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Edição integral - Adusp

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Conjuntura6Crise do subprime, uma bomba de fragmentaçãoDércio Garcia MunhozDitadura12O redespertar da luta pelo direito à memória, à justiça e à verdade16DOPS agora é Memorial da ResistênciaTatiane Klein19Em céu de brigadeiros, FAB prende e expulsacontroladores de vôo, à moda da DitaduraFausto Salvadori Filho27ENTREVISTA: PAULO VANNUCHI“A resposta de que não há arquivos da repressão não pode ser aceita”37O insuportável peso da torturaNatália Guerrero43Por uma “contra-Operação Condor”Natália Guerrero46Argentina e Chile: longe da justiça mas à frente do BrasilDario de Negreiros e José Tadeu Arantes52Em defesa da Democracia!Ivan Seixas56Encontro de ex-moradores reaviva memóriado Crusp e da invasão militar de 1968Daniela Alarcon62Professores perseguidos agora são eméritos da Faculdade de MedicinaDaniela Alarcon67O poder da palavra impressa:os livros de denúncia da tortura após o golpe de 1964Flamarion Maués73Anistia e reparações avançam, mas restam 24 mil casos a apreciarTatiane KleinFundações79Na USP Ribeirão, Faepa quer ampliar HC para esconder a “segunda porta”Antonio Biondi85A dança dos milhões da Codevasf e Fundespa no rio São FranciscoAntonio Biondi


O morto faltou ao enterroVinte e quatro anos após o fim “oficial” da Ditadura militar, e quarenta e cinco anos após o golpe armado de 31de março de 1964, que lhe deu origem, a sociedade brasileira ainda convive com um paradoxo digno dos romancesde Gabriel Garcia Márquez. É que a Ditadura, embora dada por morta, recusa-se terminantemente a ser enterrada.A Ditadura sobrevive na mentalidade da cúpula das Forças Armadas, que não hesita em colocar-se acimada sociedade, ignorando decisões judiciais, resistindo ao poder civil e insistindo em manter sob tutela partes doEstado brasileiro (como as estruturas encarregadas da aviação civil).Sobrevive na instituição da tortura, até hoje praticada em quartéis, até mesmo contra militares; e sobrevivena impunidade sarcástica dos agentes da repressão política que, nos anos 1960 e 1970, seviciaram, assassinarame depois ocultaram os corpos dos opositores vitimados.Sobrevive, ainda, na “licença para matar” concedida à Polícia Militar, a tropa antimotim criada na década de1970: o episódio recente da favela de Paraisópolis ilustra bem a concepção de apartheid que orienta suas ações. Amatança de maio de 2006 em São Paulo, a pretexto de retaliação ao PCC, continua impune (Revista <strong>Adusp</strong> 38).Convidamos o leitor a submeter à prova tudo que afirmamos, examinando com atenção as matérias dobloco que se inicia na página 12. A reportagem de Fausto Salvadori sobre a implacável perseguição da Aeronáuticaaos controladores militares de vôo que realizaram uma greve de zelo em 2007 indica a enorme distânciaque separa os quartéis da democracia. Neste conflito indireto entre trabalho e capital (este representado pelasempresas de aviação, que, em última instância, beneficiam-se da árdua atuação dos controladores), a FAB e ogoverno não vacilaram em tomar o partido deste último.A entrevista concedida pelo ministro Paulo Vannuchi, da Secretaria Especial de Direitos Humanos, que emdezembro de 2008 conversou por duas horas com a equipe da Revista <strong>Adusp</strong>, sinaliza as enormes resistênciasque existem, dentro do governo Lula, à abertura dos arquivos da Ditadura e à punição dos oficiais que torturarame mataram em nome do Estado. Resistências que partem dos comandos das três forças e encontram noMinistério da Defesa e na Advocacia-Geral da União seus canais de expressão civil.Não é segredo para ninguém que as Forças Armadas, nas democracias de tipo liberal, estão a serviço da eliteeconômica, ou, para usar expressão que alguns consideram ultrapassada, a serviço da classe dominante. Mas,ao se colocarem à parte do ordenamento institucional, as corporações militares fragilizam as poucas conquistasdemocráticas da sociedade brasileira e comprometem sua ampliação. Note-se, por exemplo, que o ataque docomandante militar da Amazônia à demarcação contínua da reserva indígena de Raposa-Serra do Sol apontapreocupante sintonia com setores rapaces do agronegócio e do conservadorismo nacional.Por outro lado, nota-se uma nova onda de revisionismo histórico pró-Ditadura, de que a Folha de S. Paulose fez porta-voz ao recorrer à expressão “ditabranda” para qualificar o regime militar brasileiro. A moda davez baseia-se na escala supostamente mais civilizada e contida dos crimes cometidos, comparativamente aoscasos argentino e chileno, e envereda pela louvação do suposto entusiasmo da Ditadura pela expansão doensino superior público e da pós-graduação, uma vez que “os governos militares incentivaram a formação dequadros científicos em todas as áreas do conhecimento concedendo bolsas de estudos no Brasil e no exterior”.Claro. Fizeram isso e muito mais, ao banir o pensamento crítico, perseguir os pesquisadores que teimavam emresistir, e também prender e reprimir as lideranças estudantis, chegando a executar várias delas.Subprime explosivaDércio Garcia Munhoz expõe com o brilho habitual sua visão da crise que abala os alicerces do capitalismo.E propõe que o Brasil, para enfrentá-la, remova a “descabida autonomia” do BC e adote políticas que recomponham“o poder de compra das rendas do trabalho”. É o artigo que abre esta edição. Boa leitura!O Editor


Março 2009Revista <strong>Adusp</strong>Crise do subprime,uma bomba defragmentaçãoDércio Garcia MunhozEconomista, Professor Titular do Departamento de Economia da UNB até 1996


Revista <strong>Adusp</strong>Março 2009Mecanismos de interligação explicam os grandes prejuízos debancos e outras instituições americanas e européias que detinhampapéis emitidos pelos bancos hipotecários dos EUA. Generalizousea desconfiança nas instituições financeiras, que fecharam-separa novos empréstimos ao setor real da economia, e a crise deliquidez alcançou as empresas do setor produtivo. Estas passarama enfrentar queda da demanda interna e das exportações paraum mundo que já refletia o desarranjo americano. A crise dosubprime, ao multiplicar as perdas em uma sucessão de operações,tem o efeito destrutivo de uma bomba de fragmentaçãoNão é preciso possuirpoder premonitóriopara prever que, nofuturo, a crise do subprimeserá lembradapor um lado comotempos difíceis de cegueira políticae administrativa diante do óbvio,e de outro pela incapacidade analíticarevelada pelos responsáveispela gestão das economias centrais.O que impediu, no primeiro caso,uma ação preventiva do governodos Estados Unidos, evitando oagravamento da crise que ali se iniciaria;e, no segundo, fez com quea intervenção do governo, além detardia, apalpasse no escuro sem reconhecera silhueta do animal indomávelem que se transformaram osmercados financeiros mundiais.A crise surpreendeu a todos,num momento raro em que se presenciavarápido e continuado crescimentoda economia e do comérciointernacional, que marcavam aprimeira década do milênio comoalgo mágico, impensável quando oúltimo século — o século dos milagrestecnológicos — caminhavapara o seu final.A economia chinesa crescendovigorosamente já por mais de dezanos, abrindo-se amplamente para ocomércio internacional. A economiaamericana surgindo como o grandemercado para produtos chineses, ese beneficiando (ou talvez apenasse iludindo) pelo aumento de renda(elevação do poder de comprada população) proporcionada pelosbaixos preços dos produtos chinesesque invadiam as prateleiras daslojas e supermercados. O resto domundo, surfando sobre gigantescasondas de crescimento econômico,vivia a euforia do aumento das exportaçõese importações — todoscompravam mais porque vendiammais; e com isso um grande númerode economias emergentes comemorandoos preços astronômicos alcançadospor commodities agrícolase minerais, insuflados pelo aumentogeneralizado da demanda, com apresença do gigante chinês comoator principal.É forçoso lembrar que, comopano de fundo, Estados Unidos eEuropa prosseguiam na sustentaçãode um modelo de absorção demão-de-obra barata, via migrações,que teve grande impulsão a partirdos anos 1960 e foi colocado emxeque pela primeira vez em meadosdos anos 1970, com a crise do pe-


Março 2009tróleo. Um processo enganoso porqueconsolida uma sociedade dual— de nativos prósperos e migrantespobres, refletindo em enfraquecimentodo mercado, de programasde previdência social e dos planosde assistência médica.A crise surge, portanto, quandopresente a euforia da expansão. Edá um corte profundo, definitivo,entre duas eras, causando perplexidadeem todos os continentes.POR QUE OS SINAISDA CRISE FORAMDESCONSIDERADOSA incapacidade deoperacionalizar instrumentosde intervenção nãosurpreende tanto, quandose considera que os órgãosdo governo americanochamados a agir, FED eTesouro, são especializadosem finanças, enquanto desdeo início seriam necessáriosgestores dotados de amplavisão macroeconômicaO governo americano, observadorprivilegiado com domínio dasinformações do mercado, revelouextrema inaptidão primeiro paraagir preventivamente para evitara crise que se alastraria a partirRevista <strong>Adusp</strong>do seu sistema bancário, afetandotoda a economia mundial. E, emseguida, já no meio do furacão,não conseguiu programar medidascorretivas e compensatórias adequadaspara conter o seu aprofundamento.Essa incapacidade de operacionalizarinstrumentos de regulação/intervenção é surpreendente quandose trata da maior economia domundo. Mas não tão surpreendentequando se considera que na estruturado governo americano osórgãos chamados a agir — o FederalReserve e o Departamentodo Tesouro — são especializadosem questões ligadas ao sistema financeiroe às finanças públicas, enquantodesde o primeiro momentoa situação requeria gestores dotadosde uma visão macroeconômica maisampla, e domínio de instrumentosde política econômica eficientes naintervenção de um mercado que giravasem norte.O que ocorreu aparentementefoi fruto da presença dominadora,em governos de diferentes países,em diferentes instituições financeirasinternacionais, e ainda noschamados mercados de capitais, deuma nova classe de tecnocratas embevecidoscom a própria sapiênciaque julgavam superior. Surgindocomo produto natural de uma academiaonde o pensamento único,que pretensiosamente se procuravaimpor, resultava muito mais de umaaliança silenciosa com o capitalismopredatório, do que de avançosda ciência econômica.Era o triunfo do neoliberalismofinanceiro, sufocando a discussãosobre a economia real, sobre políticaindustrial, sobre a conveniênciada presença estatal para garantira infra-estrutura econômicaa custos suportáveis, sobre políticasocial e previdenciária. Tudo issopassou a ser tratado como se foraapenas um arcaísmo nostálgico dealguns, desprezados como intervencionistasou estruturalistas saudosos.Resulta que essa nova classe,cega pelo sectarismo e feliz com osproveitos da aliança natural com opior do capitalismo financeiro, nãoconseguiu perceber a tormenta quese aproximava.A crise do subprime de fato nãosurgiu de forma repentina. Quandodesde o início do milênio multiplicavam-senos Estados Unidosos financiamentos hipotecários afamílias de duvidosa capacidadede pagamento, sem necessidadede comprovação de renda e aindacom cláusula matreira de jurosmais baixos nos primeiros anos decontrato, impossível não se percebero que viria pela frente. Afinal,os empréstimos subprime dos bancosamericanos, que em meadosdos anos 1990 alcançavam em tornode US$ 40 bilhões anuais, noinicio do novo século já chegavama US$ 180 bilhões anuais, saltandorapidamente para US$ 550 bilhõesem 2004 e US$ 700 bilhõesestimados em 2006. Multiplicadospor vinte em apenas dez anos,os novos empréstimos de retornoincerto, que na metade dos anos1990 representavam aproximadamente3% do total de financiamentoshipotecários nos EstadosUnidos, em 2006, vésperas da recentearrancada, superavam 25%dos novos contratos.


Revista <strong>Adusp</strong>Passada a primeira fase contratualde enganosas condições depagamento, e consequentementereajustadas as prestações das casascom o aumento dos juros regradospelas agora temidas ARM’s (AjustableRate Mortgages), a inadimplênciae a retomada de habitaçõespassou a registrar ritmo aceleradodesde o final de 2006.INCAPAZES DE PREVERA CRISE E INCAPAZESDE CONTÊ-LAÉ enorme a fila de novosdevedores incapazes depagar as prestações. Em2008 foram iniciados maisde 2 milhões de execuçõeshipotecárias, e não seriaexagero prever 1 milhão denovas retomadas em 2009— o que deverá engoliroutros US$ 200/250 bilhõesdos bancos hipotecáriosO efeito mortífero da explosãoda inadimplência afetaria logicamenteos bancos financiadores— pois não se tratava de atrasoseventuais dos mutuários, mas simplesmenteda incapacidade de umgrande número de devedores dearcar com os novos valores. E oprocesso de retomada de um númerocrescente de imóveis tinha duasimplicações: os bancos viam em cadacaso duzentas ou mais prestaçõesfuturas de um financiamentotransformar-se num ativo podre,e recebiam de volta um imóveldepreciado dada a quantidade decasas abandonadas por devedoresem dificuldades. Como os bancosamericanos haviam emitido títulospróprios para buscar recursos juntoa terceiros para assim lastrear seusempréstimos, as grandes perdas dosbancos hipotecários nos EstadosUnidos desvalorizavam seus títulosque se achavam em mãos dos aplicadores.São esses mecanismos de interligaçãoque explicam os grandesprejuízos de bancos e outras instituiçõesamericanas e européiasque detinham papéis emitidos pelosbancos hipotecários dos EstadosUnidos; generalizando-se então adesconfiança nas instituições financeiras,que, na defensiva, fecharamsepara novos empréstimos ao setorreal da economia, numa crise deliquidez que colocava em dificuldadesas empresas do setor produtivo.E estas, no pior dos cenários, aindapassaram a enfrentar queda da demandainterna e dificuldades paramanter as exportações para ummundo que já refletia o desarranjoamericano. Donde se percebe que acrise do subprime, ao multiplicar asperdas em uma sucessão de operações,tem o efeito destrutivo de umaverdadeira bomba de fragmentação.Como agir nessas circunstâncias?O Federal Reserve americanoinicialmente decidiu comprarcréditos (podres) dos bancos hipotecários– representativos dos ca-Março 2009lotes dados pelos compradores decasas; em seguida passou a falarna compra de ações dos bancos,e mais recentemente em adquirirtítulos emitidos pelos bancos hipotecáriosque se achavam em mãosde outras instituições financeiras– aplicadores locais. No primeirocaso o banco hipotecário necessariamenteficaria menor — menosativos (créditos) para ajustar-se àperda de passivo (capital corroídopelos prejuízos registrados); no segundocaso, uma ação para recomporo passivo dos bancos — maisrecursos de terceiros (reforço dopassivo) compensando a parcelado capital que havia sido engolidapelos prejuízos; e, no terceiro caso,o governo evitando que as instituiçõesque haviam adquirido títulosemitidos pelos bancos hipotecáriosenfrentassem novas perdas com adesvalorização dos papéis.Ora, essa é uma típica operaçãode enxugar gelo, pois tudo surgiupelo fato de que, em cada calote,antecipadamente se vencemduzentas ou mais prestações aindadevidas pelo morador inadimplente.E é enorme a fila de novosdevedores incapazes de pagar asprestações. Como em 2008 foraminiciados mais de dois milhões deexecuções hipotecárias, não seriaexagero prever que no mínimo ummilhão de novas retomadas venhaa ocorrer em 2009 — do que resultaque as novas perdas deverão engoliroutros US$ 200 bilhões ou US$250 bilhões do capital dos bancoshipotecários. E o governo, mantidaa atual estratégia, vai ter derepetir seguidamente as operaçõesde socorro, recompondo o passivo


Revista <strong>Adusp</strong>culdades em entender os mecanismosque regem a economia real,deixando de introduzir — ao menosaté o final de 2008 — instrumentosde política econômica que possamevitar, ou ao menos minimizar, osefeitos da crise sobre a demanda,a produção e o emprego. Não sinalizandosua disposição em alterarprofundamente a gestão da economia,como meio de recuperar acapacidade de implementar umapolítica de rendas e de emprego, decontenção dos encargos financeirosdo Tesouro e de controle do ingressode capitais especulativos.Uma política de rendas e de empregoexigiria a proteção aos saláriose a recomposição de aposentadoriase pensões, a redução das taxas dejuros e da carga fiscal sobre rendasdo trabalho, um programa de investimentosna infra-estrutura urbana,o retorno do sistema de administraçãoda taxa de câmbio. A contençãodas despesas de juros do Tesouro requereriadesvincular a remuneraçãodos títulos públicos da taxa Selic, reformulandototalmente as relaçõesTesouro/Banco Central (que custaramao Tesouro em torno de R$ 150bilhões apenas em 2007 e 2008, naMarço 2009cobertura de prejuízos doBC e subsídios ao bancoligados a emissões/meiocirculante). O retorno dosmecanismos de controledos capitais de curto prazo,removidos em 1991 e1992 sob o rufar dos tamboresdo neoliberalismo,é condição essencial paraque o país deixe de ser ogrande centro de especulaçãofinanceira (com umingresso líqüido de apenasUS$ 45 bilhões de investimentosde carteira no acumuladoentre 1995 e 2007,os estrangeiros detinhamno país, em dezembro de2007, mais de US$ 500 bilhõesde ativos financeiros— ações e títulos de rendafixa — deliciando-se com afacilidade de manipular livrementecâmbio e bolsas,e ainda recebendo isençõesfiscais sobre ganhos comtítulos públicos.Como síntese se pretendeapenas enfatizar que todosos caminhos passam pela recuperaçãodo poder de compra dasrendas do trabalho, e reorganizaçãodas finanças do governo federal.Rendas aviltadas desde oinício dos anos 1990, e reduzidasainda mais a partir do Plano Real,o que se transformou em fator primordialdo travamento da economiabrasileira. E finanças desorganizadasespecialmente a partirda descabida autonomia concedidaao Banco Central — entidadeda maior importância, mas meroórgão auxiliar do governo central.11


Março 2009Revista <strong>Adusp</strong>O redespertar da lutapelo direito à memória,à justiça e à verdadeManifestação em Brasília, 17/12/200812Nos últimos dois anos,vem ganhando corpoa movimentação políticade ex-presos eperseguidos políticos,bem como de familiaresdas vítimas da Ditadura militar,que reivindicam a punição de assassinose torturadores, a reparaçãodos crimes cometidos pelo Estadoditatorial e a abertura dos arquivosda repressão. Essa movimentação,que lembra a luta pela Anistiarealizada no final dos anos 1970,é acompanhada por iniciativas desetores do Estado brasileiro que estãoconvencidos da necessidade demedidas que contemplem o direitoà memória, à justiça e à verdade.Ex-presos e perseguidos e familiaresdas vítimas têm saído àsruas, repetidas vezes, para lembrarque os autores de crimes bárbaroscometidos contra os opositores do


