12.07.2015 Views

Romance e realidade na ficção brasileira contemporânea

Romance e realidade na ficção brasileira contemporânea

Romance e realidade na ficção brasileira contemporânea

SHOW MORE
SHOW LESS
  • No tags were found...

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

<strong>Romance</strong> e <strong>realidade</strong> <strong>na</strong> <strong>ficção</strong> <strong>brasileira</strong> <strong>contemporânea</strong>Escrita de restosQuando trata da prosa de Luiz Ruffato, Schøllhammer coloca em primeiroplano o domínio experimental da <strong>ficção</strong> do autor como instrumentoque desestabiliza a objetividade da representação realista: “É precisoquestio<strong>na</strong>r o privilégio do realismo histórico como ‘janela’ para o mundo,a fim de entender de que maneira a literatura <strong>contemporânea</strong> procuracriar efeitos de <strong>realidade</strong>, sem precisar recorrer à descrição verossímil ouà <strong>na</strong>rrativa causal e coerente” (Schøllhammer, 2009, p. 79). É a partir dessaadvertência do crítico que se coloca a observação dos recursos <strong>na</strong>rrativosutilizados por Luiz Ruffato <strong>na</strong> composição do romance Inferno provisório,o que significa dizer que, <strong>na</strong> perspectiva elaborada por Tânia Pellegrini(2007), aqui se realiza uma análise em torno de um método formal aliadoa uma postura ética, notadamente decomponível em duas linhas de força:de um lado, uma “visão em profundidade” da <strong>realidade</strong> em que se insereo proletariado no Brasil; de outro, o que se poderia chamar de um engajamentoestético por meio do qual a <strong>na</strong>tureza da representação se mostrapara além de sua superfície.Desde a publicação do romance Eles eram muitos cavalos (Ruffato, 2001),a experimentação formal e uma espécie de transbordamento do real <strong>na</strong>forma romanesca aparecem como temas de diversos estudos críticos preocupadosem definir de que modo a <strong>na</strong>rrativa de Ruffato trabalha a relaçãodo sujeito com a sociedade, a representação do real e a retomada dorealismo, a cidade caótica e o caos formal do romance, o projeto políticode tematização dos menos favorecidos, antevisto já no título retirado dopoema de Cecília Meireles e reiterado pelo autor em diferentes entrevistas.O romance é composto por 69 capítulos mais um capítulo fi<strong>na</strong>l, semtítulo, em que figura um quadro negro que preenche todo o interior dasmargens da folha, encerrando a <strong>na</strong>rrativa com a escuridão da noite — vistoque o dia já fora <strong>na</strong>rrado em fragmentos — ou a cegueira de quem temeos barulhos ouvidos <strong>na</strong> madrugada. A pági<strong>na</strong> negra é ape<strong>na</strong>s um exemplodo material diverso e recortado da <strong>na</strong>rrativa, que encontra unidade <strong>na</strong>sdimensões espacial e temporal que inserem os perso<strong>na</strong>gens <strong>na</strong> cidade deSão Paulo, com pequenos eventos espalhados pela metrópole no decursode um dia.Para a reflexão que se vem fazendo, interessa notar que Eles eram muitoscavalos recusa-se a construir uma visão totalizante da <strong>realidade</strong>, que seapresenta em pedaços de texto, orações, listas telefônicas e classificados,relação entre imitação, representação e subjetividade.estudos de literatura <strong>brasileira</strong> <strong>contemporânea</strong>, n.39, jan./jun. 2012, p. 95-106 99


