strong>s negócios <strong>à</strong>s exigências <strong>do</strong> extorcionista <strong>do</strong> crimeorganiza<strong>do</strong> ou <strong>de</strong> um corrupto judiciário, também reflectem muitas <strong>de</strong>stas dinâmicas que afectama vonta<strong>de</strong> individual das vítimas para reconhecer e reclamar o seu papel <strong>de</strong> vítima e procurarem areparação.- Quarto nívelO quarto e último nível é o <strong>do</strong> reconhecimento público da vitimização e <strong>do</strong> apoio da socieda<strong>de</strong>.Ultrapassar a vitimação é o exacto reverso <strong>do</strong> seu significa<strong>do</strong> e não <strong>de</strong>ve ser <strong>de</strong>scurada. Se omun<strong>do</strong> social que causa e apoia a vitimação não muda ou continua a ser conivente, se a vítimanada faz acerca da sua má sorte ou se os outros permanecem indiferentes ou indisponíveis, avitimação é aprofundada. A socieda<strong>de</strong> e os outros <strong>de</strong>sempenham um papel fundamental noprocesso que permite <strong>à</strong> vítima ultrapassar a sua vitimação e construir um novo mun<strong>do</strong>. A ajudaactiva <strong>do</strong>s outros restaura o sentimento <strong>de</strong> confiança e harmonia na sociabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>struída davítima e ajuda-a a fazer a transição para o novo mun<strong>do</strong> “após” a vitimação.É vital para o bem-estar da vítima, como indivíduo e como membro da socieda<strong>de</strong> que o danoprovoca<strong>do</strong> pela vitimação seja ultrapassa<strong>do</strong> e que a crise por ele gerada se resolva com sucesso.A tarefa e necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> todas as vítimas é restabelecer o mun<strong>do</strong> como o prefere e conhece.Isto envolve sair da imobilida<strong>de</strong> e aproveitar a iniciativa, pon<strong>do</strong> fim ao isolamento e estabelecen<strong>do</strong>contactos e re<strong>de</strong>s, escapan<strong>do</strong> ao perigo e entran<strong>do</strong> num porto seguro.Este processo requer três elementos interrelaciona<strong>do</strong>s: um esforço activo, a garantia por parte <strong>do</strong>mun<strong>do</strong> <strong>de</strong> uma segurança previsível, e a ajuda activa <strong>do</strong>s outros. É através <strong>de</strong>ste processo que avitimação aparecerá como evitável, prevenível e possível <strong>de</strong> ultrapassar. O reconhecimento ecompreensão da socieda<strong>de</strong> é crucial para a efectivação <strong>de</strong>ste processo <strong>de</strong> recuperação.Uma quantida<strong>de</strong> substancial da pesquisa vitimológica tem-se <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong> <strong>à</strong> volta <strong>do</strong>s factoresque afectam a transição <strong>do</strong> terceiro para o quarto nível (ex: os factores que <strong>de</strong>terminam se areclamação <strong>do</strong> estatuto <strong>de</strong> vítima é reconhecida e leva os agentes da socieda<strong>de</strong> a agir) e dasacções <strong>do</strong>s agentes que oferecem ajuda, retribuição, restituição e compensação. Pesquisas eartigos sobre a vítima e o sistema criminal <strong>de</strong> justiça, programas <strong>de</strong> protecção <strong>à</strong> vítima-


Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> da Universida<strong>de</strong> <strong>do</strong> Porto<strong>Medicina</strong> <strong>Legal</strong> / <strong>Introdução</strong>testemunha, compensação e restituição, tratamento <strong>à</strong> vítima, reforma <strong>do</strong> sistema criminal <strong>de</strong>justiça, etc, <strong>do</strong>minam esta área.A reacção e envolvimento da socieda<strong>de</strong> são muito afecta<strong>do</strong>s pelo terceiro nível. O númerocrescente <strong>de</strong> vítimas que ultrapassam a questão reforça e intensifica a consciência pública acercada vitimação e contribui para estabelecê-la na constelação <strong>de</strong> assuntos que não po<strong>de</strong>m serignora<strong>do</strong>s e acerca <strong>do</strong>s quais é preciso fazer algo. Também fornece informação em primeira mãosobre as vítimas, números, dinâmicas <strong>de</strong> vitimação, necessida<strong>de</strong>s das vítimas e como chegar atéelas.Assim que as vítimas se revelam e o interesse público e profissional é acentua<strong>do</strong>, o passoseguinte será formular uma política pública apropriada e fornecer serviços relaciona<strong>do</strong>s. Talplanificação é requerida para assegurar que a socieda<strong>de</strong> terá capacida<strong>de</strong> para respon<strong>de</strong>ra<strong>de</strong>quada e prontamente quan<strong>do</strong> as vítimas reconhecem e reclamam o seu estatuto e procuramreconhecimento e apoio na comunida<strong>de</strong>.No contexto criminal, para se ser consi<strong>de</strong>rada vítima, <strong>de</strong>vem verificar-se certas condições: osseus direitos legais ou interesses <strong>de</strong>vem ter si<strong>do</strong> afecta<strong>do</strong>s ou, pelo menos, postos em risco, porum acto punível pela lei penal; o dano sofri<strong>do</strong> <strong>de</strong>ve ter si<strong>do</strong> causa<strong>do</strong> pela ofensa criminal.Esta conceptualização permite não só o reconhecimento <strong>do</strong> dano directo <strong>à</strong> pessoa como vítimamas, também, <strong>do</strong>s seus próximos ou ainda daqueles que <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m directamente da vítima. Adistinção <strong>de</strong>ve ser feita entre as vítimas individuais ou integradas num corpo colectivo. A vitimaçãocolectiva envolve grupos <strong>de</strong> indivíduos liga<strong>do</strong>s por factos especiais ou circunstâncias que os tornaalvo <strong>de</strong> ofensa criminal.O assunto sobre quan<strong>do</strong> uma pessoa <strong>de</strong>ve ser consi<strong>de</strong>rada vítima na perspectiva médico-legal épolémico. Há três diferentes pontos <strong>de</strong> vista sobre esta questão:1. A pessoa <strong>de</strong>ve ser consi<strong>de</strong>rada vítima nos procedimentos criminais, a partir <strong>do</strong>momento que <strong>de</strong>nunciar o crime <strong>à</strong>s autorida<strong>de</strong>s judiciárias;2. Deve ser consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> vítima apenas no momento em que assume a posição formal e oseu papel no sistema <strong>de</strong> justiça criminal;3. Só <strong>de</strong>ve ser reconheci<strong>do</strong> como vítima <strong>de</strong>pois <strong>do</strong> tribunal ter estabeleci<strong>do</strong> a culpa <strong>do</strong>acusa<strong>do</strong>.Nesta última perspectiva, a pessoa que sofreu o dano por uma ofensa mantém o estatuto <strong>de</strong>alegada vítima durante to<strong>do</strong> o processo criminal até ao veredicto final. Esta opinião vai na mesmaor<strong>de</strong>m <strong>de</strong> razão da presunção <strong>de</strong> se consi<strong>de</strong>rar o agressor inocente até o tribunal <strong>de</strong>cisor que éculpa<strong>do</strong> (fundamental para proteger os direitos e interesses <strong>do</strong> acusa<strong>do</strong> e para lhe permitir oexercício <strong>do</strong> seu direito <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa). No entanto, relativamente <strong>à</strong> vítima, se esta presunção for


Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Medicina</strong> da Universida<strong>de</strong> <strong>do</strong> Porto<strong>Medicina</strong> <strong>Legal</strong> / <strong>Introdução</strong>também usada, não lhe avança os seus interesses, pelo contrário, limitan<strong>do</strong>-a no efectivoexercício <strong>do</strong>s seus direitos, além <strong>de</strong> ter um claro efeito prejudicial na sua posição durante oprocesso judicial. Assim, a analogia referida não <strong>de</strong>ve ser seguida, no respeito pela vítima <strong>de</strong>crime. A pessoa que apresenta uma <strong>de</strong>núncia <strong>à</strong>s autorida<strong>de</strong>s e reclama o seu papel <strong>de</strong> vítima<strong>de</strong>ve ser presumida como tal até prova em contrário, <strong>de</strong> forma a salvaguardar os seus direitoslegais.A segunda perspectiva é frequentemente encontrada. Nesta conceptualização os direitos davítima po<strong>de</strong>m apenas ser exerci<strong>do</strong>s se esta formalmente reconhecer o seu papel, particularmentea <strong>de</strong>manda civil. Esta conceptualização da vítima previne, por exemplo, a provisão <strong>de</strong> informaçãopela polícia no momento em que a vítima <strong>de</strong>nuncia o crime. Mais ainda, se a vítima não estáinformada pela autorida<strong>de</strong> sobre os seus direitos e oportunida<strong>de</strong>s no processo criminal, o risco<strong>de</strong>sta não ser capaz <strong>de</strong> assumir o papel formal necessário não é imaginável.A primeira opinião é aquela que oferece melhor protecção aos direitos e interesses da vítima. Oreconhecimento da pessoa como vítima <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o momento da <strong>de</strong>núncia <strong>à</strong>s autorida<strong>de</strong>s não só lhedá a melhor possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ser informada <strong>do</strong>s seus direitos e oportunida<strong>de</strong>s, como apossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ser notificada <strong>do</strong>s <strong>de</strong>senvolvimentos relevantes, além da melhor oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong>efectivamente exercer o seu direito <strong>de</strong> perseguir os seus interesses no processo criminal.Excluin<strong>do</strong> esta perspectiva puramente técnico-jurídica, impõe-se outra perspectiva menos rígida,mais articulada e capaz <strong>de</strong> se adaptar <strong>à</strong>s inúmeras situações <strong>de</strong> vitimação, sem per<strong>de</strong>r <strong>de</strong> vista avisão unitária <strong>do</strong> fenómeno <strong>do</strong> crime ou das situações traumáticas.BIBLIOGRAFIA− Doerner WG, Lab SP: Victimology, 2th Ed, An<strong>de</strong>rson Publishing Co., Cincinnati, 1998.− Fischer G-N: A Violência, In: A dinâmica social. Violência, po<strong>de</strong>r, mudança, Planeta Editora, Lisboa,versão traduzida, pp. 15-86, 1994.− Gonçalves RA, Macha<strong>do</strong> C: Violência a vítimas <strong>de</strong> crimes, vol. 2, Quarteto, Coimbra, 2002.− Macha<strong>do</strong> C, Gonçalves RA: Violência a vítimas <strong>de</strong> crimes, vol. 1, Quarteto, Coimbra, 2002.− Mitchell M: The aftermath of road acci<strong>de</strong>nts, Routledge, Lon<strong>do</strong>n, 1997.− Te<strong>de</strong>schi RG, Calhoun LG: Trauma & Transformation, Sage Publications, Lon<strong>do</strong>n, 1995.− Tobolowski PM: Un<strong>de</strong>rstanding Victimology, An<strong>de</strong>rson Publishing Co, Cincinnati, 2000.

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