Revista <strong>Adusp</strong>Manifestação de 24/8/08 em São Paulo, diante do ex-DOI-CODIregime militar permanecem impunes,e para exigir que a história sejadevidamente (re)escrita. Assim, em24 de agosto de 2008 fizeram manifestaçãopública diante do prédiodo bairro do Paraíso, em São Paulo,onde funcionou a antiga OBAN,depois DOI-CODI, siglas que designavamduas das mais temíveisorganizações repressivas, a OperaçãoBandeirantes e o Destacamentode Operações de Informaçõesdo Centro de Operações de DefesaInterna do II Exército.No dia 23 de setembro, quandoo Tribunal de Justiça do Estadode São Paulo julgou uma ação dafamília Merlino contra o coroneltorturador Carlos Alberto BrilhanteUstra, mais uma vez os manifestantesse fizeram presentes, tantono salão em que transcorreu o julgamentoquanto em praça pública,assinalando seu protesto contra aimpunidade. O TJ arquivou a ação,mas não refreou o ímpeto da luta(vide p. 37).Paula SacchettaEm 1º de dezembro, uma audiênciapública convocada por deputadosestaduais lotou um dos auditóriosda Assembléia Legislativado Estado de São Paulo. Entre ospresentes, militantes históricos daluta pela Anistia, como MargaridaGenevois, Idibal Pivetta e outros.O parecer da Advocacia-Geral daUnião favorável aos torturadoressofreu duras críticas: “A farsa daAGU é uma ofensa a todos que lutaramcontra o regime militar. Nãohouve terrorismo no Brasil, masdefesa do regime democrático”,disse o deputado Rui Falcão (PT).“Continuamos na luta pela recuperaçãodos restos mortais de nossoscompanheiros”, declarou AméliaTeles, lembrando que a ação judicialcontra a União, relativa aosmortos da Guerrilha do Araguaia,remonta a 1982. Ela pediu a demissãodo ministro-chefe da AGU,José Antônio Toffoli.Em 17 de dezembro o movimentovoltou a sair em passeata,Março 2009desta vez pelas avenidas de Brasília,debaixo de chuva. Além defaixas, familiares e ex-presos portavambanners vermelhos que traziamimpressos sem retoques os rostosde militantes de esquerda chacinadospela repressão. Resposta a umcerto discurso que tenta minimizaras atrocidades perpetradas pelosagentes da Ditadura.Em consonância com tais manifestações,o Ministério PúblicoFederal em São Paulo vem ingressandocom ações judiciais contra osoficiais que comandaram o DOI-CODI do II Exército, entre eles onotório coronel Ustra. A mais recentedelas cobra dos responsáveispelo assassinato do operário ManoelFiel Filho, ocorrido em janeirode 1976, que reembolsem a Uniãopela indenização paga por esta àsua viúva.No governo federal, a pasta maisengajada na luta pelo reconhecimentooficial dos crimes praticadospela Ditadura militar é a SecretariaEspecial de Direitos Humanos (SE-DH). O ministro Paulo Vannuchi,ele próprio um ex-preso políticoque sofreu torturas, fez publicar,em 2007, o livro Direito à Memória eà Verdade, que consiste em extensoe detalhado relatório dos trabalhosda Comissão Especial de Mortos eDesaparecidos Políticos do governofederal. Disponível na Internet, napágina eletrônica da SEDH, o livroconsolida a documentação referenteaos mais de 400 casos conhecidosde opositores da Ditadura militarmortos sob tortura ou executados.Apesar desse importante avanço,a SEDH tem encontrado resistênciasenormes na AGU e no13


Março 2009Paula SacchettaRevista <strong>Adusp</strong>Polícia abre inquérito porÂngela Mendes com cartaz de MerlinoMinistério da Defesa, que vem atuandocomo porta-voz das ForçasArmadas. Os defensores do legadoda Ditadura militar obstróemseu enterro definitivo, o que suscitainevitável comparação com paísesvizinhos que passaram por ditaduras,como Argentina e Chile, ondeo ritmo das punições e reparações,mesmo insatisfatório, é bem maisacentuado (p. 46).Na Argentina, a Justiça Militaracaba de ser extinta, o controle daaviação civil foi retirado da Aeronáuticae muitos oficiais envolvidosna matança de opositores estão nacadeia. No Brasil, por terem feitogreve contra as péssimas condiçõesde trabalho, que expõem os vôoscomerciais de linha a riscos, controladoresde vôo militares foramcondenados à prisão e expulsos daAeronáutica (p. 19).Na entrevista que concedeu àRevista <strong>Adusp</strong>, e que principia napágina 26, o ministro Vannuchi emi-14Quem espera o ônibus do outrolado da rua provavelmente nãosabe muito sobre o nº 921 da RuaTutóia, no bairro do Paraíso, emSão Paulo. Mas em 24 de agostode 2008 não houve quem deixassede prestar atenção à manifestaçãopública que evocou a história dolocal, que hoje abriga o 36º DistritoPolicial.Naquela tarde de domingo, cidadãse cidadãos de todas as idadesmarcharam pela rua e depois fizerampinturas no chão, para lembrarque durante a Ditadura militar funcionouali a infame unidade militarque ficou conhecida como DOI-CODI do II Exército.Pois bem: desde o dia seguintea passeata tornou-se objeto doinquérito policial 609/08, que correno próprio 36º DP. Os manifestantesteriam danificado espaçopúblico e infringido o artigo 65da lei 9.605/1998, segundo o qualCastro, Rossi, Mocarzel e Gervitz: debateconstitui crime sujeito a pena deaté um ano de detenção “pichar,grafitar ou por outro meio conspurcaredificação ou monumentourbano”. Paulo Fávero, estudantede Artes Plásticas da USP, foi intimadoa depor.“Os manifestantes pediampara que aquele lugar não continuassesendo o 36º DP, massim um espaço da memória e daresistência”, explicou Fávero àRevista <strong>Adusp</strong>. “Comunista aindaé elemento para ser chamado paradepor, caso seja identificado”,ironiza. “Os advogados tiveramacesso ao inquérito antes do meudepoimento e constava lá que euera suspeito de mandante do atoe que sou representante da LigaBolchevique Internacionalista(LBI), o que é uma mentira. Eunão sou membro da LBI, e não seiqual seria a relevância se eu fosseda LBI. Não sei qual é a relaçãoDaniel Garcia


Revista <strong>Adusp</strong>Março 2009manifestação diante do antigo DOI-CODIPinturas no chão motivaram inquérito no 36º DPentre a minha filiação ideológica,partidária, e a minha participaçãono ato”, questiona.Esse caso emerge estranhamentevinte anos após a promulgaçãoda Constituição de 1988, quegarante o pluralismo político. Noinquérito também são citados IvanPaula SacchettaSeixas; Darlan dos Reis, residenteno Ceará, que não compareceu aoato, mas divulgou-o em seu blogue;e o deputado federal Ivan Valente(PSOL-SP), que durante o ato ofereceutestemunho como ex-presopolítico. O inquérito é instruídocom diversas fotografias da manifestação.“Parece que essa história [doscrimes da Ditadura] aconteceu emum lugar abstrato. A gente fala doDOI-CODI, a gente lê nos livrossobre o DOI-CODI como principalcentro de tortura, mas pareceque ele não tem um lugar”, apontaFávero.O estudante sustenta que foiindiciado em 12 de novembro, adata do seu depoimento: “O escrivãofez questão de dizer que osmeus dados cadastrais estavamentrando no sistema da Políciae que eu estava sendo indiciado.Isso é um fato”. A assessoria deimprensa da Secretaria de SegurançaPública nega: “As investigaçõesestão em andamento” e “nãohá registro de pessoas sendo indiciadas”.Procurado pela Revista<strong>Adusp</strong>, o delegado substituto ValdecirAlves dos Reis optou por nãofalar sobre o caso.te opinião sobre alguns destes paradoxos.E reitera sua disposição dedeixar o governo, caso o presidenteLula não banque os avanços necessáriosno tratamento desta agudaquestão política nacional.Também no plano cultural einstitucional, multiplicam-se as iniciativasde reparação simbólica ereconstituição da memória dos queenfrentaram o regime militar ou foramperseguidos por ele. A direçãoda Faculdade de Medicina da USPresolveu homenagear vários professoresque viveram esta opressão esofreram verdadeira reviravolta nassuas carreiras acadêmicas. Ex-estudantesda USP que viviam no ConjuntoResidencial (Crusp) quandoocorreu a invasão do Exército, em1968, organizaram um emocionantereencontro (p. e 56 e 62).Os cineastas Roberto Gervitz eSérgio Toledo relançaram em dvdo histórico documentário “BraçosCruzados, Máquinas Paradas”, sobrea greve de 1978 dos metalúrgicosde São Paulo e a luta contra osindicalismo pelego de Joaquim dosSantos Andrade, o Joaquinzão. O(re)lançamento deu ocasião a umdebate que reuniu Gervitz, o tambémcineasta Evandro Mocarzel eantigas lideranças da oposição metalúrgica,como Waldemar Rossi eCloves de Castro.15


Março 2009Revista <strong>Adusp</strong>DOPS agora é Memorial da ResistênciaDiante de ex-presos políticos, Governador fica em silêncioTatiane KleinEstudante de Jornalismo (ECA-USP)Anderson BarbosaReformado, prédio que abrigou polícia política tornou-se um espaço educativoDo lado de dentro do prédio daEstação Pinacoteca, quatro celas sãorelíquia do passado repressor do Estadobrasileiro. “Olavo Hansen morreuaqui”, está gravado no interiorda cela 2. “Pegaram meu bebê parame ameaçar”, assina Rose Nogueiraao lado. Apesar de remeteremao período da Ditadura militar, tais16inscrições são réplicas das originais.Foram feitas há menos de um ano,no processo de reconstituição dasdependências do Departamento Estadualde Ordem Política e Social,mais conhecido pelas siglas Deopse DOPS, e de construção do Memorialda Resistência, trazido a públicoem 24 de janeiro de 2009.Nesse dia, o edifício que abrigao Memorial, originalmente construídocomo espaço para os escritóriose armazéns da Companhia Estradade Ferro Sorocabana, recebeu deex-presos políticos a jovens estudantes,passando pelas autoridadesque inauguraram oficialmente oespaço. Pronunciaram-se, na aber-


Revista <strong>Adusp</strong>tura, o Fórum Permanente de Ex-Presos e Perseguidos Políticos, nasfiguras de Rafael Martinelli, seupresidente, e do jornalista Ivan Seixas;o coordenador da Pinacotecado Estado, Marcelo Araújo; o secretárioestadual da Cultura, JoãoSayad; e o presidente da Comissãode Anistia do Ministério da Justiça,Paulo Abrão, representando o ministroTarso Genro.Aguardado por três horas desdea abertura do evento, às 11 horas, ogovernador José Serra não se manifestouno lançamento do Memorial.Apesar de ter sido cumprimentadopor Martinelli, como “companheirode perseguição política desde1964”, o governador apenas visitouo espaço e sequer falou aos jornalistasque cobriam a inauguração.Questionado pela Revista <strong>Adusp</strong> sobrea possibilidade de transformaçãode outros locais, para fins depreservação da memória histórica,Serra novamente silenciou.Sayad, porém, respondeu à reportagem,afirmando que existe interessedo governo na criação deoutros memoriais. “Eu gostaria queo museu fosse mais dramático ainda,mas sempre será uma reconstrução,porque o original se perdeu— foi pintado, raspado e perdido”,reclamou ele na abertura do evento.A referência do Secretário daCultura é a reforma que, em 2002,transformou a aparência originaldo Deops em um ambiente em queas celas “pareciam confortáveis salasde hotel”, nas palavras do secretárioda Cultura.A reprodução das celas tal comoelas eram no período 1971-1982 sófoi possível graças ao trabalho doInterior de cela aberta à visitaçãofotógrafo José Patrício, do jornalO Estado de S. Paulo, na reconstituição.“Ninguém sabia mais comoera. As portas e as colunas foramas únicas coisas que se mantiveramoriginais”, ele explica. Durante todoo mês de outubro de 1998, quandoPatrício trabalhava para o DiárioPopular e enquanto o prédio doDeops ainda conservava sua formaoriginal, o fotógrafo visitou váriasvezes o local, registrando detalhesimportantes para a reconstituição.“Muitos presos não lembravammais [como era]. Diante das fotos amemória deles revivia”, aponta Patrício,lembrando que a existênciade uma escada no final do corredorem que os presos tomavam solfoi confirmada por uma fotografiasua. A maquete exposta no principalsaguão do Memorial tambémfoi baseada nas imagens produzidaspor ele.Há dependências, contudo, quenão foram reabertas. As salas detortura, que ficavam nos andaresMarço 2009Anderson Barbosasuperiores, permanecem fechadas.Patrício explica que houve intençãode abrir essas salas, mas não haviamaterial suficiente para reconstruiros espaços. Ele recorda especialmentea sala do famigerado delegadoSérgio Paranhos Fleury: “A saladele tinha móveis rústicos, móveispretos, uns sofás verde-e-amarelo.Ele era um cara que todo mundotemia muito. E no andar em queele ficava, só mesmo os policiais podiamentrar. Eu cheguei a retratar erelatar tudo isso aí, em imagens: asala dele, a caveira do Deops, muitosmóveis, muitos objetos”.Na última das celas reconstituídas,depoimentos sonoros de expresospolíticos detalham o climade solidariedade que se criou entreeles no interior do Deops. Um deles,o jornalista Alípio Freire, lembrano áudio o quase ritual de salvamentopara os companheiros quevoltavam da sala de tortura. Erapreciso “fazer massagem; não darágua imediatamente”; depois de17


Março 2009um tempo, conta Freire, vinha o leitee a conversa com o companheiro.Entre os prisioneiros, a conversaera como uma celebração.Um episódio marcante foi a noitedo assassinato de Carlos Marighella.Segundo o relato de Freire,o delegado Raul Ferreira desceuas escadas carregando fotografias,uma bíblia, uma estola nas mãos.À frente da cela 2, o delegado, cujoapelido era “Pudim”, começou acantar: “Olê, olá! Marighella se f.foi no jantar!”. Ofendidos, os presosnão aceitaram a notícia da mortedo veterano militante comunista,líder do grupo armado clandestinoAção Libertadora Nacional (ALN).“A gente não acreditou e ele mostrouas fotos do Marighella morto”,deslinda Freire. Rindo, o delegadoseguiu pelos corredores do Deopsexibindo as fotografias e cantando.Na contrapartida dessa tentativa dedesmoralização, os presos cantarama Internacional Comunista.Em entrevista, Freire, que chegouao Deops em 6 de julho de 1969,relembra outros aspectos da cotidiano:“Durante a semana, de segundaa sexta, nós subiamos para ser interrogadose torturados. Vários companheiros.Toda vez que alguém estavalá em cima, aqui em baixo tinha umsilêncio sepulcral, porque a gentenão sabia o que estava acontecendocom esse companheiro, não sabia seele voltaria. Nesse período você nãoexistia legalmente, não existia mandadojudicial. Nesse período muitoscompanheiros desapareceram parasempre”.Freire, que assessorou a reconstituição,destaca a importância daexistência do Memorial: “O antigoAlípio Freire revê o localDeops, hoje Memorial da Resistência,nome absolutamente adequado,é apenas um importantíssimo passo,o projeto é maior do que está aí.Temos que ir em frente. Devemosnos apropriar de todos os espaçosde memória deste país, não só deSão Paulo. Porque foram muitoscentros de tortura e eles vão demolindo.Demoliram o quartel ondefuncionava a Oban e o Presídio Tiradentes”.Sérgio Gomes, jornalista que ficoupreso no Deops em 1975, reclamada inexistência de um memorialnão só para lembrar as agrurasdo regime, mas também das idéiaspolíticas que pautavam a ação dosgrupos e indivíduos perseguidosdurante a Ditadura. Segundo ele,faltam iniciativas da parte dos própriosmilitantes do Direito à Memória,à Verdade e à Justiça paraque os projetos políticos dos prisioneirosda época ganhem fôlego nosdias de hoje tal e qual as históriasde repressão.Revista <strong>Adusp</strong>Anderson BarbosaO projeto do Memorial começoua ser implantado em maio de2008 e foca desde as ações educativase culturais até a disseminaçãode estudos e pesquisas científicassobre o Deops. Ele abriga tambémum Centro de Referência Bibliográficae de Bens Patrimoniais queexpõe objetos retirados de inquéritos,bem como reproduções defichas de presos políticos que constamdos registros do Deops e hojeestão em posse do Arquivo Públicodo Estado de São Paulo. O trabalhode pesquisa fica por conta doProin, um projeto que integra aUniversidade de São Paulo e o ArquivoPúblico do Estado, que existehá 12 anos e hoje já permite aconsulta parcial de fichas do Deopspela internet. O projeto do Memorialda Resistência é de autoria dasprofessoras Maria Cristina OliveiraBruno, do Museu de Arqueologiae Etnologia da USP, e Maria LuizaTucci Carneiro, do Departamentode História da FFLCH-USP.18


Revista <strong>Adusp</strong>Março 2009Em céu de brigadeiros,FAB prende e expulsacontroladores de vôo,à moda da DitaduraFausto Salvadori FilhoJornalistaAntonio Milena/AEControladores de vôo militares em atividade natorre de controle do Aeroporto de Congonhas19


Março 2009Revista <strong>Adusp</strong>O Brasil é um dos raros países do mundo a conservar o controledo espaço aéreo em mãos militares, no caso as da Força AéreaBrasileira. Assim, 85% dos controladores de vôo são sargentose suboficiais, subordinados à hierarquia militar e submetidos ajornadas de trabalho exaustivas e ordens de prisão arbitrárias.Neste cenário, a cúpula da FAB parece ignorar propositalmenteum erro no software de proteção aos vôos, ao mesmo tempo emque acusa os controladores pela tragédia do Boeing da Gol em2006. Após a greve de 2007, 102 controladores foram afastadosda função ou expulsos. Oito deles foram condenados pela JustiçaMilitar a penas de prisão por crimes como “incitamentoà desobediência” e “publicação e crítica indevida”20Dezoito horas seguidasde atividades militaresna selva amazônica,com direito aduas horas e meia desono. O controladorde tráfego aéreo só teve tempo depassar em casa para um banho eum almoço apressados antes de seguirpara o Destacamento de Proteçãoao Vôo de Porto Velho (RO)e iniciar seu turno em uma das profissõesmais estressantes do mundo.Ali, o controlador, um sargento daForça Aérea Brasileira (FAB), nãoresistiu e foi questionar seu superior,um major. Observou que nãoé inteligente privar um homem dosono, submetê-lo a um treinamentoextenuante, e logo depois colocarem suas mãos as vidas de centenasde pessoas, conduzidas por monstrosvoadores de 200 toneladas.O major não gostou do questionamento.Acusado de desacato,o controlador pegou dez dias deprisão administrativa. O episódio,contado por um controlador queprefere se manter no anonimato,aconteceu anos atrás. Em 2007, umcomandante da Aeronáutica emSalvador (BA) ordenou a prisão deoutro controlador por um motivosemelhante. Seu crime? Desobedeceràs ordens e anotar no Livrode Registro de Ocorrências um incidenteque poderia apontar umafalha na segurança aérea 1 .“A hierarquia vale mais do quea segurança”, resume o procuradorFábio Fernandes, do Ministério Públicodo Trabalho (MPT), que em2006 instaurou uma investigaçãodas condições de trabalho dos controladores.“Se o controlador desobedecea uma ordem tecnicamenteerrada de um superior, será punidocom advertência, suspensão, prisãoou expulsão. Se obedece e ocorrealgum acidente, ele também responde”,afirma.A partir de 2007, sargentos e suboficiaisdo controle de vôo passarama ser proibidos de anotar as falhasde sistemas e equipamentos devôo no Livro de Registro de Ocorrênciassem antes passar pelo crivode um oficial, que decide o que deveou não ser registrado. “No mundointeiro, é dever do controladorregistrar as falhas que representemrisco à vida humana, para que medidascorretivas possam ser adotadas.No Brasil, o Comando da Aeronáuticaimpediu os controladoresde fazerem seus relatos, o que é um