Julia<strong>na</strong> Santinicriando uma perspectiva lacu<strong>na</strong>r que, a despeito do caos, potencializa aexperiência subjetiva de um real vivido e representado em seus restos:Nesse sentido, a homologia existente entre a obra e o seu objeto derepresentação, a cidade, é explícita. Eles eram muitos cavalos é romanceque também se situa no limiar: no limiar entre uma representaçãorealista e um olhar que dilui a <strong>realidade</strong> em fragmentoscaleidoscópicos; no limiar entre a estrutura romanesca e a contística;no limiar entre a reprodução e a denúncia do fracasso social damaior metrópole da América do Sul. (Rocha, 2009, p. 185)A hipótese de que o romance assume a forma da cidade que, contemporaneamente,mostra-se opressiva e menos sedutora do que parecia aosescritores modernos, não deixa de conduzir à afirmação inicial de CláudioMagris (2009), para quem o romance deve assumir a experiência da desagregação.Desagregação e totalidade impossível seriam, portanto, definiçõesdos sujeitos e da <strong>realidade</strong> representada pelo romance e, também, dopróprio romance enquanto objeto de representação.Essas duas dimensões novamente vêm à to<strong>na</strong> quando se tem em menteo romance Inferno provisório, projeto literário que deve ser completadopor cinco romances, dos quais quatro foram publicados 4 . Esses volumes,lançados entre 2005 e 2008, enfeixam 32 capítulos ou “histórias”, comoprefere denominá-los o próprio autor. Cada história apresenta-se comouma <strong>na</strong>rrativa independente, com a estrutura de um conto, com temporalidadee espaço próprios, de modo que o conjunto e a unidade do romanceserão determi<strong>na</strong>dos pelos diferentes elos que se estabelecem entre essesenredos, criando um enredo maior, este sim responsável pelo desenho deum retrato do proletariado no Brasil desde os anos 50 do século XX até a<strong>realidade</strong> <strong>contemporânea</strong>.“Uma fábula”, primeira <strong>na</strong>rrativa de Mamma, son tanto felice, volumeinicial do romance, apresenta o perso<strong>na</strong>gem Andrezinho, menino de catorzeanos que vive e trabalha <strong>na</strong> roça, em Rodeiros, Zo<strong>na</strong> da Mata mineira.Na construção do perso<strong>na</strong>gem, avulta menos sua condição presentedo que a perspectiva de planos futuros, marcada pelo projeto de deixar oespaço rural e trabalhar <strong>na</strong> cidade:um dia encorajar, aventurar-se em Ubá, diz-que cidade grande,de amplas modernidades, espiava o ônibus resfolegante <strong>na</strong> praça,Cataguases-Ubá, janelas pintadinhas de olhos, baixava a canga, iria4O primeiro e o segundo volumes, intitulados Mamma, son tanto felice e O mundo inimigo, forampublicados em 2005. O terceiro, Vista parcial da noite, é de 2006, enquanto O livro das impossibilidadesé de 2008.100 estudos de literatura <strong>brasileira</strong> <strong>contemporânea</strong>, n.39, jan./jun. 2012, p. 95-106


<strong>Romance</strong> e <strong>realidade</strong> <strong>na</strong> <strong>ficção</strong> <strong>brasileira</strong> <strong>contemporânea</strong>ainda, deixa estar, arrumava emprego numa fábrica de móveis, ganhavadinheiro, punha um implante de dente-de-ouro <strong>na</strong> boca, e,depois sim, caçava uma noiva, casava, pois, a que outro fim se desti<strong>na</strong>a vida? (Ruffato, 2005a, p. 24)A passagem é exemplar daquilo que unirá Andrezinho, os olhos daspessoas que pintavam as janelas do ônibus e os outros perso<strong>na</strong>gens doromance: o desejo do trânsito e a sedução que a cidade grande, promessade um futuro melhor, exerce sobre aqueles que vivem o cotidiano pobree ordinário dos pequenos municípios do interior de Mi<strong>na</strong>s Gerais. Aquiloque está por vir e que não se concretiza marca a definição do perso<strong>na</strong>gem,que sempre adia seus planos quando se depara com a necessidadede vender a bicicleta ou com pequenos compromissos — uma partida defutebol, um batizado ou a visita a um familiar. A <strong>na</strong>rrativa termi<strong>na</strong> com asuspensão de uma ação que também não se concretiza e gera expectativaem Andrezinho: após ser apresentado a Salvador por seu irmão, Andrépergunta a ele o que o moço teria feito para solicitar a ajuda de ambos e aresposta — “Ele não fez <strong>na</strong>da ainda... Vai fazer...” (id., p. 25) —potencializaa incompletude de quem também não fez <strong>na</strong>da ainda.Enquanto o adolescente de Rodeiros é movido pelo desejo de semudar para Ubá, aqui a maior cidade que cabe no mundo, quase quedo tamanho do quintal do menino, como <strong>na</strong> <strong>na</strong>rrativa de GracilianoRamos, maiores são os desejos de outros perso<strong>na</strong>gens: Cataguases, Riode Janeiro, São Paulo. A felicidade, nesse caso, passa sempre pelo anseiode um lugar outro, que se mostra no sonho como supostamentemenos opressivo do que a <strong>realidade</strong> presente. Na perspectiva de quemfica, o tempo presente é sempre estag<strong>na</strong>do, marcado pelo trabalho repetitivo.“Amigos”, a <strong>na</strong>rrativa que abre O mundo inimigo, segundo volumedo romance, contrasta a visão idílica da cidade-maior que o meninoAndrezinho almejava com a vida simples do perso<strong>na</strong>gem Luzimar, que,no fim de um dia de trabalho <strong>na</strong> Manufatora, encontra o amigo Gildodepois de dez anos, agora recém-chegado de São Paulo para passar oNatal com a mãe <strong>na</strong> cidade de Cataguases. O que chama a atenção deLuzimar e o motiva a procurar pelo amigo é um Fusca 1300 verde, estacio<strong>na</strong>doem frente à casa de Gildo e Gilmar: com placas de São Paulo,sonho de consumo dos jovens de Cataguases, o automóvel é símbolo daprosperidade de Gildo.A figura de Luzimar é ponto de sustentação de dois contrastes: oprimeiro, aquele mencio<strong>na</strong>do entre o sonho de Andrezinho e a <strong>realidade</strong>de Luzimar; o segundo, a condição de Luzimar, que se colocacomo inferior ante a alegria do amigo, sempre desdenhando daestudos de literatura <strong>brasileira</strong> <strong>contemporânea</strong>, n.39, jan./jun. 2012, p. 95-106 101