Revista <strong>Adusp</strong>absurdo”, denuncia Roberto Sobral,advogado da Federação Brasileirade Controladores de Tráfego Aéreo(Febracta).Tudo mentira, segundo a Aeronáutica:“A hierarquia se refletena relação humana, não na profissional.Quando um mecânico,que é sargento, diz a um pilototenente-coronel que um avião nãotem condições de voar, não estáquebrando uma hierarquia, mascumprindo o dever profissional”,garante o Centro de ComunicaçãoSocial da Aeronáutica.Não é o que dizem controladorese especialistas. “Quando umcontrolador reporta o mau funcionamentode um equipamento,é como se estivesse cobrandoa chefia. Isso não existeno militarismo, em que ochefe é quase um deus”,afirma um controladormilitar com duas décadasde experiência, afastadopor “indisciplina”. Seunome, como o de outros colegas,não aparecerá aqui: “Eu posso serpreso por esta entrevista. E estoucansado de ser preso.”Ele é uma das vítimas do amploexpurgo conduzido pelo comandoda FAB no Centro Integrado deDefesa Aérea e Controle do TráfegoAéreo de Manaus (Cindacta-4),em represália ao aquartelamentodos controladores, equivalente auma greve no mundo civil, ocorridoem 30 de março de 2007 em âmbitonacional. Desde então, a força expulsouou afastou de suas funções,em vários centros de controle nopaís todo, 102 controladores, dosquais 40 chegaram a ser presos.A Justiça Militar chegou a condenaroito controladores de vôodo Cindacta-4, em julho de 2008.Um deles foi condenado por “incitamentoà desobediência, à indisciplinaou à prática de crimemilitar”, recebendo pena de doisanos de prisão; outro, além dessescrimes, incorreu no de “publicaçãoe crítica indevida”, e sua pena foide dois anos e dois meses de prisão.Outros seis foram condenadospor “publicação e crítica indevida”e por “desrespeito a superior”, recebendopenas que variam de doismeses a seis meses e 15 dias deprisão.Ameaças,censura, perseguições...Para os controladores de vôo,é como se o regime militarcontinuasse até os diasde hojeTodos sofreram prisão preventivaem 2007; sete foram soltos somenteapós 50 dias. Eles aguardamem liberdade o julgamento dorecurso nas instâncias superiores(inicialmente, o Superior TribunalMilitar, depois o SFT). Sete já nãoestão mais na Aeronáutica: seisforam expulsos e um se desligouvoluntariamente após passar numconcurso público.Na Justiça Militar, as sentençassão exaradas por um colegiado formadopor quatro oficiais e um juiztogado. “A Justiça Militar é umajustiça de exceção, um resquício daMarço 2009Ditadura que não faz sentido emépocas de paz”, protesta o advogadoSobral, da Febracta. Algunscontroladores preferiram recorrerde suas prisões à Justiça comum,onde têm mais chance de seremouvidos por juízes a quem não têmde bater continência.Denúncias sobre perseguições eameaças partem inclusive de quemnunca vestiu uma farda. “Fui vítimade truculência e espionagem”,afirma o procurador Fernandes,ao contar que teve uma surpresaquando foi depor na CPI do ApagãoAéreo, em 2007, em Brasília.Segundo Fernandes, o deputadoMarco Maia (PT-RS), relator daCPI na Câmara dos Deputados,mostrou-lhe cópias de mensagenseletrônicas que oprocurador trocara com oscontroladores. “Pergunteicomo ele conseguiu aquelese-mails. Ele disse: ‘Apareceuno meu escaninho’...”.Sobral, por sua vez, relatater recebido várias ameaças demorte desde que passou a acusarnove tenentes-brigadeiros, membrosdo Alto Comando da Aeronáutica,de abandono de posto durantea greve dos controladores,em 2007: “Já recebi ameaças aténo telefone de um hotel onde mehospedei em Buenos Aires”, recorda.Seu site pessoal saiu do ar apósataques de hackers e ele tem certezade que seu celular está grampeado.Prisões, expurgos, perseguições...Para boa parte dos controladoresde vôo, é como se o regimemilitar iniciado em 1964 continuasseaté os dias de hoje. Pois21


Março 2009foi nos céus que o testamento daDitadura espalhou um de seus legadosmais persistentes: o controlemilitar do espaço aéreo nacional.Ao contrário do que ocorrena maioria dos países, no Brasil aaviação civil não é encarada comosimples meio de transporte, mascomo uma questão de segurançanacional, integrada à defesa aéreae tutelada pelas Forças Armadas.O controle militar do transporteaéreo coloca o Brasil ao ladode Coréia do Norte, Eritréia, Togoe Gabão. “Não há lógica nenhumapara a Aeronáutica controlar aaviação civil. É como se o Exércitoresolvesse controlar o tráfego nasestradas”, compara Jorge Botelho,presidente do Sindicato Nacionaldos Trabalhadores na Proteção aoVôo, que representa os controladorescivis de tráfego aéreo.Subordinados à Empresa Brasileirade Infraestrutura Aeroportuária(Infraero) os controladorescivis são minoria: 497, enquanto osmilitares são cerca de 3.000, segundoa Aeronáutica. Que é, contudo,a única responsável pela formaçãodos dois grupos: os militares preparam-sena Escola de Especialistasda Aeronáutica, em Guaratinguetá(SP), enquanto os controladorescivis fazem o curso do Instituto deControle do Espaço Aéreo (Icea),em São José dos Campos (SP). Ambasinstituições pertencem à FAB.Metade do tempo de curso é absorvidapor conteúdos de formaçãomilitar, sem qualquer relação coma navegação aérea. Um dos problemasde formação mais conhecidosé o precário ensino de inglês, queobriga os controladores a lidar compilotos de vôos internacionais sabendopouco mais do que algumasfrases prontas.Uma vez formado, o controladorse vê forçado a trabalhar em duplajornada, usando o tempo livre paracumprir obrigações de caserna. “Asituação de submissão do controladorde tráfego aéreo à rígida disciplinamilitar impõe a esses trabalhadoreso cumprimento de funçõestipicamente militares, tais comoparticipar de desfiles, formaturas,guarda armada etc. em seus dias defolga”, aponta Fernandes.Publicada no final de 2008,a Instrução do Comando da Aeronáutica(ICA) 100-25, destinadaaos controladores, fortaleceu aobrigatoriedade das rotinas militares.Os profissionais responsáveispela segurança de vôo das aeronavesdevem passar por programasde instrução que incluem “ordemunida, (...) condicionamento físico,prática de tiro, marchas, acampamentos,formaturas e outras julgadasde interesse”. Um controladorresume: “Estão militarizando cadavez mais nossa rotina. Fica mais fácilnos controlar. Não é bom para apopulação, que passa a receber umserviço pior”.O Centro de Comunicação Socialda FAB rebate: “Não existedupla jornada. O controlador temalguma atividade militar durante operíodo de formação. Depois quese torna controlador operacional,o comprometimento dele com asquestões de caserna, no sentido dedesfilar e marchar, é mínimo. Normalmente,uma vez por ano”.Ao contrário dos países em queo controle do tráfego aéreo é umaRevista <strong>Adusp</strong>profissão bem remunerada (emborasem exigir diploma universitário),no Brasil os soldos dos controladoresmilitares vão de R$ 1.872para terceiro-sargentos a R$ 3.076no caso de suboficiais. A baixa remuneraçãoleva os controladoresa apelarem para “bicos”. Quandonão estão orientando aviões no espaçoaéreo, muitos sargentos trabalhamnas ruas como taxistas. Cercade 90% dos controladores têm umsegundo emprego, segundo a especialistaem saúde do trabalho Ritade Cássia Araújo Sampaio, autorade um dos primeiros estudos sobreo cotidiano dos controladores 2 .Além de detectar conflitos entrea estrutura militar e as necessidadesdo controle aéreo, a pesquisadoraregistrou várias queixasrelativas à má qualidade dos equipamentos.Na época, os controladoresjá denunciavam que eramobrigados a gerenciar mais aeronaves,ao mesmo tempo, do queo limite permitido por normas internacionais.Reclamavam de radaresantiquados que exibiam aviõesinexistentes sobre a tela, dasfreqüentes “quedas” do sistema,da existência de “buracos negros”no espaço aéreo — que duranteanos fizeram várias aeronaves sumiremdos radares ao sobrevoara região amazônica. Novamente,a Aeronáutica nega tudo: “O sistemaé seguro e foi desenvolvidocom a colaboração dos próprioscontroladores”.“Nas atuais condições, só nãotemos um grande acidente aéreopor semana porque os controladoresse desdobram para trabalharem condições que acabam com a22


Revista <strong>Adusp</strong>Procurador Fábio Fernandessua saúde.” Rita de Cássia fez essealerta em 2000. Seis anos antesde o vôo 1907 da Gol matar 154pessoas ao se desintegrar na selvaamazônica. E sete anos antesque o Airbus do vôo 3054 da TAMperdesse o controle no aeroportode Congonhas e matasse outras199. A investigação conduzida em2007 pelo MPT chegou às mesmasconclusões: “O sistema está emcolapso, seja do ponto de vista humano,seja do ponto de vista dosequipamentos”.Uma das causas da colisão doBoeing da Gol com o jato Legacyda ExcelAire, em 29 de setembrode 2006, já era uma velha conhecidados controladores: uma falhaque permitia ao software X-4000, empregado na navegaçãoaérea brasileira, modificar automaticamenteo nível de vôo dasArquivo pessoalMarço 2009aeronaves registradas na tela decontrole, sem conhecimento docontrolador.O defeito, que poderia levar osistema a fornecer informações erradassobre o posicionamento dasaeronaves, surpreendeu os representantesda Federação Internacionalde Controladores de TráfegoAéreo (Ifacta, na sigla em inglês),que visitaram o país logo após oacidente da Gol. A organização,que reúne 50 mil controladores em130 países, afirmou que controladorese pilotos foram vítimas dosequipamentos em operação e de“armadilhas inaceitáveis”, “geradaspor um sistema não tolerantea erros, um sistema de controle dotráfego aéreo mal desenhado” 3 .Apesar das denúncias, a Aeronáuticacontinuou a manter nosistema as modificações automáticasde nível de vôo apenas paranão dar razão aos controladores eeximir-se de sua responsabilidadena tragédia do vôo 3054, sustentao advogado Sobral. A prática foireconhecida por uma autoridadeaérea (não identificada) emauditoria do Tribunal de Contasda União (TCU) 4 . A FAB se defendedizendo que a decisão finaldo TCU aprovou as condições defuncionamento do sistema.O acidente da Gol abalou a categoria.Os controladores passaram aadotar ações de “operação-padrão”e conduzir os vôos dentro dos estreitoslimites determinados pelasnormas de segurança e por recursoshumanos e tecnológicos escassos, oque gerou meses seguidos de atrasosnos vôos. Era o “apagão aéreo”.Os controladores sabiam que seriamos principais responsabilizadospelo acidente, tanto quanto os pilotosdo jato Legacy que voavam como transponder desligado. Eles nãoesperavam que o Centro de Investigaçãoe Prevenção de Acidentes(Cenipa), subordinado à FAB, fosseapontar, como causas da tragédia,as falhas no sistema de navegaçãoaéreo e na formação dos controladores.Representantes das associaçõesda categoria passaram a fazer,então, o impensável para militares:mostrar a cara em entrevistas à mídiae depoimentos no Congresso,nos quais denunciaram as falhas docontrole aéreo e pronunciaram, até,a temível palavra “desmilitarização”.Pela primeira vez, a opinião públicaouvia falar de “buracos negros” noscéus da Amazônia e tomava conhecimentode controladores que nãofalavam inglês.23


Março 2009Teve início uma batalha entre oscontroladores e o Alto Comandoda FAB, que culminou, em marçode 2007, no aquartelamento desargentos e suboficiais lotados emManaus, Brasília, Curitiba e Recife,que paralisaram o espaço aéreo embusca de melhores salários e condiçõesde trabalho. O presidente Lulaenviou o ministro Paulo Bernardo,do Planejamento, para negociarcom a categoria, o que irritou o AltoComando. A negociação resultouna suspensão da greve, decisão quelevou em conta a promessa do governode que não haveria puniçõesLula prometeu(vide quadro), mas o Alto Comandoretaliou, ordenando aos oficiais,no mesmo dia, que abandonassemas torres de controle.Depois que os controladores retomaramo trabalho, Lula ignorouo acordo e permitiu que a cúpula daAeronáutica iniciasse a caçada aoscontroladores considerados subversivos.Nos meses seguintes, o que seviu foi um arrastão que arrancou danavegação aérea 102 controladores,muitos dos quais ocupavam cargosde instrutores e supervisores.“Com a conivência do governo,a Aeronáutica criminalizou o movimentodos controladores, tratandoreivindicações econômicas e sociaisda categoria como quebra dehierarquia”, afirma José GeraldoCorrêa Júnior, o Gegê, sindicalistada central Conlutas. “Temos informaçãode que vários controladoresmilitares que reivindicaram melhorescondições de trabalho estãosendo perseguidos por seus superiores.E isso ocorre durante umgoverno ‘democrático e popular’”,afirma Francisco Lemos, presidentedo Sindicato Nacional dos Aeroportuários,filiado à Central Únicados Trabalhadores (CUT).que não haveria punições, mas nãocumpriu. Conlutas e CUT denunciam:a FAB criminalizou a greve, e asreivindicações foram tratadas comoindisciplina militarPara compensar a perda de efetivo,a FAB resolveu chamar de voltaprofissionais aposentados, e reduziude dois anos para dez meses o tempode formação dos controladores. Parao advogado dos controladores, aAeronáutica força uma preparação atoque de caixa para compensar os expurgos,sem se importar com a qualidadedos formados: “O que se faz naformação desses novos profissionaisé uma temeridade criminosa. Jovensdespreparados estão sendo atiradosem posições operacionais, expostosa situações de risco tanto para quemcontrola quanto para quem voa.”Revista <strong>Adusp</strong>O acordoque Lulanão cumpriuA minuta de negociação entreo governo e os controladores militares,que pôs fim à greve de 2007,tinha o seguinte teor:“O ministro de Estado do Planejamento,Orçamento e Gestãoe a secretária-executiva da CasaCivil da Presidência da Repúblicase comprometem com osseguintes itens de negociação arespeito do Controle de TráfegoAéreo.1. O governo federal vai fazerrevisão dos atos disciplinares militarestais como transferências,afastamentos e outros, envolvendorepresentantes de associaçõesde controladores de tráfegoaéreo ocorridos nos últimos seismeses, assim como assegura quenão serão praticadas puniçõesem decorrência da manifestaçãoocorrida no dia de hoje (30).2. Abrir um canal permanentede negociação com representantes,inclusive dos controladoresmilitares, para o aprimoramentodo tráfego aéreo brasileiro, tendocomo referência de início dostrabalhos a implantação gradualde uma solução civil a partir deterça-feira, 3 de abril de 2007.3. Abrir um canal de negociaçãosobre remuneração doscontroladores civis e militares apartir de terça-feira, 3 de abrilde 2007.Paulo Bernardo SilvaErenice Guerra”24


Revista <strong>Adusp</strong>A Aeronáutica nega perda dequalidade. Diz que conseguiu encurtaro tempo de estudo por meiode um laboratório de controle detráfego aéreo, um simulador implantadoem 2006 ao custo de R$12 milhões, e que as reclamaçõespartem de profissionais mais velhosque têm dificuldade para aceitarnovas tecnologias.No processo que move em defesados controladores acusados de“motim”, a Febracta acusa por suavez o comandante da Aeronáutica,Juniti Saito, e mais oito oficiais-generaisde abandono de posto e descumprimentode missão: “Fato queninguém se atreve a negar é quedesde aquela noite de 30 de março,no exato momento em queo ministro do PlanejamentoPaulo Bernardo entrou noCentro de Controle deBrasília, até o meio dia de2 de abril, o Comandanteda Aeronáutica, encabeçandoo Alto Comando da ForçaAérea Brasileira, ordenou o abandonode posto, retirando todos osoficiais dos centros de controle detráfego aéreo”, afirma Roberto Sobralna ação.Ministério da Defesa, SupremoTribunal Federal, Procuradoria Geralda República, Ordem dos Advogadosdo Brasil... Nenhuma dasinstituições que receberam as representaçõesda Febracta se manifestousobre elas, reiterando o véude silêncio em torno de questõesque envolvam as Forças Armadas.“Todos têm medo de falar contraos militares”, lamenta Sobral. “Mascontinuo a ter esperança de que anorma funcione. É isso ou a barbárie”,acrescenta, acenando com apossibilidade de recorrer ao TribunalInternacional de Haia.Apesar das várias irregularidadesapontadas pelos procuradores,a investigação do MPT também nãotrouxe consequências. Fernandesconta que foi perseguido dentroda própria instituição por criticarabertamente os militares. Quandoa Procuradoria Geral do Trabalhoresolveu criar uma força-tarefa em“Fui defenestradodentro da própria instituição”por criticar os militares, afirmao procurador Fábio Fernandes,do MPTparceria com outros órgãos paraanalisar a situação dos controladores(“uma bela estratégia de marketing”),Fernandes ficou de fora. “Fuicriticado e defenestrado dentro daprópria instituição”, conclui.Hoje, a cúpula da Aeronáuticapode se dar por satisfeita: conseguiudesarticular o movimento doscontroladores. A maioria abandonouas entidades representativas —Março 2009a Associação dos Profissionais deControle de Tráfego Aéreo de SãoPaulo, por exemplo, que chegou ater 112 membros, hoje tem apenasdois. Para substituir os trabalhadoresexpulsos, a FAB prossegue coma formação em ritmo acelerado epretende chegar a 4.000 controladoresmilitares em 2010.O relatório final do Cenipa sobreo acidente da Gol, divulgadoem dezembro de 2008, imputouaos controladores a maior responsabilidadepela tragédia, ao ladodos pilotos do Legacy. Nada deproblemas nos equipamentos ouna formação dos controladores— é a versão oficial. Na JustiçaFederal, porém, os controladoresforam absolvidos.“O Cenipa (como parteda mesma Força AéreaBrasileira que é responsávelpela prestação do serviçode controle de tráfegoaéreo) escolheu por responsabilizarpela colisão aérea de2006 somente os operadores da linhade frente”, reagiu em nota aIfatca. Para a associação internacionalde controladores, a decisãodo Cenipa “parece dirigida pela suarelutância em expor os responsáveise os departamentos dentro daprópria organização”. Nas palavrasde Rita de Cássia, os controladores“chegaram a um ponto máximo devulnerabilização moral como categoriaprofissional” e foram “transformadosem bodes expiatórios”.NOTAS1 SELLIGMANN-SILVA, E. A instabilidade aérea e os limites humanos. Observatório Social. 2007. http://tinyurl.com/instabilidade2 ARAUJO, Rita de Cássia Seixas Sampaio. O trabalho na aviação e as práticas de saúde sob o olhar do controlador de tráfego aéreo. Dissertação (Mestrado em Saúde Ambiental) – Faculdadede Saúde Pública/USP, São Paulo, 2000. http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/6/6134/tde-09012007-1623113 Ifacta. Brasil: Uma oportunidade desperdiçada (nota à imprensa). http://www.ifatca.org/press/posn120109.pdf4 Relatório de Auditoria TC-020.840/2007-4, pág. 5725