Julia<strong>na</strong> Santinipeque<strong>na</strong> cidade e de seus habitantes. É da fala de Gildo que se projetamas frustrações do amigo que permanece em Cataguases: posturacorporal diferente — enquanto Gildo se estende no sofá e orde<strong>na</strong> àmãe que traga garrafas de cerveja, Luzimar limpa a mão suja de graxadentro do bolso —, o rapaz insiste em contrapor o desenvolvimento deSão Paulo à pasmaceira de Cataguases e, nessa contraposição, a cidadee seus habitantes complementam-se, confundem-se, e o que é uma”merda de cidade” determi<strong>na</strong> uma “merda de vida”:— Eu tenho pe<strong>na</strong> de você, cara. Pe<strong>na</strong> mesmo, juro... Porque vocêestá fodido... Já estou até vendo: daqui a pouco vêm os filhos, umafieira deles, e você aí, dando duro <strong>na</strong> fábrica... O salário não chega,eles param de estudar, vão pegar no batente pra ajudar... E você ficandovelho... Um dia, quando menos perceber, acabou... é o fim dalinha... E que merda de vida você levou cara!, que merda de vida!(id., ibid.)Na <strong>na</strong>rrativa “Da<strong>na</strong>ção”, porém, a concretização da felicidade descritapor Gildo é frustrada <strong>na</strong> vivência de Zito Pereira. Em extratos temporaisque se alter<strong>na</strong>m, aquele em que Zito encontra-se preso <strong>na</strong> cadeiade Cataguases e a <strong>na</strong>rração de seu passado e dos acontecimentos que olevaram à prisão, Mineiro se mostra insatisfeito com a vida que levavaem Diadema, depois de ter saído de Cataguases à procura de sucesso edinheiro em São Paulo. A i<strong>na</strong>dequação do perso<strong>na</strong>gem revela-se <strong>na</strong> perdada identidade e <strong>na</strong> consciência de que o sucesso do projeto de trabalhar <strong>na</strong>cidade grande restringe-se à conquista de pequenos bens e <strong>na</strong> manutençãode uma vida margi<strong>na</strong>l, já que, em São Paulo, o destino dos imigrantesnão passa do desempenho de trabalhos braçais e da vida sem sentido nossubúrbios da metrópole: “Mineiro. Nem nome tinha. Mineiro. Na firmaem Diadema, <strong>na</strong> pensão do Ipiranga. E nem isso, quando percorria, anônimo,a cidade. Gracinha sumiu sem rastros. Seus fins de sema<strong>na</strong> passarama ser lembranças” (id., p. 139).De volta a Cataguases, Zito alugou um quarto no Beco do Zé do Pinto,onde reencontra Hilda, seu antigo amor. O casamento, o <strong>na</strong>scimento dosfilhos e a demissão da fábrica em que trabalhou durante quinze anos parecema realização do destino profetizado por Gildo ao amigo Luzimar. Otrânsito Cataguases-São Paulo-Cataguases revela, <strong>na</strong> verdade, a falênciade qualquer possibilidade de mudança <strong>na</strong> vida dos perso<strong>na</strong>gens que migramem busca de trabalho <strong>na</strong>s fábricas de São Paulo: <strong>na</strong> derrocada de Zitoestá, também, a frustração que assombra o sonho do menino Andrezinhoem seus projetos por serem concretizados.102 estudos de literatura <strong>brasileira</strong> <strong>contemporânea</strong>, n.39, jan./jun. 2012, p. 95-106


<strong>Romance</strong> e <strong>realidade</strong> <strong>na</strong> <strong>ficção</strong> <strong>brasileira</strong> <strong>contemporânea</strong>Embora o romance se componha por <strong>na</strong>rrativas isoladas, dois elementosgarantem a unidade do conjunto: de um lado, a teia de relações que seestabelecem entre os perso<strong>na</strong>gens que aparecem em diferentes <strong>na</strong>rrativas— Gilmar, irmão de Gildo, é protagonista de “A demolição”; Hélia, irmãde Luzimar, é perso<strong>na</strong>gem de “A solução” e reaparece em “A mancha”,protagonizada por Zulmira, mãe dos dois irmãos; Zunga, também perso<strong>na</strong>gemem “A mancha”, é visto em “A home<strong>na</strong>gem”, segunda históriade Vista parcial da noite, terceiro volume do romance; de outro, o Beco doZé do Pinto, espécie de cortiço em Cataguases, por onde grande partedos perso<strong>na</strong>gens já passou e onde tantos outros permanecem, sem muitaestrutura sanitária, pagando aluguel por quartos ordinários quase semmobília, em que se amontoam famílias inteiras.Diferente do que ocorre com o Naturalismo no Brasil, em que “existeo quadro: dele derivam as figuras” (Bosi, 1997, p. 190), o Beco do Zédo Pinto não funcio<strong>na</strong> como elemento de agluti<strong>na</strong>ção de uma totalidade,determi<strong>na</strong>nte dos modos de vida que o compõem. Ainda contrariandoo modo de representação <strong>na</strong>turalista, o espaço do beco não se constrói apartir da descrição de uma vivência coletiva, pelo contrário, no romancede Luiz Ruffato, o Beco é o ponto de refúgio de sujeitos que não são capazesde se enquadrar em uma <strong>realidade</strong> social menos opressora. Mesmoque como uma espécie de âncora, o espaço aqui se desenha a partir davivência individual de cada perso<strong>na</strong>gem, <strong>na</strong>rrada em cada uma das históriasque compõem o Inferno provisório.Nesse sentido, a proposta de interpretação da prosa de João GilbertoNoll apresentada por Florência Garramuño (2008) pode ser projetada àanálise do romance de Ruffato <strong>na</strong> medida em que este não deixa de concretizara possibilidade de definir uma literatura que trabalha com “restosdo real”. A hipótese levantada pela crítica argenti<strong>na</strong> é de que, <strong>na</strong> literatura<strong>brasileira</strong> <strong>contemporânea</strong>, verifica-se um processo em que a <strong>na</strong>rração,sem permitir um conhecimento completo do real, situa a sua ação em espaçosmarcados pela opressão, pela fragmentação e pelo estranhamento.Em Cataguases, o Beco do Zé do Pinto é não ape<strong>na</strong>s o ponto em que seencontram os perso<strong>na</strong>gens que saíram de Rodeiros, que retor<strong>na</strong>ram deSão Paulo ou que nunca conseguiram deixar o interior de Mi<strong>na</strong>s, mas também,e, sobretudo, o espaço de onde ema<strong>na</strong>m experiências fragmentárias,unidas ape<strong>na</strong>s pela frustração que carregam em comum e pelo enfeixamentodas <strong>na</strong>rrativas no conjunto de um “romance”: “Trata-se de um tipode escritura que, apesar de tor<strong>na</strong>r evidente os restos do real que formamo material e suas explorações, desprende–se violentamente da pretensãoestudos de literatura <strong>brasileira</strong> <strong>contemporânea</strong>, n.39, jan./jun. 2012, p. 95-106 103