Março 2009Revista <strong>Adusp</strong>Democratização incompletapoupou controle militarDaniel GarciaA expansão dos domíniosda Aeronáutica paramuito além da defesaaérea é um dos indíciosde uma transição democráticaincompleta, incapazde enquadrar totalmenteas Forças Armadassob o controle civil.Encerrada a Ditadura, osmilitares abandonaram oexercício direto do poder,mas conservaram “prerrogativasque possibilitavama permanência de um papelpolítico relevante, ainda que emoutros moldes”, segundo o cientistapolítico Alexandre Fuccille,autor da tese de doutorado Democraciae questão militar: a criaçãodo Ministério da Defesa no Brasil(Unicamp, 2006).O atual sistema de controleaéreo, observa Fuccile, foi implantadonas décadas de 1960 e 1970:“Diante do desafio de estruturar umsistema caro como esse, num períodoem que a Lei de Segurança Nacionalestava vigente e os militares desconfiavamde tudo e todos, se optou poruma solução sui generis, a de reunir ocontrole de vôo e a defesa aérea numúnico órgão”.Alexandre FuccileOs governos democráticosderam passos importantes, aindaque insuficientes, para controlaros militares: a criação do Ministérioda Defesa (1999) e da AgênciaNacional de Aviação Civil (Anac,2006), que substituiu o antigoDepartamento de Aviação Civil(DAC). No setor aéreo, contudo,a confusão de papéis entre Anac,FAB e Infraero provoca repetidastrombadas. “As atribuições de cadauma não estão claras, o que gerasobreposição de funções e um controleineficaz”, analisa Fuccille.A presença dos militares espalha-sepor vários setores da aviaçãocivil. A Infraero, responsável pelosaeroportos, é dirigida por tenentes-brigadeiros.“A Infraeroé praticamente umaextensão da FAB”, explicao sindicalista aeroportuárioFrancisco Lemos, lembrandoque várias basesaéreas são instaladas aolado de aeroportos, deonde tiram a renda parabancar suas despesas.A sociedade brasileiraprecisa completar a transiçãodemocrática com acriação de mecanismosde controle sobre os militares, dizFuccille. “Nossas Forças Armadascontinuam a atuar de formaautônoma. A consolidação dademocracia depende da criação demecanismos de controle sobre aspolíticas de governo, inclusive naárea de defesa”.Para Fuccille, o controle de tráfegoaéreo pode continuar a serfeito pelos militares, desde queobedeça a uma orientação civil. “Omesmo vale para a área de defesa,que deve seguir estratégias definidaspelo poder civil; o militar temque ser operacional”. Em sua tese,ele adverte: “A democracia só podefuncionar se os que têm as armasobedecem aos que não as têm”.26


Revista <strong>Adusp</strong> Março 2009ENTREVISTAPAULO VANNUCHI“A resposta de quenão há arquivos darepressãonão podeser aceita”27


Março 2009Revista <strong>Adusp</strong>“Não passa um dia sem que haja graves violações de direitos humanosno Brasil. Qualquer fuga dessa análise é uma tentativa de tapar osol com a peneira”. A constatação é do ministro-chefe da SecretariaEspecial de Direitos Humanos (SEDH) da Presidência da República,Paulo Vannuchi. Ele comemora o que chama de “desbloqueio dotema do direito à memória e à verdade”, uma de suas principaispreocupações desde que chegou à SEDH, há três anos.Ao mesmo tempo, Vannuchi reitera sua disposição de deixaro ministério caso não consiga avançar em questões sensíveisenvolvidas nesta frente, tais como o acatamento da sentença daJustiça Federal que manda localizar os corpos dos guerrilheirosdo Araguaia e abrir os arquivos correspondentes, ou a posição dogoverno Lula diante das ações judiciais referentes à Lei da Anistia.Neste caso, sairá para “não compactuar com um erro histórico”.O ministro da SEDH acredita que coexistem nas Forças Armadasduas culturas: a herdada do regime militar e a “republicana”,constitucionalista, que seria majoritária entre os altos oficiais. Masadmite que, se for derrotado em seus projetos, isso será sintoma deque “a construção da democracia brasileira tem um grave problemaa enfrentar, institucionalmente mais grave ainda do que o problemaespecífico da tortura”, pois ficará evidente que as Forças Armadasconsideram-se “a salvo das regras da Constituição”.Esta entrevista foi concedida em dezembro de 2008. Em janeirode 2009 a Advocacia-Geral da União (AGU) emitiu seu segundoparecer consecutivo favorável à não punição dos torturadores queestiveram a serviço do regime militar, alinhando-se à posição doMinistério da Defesa e impondo um novo revés à SEDH.Entrevista a Pedro Estevam da Rocha Pomar e Tatiane Klein(colaborou Natália Guerrero), com fotos de Daniel Garcia28


Revista <strong>Adusp</strong> Março 2009Revista <strong>Adusp</strong>- Ministro, o sr.completa agora três anos de trabalhofrente à SEDH. Que avaliaçãoo sr. faz desse período? Que tipo dedesafios, de resistências está sendopreciso enfrentar?Paulo Vannuchi- A primeiraavaliação é de que se trata de umaárea muito difícil. Porque DireitosHumanos ainda é uma sequênciainterminável de problemas, ameaçase denúncias de violações dosdireitos humanos. Os instrumentosestão distribuídos pelos diferentesministérios, restando à SEDH o papelde articuladora interministerial.Ao mesmo tempo, o balanço destestrês anos é positivo. A presençado tema na imprensa, o verbete direitoshumanos, é perceptivelmentepelo menos o dobro. Evidentemente,a celebração dos 60 anos da DeclaraçãoUniversal, em 10 de dezembrode 2008, colaborou para isso, mastalvez a sociedade brasileira estejanum ciclo de voltar a se preocuparcom o tema. Direitos humanos noBrasil era um assunto muito escassoantes do regime de 1964. O primeiroparadoxo é esse: o regime militarmarca uma tomada de consciênciado tema, centrado na questão daviolação dos direitos humanos dosopositores políticos do regime, damúsica de Chico Buarque ao resistenteda luta armada. Essa violaçãose generalizou, por todos os tópicos.Superado o regime militar, sobretudode 1988 para cá, o segundo paradoxoé que não obstante os avanços— leis novas, a própria Constituiçãoincorporando a temática dos direitoshumanos, o Brasil aderindo aos maisimportantes instrumentos da ONU eda OEA de proteção aos direitos humanos— a rotina de violações ainda éabsolutamente desafiante. Não passaum dia sem que haja graves violaçõesde direitos humanos no Brasil. Qualquerfuga dessa análise é uma tentativade tapar o sol com a peneira. Aseriedade do militante de direitos humanos,da autoridade pública na áreados direitos humanos, está em saberconviver com essa dualidade.Avançamos devagar, a consciêncianacional cresce, acabamos de ter umapesquisa nacional que registra muitopositivamente esse avanço, e ao mesmotempo o sistema prisional brasileirocontinua praticamente em colapso;18 anos depois do ECA [Estatuto daCriança e do Adolescente] são exceções,poucas dezenas de experiênciasno Brasil inteiro, que cumprem ospreceitos do ECA quanto ao sistemado atendimento sócio-educativo dojovem em conflito com a lei; a rotinaé de “Febens”, que transformam essesadolescentes em candidatos a criminososdas grandes quadrilhas.A questão do indígena, a questãoda igualdade homem-mulher, daigualdade racial. E por último, nobalanço desses três anos, felicitar odesbloqueio do assunto importante,central, que tinha perdido força, queé o tema do direito à memória e àverdade, quer dizer, o Brasil processarmelhor a experiência da repressãopolítica, para, desses vinte e um anosmuito negativos para o país, tirar liçõese reforçar a democracia que estásendo reconstruída ainda hoje.Revista <strong>Adusp</strong>- Queríamos falarda retomada do debate sobre as torturase as mortes durante a Ditaduramilitar e a questão das reparações dasvítimas. Existem duas ações judiciais,do Ministério Público Federal (MPF)e da OAB, que visam à responsabilizaçãode agentes do Estado. Alémdisso, a ação da família Teles contra ocoronel Ustra foi julgada procedente.O sr. tem conhecimento de outras iniciativasjudiciais? Qual sua expectativapessoal a respeito dessas ações?P.V.- A SEDH abriga a ComissãoEspecial sobre Mortos e Desaparecidos,da Lei 9.140 de dezembro de1995. A Comissão funcionou desde oinício de 1996. Durante a nossa gestão,a SEDH tinha se transformadoem Ministério e demos, desde quetomei posse, atenção prioritária a essetema. Não por considerar que sejamais importante que os outros temasda Secretaria, como: pessoas com deficiência,são 25 milhões de brasileirossubmetidos a todo tipo de discriminações,violências, exclusões; criançase adolescentes, que acabei de falar;quer dizer, o leque é muito largo. Emesmo a tortura, que segue existindoamplamente no Brasil inteiro. Então,não é que o tema do direito à memóriae à verdade se superponha, emimportância, aos outros. O problemaé que os demais temas vinham sendotratados de maneira mais consistentepelo Estado. Não havia uma lacuna,uma dívida. Havia gestão, havia mudançaslegislativas. Então acabamospriorizando o assunto no sentido deque se tratava de preencher a lacunae enfrentar essa dívida, que ainda erado Estado brasileiro, e especificamentedo governo Lula.O livro Direito à Memória e à Verdadefoi lançado em agosto de 2007,num evento, de propósito, em tornodo aniversário da Lei da Anistia. Nãono sentido de confrontar a Lei, mas demostrar que o caráter de reconciliaçãoexpresso na Lei tinha sido interrom-29


Março 200930pido, porque não há reconciliação sese interrompe este processo dizendo,por exemplo, que não há mais o quefazer com 140 corpos de brasileiros ebrasileiras que foram mortos pela repressãopolítica do regime militar.O Estado tem condição de organizaruma busca que não necessariamenteresultará na localização dos140 restos mortais, porque pode serque alguns tenham sido jogados nomar, ou no meio da selva amazônica,mas há abundantes registros de militantesde direitos humanos, organizações,jornalistas, que sem parar vãoapresentando depoimentos de participantesdos órgãos de repressão,dando locais de sepultamento. O governoLula certamente realizará umaexpedição consistente para atender aessa exigência. Qualquer processo dereconciliação nacional tem que passarpor cicatrizes como esta.Então foi importante o lançamentopúblico no Palácio do Planalto,com o Presidente da República presidindoesse ato, com vários ministros,e com um discurso, inclusive omeu, de mostrar que aquilo não eraum evento de clivagem, de oposiçãoàs Forças Armadas, pelo contrário,numa democracia os cidadãos têmde ter respeito pelas suas Forças Armadas.A exigência dessa abertura deinformações, localização dos corpos,é que correspondia à real defesa dasForças Armadas numa democracia, enão a atitude corporativista de “nãosabemos, não temos informações, osarquivos foram destruídos”.A partir do livro prosseguimos notrabalho, que é planejado para crescer.A idéia é de começar pequeno etomar corpo com o tempo, e eu planejoisso numa perspectiva transmandatos,não é um processo só para governoLula. Então fomos começando,com pequenos painéis em acrílico, emmetal, homenageando [militantes daoposição à Ditadura], e já temos agoraum planejamento para 2009, 2010,digamos, tentando um por mês, espalhadospelo Brasil, já fizemos umadúzia, não sei quantos, e o Brasil podeter uma experiência comparável às ruasde Paris, onde é muito comum vernas esquinas uma placa registrando:“Aqui neste local os estudantes tal e“A exigência de aberturade informações,localização dos corpos,é que corresponde àreal defesa das ForçasArmadas numademocracia, e não aatitude corporativista de‘não sabemos, não temosinformações, os arquivosforam destruídos’”tal foram mortos num enfrentamentocom uma brigada nazista durante aocupação”. A Itália também tem isto.Então o Brasil... é uma guerra de dimensãoincomparavelmente menor,o número de mortos e desaparecidoscontabilizado é em torno de 400, e nãopassará de 500, se conseguirmos umdia fazer um estudo sistemático sobreos camponeses mortos em 1º de abrilde 1964, sobretudo em Pernambuco,Paraíba, onde as Ligas Camponesasenfrentavam diretamente o latifúndio.Revista <strong>Adusp</strong>Este trabalho começou a tomarvulto, os movimentos de familiarestambém são, por um lado, os grandesprotagonistas, o mérito maiordesse debate está nessa tenacidade,resistência, capacidade de se manterarticulado. Mas também vivia ummomento de desalento. Revigorou-senestes últimos dois anos. Além dasduas ações judiciais que você referiu,precisa acrescentar uma sentença deuma ação na Justiça Federal iniciadaem 1982 por algumas dezenas defamílias, que em 2003 já teve umasentença da juíza Solange Salgado,que determinava basicamente umprazo para localização dos corpos, noAraguaia, em números arredondadosalgo na faixa de 70 corpos, que seusfamiliares ainda não tiveram esse direitomilenar, sagrado, antropológico,de prantear e sepultar, fazer ofuneral. E também determinava aabertura de toda a documentação, asinformações sobre isso.Em 2003, no início do governoLula, quando esta sentença foi exarada,o governo federal através daAGU decidiu recorrer da sentença,e isso gerou críticas muito bem fundadas,do círculo de familiares e demilitantes dos direitos humanos. Opresidente Lula respondeu a essascríticas legítimas com a criação deuma Comissão Interministerial sobreo Araguaia, que o secretário de DireitosHumanos integrava — eu nãoestava no governo ainda, era meuantecessor. Quando assumi o cargo,percebi que esta Comissão praticamentenão tinha cumprido a sua determinação,e consegui pressionar osdemais integrantes, concluímos em 8de março de 2007 um relatório quefoi apresentado ao presidente Lula,


Revista <strong>Adusp</strong> Março 2009“Ministério da Defesa precisa se consolidar”com recomendações que no fundoreforçam as determinações da juízaSolange Salgado.Então houve uma grande perdade tempo, mas entre a decisão derecorrer, em 2003, e março de 2007,quatro anos de intervalo, se recuperao ponto de partida. O Presidente,quando recebeu [o relatório] dasminhas mãos, junto com a ministraDilma, manifestou a intenção de,em seguida, fazer uma reunião comos três chefes militares, para fazer oencaminhamento naqueles termos.Semanas, no máximo um mêsdepois, o ministro Jobim assume aDefesa e avoca esta responsabilidade,e recomenda que ele tivesse umtempo, como ministro recém-empossado,primeiro para contornar a“crise aérea”, que eraum problema agudo daconjuntura, em seguidapara ele fazer a discussão[com as ForçasArmadas]. É a pessoaadequada para isso, nosentido de que a Lei9.140 tinha sido feitapor ele, como ministroda Justiça de FernandoHenrique Cardoso, tendocomo chefe de gabineteJosé Gregori, quefoi o arquiteto da lei.Por último, existeum procedimento internacional,da OEA,que teve início, eu diria,em 1999, e acabade ter seu relatório demérito, em 30 de outubrode 2008. E no dia19 de novembro o embaixadorjunto à OEArecebeu formalmente, e o prazo é de60 dias, o que é muito desfavorável(19 de janeiro), então é praxe se pedirmais um mês, dois meses de prazo.Este relatório termina com seterecomendações: que a Lei de Anistianão continue sendo obstáculo àapuração e responsabilização penaldos responsáveis pela violação dedireitos humanos; e, quanto ao Araguaia,seis recomendações na linhade proceder à reparação indenizatória,à reparação simbólica, localizaros corpos, abrir todos os arquivos.Existem também o procedimentodo MPF, as duas ações, das famíliasMerlino e Teles, e recentemente umgrupo de deputados federais visitou oProcurador Geral da República, paraque faça o procedimento devido paraum torturador de Minas Gerais, doDOI-CODI, Marcelo Paixão Araújo,que numa [revista] Veja, de 1998 possivelmente,fez a declaração: “Eu matei,eu torturei, quem disser que nãohouve tortura está mentindo” etc.Por onde tenho ido, nesses eventos,tenho registrado que essa pressão terámais êxito se corresponder a umainteração de atores diferentes. O atorsociedade civil: movimentos, TorturaNunca Mais, Fórum de Ex-Presos,com a sua pressão, como a bela manifestaçãopública em Brasília, debaixode chuva, um passo adiante queo Brasil não tinha feito ainda: bannersde mais de um metro, com fotosdos mortos, com sinais evidentes dascondições em que foram mortos. Ogoverno tem de agir através da atuaçãoda SEDH, Ministério da Justiçae vários outros ministros que estãosolidários, enfrentando a divergênciainterna que se tornou pública.E a OAB também entrou no SupremoTribunal Federal com Arguiçãode Descumprimento de Preceito Fundamental(ADPF). Na minha estratégiaeu deixaria para mais tarde. Deixaa sociedade civil pressionar mais,deixa o Judiciário ferver mais, deixa ogoverno federal avançar mais, porquese o Supremo, provocado agora, respondernegativamente, agora tem asúmula vinculante, nós poderemos terum problemão. Que não vai acabarcom o assunto, mas cria uma grandebarreira ao procedimento judicial.Revista <strong>Adusp</strong>- Ministro, deixemefazer uma ponderação. É verdadeque houve mais provocação naArgentina e no Chile da parte dosfamiliares etc. Mas também houveuma intervenção importante do presidenteKirchner no sentido de re-31


Março 2009vogar a Lei do Ponto Final, o queacabou permitindo uma retomadado processo e levando vários oficiaisgeneraispara a cadeia. Aqui existeesse contraponto, uma Lei de Anistiaque a própria OEA vem e diz: “estáservindo de obstáculo”. Então temosuma diferença, não temos?P.V.- Muitas diferenças. Deixe-mefalar da Argentina com muito cuidado,para não ficar parecendo quetemos rivalidades para além do futebol.Também havia procedimentosmuito antes do Kirchner. Kirchner éum fenômeno peronista, que nascedo dezembro de 2001, em que ocorrea falência de um outro peronismo.Há uma crise do modelo neoliberal,FMI, que Menem aplicou em nomedo peronismo disciplinadamente,desmorona a Argentina em dezembrode 2001, e nasce daí uma transiçãoque durou pouco: De la Rua, arenúncia de De la Rua, Duhalde, eaí Néstor Kirchner e agora Cristina.Trataram bem o tema, deram adevida importância, dá para a Argentina,nas nossas reuniões, chamadas“Altas Autoridades em DireitosHumanos do Mercosul”, uma espéciede decanato, que eu, em nomedo Brasil, cuido sempre de reconhecer.Meu colega lá também chamaDuhalde, não é o mesmo, mas é homônimo:Eduardo Luis Duhalde, foium exilado político importante, esempre nos curvamos a essa primazia.Dos países da América do Sulé o que mais trabalha, pela voz dosseus presidentes, Néstor e Cristina,o enfrentamento diário...O processo argentino levou a quea falência de dezembro de 2001, aretomada, colocasse para a liderançaargentina, Néstor e Cristina, uma32idéia de que o tema ditadura militaré importantíssimo para construir aArgentina hoje. O Uruguai vai ter seucaminho, Chile, Paraguai. No Brasil,evidentemente, a transição teve todasas marcas da chamada transição porcima, de sempre, da nossa História. Oque cria problemas, por um lado, mastambém pode gerar condições, insistonisso, seja porque a guerra brasileirateve proporções menores, o númerode mortos e desaparecidos é muitomais reduzido, seja porque a transiçãose distribui por quatorze anos!“O comandante militarda Amazônia não podedeclarar que a políticaindigenista é ‘caótica’.Ao fazer isso, estáviolando regras militarese a Constituição, porqueo comandante supremodas Forças Armadas é oPresidente da República”Revista <strong>Adusp</strong>Em 1974 o general-presidente quetoma posse fala que vai dar início auma distensão lenta, gradual e segura.Acaba a seqüência de farsas eentra o desaparecimento como regra.Os livros do Elio Gaspari deixam issoclaro, até o próprio Ernesto Geiselfalando: “É, tem hora que tem quematar mesmo, não tem jeito”. Aí temdezembro de 1976, a Chacina da Lapa,volta a receita da farsa, embora játivesse ocorrido toda a destruição docomitê central do PCB. Essa transiçãoacaba em outubro de 1988.Então nesta transição as característicassão muito diferentes das deum processo como a Revolução dosCravos, a queda de Somoza, de Ceaucescu,em que é coisa de um dia,dois, você vai lá, entra, pega: “Estãoaqui os arquivos da Pide” [polícia políticade Portugal]. Há um processo,muito espalhado no tempo, em queprevalece a idéia de reacerto institucional.Neste sentido, se por um ladoo tema arquivos da repressão políticapermite esse tipo de resposta protelatóriaevasiva — “os arquivos foramtodos destruídos com base na legislaçãovigente daquela época”, que é aresposta oficial das Forças Armadasa um aviso ministerial da ministraDilma — por outro lado permite queo Brasil tenha todas as condições detratar esse tema pelos puros fundamentosdo constitucionalismo.Ou seja: não tem que tratar isso naforma de “eu fui tenente na época emque fulano era meu coronel, portantoeu lhe devo respeito e solidariedade;se ele está sendo acusado de tortura,de violência, eu tenho companheirismocom ele”. Não. Se houver, serásintoma de que a construção da democraciabrasileira tem um grave problemaa enfrentar, institucionalmentemais grave ainda do que o problemaespecífico da tortura. Quer dizer: aindanão se consolidou a concepção deque no Estado democrático as ForçasArmadas não são um ambiente a salvodas regras da Constituição, de todas asleis — o que vale para qualquer civilvale para as Forças Armadas.Revista <strong>Adusp</strong>- Mas elas não foramavisadas disso ainda. Elas continuamachando que isso não valepara elas.


Revista <strong>Adusp</strong> Março 2009P.V.- Tenho como impressão acoexistência de culturas. A culturado regime militar sobrevive, explicitamente,em sites como “TerrorismoNunca Mais” (Ternuma), que seconsideram a salvo da lei, fazem bravatas,ofensa pessoal, atingem a figurade Presidente, de ministros etc.;e em ações no alto oficialato querevelam a continuidade desse estilo.O comandante militar da Amazôniadeclarando que a política indigenistaé “caótica”: ele não pode fazer isso.Ao fazer, está violando regras militares,está violando preceitos constitucionais:o Presidente da República épor definição comandante supremodas Forças Armadas.20 de novembro [de 2008]: o presidenteLula patrocinou e compareceuà inauguração de uma estátuado marinheiro João Cândido no Riode Janeiro. Naquele mesmo dia aMarinha faz chegar aos jornais comunicadode que aceitava a homenagem,mas não aceitava o caráterde heróis dos marinheiros, porqueprecisariam ser lembradas tambémas vítimas dos marinheiros revoltadosde 1910. A Marinha não podefazer esse tipo de pronunciamento.Também está infringindo normasdisciplinares etc. Agora, eu sustentoque esse procedimento não é o detodos os altos oficiais, e pelo contrário:nos altos oficiais com que eutenho contato direto, por dever deofício, prevalece um ponto de vistamuito diferente: uma atitude muitoconstitucional, muito republicana.Nesse contato, e o contato temque ser feito sobretudo pelo ministroda Defesa — porque o Ministérioda Defesa, criado em 1999 pelametade, agora precisa se consolidar— há uma outra posição: a de quequando se senta junto para discutiro tema, não dá lugar a nenhumbate-boca (como daria se tivesse namesa alguém desse perfil, “Ternuma”).Uma coisa muito séria, muitorespeitosa, muito elegante.O problema é outro: eventualmente,acreditar que a respostade que não há arquivos possa seraceita. Ela não pode ser aceita porinúmeras razões, entre elas a deque ninguém convence ninguém deque todos os arquivos do Centro de“A decisão judicial sobreo Araguaia, mandandolocalizar corpos e abrirarquivos, transitou emjulgado em outubro de2007 e espantosamente,14 meses depois, nãotenho notícia ainda de queela tenha sido citada”Informações do Exército, da Marinha,da Aeronáutica foram destruídos,porque, na hora em que alguémdeterminasse isso, na mesmahora outro general, outro almirantediscordaria: “Não, aí tem a históriada nossa Arma”, e alguém ficariasabendo. A imprensa e pesquisadoresaparecem com informações. Eporque tem esse expediente da reconstituiçãode autos. Nós mesmostemos milhares de páginas que entregaremosimediatamente, muitascom o timbre da Marinha.Revista <strong>Adusp</strong>- Concretamente,que falta para o governo brasileiroabrir inteiramente esses arquivos daDitadura?P.V.- Primeiro, falta uma informaçãoobjetiva. Além de ter trêsanos nesse cargo, tenho mais detrinta trabalhando nesta área. Nestestrinta anos nunca recebi umaúnica informação assim: “Existe umarquivo em tal andar do prédio tal,de tal unidade”. Sei que existemfolhas de alterações: cada militar dastrês Armas, quando senta praça, atéo dia em que morre, tem uma folha,chamada de alterações, que registrainternações, licenças médicas, deslocamentos,mudanças, então aliestará a cessão para o DOI-CODI,a ida para o Araguaia ou não.A sentença de última instânciasobre o Araguaia determina localizaçãodos corpos e abertura de todosos arquivos. A decisão judicial federaltransitou em julgado em outubrode 2007 e espantosamente, quatorzemeses depois, eu não tenho notíciaainda de que ela tenha sido citada.Porque eu tenho uma sentença de últimainstância, não tem mais recurso.Quatorze meses sem que o Judiciáriofederal tenha feito a citação para podercorrer o prazo de 120 dias queestá lá. Tenho dito isto, tenho perguntadopara o ministro Jobim, parao advogado-geral da União, que acada vez ficam de verificar.Agora, na semana passada, eu ouviuma primeira informação, de que estacitação teria sido feita, então o prazocomeça a correr. Neste momento,qualquer conversa que eu vá fazer teráde ser em torno desse procedimentojudicial. Então a sua pergunta, por quênão foi feito até agora, são inúmeras33


Março 2009razões, mas é a hora de transformarisso num procedimento judicial.O meu trabalho, trabalho de váriosoutros ministros, é: primeiro,promover uma expedição séria aoAraguaia. Esta expedição tem queter determinação do Presidente daRepública; engajamento real, comvontade política, vontade humanitária,das três Armas, mais a PolíciaFederal pela sua inteligência; maisa imprensa, mais os familiares egrupos interessados no tema, paraverificar todos os locais que alegadamentepodem ter sepultura demortos. Acredito que uma partedos corpos tenha sido eliminadapor mecanismos naturais: deixadosao relento na selva amazônica, éclaro que haverá o desaparecimentonatural desses corpos. Mas essainvestigação pode ser feita.Nesse momento o Brasil teráque decidir entre essas coisas. Eucuido de que não terminem oitoanos de governo Lula sem que elepessoalmente demonstre o seu empenhocomo presidente, uma determinaçãoaos seus subordinados,o ministro da Defesa, e através doministro da Defesa os chefes militares,de que seja feito isso.E que dure o tempo necessário,não é uma expedição de uma semana,deve durar semanas, talvezmeses, deve custar caro, milhões dereais. Acredito que pode sim localizarcorpos, não sei avaliar quantos.Temos um banco de DNA, temos olaboratório genômico que é licitado,recolhemos amostras de familiarespróximos de todas as pessoas.Junto com esse tema há o tratamentoque já está pronto, sob responsabilidadeda ministra Dilma, do34arquivo chamado “Memórias Reveladas”ou “Memória Viva”. Consisteem integrar digitalmente todos osarquivos estaduais, que são 15. Osarquivos do DOPS contêm informaçõese estão sendo digitalizadosjunto com os arquivos da Abin edas chamadas divisões de segurançae informações, que o período Garrastazucriou como mini-SNIs — naárea da Educação é muito importanteperceber a vileza, reitores fazendoo trabalho de alcagüete etc. Essesarquivos envolverão um edital da“O tema não é a revisãoda Lei da Anistia. Otema é: quem disse queaquela Lei da Anistia estáabsolvendo torturadores?Isso é lugar-comumque se formou, quandohá juristas de peso quefalam: a Lei da Anistianão abriga tortura”ministra Dilma, em nome do Presidenteda República, estabelecendoum prazo de seis meses, talvez umano, em que sob sigilo, anonimatogarantido, todos os arquivos sobrequalquer tema da repressão políticado período 1964-1985 sejam transferidospara o Arquivo Nacional, sobpena de irregularidade.Junto, uma nova Lei de Arquivos,substituindo a Lei 11.111, peloslimites que essa lei tinha: se fala eminconstitucionalidade, por permitirRevista <strong>Adusp</strong>o sigilo eterno. Seus autores nãoconcordam que haja sigilo eternolá, esse é um tema que está sendotratado no Judiciário. A diplomaciabrasileira acha que há temas, demais de 100 anos atrás, suponhoque seja o Acre do Barão do RioBranco, que ainda têm potencial decausar grandes problemas. Então aíé a razão de Estado, a diplomacia,mais forte do que a abordagem deque isso pertence à história.Fazer essa mexida, nos termos datransição brasileira, quando? A possede Sarney, primeiro presidentecivil: pouco provável. Os presidentescivis: Collor, Itamar Franco, FernandoHenrique. Existe a demanda defamiliares, petistas etc., de que nogoverno Lula, logo em 2003, se deviater feito isso. Não se fez, por razõesque hoje cabe à história avaliar,e a política avalia. Já houve cisõesno campo do PT que respondem aisso. De qualquer maneira, sustentoque esse tema não é para ser tratadono ambiente de mandatos presidenciais.No contexto brasileiro, quantomais longe da data — que não temuma, é muito espalhada, 14 anos— a chance aumenta.Nos próximos anos aparecerãomais depoimentos, mais descobertas,arquivos, seja pelo edital da ministra,seja por investigações jornalísticas.Eu recebo chamados a todahora. Acredito que vai ter torturadorque, no leito de morte, vai chamaralguém para falar sobre locaisde sepultamento [por exemplo] doRubens Paiva, ou do Stuart [Angel].Preciso criar estrutura permanentepara colher isso, e o início de 2009será o momento importante. Claro,se isso não acontecer, não for con-


Revista <strong>Adusp</strong> Março 2009Vannuchi fala à equipe da <strong>Adusp</strong>cretizado basicamente, eu já disseque uma pessoa como eu tem quesair do governo e sairá, eu sairei.Revista <strong>Adusp</strong>- Por falar nisso, eo famoso parecer da AGU?P.V.- O desfecho não está dadoneste momento. O MPF de SãoPaulo abre aquele procedimentocontra os dois comandantes doDOI-CODI de São Paulo. Li, estudei,avaliei a peça no seguinte sentido:muito importante isso, coisacorajosa, por que o MPF não faz issono Brasil inteiro? Não precisavacolocar no mesmo saco os dois torturadorese o governo federal, porqueao fazer isso politizou a ação.Minha Secretaria, coletivamente,depois de muita análise, optou pelaidéia de defender que a Uniãose tornasse parte ativa na ação.Que o MPF abria a oportunidadede a União deixar de ser ré se elase transformasse em parte ativa naação. Defendi isso, mesmo vendocomo equívoco a politização: acheique o acerto maior suplanta o erromenor. E fui conversar no governo.A AGU historicamente tem atendência de defender a União emqualquer processo. Se você chegar:“Mas a União aqui neste caso pegouesse índio e torturou e matou”, nãoimporta. Então nosso trabalho naAGU é criar uma nova mentalidade,dialogando. Quando aparece o pronunciamento,me surpreende. Entãonão me coube alternativa senão fazero enfrentamento que fiz, publicamente.Se fizesse só o enfrentamentodiscreto, interno, que é o recomendado,“roupa suja se lava em casa”, oassunto estaria liqüidado.Então eu disse ao ministro Toffoli[da AGU]: vou fazer um pedidoformal, solicitando a revisão deargumentos que são intoleráveis:primeiro, a visão de que o MPFcuida só de interesses coletivos difusos,e que o caso do torturadonão é, subentende-se que é um problemado torturado; não é, a torturade qualquer cidadão é interessede qualquer outro cidadão, entãoele é difuso e coletivo sim, o MPFacertou; segundo, a peça diz que aAnistia de 1979 impede a revisão, oque é uma interpretação da Lei daAnistia. Nem o Tarso nem eu estamospropondo revisão da Anistia.Mais dia, menos dia, virá umadeclaração da OEA, de que a Leida Anistia brasileira viola o Pacto deSão José da Costa Rica, a ConvençãoAmericana dos Direitos Humanos.Virá. É a posição internacional.Por outro lado, a Anistia de 1979trouxe de volta ao Brasil Arraes,Brizola, Prestes, João Amazonas,Apolônio de Carvalho, Betinho...Então o tema não é a revisão da Leida Anistia. O tema é: quem disseque aquela Lei da Anistia está absolvendotorturadores? Isso é lugarcomumque se formou, quando hájuristas de peso que falam: não, essaLei da Anistia não abriga tortura.Tem os argumentos de que a torturaé imprescritível; de que é crimecomum, não é político; e de que a palavra“conexo” não tem força nominativavinculante para agasalhar decapitação,degola, esquartejamento,estupro, ocultação de cadáver, que écrime continuado. A discussão reabertafoi essa, por Tarso e por mim,naquele evento. A imprensa tratou,até editorialmente, na velha linhade desviação, de que é “descabido”.O Globo fez um editorial chamado“Engodo”. O presidente do STF declarou:“A Anistia foi ampla, geral eirrestrita”. Presidente do Supremo:leia a lei, leia a lei e em seguida o sr.retificará essa declaração que o sr.acabou de fazer. Porque a lei tem umartigo primeiro, com três parágrafos,35


Março 200936e o parágrafo segundo diz: “excluamsedos benefícios das presentes leis osque participaram de atentados terroristas,assaltos, atentados pessoais”...Ora, se a tortura não é um atentadopessoal, que ela é?O ministro Toffoli encaminhouao ministro Eros Grau, relator doSTF, os pronunciamentos meu, daDilma, do Tarso e do Jobim. Sãotrês manifestações contra a Defesa,na linha de que a tortura não estáprescrita etc. E me responde formalmenteque com relação ao meu pedidoele ainda está estudando. Entãonão é a saída que eu quero, queeu sonho, mas pelo menos não estácaracterizado o quadro que antecipeino Prêmio Vladimir Herzog, deque na hora em que prevalecer essaposição uma pessoa como eu temque voltar para a sociedade civil.Nós lançamos uma revista de direitoshumanos, e o Augusto Boaldeu uma entrevista de fundo, belíssima,em que ele começa falando datortura que sofreu. À pergunta: éprescritível?, ele responde: “Não éprescritível. Euclides da Cunha disse:o sertanejo é antes de tudo um forte.Eu digo: o torturador é antes de tudoum covarde. E por ser covarde, nãoquero que o Exército, a Marinha, aAeronáutica tenham covardes lá dentro.Quem for torturador tem que serexcluído”. Idéias como esta têm queperpassar a consciência nacional.Estou concluindo com CNPq,com Capes, bolsas novas setorializadas.Por exemplo, eu quero levaro tema “mortos e desaparecidos deabril de 1964 na região das LigasCamponesas”. Tenho que fazer issocom a UFPE e UFPB, basicamente.E botar essa moçada já em campopara ir pesquisar, com sua bolsade mestrado e seus orientadoresquerendo fazer isso, em EngenhoGaliléia, Júlio Santana, Chapéu deCouro, João Pedro Teixeira, vai darpara achar ainda filho, e daqui apouco vamos descobrir que tem 50mortos a mais, ou 100, porque aquelesque morreram nos primeiros diasde abril não tinham nem carteira deidentidade. Meu empenho agora éque o governo Lula não cometa oerro histórico gravíssimo de chegara dezembro de 2010 sem ter dado otratamento adequado a isso.É na questão dotratamento da tortura quese dá no regime militar quevocê achará a construçãodo convencimento de quenão pode ter tortura hoje.Tem uma lei de 1997 queninguém aplica, a torturacontinua soltaSe eu não conseguir o trabalho,Araguaia etc., no primeiro semestrede 2009, terei de tomar uma decisãonegativa. Vou dizer: “Presidente, euvou sair com uma carta aberta endereçadaao sr., reafirmando toda a minhaconfiança no seu trabalho, na sualiderança, mas vou terminar que estousaindo porque não posso compactuarcom um erro histórico dessa proporção”,como a ministra Marina fez.Claro, você começa a acumularforças para fazer um questionamentomais histórico e mais fundamental,Revista <strong>Adusp</strong>que é o que você fez: qual é a posiçãodas Forças Armadas? Elas aceitam ounão aceitam? Se as Forças Armadasde fato confirmarem a sua interpretação,se continuam sendo um componenteà parte do sistema constitucional,a correção disso torna-se prioridadedas prioridades. Não acreditoque isso represente ameaça de golpede Estado. O entorno mundial nãoaponta para nenhum risco, mas para aidéia de que as Forças Armadas aindanão compreendem o que é sua funçãoconstitucional, de se curvar ao podercivil e portanto ao voto popular. Queno fundo implica que elas terão de fazerem algum momento, formalmente,não um pedido de desculpas, que temde ser feito antes de terminar o governoLula, pelo presidente, mas mais doque isso: elas têm de escrever que, em25 de agosto de 1961, não podiam terimpedido a posse do vice-presidenteJoão Goulart.Não vejo até agora o devido esforçonacional, nem dentro do governo,nem na universidade, nem naOAB, para criar essa consciência.Elas terão que dizer que na sua históriaelas têm glórias, como a batalhade Monte Castelo, e infâmias,como a degola do Conselheiro. Nãodiscutem Canudos, assunto que seriaimportantíssimo introduzir na escolamilitar, a leitura obrigatória deOs Sertões, os relatórios militares daépoca, e não considerá-lo um tabu.É na questão do tratamento da torturaque se dá no regime militar quevocê achará a construção do convencimentode que não pode ter torturahoje. Na medida em que tem umatortura recente que não tem ninguémpunido, tem uma lei de 1997 que ninguémaplica, a tortura continua solta.