Julia<strong>na</strong> Santinide pintar uma ‘<strong>realidade</strong>’ completa, regida por um princípio de totalidadeestruturante” 5 (Garramuño, 2008, p. 201, tradução nossa).Cada uma das trinta e duas histórias que compõem o romance seria, portanto,a representação dos “efeitos que determi<strong>na</strong>das circunstâncias e acontecimentos(...) produzem sore as subjetividades presentes no relato” 6 (id., p.201-2, tradução nossa). E é justamente <strong>na</strong> composição e <strong>na</strong> organização dorelato que se coloca uma nova dimensão dessa perspectiva fragmentária daescrita. Nota-se que, ao fi<strong>na</strong>l de Mamma, son tanto felice (Ruffato, 2005a), umanota do autor chama atenção para o processo de composição do volume, queenvolve criações inéditas e <strong>na</strong>rrativas já publicadas:(é) possível que alguma passagem de Mamma, son tanto felice, primeirovolume de Inferno provisório, seja reconhecida.Em verdade, reembaralhadas, aí estão uma das Histórias de remorsose rancores (totalmente reescrita), três de (os sobreviventes) (revistas) eduas inéditas. (id., p. 173)O mesmo “aviso” aparece no segundo e no quarto volumes do romance,com indicações das <strong>na</strong>rrativas inéditas e daquelas que foram retomadas,“reembaralhadas” ou revistas. A interferência da voz autoral, aqui,impõe a percepção de que a própria forma <strong>na</strong>rrativa se coloca como fragmentosde palavra que se organizam no conjunto do romance e garantema manutenção da ideia de uma escrita em progresso. O fato que secoloca ante essa constatação estende-se para os domínios da escritura e,assim como ocorre com Eles eram muitos cavalos (Ruffato, 2001), impõe queInferno provisório seja visto como um romance que se realiza no limiar daforma romanesca com a forma do conto, mais do que isso, <strong>na</strong> incorporaçãodo conto como parte componente da estrutura romanesca — já que anota fi<strong>na</strong>l assume a publicação inicial de algumas <strong>na</strong>rrativas como conto.Essa estrutura, em que cada “capítulo” assumiria o caráter de uma históriaindependente, onde se mesclam a existência de clímax, a frustraçãode uma expectativa ou a suspensão do desenlace, faz com que o romancese componha, até agora, de trinta e duas <strong>na</strong>rrativas contra o relógio, modocomo Cortázar (1993) define a <strong>na</strong>tureza do conto. São sucessivos contatosdiretos com recortes do real — mediados pela subjetividade da experiência— que fazem do romance de Luiz Ruffato uma realização estéticaque opera a desestabilização dos modos tradicio<strong>na</strong>is de representação ao5No origi<strong>na</strong>l: “Se trata de un tipo de escritura que, a pesar de hacer evidente los restos de lo real queforman el material de sus exploraciones, se desprende violentamente de la pretensión de pintar uma‘realidad’ completa regida por um principio de totalidad estructurante”.6No origi<strong>na</strong>l: “efectos que determi<strong>na</strong>das circunstancias y acontecimientos (...) producen sobre lassubjetividades presentes en el relato”.104 estudos de literatura <strong>brasileira</strong> <strong>contemporânea</strong>, n.39, jan./jun. 2012, p. 95-106


<strong>Romance</strong> e <strong>realidade</strong> <strong>na</strong> <strong>ficção</strong> <strong>brasileira</strong> <strong>contemporânea</strong>mesmo tempo em que se reveste de um projeto ético comprometido coma problemática de um contexto marcado, <strong>na</strong> <strong>na</strong>rrativa, por claros índicesreferenciais.Em fala que trata da retomada do realismo <strong>na</strong> prosa <strong>contemporânea</strong>,Luiz Ruffato contrapõe ao romance burguês formas <strong>contemporânea</strong>s afi<strong>na</strong>dasa uma nova <strong>realidade</strong>: “Eu acredito que <strong>na</strong>queles momentos emque o romance burguês <strong>na</strong>sceu, ele precisava ter essa estrutura formal.E hoje você não consegue mais entender o mundo, o universo ou a <strong>realidade</strong>em que a gente vive, tendo a mesma estrutura, porque o mundomudou” (Ruffato, 2002, p. 136). A observação de Ruffato impõe que seretorne ao questio<strong>na</strong>mento de Cláudio Magris que abriu esta reflexão: aoque parece, o romance contemporâneo pode não demonstrar indiferençaante o mundo e sua transformação, ao contrário, sua estrutura garantiriauma relação de permeabilidade com o real a partir de uma perspectivacrítica de sua configuração, seja <strong>na</strong> escrita de seus restos, seja nos restosda própria escrita.Referências bibliográficasBOSI, Alfredo (1997). História concisa da literatura <strong>brasileira</strong>. 35. ed. São Paulo:Cultrix.CALLIGARIS, Contardo (2009). “Imitar e mostrar as pombas”. São Paulo.Folha de São Paulo. Ilustrada. 13 ago. p. 2.CORTÁZAR, Julio (1993). “Alguns aspectos do conto. Do conto breve e seusarredores”. In: ______. Valise do cronópio. 3. ed. São Paulo: Perspectiva. p.147-237.GARRAMUÑO, Florencia (2008). “La opacidad de lo real”. Aletria, BeloHorizonte. v. 18, p. 199-214, jul./dez.MAGRIS, Claudio (2009). “O romance é concebível sem o mundo moderno?”In: MORETTI, Franco (Org.). A cultura do romance. São Paulo: Cosac Naify. p.1013-28.PELLEGRINI, Tânia (2007). ”Realismo: postura e método”. Letras de Hoje.Porto Alegre. v. 42, n. 4, p. 135-55, dez.ROCHA, Rejane Cristi<strong>na</strong> (2009). “Arquitetura dos contrastes: uma leitura deEles eram muitos cavalos”. In: CAMARGO, Flávio Pereira e CARDOSO, JoãoBatista (Orgs.). Percursos da <strong>na</strong>rrativa <strong>brasileira</strong> <strong>contemporânea</strong>: coletânea de ensaios.João Pessoa: Editora UFPB/Realize. p. 170-88._____ (2007). Da utopia ao ceticismo: a sátira <strong>na</strong> literatura <strong>brasileira</strong> <strong>contemporânea</strong>.Tese. (Doutorado em Estudos Literários). Araraquara: Faculdade deCiências e Letras, Universidade Estadual Paulista.RUFFATO, Luiz (2001). Eles eram muitos cavalos. São Paulo: Boitempo._____ (2005a). Mamma, son tanto felice. Rio de Janeiro: Record.estudos de literatura <strong>brasileira</strong> <strong>contemporânea</strong>, n.39, jan./jun. 2012, p. 95-106 105