Revista <strong>Adusp</strong>Março 2009O insuportávelpeso da torturaNatália GuerreroJornalistaDaniel GarciaManifestação diante do Tribunalde Justiça de São Paulo, apósjulgamento da ação contra UstraPela primeira vez um agente do Estado, o coronel Carlos AlbertoBrilhante Ustra, foi declarado culpado por crimes de torturainfligidos contra opositores durante o período da Ditadura militar.A condenação resultou de ação movida pela família Teles, que em1970 teve vários de seus integrantes submetidos a brutalidades noDOI-CODI do II Exército. Ainda em 2008, MPF e OAB tambémacionaram a justiça tendo em vista a responsabilização de agentespúblicos que praticaram violências a serviço do regime militar. Asações amplificam o debate sobre a Lei de Anistia37


Março 2009Revista <strong>Adusp</strong>Choques elétricos, afogamentos,palmatória,socos, espancamentos,empurrões, pau-dearara,cadeira do dragão,roleta russa. Deuma sucessão de suplícios comoesses se compunham os “interrogatórios”reservados por agentesdo DOI-CODI do II Exército, emSão Paulo, aos militantes ligados àimprensa do então clandestino PartidoComunista do Brasil (PCdoB),Maria Amélia de Almeida Teles eCésar Augusto Teles, presos naquele28 de dezembro de 1972. No diaseguinte, a polícia ainda invadiriasua casa e traria ao DOI-CODI osfilhos do casal, Janaína, de quatroanos, e Edson Luís, de cinco, juntocom a tia, Criméia Alice Schmidt deAlmeida, egressa da Guerrilha doAraguaia e, à época, grávida de oitomeses. Nos dias que se seguiram àsprisões, as crianças tiveram de veros pais com o corpo coberto de hematomasapós as sessões de tortura,38os rostos quase irreconhecíveis. Agravidez não deteve, tampouco, assevícias contra Criméia, torturadapor vezes ao lado da irmã.Naquele período, comandava oDOI-CODI, sigla que designa o infameDestacamento de Operaçõesde Informações do Centro de Operaçõesde Defesa Interna, o major CarlosAlberto Brilhante Ustra, o “MajorTibiriçá”, apontado nos relatos da famíliacomo pessoalmente responsávelpor alguns dos “interrogatórios”.Os Teles não foram os primeirosnem os últimos a sofrer os crimesperpetrados pela Ditadura militar,nem tampouco os únicos a acusarUstra de participar ativamente detorturas, seqüestros e morte de militantes.Contudo, passados 36 anos,sua história torna-se emblemática:foram os autores da ação judicial queculminou na primeira sentença judiciala declarar culpado por crimes detortura um agente do Estado.“É uma vitória da sociedade brasileira,pelo menos de todos os segmentosda sociedade que lutam porjustiça, por dignidade. É uma formade manifestar ‘chega de tortura’, dedizer que o Brasil que quer ser democráticonão pode conviver com atortura, sob pena de um retrocessohistórico”, avalia Maria Amélia, representanteda Comissão de Familiaresde Mortos e DesaparecidosPolíticos.A ação contra Ustra, impetradaem 2005, é de âmbito cível e teve caráterdeclaratório, o que afasta puniçãopenal ou de cunho financeiro.Proferida em 9 de outubro de 2008,pelo juiz Gustavo Santini Teodoro,a sentença afirma que “não é crívelque os presos ouvissem os gritos dostorturados, mas não o réu. Se não odolo, por condescendência criminosa,ficou caracterizada pelo menosa culpa, por omissão quanto à graveviolação dos direitos humanos fundamentaisdos autores César Augusto,Maria Amélia e Criméia”.Apesar de destacar com veemênciaa importância histórica da


Revista <strong>Adusp</strong>Coronel torturador Ustra discursa durante "desagravo", em 2008Luiz EduardoMerlino foi levadode casa por agentesdo DOI-CODI,restando à famíliaa promessa de que não tardariaa voltar. Não voltou.Torturado no pau-dearara,morreu quatrodias depoisFábio Motta/AEdecisão, e esperar que crie um precedentepara outras de igual teor,Maria Amélia rejeita o que chamade “judicialização” do tema. “Àsvezes vejo o pessoal do própriogoverno sugerindo que se entrecom ação. A questão dapunição, da responsabilização,eles jogam para a judicialização.O tratamento maisdireto e eficiente seria peloExecutivo”. Até porque, analisa,a via judicial reserva muitas dificuldades.“É preciso relacionar testemunhas,mostrar que é importantepoliticamente, historicamente. Eé doloroso para cada uma delas terque lembrar esses episódios, falardiante do juiz. O ônus recai todinhosobre nós, do ponto de vista pessoal,político, afetivo”, desabafa.Hoje coronel da reserva, CarlosAlberto Brilhante Ustra esteve àfrente da unidade paulista do DOI-CODI, o maior e mais importantedispositivo militar de combate àsorganizações de esquerda, entre setembrode 1970 e janeiro de 1974.Somente nesse período, estima-seque as práticas ilícitas na “casa dehorrores”, como ficou conhecido oórgão, tenham resultado na mortede mais de 50 pessoas e na torturade mais de 500. Em 1985, quandoatuava como adido militar no Uruguai,Ustra foi reconhecido pela entãodeputada Bete Mendes (PT-SP)Março 2009como seu algoz no período em queesteve presa, em 1970. O caso tevegrande repercussão na imprensa.Uma das muitas histórias que envolvemUstra remonta a 1971, e seencontra registrada no livro Direitoà Memória e à Verdade, publicadopela Secretaria Especial de DireitosHumanos (SEDH) da Presidênciada República. Na noite de 15 de julhodaquele mês, na cidade de Santos,três homens batiam à porta deIracema Rocha da Silva Merlino,perguntando por seu filho Luiz Eduardo.Diziam ser amigos dele.O jovem Luiz Eduardo, jornalistae estudante de história na USP,militava no clandestino PartidoOperário Comunista (POC), e poucosdias antes chegara da França,onde estivera com Ângela Mendesde Almeida, sua companheira,para estudar e fazer contatospolíticos. Quando acorreu àporta, os “amigos” já haviammudado de tom, a ponto deagredirem sua irmã, Regina.Luiz Eduardo foi levado pelosagentes, restando à famíliaa promessa de que não tardaria avoltar para casa.O jornalista foi levado à sede doDOI-CODI da Rua Tutóia, onde foitorturado seguidamente por 24 horas.Ao cabo da longa permanênciano pau-de-arara, sentia dores fortíssimasnas pernas — sinais da gangrenaque lhe tiraria a vida no dia19 de julho, quatro dias após suaprisão. Mas a versão forjada pelosmilitares foi de que o jovem morreuatropelado numa estrada ao tentarfugir quando era transportado aoRio Grande do Sul para identificarcompanheiros.39


Março 2009Décadas depois, a história deLuiz Eduardo Merlino é revivida erecontada no processo movido porsua irmã, Regina, e sua ex-companheira,Ângela, que pleiteiam naJustiça a responsabilização do coronelUstra pela morte do jornalista.Ajuizada em 2007, a ação foitambém declaratória, em moldessemelhantes aos da família Teles.De acordo com Ângela, algumasinformações e relatos que vieramà tona durante o processo dos Telespropiciaram a nova ação. “Nósfomos assistir à audiência e houveuma testemunha, o Ivan Seixas, quedeclarou que ele tinha visto o Ustramatar ou deixar matar o jornalistaLuiz Eduardo Merlino. Foi a partirdessa declaração que nós começamosa procurar advogado,juntar documentos”, lembra.A analogia entre as açõesdas duas famílias não ensejou,porém, desfechos similares.Em 24 de setembro de2008, o Tribunal de Justiça deSão Paulo extinguiu o processomovido pela família Merlino,por suposta inadequação, ao caso,da ação declaratória. O mérito nãochegou a ser analisado, conformedestaca um dos desembargadores,no voto: “É preciso deixar bem claroque o reconhecimento da falta deinteresse de agir, na espécie, não podeser confundido com declaraçãode inocência do réu, aqui agravante,relativamente aos fatos gravíssimose imperdoáveis que lhe são imputados.O que se afirma é que o meioprocessual eleito não é adequado.Apenas isso”.A família Merlino recorreu dadecisão. Entretanto, na avaliação40de Ângela, está em jogo uma questãopolítica que não se restringe aopassado: “São escaramuças jurídicasque, na verdade, estão espelhandouma enorme resistência deuma parte da população brasileiraque não quer ver esclarecidos essescrimes, como também não quer veresclarecidos os crimes de hoje: tortura,execuções sumárias e tudo”.Palavras que encontram eco naanálise do jornalista Ivan Seixas,diretor do Fórum de Ex-Presos ePerseguidos Políticos de São Paulo,Apresentada pelaOAB, uma Arguiçãode Descumprimentode Preceito Fundamental(ADPF 153) defende que aAnistia não beneficia os agentes darepressão que praticaram torturase assassinatos, pois estesseriam crimes comuns enão políticose testemunha em ambas as ações.Aos 16 anos de idade, Ivan foi presoe torturado junto com o pai, Joaquimde Alencar Seixas, ambosmilitantes do Movimento RevolucionárioTiradentes (MRT). Seupai, um histórico militante comunista,morreria dias depois, em conseqüênciadas torturas sofridas noDOI-CODI comandado por Ustra.Para o jornalista, o Brasil amargahoje sérias decorrências do períodoRevista <strong>Adusp</strong>repressivo, para além das prisõese torturas. “Os danos causados àcultura, à juventude como um todo,à inteligência do país foram muitograndes. Então você tem que fazeresse resgate, mudar essa mentalidade”.Na sua avaliação, as ações edebates que vêm se sucedendo nosúltimos anos podem resultar emagudo impasse: “Tem um crescendohoje, um grande debate que colocaa discussão sobre punição dos torturadores:‘pode ou não pode’. Adiscussão não é ‘pode ou não pode’.É ‘deve’ ou a gente se omite. Essaé a questão” (vide artigo de Seixasna p. 52).Ambas as famílias são representadaspelos advogados Aníbal Castrode Sousa e Fábio Konder Comparato.Este último assina ainda,juntamente com o presidentenacional da Ordem dos Advogadosdo Brasil (OAB),Cézar Britto, uma ação quequestiona a reciprocidade daLei de Anistia de 1979. Protocoladaem outubro de 2008, noSupremo Tribunal Federal (STF),a Arguição de Descumprimento dePreceito Fundamental número 153consiste no entendimento de que“a anistia concedida pela citada leiaos crimes políticos e conexos nãose estende aos crimes comuns praticadospelos agentes da repressãocontra opositores políticos duranteo regime militar (1964/1985)”. ParaComparato, trata-se de assumir responsabilidadesperante a História,de forma civilizada. “O que a OABquer é que a mais alta Corte de Justiçado país diga, perante a opiniãopública nacional e internacional, sea Lei de Anistia beneficiou os assas-


Revista <strong>Adusp</strong>Amélia Telessinos, torturadores e estupradoresdo regime militar, que atuaramcom apoio dos governantes daépoca e com financiamento deempresários paulistas”, sintetiza.O ano de 2008 registrouainda uma outra açãoque pretende a punição dostorturadores, de autoria doMinistério Público Federal(MPF) em São Paulo. Assinadapelos procuradores Eugênia Fáveroe Marlon Weichert, a Ação CivilPública em questão tem como réusa União e os coronéis Carlos AlbertoBrilhante Ustra e Audir dos SantosMaciel (recentemente falecido),que comandaram o DOI-CODI doII Exército entre 1970 e 1976. Pedeque sejam tornadas públicas todasas atividades do órgão, bem comoos nomes dos agentes militares ecivis que ali serviram e os dos presospolíticos; que Ustra e Macielsejam responsabilizados pelos crimescometidos no período; que aUnião seja declarada omissa porDaniel Garcianão requisitar reembolsopelas indenizações pagasàs vítimas; por fim, queambos os militares sejamcondenados a reembolsaresse montante à União.Esses eixos traduzemos princípios da chamadajustiça transicional, conjuntode medidas destinadasa assegurar a transição deum regime de exceção paraum democrático, e queconsistiriam nos direitos àA Advocacia-Geral da União, umórgão do governo federal,desafiou vários ministros epreferiu alinhar-se à posição dacúpula militar e de Nelson Jobim,emitindo pareceres favoráveisà tese de que a Anistiacontempla também osagentes da repressãoverdade, justiça e reparação. “Tudoque se faz em termos de justiça transicionaltem como objetivo principala não-repetição. Essa ação defendeum direito coletivo, do interesse públicobrasileiro em ver totalmenteapurados esses fatos, de responsabilizaros seus autores, e de recomporos cofres públicos por isso queaconteceu. A população brasileiranão pode arcar sozinha com isso”,explica Eugênia.Março 2009A ação do MPF-SP destaca aindaque, por se tratarem de violênciassistematicamente infligidas pelo Estadocontra setores da populaçãocivil, tais atos constituem crimes delesa-humanidade, previstos em acordosinternacionais dos quais o Brasilé signatário. Eugênia é categórica aoresponder aos que argumentam quea condenação não seria possível, poresbarrar nas leis brasileiras. “O conceitode crime contra a humanidadefoi criado justamente nesse contexto.Ele é o tipo de fato que enseja puniçãomesmo que a lei interna do paístenha obstáculos. Quem faz as normasinternas? O governo. É óbvioque ele vai procurar alguma maneirade se isentar disso. É o tipo de situaçãoque você não pode pensarcom a cabeça de penalista, paracrimes como os demais crimesque a gente conhece. Vocêtem que pensar que entrounuma outra esfera de violaçãode direitos, o que nuncafoi feito no Brasil. Mas tambémnão tinha sido feito nos outrospaíses, e eles estão fazendo.”Representado por seu advogado,Paulo Esteves, em todas as ações emque figura como réu, o coronel Ustranega ter participado de sessõesde tortura e afirma que jamais aspermitiria em órgão que comandasse.“No mérito, meu cliente negaque tenha participado qualquer violênciacontra a pessoa. Eu acreditoque seja verdade”, afirma Esteves.Em contestação à ação movida peloMPF, a defesa alega que “o MPFé parte ilegítima para defender opatrimônio do Tesouro Nacional”;que o processo deveria se direcionarà União, já que “o réu agiu como41


Março 2009representante do Exército, no soberanoexercício da segurança nacional”;e que estaria coberto pela Leide Anistia, “que pressupôs esquecimentorecíproco”. Para o advogado,o debate suscitado é desnecessário:“Esse problema já está resolvido,porque as pessoas que participaramdisso daqui a cinco, dez anos estarãotodas mortas. Isso, se porventurahouvesse necessidade, já deveria tersido feito vinte anos atrás. Passou ahora de ficar discutindo”.No início de novembro de 2008,o processo do MPF foi declaradosuspenso até que o STF dê sua interpretaçãodefinitiva da Lei deAnistia. Mas, antes da suspensãodo processo, a Advocacia-Geralda União (AGU) emitiu parecersobre o caso, no qual corroboraelementos centrais da defesa dostorturadores, reiterando a abrangênciada Lei de Anistia para alémdos opositores ao regime militar.O parecer afirma que, em todo caso,os crimes em questão estariamprescritos. Quanto à obrigação doEstado de divulgar as informaçõespertinentes, acrescenta que “nãoexiste qualquer documento relativoao período estipulado”, “sendo impossívelo fornecimento dos documentospleiteados”.Belisário dos Santos Junior, exsecretárioda Justiça e da Defesa daCidadania do Estado de São Paulo,classificou como “escândalo jurídicoe político” o parecer da AGU.“Sustentar a possibilidade de destruirdocumentos públicos, dar aentender que quem fizer isso temrespaldo é um horror”, opina. “AAGU diz para os torturadores: destruamo que não destruíram ainda!”Eugênia Fávero, procuradora da RepúblicaPaulo Vannuchi, ministro da SE-DH, ameaçou se demitir: “Se, ao finalde uma paciente, perseverante,persistente e disciplinada argumentaçãointerna, prevalecer esse ponto devista, uma pessoa como eu tem quedeixar o governo e voltar para a sociedadecivil para levar adiante essamesma atividade”, afirmou Vannuchi,que protocolou na AGU pedido dealteração do parecer, para que passassea considerar o crime de torturaimprescritível e insuscetível de anistia(vide também entrevista na p. 27).Na mesma linha manifestaram-se osministros Tarso Genro, da Justiça, eDilma Roussef, da Casa Civil.A AGU alinhou-se, porém, aoministro Nelson Jobim, da Defesa,que encampou a posição da cúpuladas Forças Armadas. Entre seusaliados está o presidente do STF,ministro Gilmar Mendes, que vêno debate sobre a imprescritibilidade“uma discussão com dupla face,porque o texto constitucional tambémdiz que o crime de terrorismoé imprescritível”.Revista <strong>Adusp</strong>Daniel GarciaEm 30 de janeiro de 2009 a AGUemitiu um novo parecer, desta vezno processo movido pela OAB,e manteve sua posição favorávelaos agentes públicos envolvidos narepressão, alegando que a lei emquestão não estabelece “qualquerdiscriminação, para concessão dobenefício da anistia, entre opositorese aqueles vinculados ao regimemilitar”, e que “assegurou-se, coma lei, que ambos os lados seriam beneficiadoscom a anistia, evitandose,inclusive, qualquer espécie derevanchismo no novo governo”.É de se presumir que a disputaentre, de um lado, os que exigem odireito à memória e à verdade, e deoutro lado os defensores do perdãopara os torturadores continue acesa.“Por mais que houvesse uma políticaoficial do esquecimento, da desmemorização,isso não aconteceu, porque osfatos foram de tal gravidade que elesestão, ainda que de forma distorcida,no imaginário do povo”, diz MariaAmélia. “Alguém sempre levanta. Nãovai cair no esquecimento”.42


Revista <strong>Adusp</strong>Março 2009Por uma “contra-Operação Condor”Natália GuerreroJornalistaReunidos no Rio de Janeiro, pesquisadores e ativistas latinoamericanosdiscutem propostas de integração mais sistemáticados países na garantia dos direitos a memória, verdade e justiçano tocante aos crimes cometidos nos períodos ditatoriais — emanifestam preocupação pela ambigüidade com que o Brasilvem tratando o tema. O encontro promoveu, pela primeira vez,conferência de representantes das Comissões de Reparação e Verdadede nove países, que culminou com a assinatura da Carta Latino-Americana de Justiça de Transição, que enfatiza a ampla cooperaçãoKelen MeregaliSessão do Seminário Latino-Americano de Justiça de Transição (Rio de Janeiro, 2008)43


Março 2009Ainda que sutis, nãoforam poucas as cobrançasfeitas ao Brasilpor participantesdo Seminário Latino-Americano de Justiçade Transição, ocorrido entre osdias 17 e 19 de novembro de 2008,no Rio de Janeiro, sob organizaçãoda Comissão de Anistia doMinistério da Justiça, do ConselhoLatino-Americano de CiênciasSociais (Clacso) e da UniversidadeEstadual do Rio de Janeiro(Uerj). Durante dois dias, foramrealizadas palestras com pesquisadores,juristas, militantes de direitoshumanos e representantesdo poder público e de ONGs,em que se discutiram os eixosque compõem a chamadajustiça de transição, fundamentalem processosde democratização: memória,verdade, justiça ereparação.Para Gerardo Caetano, diretordo Instituto de CiênciaPolítica da Universidade da República,no Uruguai, a compreensãodo que deva ser a justiça transicionalno continente passa poruma profunda análise do que significoua Operação Condor, o quefoi o terrorismo de Estado, suasmetas e efeitos. “O terrorismo deEstado não foi irracional, não foium excesso. Foi, sim, um projetosistemático, muito racional e muitoexitoso, não nos enganemos. Equal seu objetivo central? Imporo silêncio. É um trabalho políticosobre o tempo. A política dadesmemória, do silêncio imposto,da normatização. E que bus-44ca a imobilidade. Uma sociedadesem memória é uma sociedadeque não se mobiliza, não muda, eque permite coisas que outras nãopermitem.”Com relação ao debate jurídicoque se debruça sobre as possibilidadesde punições ou de aberturade arquivos, o cientista políticoentende que a discussão deva seramparada pelos marcos do sistemapolítico democrático: “Na democracia,a fronteira entre o que seA Carta aprovadaaponta como eixosfundamentais de umaredemocratização plena abusca da verdade, a consolidaçãoda memória social, a responsabilizaçãonacional e internacional dosagentes estatais que cometerame promoveram crimesimprescritíveispode fazer e o que não se podefazer sempre está em discussão. Ademocracia é um sistema inacabadoe inacabável. Sempre haveráum novo horizonte de verdade e dejustiça a discutir”. Esses novos horizontes,aponta Caetano, devemincluir uma política regional dedireitos humanos, já que a buscade familiares de um país depende,freqüentemente, de arquivos quese encontram em outros países:“Por isso, o que se passa no BrasilRevista <strong>Adusp</strong>me importa muito, e advogo, comocidadão do Mercosul, que o Brasilassuma, como soube assumir emoutros momentos, os desafios demais verdade e de mais justiça”.As análises da argentina VivianaKrsticevic, diretora executivado Centro pela Justiça e o DireitoInternacional (Cejil), vão ao encontrodas recomendações de Caetano.Para ela, o trabalho do órgãonos últimos anos, de mediador entreos países e a Corte Interamericanade Direitos Humanos da Organizaçãodos Estados Americanos(OEA), tem as características deuma “contra-Operação Condor”.Fortalecer o tema democráticoimplica, em sua opinião, a articulaçãode alianças entresobreviventes, familiares,militantes e advogados detodos os países: “O paradigmados direitos humanosé que nessas coisas fundamentaissomos a Humanidade,e não nos definimos pornossa nacionalidade.”Krsticevic teceu extensos elogiosàs recentes iniciativas judiciaisdo MPF e da OAB, e deixouclaro que o governo brasileiroestá em dívida com a justiça detransição. Uma das expectativasé com relação ao processo, emtrâmite no STF, de extradição domajor uruguaio Manoel Cordeiro,que vive no país e é apontadocomo responsável por torturas eassassinatos durante as ditadurasargentina e uruguaia. “Se dissernão à extradição de Cordeiro, oBrasil tem a oportunidade de seconverter, infelizmente, em umpaís que ampara os ditadores e os


Revista <strong>Adusp</strong>Juiz Carlos Alberto Rosanski, da ArgentinaKelen Meregalirepressores de toda nossa região”,alerta a argentina.O terceiro e último dia do Semináriofoi palco da inédita Conferênciadas Comissões de Reparaçãoe Verdade da América Latina.Sediado simbolicamente em salãodo Arquivo Nacional, o encontrocontou com representantes de novepaíses: Argentina, Brasil, Chile,Colômbia, El Salvador, Guatemala,Paraguai, Peru e Uruguai. Emsuas apresentações, as comissõesrelataram as dificuldades inerentesàs especificidades dos respectivosmomentos históricos, mas, demodo geral, e com o Brasil aindana retaguarda, sinalizaram avançosimportantes no que tange àabertura de arquivos, criação deespaços de memória, adaptaçãodo arcabouço jurídico ao direitointernacional, reparação às vítimasde violações de direitos humanose, em alguns casos, até mesmo nojulgamento e condenação dos perpetradoresdos imprescritíveis crimesde lesa-humanidade.Ao final da Conferência, os paísesassinaram uma Carta Latino-Americana de Justiça de Transição,que reitera “a importânciado comprometimento de todos osórgãos institucionais e das organizaçõesda sociedade civil no engajamentopela busca da verdadesobre os fatos ocorridos duranteos regimes de exceção, a partirde medidas garantidoras do acessoamplo e universal a todos osdocumentos oficiais elaboradosà época”. O documento apontacomo eixos fundamentais para aconquista da redemocratizaçãoplena do continente: busca da verdade;consolidação da memóriasocial; responsabilização nacionale internacional dos agentes estataisque cometeram e promoveramcrimes contra a humanidadedurante os regimes de exceção; reformadas instituições estatais parao fortalecimento da democraciae a integração regional para açõesMarço 2009globais de justiça e memória.“É imperativo da justiça queos Estados latino-americanos, quepassaram por regimes de exceção,coloquem à disposição de toda asociedade nacional e internacionalseus aparatos institucionaispara que sejam apurados e julgadosos crimes praticados em nomedos Estados, considerados imprescritíveispelas normas do direitointernacional, amplamente aceitaspelos países da América Latina”,versa outro trecho da Carta.Coube ao magistrado argentinoCarlos Alberto Rozansky, juizpresidentedo Tribunal Criminalde La Plata e membro fundadordo Fórum para a Justiça Democrática,encerrar o seminário. Nocerne de seu discurso, uma proposta:que se mudem os paradigmaspelos quais se pensa a justiça.O terrorismo de Estado tinhaseus próprios — caberia, agora,às sociedades latino-americanasa busca por novos, inclusive pelarevisão de anistias, indultos e leisde punto final. “Todos os países daregião que ratificaram os tratadosde direitos humanos são obrigadosa cumprir esses tratados. Issosignifica que nos paradigmas atuaisnão existe espaço para indultoalgum, de nenhum repressor quetenha violado direitos humanos,porque essa permanência da impunidadedesonra os países quefirmaram essas convenções”, afirmou,sob fortes aplausos. Paraque não restassem dúvidas, concluiu:“Em matéria de direitos humanos,de terrorismo de Estado,de atrocidades, tomar partidos éacertar”.45


Março 2009Revista <strong>Adusp</strong>Argentinlonge da justiça, maOs processos de punição argentino e chilenonão parecem sequer comparáveis ao brasileiro.Percalços e obstáculos que lhes foram impostosnão impediram que os tribunais daquelespaíses condenassem dezenas de militaresque cometeram assassinatos e outros crimesde violação dos direitos humanos, inclusivegenerais e ex-presidentes. Mas isso não querdizer que os resultados sejam inteiramentesatisfatórios: ainda falta muito para que oprocesso de punição seja dado por completoDario de Negreiros eJorna46


Revista <strong>Adusp</strong>Março 2009Aos 28 anos, a meteorologistaLeonor não só era militante dosindicato dos empregados civis daaviação militar argentina, de ondehavia sido demitida dois mesesantes de seu desaparecimento, comoparticipava ativamente do movimentosionista local. O Processode Reorganização Nacional — comose autodenominava o governoditatorial de militares como JorgeVidela, Eduardo Massera, OrlandoAgosti, Roberto Viola e LeopoldoGaltieri — mal escondia seu antiae Chiles à frente do BrasilJosé Tadeu AranteslistasEm agosto de 1976, LeonorGertrudis Marxsaiu para ir ao cinema.Sua mãe, Ellen Pincusde Marx, que teve afamília dizimada noscampos de concentração nazistas eescolhera a Argentina para fugir deHitler, veria, quase quarenta anosdepois de seu exílio, o nome da filhaentrar para a lista dos mais de30 mil desaparecidos da Ditaduramilitar mais sangrenta da AméricaLatina.47


Março 2009semitismo, tratando presos de origemjudia com especial brutalidade.Repressores que se faziam chamarde Füher, gravações de discursosde Hitler e saudações nazistascompõem a memória daqueles quelograram sair com vida dos mais de340 centros clandestinos de detenção,espalhados por todo o territórionacional. “O aparato repressivocobria todo o país; cada cidade, cadavilarejo, cada bairro. Para efeitode repressão, as Forças Armadasdividiram o território nacional emzonas, distribuídas entre o Exército,a Marinha e a Aeronáutica”, diz ojornalista Carlos Gabetta, diretorda edição argentina do periódicoLe Monde Diplomatique.Em outubro de 1983, coma eleição de Raúl Alfonsín,teve fim o período de oitoanos de arbítrio na Argentinae, apenas dois mesesdepois, as três juntas militaresque dirigiram o país desde1976 foram processadas. “Emmeados de 1984, já tinham sidoencaminhadas aos tribunais cercade 2 mil denúncias criminais. Maisde 800 testemunhas foram convocadase os militares, acusadosde mais de 700 crimes”, informaa jornalista e doutora em CiênciaPolítica pela USP Glenda Mezarobba,estudiosa do tema. Videlae Massera foram condenados àprisão perpétua; Viola e Agosti, a17 e 4 anos e meio de prisão, respectivamente.Mas, em setembrode 2007, quando, aos 87 anos, EllenMarx faleceu, Videla cumpriapena em sua própria residência,e aqueles que foram diretamenteresponsáveis pela morte de Leonoraguardavam em liberdade seus julgamentos.O caso de Leonor Marx é umexemplo de que nem sempre faz jusà realidade argentina a imagem deum país que acertou as contas comos crimes da Ditadura. Se, por umlado, pouco tempo após o fim doregime, grandes líderes da repressãoforam julgados e condenados, atática do governo Alfonsín de concentraras punições na cúpula dasForças Armadas não tardou a surtirefeitos favoráveis aos criminosos.Somente em2005 seriamdefinitivamentedeclaradas inválidas peloSupremo Tribunal argentinoas leis do “Ponto Final” e da“Obediência Devida” e,em 2007, anulados osindultos concedidospor MenemEm 1986, foi sancionada aquelaque ficou conhecida como “Lei doPonto Final”, que dava um prazode 60 dias para que fossem feitosos indiciamentos. “Naqueles doismeses, o que se viu nas Cortes foium fluxo intenso de novas açõescontra os militares”, relata Glenda,destacando que, embora 730acusados tenham se beneficiadocom a lei, 450 novos casos ingressaramno sistema antes que expirasseo prazo dado pelo governo.Revista <strong>Adusp</strong>No entanto, alguns meses depois, oCongresso sancionaria a chamada“Lei de Obediência Devida”, quedesresponsabilizava os oficiais quetivessem agido no cumprimento deordens superiores. “Até os generaissupostamente teriam cumpridoordens vindas de cima. Destemodo, todos estavam desculpados,a não ser a cúpula”, explica o professorOsvaldo Coggiola, do Departamentode História da USP emembro do Conselho Editorial daRevista <strong>Adusp</strong>.Luciano Menéndez, um dos generaisbeneficiados por esta lei,malogrou duas vezes na tentativade seqüestrar Coggiola, quebuscou o exílio após ser expulsoda Universidade de Córdobae ter sua casa devastada pelosmilitares. Menéndez comandavao III Corpo doExército, responsável pelocentro de detenção La Perla,em Córdoba, onde maisde 2.200 pessoas teriam sidotorturadas e mortas.Em 1989, a luta dos militaresargentinos pela impunidade alcançariasucesso completo, ainda queprovisório. Assim que assumiu aPresidência, Carlos Menem indultou,por decreto, 70 civis e 220 militares,dentre os quais 39 oficiaisde alto escalão, como Galtieri eMenéndez. “Depois de 10 anos emais de 30 mil pessoas seqüestradas,desaparecidas ou assassinadas,não havia ninguém preso. Absolutamenteninguém”, ressalta Coggiola.Somente em 2005 seriam definitivamentedeclaradas inválidas peloSupremo Tribunal argentino as leisdo “Ponto Final” e da “Obediência48


Revista <strong>Adusp</strong>Devida” e, em 2007, anulados os indultosconcedidos por Menem.Desde então, consideráveisavanços têm sido alcançados. Emjulho deste ano, Menéndez, quecumpria pena em prisão domiciliar,foi condenado à prisão perpétuaem cadeia comum. “La hiena de LaPerla”, como era conhecido o general,já tivera seus bens arrestadospelo Estado em 2007, assim comoo general Antonio Bussi, cujas propriedadessomavam cerca de US$20 milhões. “Embora o número decondenados ainda não seja expressivo,as ações contra acusados decrimes cometidos durante o regimemilitar estão longe de representaruma exceção”, explica a pesquisadoraGlenda.O argentino Rodolfo Yanzón,advogado de acusaçãonos casos da célebre Escolade Mecânica da Marinha(Esma), pensa que “aindafalta muito para que o processode punição possa ser dadopor completo”. Além de privaçãode liberdade, torturas e extermínio,ocorreu na Esma uma práticapeculiar à Ditadura argentina: oseqüestro de bebês. Em 1997, o excapitão-de-corvetaAdolfo Scilingoadmitiu que a recomendação daEsma a seus oficiais era para queos filhos de perseguidos políticosfossem seqüestrados e entregues a“famílias ocidentais e cristãs”. “Porquea morte física, só, não basta”,afirma Vladimir Safatle, professordo Departamento de Filosofia daUSP. Em debate realizado recentementena Cidade Universitária, emSão Paulo, Safatle citou os seqüestrosde bebês como o mais claroTerminado oregime ditatorial,a Concertación,coalizão partidária quegoverna o Chile até hoje,manteve Pinochet no comandodas Forças Armadas pormais oito anos, quandose tornou senadorvitalícioMarço 2009exemplo de que, em um regime totalitário,nem mesmo o extermínioé suficiente. “Faz-se necessário apagaros traços, impedir que aquelescapazes de portar as memórias dasvítimas nasçam”.Yanzón espera que, em 2009,sejam julgados os casos dos militaresda Esma e do I Corpo do Exército,unidade responsável por BuenosAires e da qual faziam parte osassassinos da jovem meteorologistaLeonor Marx. “O caso de Leonorfará parte do próximo julgamento”,garante. “Ellen não pôde verninguém condenado, mas sua energia,sabedoria e solidariedade paracom as vítimas estão conosco”.Apesar de nunca ter sido encarcerado,não há dúvida de que o casomais conhecido de condenação a ummilitar das ditaduras do Cone Sul éo do chileno Augusto Pinochet. Em1998, aproveitando que o ex-ditadorestava em Londres por conta de umacirurgia, o juiz espanhol BaltasarGarzón, que se tornou mundialmentecélebre ao indiciá-lo pelos crimesde genocídio, terrorismo e tortura,obteve sua captura pela Interpol.Ainda na capital inglesa, Pinochetcumpriu pena em prisão domiciliar,sendo liberado 503 dias depois, apósser considerado incapaz por umajunta médica. Em Santiago, no dia10 de dezembro de 2006, morreuaos 91 anos, antes que pudesse serjulgado em centenas de processosdos quais era réu.“A Concertación negociou coma Ditadura, e pelas costas do povo,a manutenção do modelo econômicoe a impunidade de Pinochet”,diz Hervi Lara Bravo, daComisión Ética Contra la Tortura,do Chile. Terminado o regimeditatorial, a Concertaciónde Partidos por la Democracia,coalizão que governa oChile até hoje, manteve oex-ditador como comandantedas Forças Armadaspor mais oito anos, quandoPinochet deixou o posto parase tornar senador vitalício.“Pinochet morreu velho e livre,depois que se descobriu que nãoera somente culpado de crimes,mas, ainda por cima, um ladrão deprimeira”, lembra o professor Coggiola.Além de 2.008 mortos, 1.183desaparecidos e mais de 28 miltorturados, Pinochet legaria cercade US$ 27 milhões em contas bancáriasno exterior. Elizabeth Lira,professora da Universidade AlbertoHurtado, de Santiago, observaque, em relação ao número de pessoasdetidas e torturadas, “deve-seconsiderar que as cifras só incluemaqueles que decidiram levar suadenúncia à Comissão Nacional so-49


Março 200950bre Prisão Política e Tortura, quenão são todos”. Do mesmo modo,para Lara Bravo o número real dedesaparecidos seria próximo de 4mil, quase o quádruplo das estatísticasoficiais.No dia 29 de agosto de 2008,o ministro Hugo Dolmestch, doSupremo Tribunal chileno, apresentouum balanço do andamentodas causas de violações de direitoshumanos ocorridas no governo dePinochet. Dos 250 casos, apenas81 haviam sido julgados, restando169 investigações e inquéritosem curso. Lara Bravo lembraque continua em vigor a Lei deAnistia decretada por Pinochet,que garante a impunidade detodos os que cometeram atosde violação dos direitos humanosentre 11 de setembrode 1973 e 11 de marçode 1978. “Além disso, nãose individualizam os criminosos,pois os tribunais estãoproibidos de divulgar os nomesdos assassinos e torturadores porum período de 50 anos. Isso é um‘ponto final’ disfarçado”, diz, emreferência à já revogada lei de impunidadeargentina. E acrescenta:“Não foram submetidos a processosos civis que participaram doscrimes nem os que enriqueceramdurante a Ditadura, graças às vantagensdadas pelos guardiões dosricos”.Ainda assim, Elizabeth Lira vêcom bons olhos o andamento dosprocessos, que, para ela, “têm desafiadoa impunidade histórica, baseda paz social no país desde 1814”.“É a primeira vez que os responsáveispor crimes políticos são julgados,sentenciados e cumprem suaspenas”, pondera.Se ainda parece haver muito ase caminhar para que os processosde punição aos criminosos das ditadurasargentina e chilena possamser dados por completos, bastauma mudança de perspectiva paraque sejam vistos como exemplares.Afinal, tanto Argentina comoChile estão longe da total impunidadeaos violadores de direitoshumanos que é vista no Brasil. “ONo Brasil asindenizaçõesestipuladas pela Lei10.559, de 2001, variam deacordo com o cálculo dos ganhosque as vítimas teriam nas respectivasatividades profissionais, o queacaba por servir comofator de desigualdadeeconômicaúnico país que realizou de maneirabem-sucedida essa profecia foi oBrasil. A profecia mais monstruosae espúria de todas: a profecia daviolência sem traumas”, diz VladimirSafatle.Para Glenda Mezarobba, alémdo dever de punir os responsáveispor crimes contra a humanidade, atransição para a democracia impõeao Estado outras três obrigações:a revelação dos crimes e suas circunstâncias,a renovação das instituiçõese o direito à compensação,Revista <strong>Adusp</strong>monetária ou não, das vítimas.“Já está bem estabelecido que osEstados têm essas quatro obrigaçõesa cumprir, quando fazem essapassagem. Mas, no caso brasileiro,somente o dever de reparar foi trabalhado”,afirma.Ainda assim, saltam aos olhos asdistorções do sistema de reparaçõesadotado no Brasil. Uma MedidaProvisória editada em 2001 peloentão presidente Fernando HenriqueCardoso, e posteriormenteconvertida na Lei 10.559, calculaas indenizações pelo “tempo que oanistiado político esteve compelidoao afastamento de suas atividadesprofissionais”. Ou seja, o Estadonão indeniza a vítima porquefoi torturada, mas porque,enquanto ela era torturada,não podia trabalhar. Se, naArgentina, este raciocíniofoi prontamente recusadocomo alternativa até por CarlosMenem — que se recusou aequiparar prisão, tortura e ocultamentode cadáveres a acidentes detrabalho — semelhante bom sensoparece ter escapado a FHC.As indenizações brasileiras oscilam,assim, de acordo com os ganhosque cada vítima teria em suaatividade profissional, o que, alémde servir como mais um fator produtorde desigualdade econômica,parece dizer que a tortura de umbem-afortunado profissional liberalvale mais do que a tortura deum trabalhador de baixa-renda. NaArgentina, por sugestão do próprioMenem, para cada dia de detenção,a vítima recebe o equivalente a umtrigésimo do salário mais alto dofuncionalismo público nacional.