Julia<strong>na</strong> Santini_____ (2005b). O mundo inimigo. Rio de Janeiro: Record._____ (2008). O livro das impossibilidades. Rio de Janeiro: Record._____ (2002). “Uma escrita para sobreviventes”. Entrevista concedida aA<strong>na</strong>lice Martins, Giovan<strong>na</strong> Dealtry e Tatia<strong>na</strong> Levy. In: Palavra. Rio de Janeiro.n. 9, p. 135-44._____ (2006). Vista parcial da noite. Rio de Janeiro: Record.SCHØLLHAMMER, Karl Erik (2009). Ficção <strong>brasileira</strong> <strong>contemporânea</strong>. Rio deJaneiro: Civilização Brasileira._____ (2004). “Os novos realismos <strong>na</strong> arte e <strong>na</strong> cultura <strong>contemporânea</strong>”. In:PEREIRA, Miguel; GOMES, Re<strong>na</strong>to Cordeiro; FIGUEIREDO, Vera Follain de.(Orgs.). Comunicação, representação e práticas sociais. Rio de Janeiro/São Paulo:Ed. PUC-Rio/Ideias & Letras. p. 219-29.WATT, Ian (2007). A ascensão do romance: estudos sobre Defoe, Richardson eFielding. São Paulo: Companhia das Letras.Recebido em agosto de 2011.Aprovado em outubro de 2011.resumo / abstract<strong>Romance</strong> e <strong>realidade</strong> <strong>na</strong> <strong>ficção</strong> <strong>brasileira</strong> <strong>contemporânea</strong>Julia<strong>na</strong> SantiniEste trabalho é uma reflexão sobre a representação do real no romance Infernoprovisório, de Luiz Ruffato, considerando as proposições de Claudio Magris acercada forma romanesca moder<strong>na</strong> e sua possível transformação <strong>na</strong>s últimas décadas.O objetivo é questio<strong>na</strong>r de que modo o projeto estético do romance incorpora umavisão em profundidade do real, origi<strong>na</strong>ndo um princípio ético de análise e críticada sociedade <strong>contemporânea</strong>.Palavras-chave: realismo; romance; prosa <strong>contemporânea</strong> <strong>brasileira</strong>Novel and reality in Brazilian contemporary fictionJulia<strong>na</strong> SantiniThis work is a reflection on the representation of real in the novel Inferno provisório,by Luiz Ruffato, considering proposals by Claudio Magris on modern form ofnovel and its possible transformations in last decades. The aim is questioning theway by which aesthetic project of this novel embodies a deep point of view of real,creating an ethic and critical principle of a<strong>na</strong>lysis on contemporary society.Key words: realism; novel; brazilian contemporary prose106 estudos de literatura <strong>brasileira</strong> <strong>contemporânea</strong>, n.39, jan./jun. 2012, p. 95-106

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!