Revista <strong>Adusp</strong>Além disso, a adoção isoladade uma política de compensaçãomonetária às vítimas, sem que setrabalhe por revelação da verdade,punição dos criminosos e renovaçãodas instituições, pareceser uma boa receita para que osindenizados sejam vistos pela populaçãocomo aproveitadores doscofres públicos. O próprio FHC,entrevistado por Glenda, soltou:“No fundo, todo mundo quer umaboquinha no Tesouro”.Em relação à revelação dos crimese de suas circunstâncias, háopiniões divergentes sobre o desempenhodos Estados chileno eargentino. “As instituições brasileirascontribuíram muito parao esquecimento, ao contráriodo que ocorreu na Argentinae no Chile, em que as instituiçõescontribuíram paraque se fizesse justiça”, opinaGlenda. Ela destaca, porexemplo, o trabalho feito naArgentina pela Comissão Nacionalsobre o Desaparecimentode Pessoas, a Conadep (vide seusresultados em www.desaparecidos.org/arg/conadep/). “Uma das recomendaçõesda Conadep foi a deque nunca mais na Argentina serepetissem os desaparecimentos.E eles trabalham isso de forma tãoprofunda que, em 2006, a Argentinase tornou protagonista, juntocom a França, de uma convençãoque vai tratar dos desaparecimentosno mundo”, conta.Contudo, para o professor OsvaldoCoggiola, o Estado argentinofoi antes um entrave do que umauxílio para o restabelecimento daverdade, sendo a Conadep umadas tentativas de abafamento daverdade: “Esta Comissão estabeleceuuma cifra de pouco mais de 10mil pessoas desaparecidas. Ora, todomundo sabe que foram cerca de30 mil desaparições”. A dimensãogenocida dos crimes da Ditaduraargentina, que conseguem superarem muito, tanto em números absolutosquanto relativos, os cometidosno Chile e no Brasil, teria obrigadoo Estado argentino a fabricar supostosesforços de desvelamentoda verdade. “Como na ArgentinaA escalagenocida doscrimes da Ditaduraargentina teria levadoo Estado a fabricar supostosesforços de revelação da verdade.Seria este o papel daConadep, no entenderdo professorCoggiolanão se podia simplesmente abafar averdade, ela foi fantasiada: criou-seuma mitologia”, afirma.Feitas as ressalvas, os processosde punição argentino e chileno nãoparecem ser sequer comparáveisao brasileiro. Com todos os percalçose obstáculos que lhes foramimpostos, os tribunais daquelespaíses já condenaram dezenas demilitares que cometeram crimes deviolação aos direitos humanos. Ojornalista Carlos Gabetta destaca aMarço 2009importância de, logo após o fim daDitadura argentina, a cúpula dasForças Armadas ter ido a julgamento:“Nunca antes os chefes deuma Ditadura militar latino-americanatinham sentado no banco dosréus, sido exemplarmente julgadose condenados”.Gabetta fala com a perspectivade quem viveu o processo na própriacarne. “Minha companheira, ajornalista Maria Elena Amadío, foiassassinada em 1976, poucos diasdepois do golpe de Estado. Seusrestos foram encontrados em 2004,após 18 anos, mas os autores diretosdo crime nunca apareceram.O Estado ofereceu uma reparaçãoeconômica a seu filho, Raúl”.É evidente que atrocidadescomo as que foram cometidasnão podem ser, de fato, reparadas.“Essas iniciativastentam apenas sinalizar,no plano simbólico, que háuma preocupação do Estadopara que isso não mais se repita”,explica Glenda. Quem luta pelareal consolidação da democraciaparece cada vez mais perceber que,se houver esquecimento dos crimescometidos no passado, sua lutafracassará. “Não há esquecimentoquando sujeitos se sentem violadospor práticas sistemáticas de violênciaestatal e de bloqueio da liberdadesocialmente reconhecida”, dizo professor Safatle. “E, por maisque todos procurem se livrar dosmortos, matando-os uma segundavez — matando-os com essa mortesimbólica que consiste em dizer quea morte deles foi em vão, que o seudestino é a vala-comum da história—, os corpos retornam”.51


Março 2009Revista <strong>Adusp</strong>Em defesa daDemocracia!Ivan SeixasJornalista, diretor do Fórum Permanente dosEx-Presos e Perseguidos Políticos de São PauloFoto: Anderson Barbosa52A punição dos torturadores que estiveram a serviço do terrorismo deEstado deve ser um ato de afirmação da sociedade contra a barbárie.A tortura não é coisa do passado, mas prática corriqueira ainda nosdias de hoje contra a população pobre de nosso país. Os grupos deextermínio de hoje são cópias do Esquadrão da Morte do delegadoFleury. As mortes por resistência à prisão são repetições do queos DOI-CODI faziam antigamente. As torturas em delegacia, quetodos sabem ser rotina, permanecem por causa da impunidade dostorturadores do passado. A imagem é de visitantes do Memorial daResistência que escutam depoimentos de ex-presos políticos


Revista <strong>Adusp</strong>Março 2009Punir ou não punir torturadores?Eis a questão.A sociedade brasileiratrava um tímido,mas fundamental, debatesobre o encerramentototal da Ditadura e os personagensse calçam de todos os argumentosdevidos. Apesar de parecerum assunto passado e distante darealidade da população, é a antigaluta entre a barbárie e a Humanidade.O que resultar vencedor ditaráas normas (ou falta delas)para a sociedade brasileira.Punir torturadores não éum mero detalhe, mas partefundamental do processohumanitário e deconstrução da Democracia.É uma questão de fundo paraa continuidade da vida dosbrasileiros, principalmente paraos pobres.Como de hábito, a direita brasileirareduz a discussão para desviara atenção do que é realmenteimportante. Ou sofisma abundantementepara que não se entendade qual assunto estamos falando.A questão da punição aos torturadoresdos tempos da Ditadura é omais recente exemplo dessa torpemaneira de deixar tudo como sempreesteve.A esquerda, pelo menos a parteenvolvida na discussão, até mostracerta paciência e moderação e sebaseia em argumentos jurídicos etécnicos consideráveis. Os partidosO ministroda Defesa, NelsonJobim, reproduz a visãodo governo de João BatistaFigueiredo e tenta dar ordens deencerramento da discussão.Mas os tempos são outros eninguém se amedronta cominsinuações de golpes oucaras zangadas dosfardadosde esquerda estão prostrados dianteda sedução da atividade institucionale se mostram incapazes deentender a realidade.E o governo? O governo refletea sociedade da maneira maisprimária possível e tem várias carase bocas falando. O lado democráticoe articulado do governofaz a defesa da possibilidade depunição dos torturadores com argumentosobjetivos. Por seu lado,a direita do governo se enredacom as visões mais atrasadas dosmilitares e recupera o discursodos tempos da Ditadura.Os ministros Tarso Genro, daJustiça, e Paulo Vannuchi, dos DireitosHumanos, provocaram a discussãoe seguram os argumentoscivilizatórios em alto nível. Comeles, andam partes consideráveisda sociedade civil organizada.O ministro da Defesa, NelsonJobim, reproduz a visão do governode João Batista Figueiredo etenta dar ordens de encerramentoda discussão. Mas os tempos sãooutros e ninguém se amedrontacom insinuações de golpes ou caraszangadas dos fardados. O paquidérmicoministro faz dobradadireitista com o presidente do SupremoTribunal Federal (STF),Gilmar Mendes, que entre umhabeas-corpus e outro paraDaniel Dantas ameaçacom julgamentos para osdois lados. Tremenda bobagem,pois ninguém temmedo disso.Ele, que pretende ser umpoder moderador de nossa Democracia,ameaça com as súmulasdo Judiciário mesmo antes de decisõesda suprema corte nacional.Seu partner, o ministro Marco AurélioMello, ousou dizer no votosobre o pedido de extradição de umtorturador uruguaio que ele seriaimpune pelas leis brasileiras, esquecendo-sede que as justiças argentinae uruguaia não perguntaramsua opinião sobre qual lei é melhorpara esse réu. Os demais ministrosainda não se pronunciaram sobre aAção de Descumprimento de PreceitoFundamental impetrada pelaOAB nacional. A corte ainda esperao voto do relator Eros Grau.53


Março 2009O debate até ressuscitou o coronelJarbas Passarinho. Ele aindafala com aquele sorriso serenode monstros de filme de terror efaz uso de palavras rebuscadas natentativa de parecer erudito ou peremptórioem suas sentenças. Agrideos promotores federais colocando-osna condição de simpatizantesdo “terrorismo de esquerda”, comonos velhos tempos faziam os torturadoresem suas notas oficiais. Insultaos ministros Genro e Vannuchilembrando suas antigas militânciasna esquerda armada. E ameaçaos céus.O presidente Lula assiste a tudono aguardo de algum lance providencial.Muito provavelmenteantes disso virá uma condenaçãointernacional ao Brasil,que adia providências há décadas,desde os tempos dosditadores e seus DOI-CO-DIs. A Organização dos EstadosAmericanos tem prontauma censura formal ao Estadobrasileiro e deve torná-la públicaaté março ou abril. Depois dissoa norma internacional deverá serrespeitada ou valerá a vontade degente como Gilmar Mendes.O que a sociedade brasileira, aHumanidade e a História esperamde Lula é um gesto (um só) que coloqueum ponto final na discussãoe encaminhe para a superação daDitadura. Para que a Democraciaprevaleça e os ideais de direitos humanos,cidadania e a Humanidadepossam seguir seu curso normal.O que falta é a chamada vontadepolítica, que mostra as intenções domandatário e que sua política deveser cumprida por seus subordinados.Para recolocar as coisas nos devidoseixos, é preciso que o Presidenteda República, comandante-em-chefedas Forças Armadas,chefe do Estado e representantemaior da população e da naçãobrasileira, diga claramente qual rumoo país deve tomar. Em seu silêncioomisso ele permite pronunciamentosdesconectados de seusministros, ousadias de chefes deoutros poderes e aventureiros detoda a ordem, que ocupam o vaziodeixado por ele.Lula deveria abriros arquivos darepressão política,para que não hajasegredos eternos.Nenhum dos vários governosdemocráticos trouxeà luz o teor dosexecráveis DecretosSecretosRevista <strong>Adusp</strong>O Presidente Lula deve dizerque as Forças Armadas não estãoacima ou abaixo da Nação, nãosão tutoras de um povo inerte ouo poder moderador da sociedade.Deve dizer que elas fazem partedo Estado Nacional e são submetidasà Constituição como todasas outras instituições nacionais,portanto, devem cumprir sua funçãoconstitucional, sem interferirna ordem das coisas. E maisdo que tudo, dizer que essas corporaçõesnão podem dar ordensao Poder Judiciário, Legislativo emuito menos ao Poder Executivo,do qual são parte obediente. Issoé o dever do Chefe da Nação, seucomandante-em-chefe.Por não dizer nada e não sepronunciar sobre o equilíbrio depoderes constitucionais, Lula permitiuque Gilmar Mendes, presidentedo STF, ocupasse espaçopolítico, que não é seu papel, ese arvorasse em chefe do poderdecisório da Nação. Ele é, hoje, orabo abanando o cachorro. O vaziode poder foi ocupado por umhomem de direita, com um apetiteinsaciável pelo poder.Ao conduzir o país de modoclaro, Lula deveria abrir os arquivosda repressão política,principalmente das ForçasArmadas, para que nãohouvesse segredos indevassáveisou eternos. Nãohá o que esconder. Por umaquestão de lógica, documentosproduzidos pela Ditadura sãodocumentos contra a Democracia.A Ditadura não pode ter segredoscontra a Democracia e a Democraciaprecisa saber o que foi feitocontra ela durante os vinte e umanos de império do terror.Muito mais do que saber doscrimes de torturas e assassinatos,a sociedade democrática tem o direitoe precisa saber o que fizeramcom as artes e a ciência nacionais.Precisa conhecer os danos causadosà nossa juventude de então equais os males ainda existentes nosdias de hoje, herança da Ditadura.Nenhum dos vários governos democráticos(Collor, Itamar, FHC e54


Revista <strong>Adusp</strong>Lula) trouxe à luz o conteúdo dosexecráveis Decretos Secretos. Essesdocumentos, por exemplo, cassarama patente do capitão SérgioMiranda de Carvalho, o Sérgio Macacodo caso Parasar, e extinguirama Panair, empresa aérea símbolo daépoca pré-1964. E o que mais podemter feito contra o país?A sociedade democrática nãopode permitir que os torturadoresainda continuem utilizando frasesdesconexas de um discurso dostempos da Guerra Fria. A justificativapara matar comunistas eraum discurso esfarrapado que elesimportaram apenas para encobrirtorturas e assassinatos, regiamentepagos pelo dinheiro achacadode empresários assustadoscom seus crimes e pelo caixaarrecadado entre empresáriosanti-comunistas efascistas. É mais do queconhecido que cada cabeçade militante preso ou mortosignificava uma recompensadesse macabro caixa, além dosaque feito nas casas e bolsos dosopositores. A indústria do anticomunismorendeu muito a essesagentes do terror de Estado e issotambém deve ser apurado.Os atuais chefes militares, atéprova em contrário, nada têm comos crimes de seus antecessores.Também não podem conviver comsubordinados impunes pelo simplesfato de serem torturadoresintocáveis. Isso quebra a hierarquiade qualquer corporação, poiso torturador alega sempre que seuschefes são os chefes dos torturadorese não seu comandante atual.Ou seja: um general não mandanum tenente torturador ou um delegadonão manda em seu subordinadotorturador de outros tempose protegido pela “omertá” doDOI-CODI, CIEx, Cenimar, Cisa,P-2 ou DOPS de outros tempos 1 .Deixando de lado esse cenárioOs torturadoresensinam seumacabro ofício aosnovatos policiais e militares.Deixar que jovens, em buscade uma profissão igual às outras,sejam transformados emtorturadores assassinos é omaior dos crimes contraos direitos humanosde política do Estado, a puniçãoaos torturadores deve ser um atode afirmação da sociedade contra abarbárie. A Humanidade não podepermitir a proliferação de crimesou o culto a esses crimes. A torturaMarço 2009não é coisa do passado, mas práticacorriqueira ainda nos dias dehoje contra a população pobre denosso país.Os grupos de extermínio dehoje são cópias do Esquadrão daMorte do delegado Fleury. Asmortes por resistência à prisão sãorepetições do que os DOI-CODIfaziam antigamente. As torturasem delegacia, que todos sabemser rotina, permanecem por causada impunidade dos torturadoresdo passado.É preciso ser didático e nãodeixar impunes esses criminosos,que ensinam seu macabro ofícioaos novatos policiais ou militares.O jovem que entra na políciaquer ser policial e não um torturadorou assassino de aluguelda sociedade corrompidapor práticas monstruosas.O militar quer sermilitar e não torturador.Deixar que transformem jovensem busca de uma profissãoigual às outras em torturadoresassassinos é o maior dos crimescontra os direitos humanos.Os torturadores impunes sãovírus instalados no hardware daDemocracia por um hacker de umpassado distante. Como tal devemser identificados, cercados e tiradosde circulação para que não travemnossa máquina de convivênciahumana e social.Notas1 CIEx: Centro de Informações do Exército. Cenimar: Centro de Informações da Marinha. Cisa: Centro de Informações da Aeronáutica. P-2: Serviço secreto da Polícia Militar. DOPS:Departamento de Ordem Política e Social.55


Março 2009Revista <strong>Adusp</strong>Encontro de ex-morado Crusp e da invasDanielaJornDecorridos 40 anosda invasão militar doConjunto Residencialda USP, o episódiofoi rememorado pelosestudantes que alimoravam na época ecujas vidas sofreramuma reviravolta comesse “despedaçar deentranhas”, pois eraum local de intensasociabilidade e importanteponto de apoio domovimento estudantil.Interditado e desocupadopor ordem da Ditadura,o Crusp só foi retomadopelos estudantes, porsucessivas ocupações, apartir de 1979O Exército mobilizou atétanques para a invasãodo Crusp, em 196856


Revista <strong>Adusp</strong>Março 2009dores reaviva memóriaão militar de 1968AlarconalistaAgência Estado“Grande era a ondade agitaçãoe desordem noCrusp”, concluiuo Inquérito PolicialMilitar (IPM)que apurou as atividades “subversivas”praticadas no Conjunto Residencialda USP até a invasão militarde 17 de dezembro de 1968— quando centenas de estudantesforam presos e os prédios, interditados.Morria, desse modo, um dosprincipais espaços de articulação domovimento estudantil no primeiroperíodo do regime militar. “Foi comoum despedaçar das nossas entranhas,porque nós éramos muitounidos ali. Às vezes havia divergêncianas ideologias, mas a gente formavaum grupo coeso, contra ummomento terrível, a Ditadura”, dizMargarida Cecília Corrêa NogueiraRocha. No dia 29 de novembro de2008, Margarida — ou “Formiga”,como era conhecida quando estu-57


Março 2009Revista <strong>Adusp</strong>Daniel GarciaEx-cruspianos reencontram-se: emoções e reconstrução da memóriadante de Pedagogia e moradora doapartamento 501-A — saltava eufóricade um abraço a outro. Nestadata, mais de 600 ex-cruspianos sereuniram no Colégio Notre Dame,em São Paulo, no que foi, para muitos,o primeiro reencontro desde anoite suspensa pelo avanço dos tanquesde guerra sobre o campus.Às portas do quadragésimo aniversárioda invasão, Walter da Silva(ou “Teco”, estudante da História,do 608-E) propôs a realizaçãode uma cerimônia, na AssembléiaLegislativa do Estado, para recordaro ocorrido. As conversas iniciaiscom ex-cruspianos contatadosavivaram o desejo de um encontromais amplo e menos formal.Como não havia lista oficial dosmoradores à época da “OperaçãoCrusp”, recorreu-se a uma rememoraçãocoletiva: partindo de cacosde memória (nome, apelido,cidade de origem), resgataram maisde 900 nomes, incluindo cerca de100 já falecidos. Ao mesmo tempo,criou-se um sítio na Internet(http://crusp68.rits.org.br) para servircomo repositório de documentos.“Aos poucos, muita gente está escrevendo,relatando fatos bastantedolorosos dessa diáspora. Mesmosendo tristes, é preciso trazê-los àtona”, diz Celso Suyama, que foipolitécnico e morador do 606-C.“É uma parte da história que nósestamos em condição de restaurarporque fomos atores disso.”O Crusp foi ganho palmo a palmopelos estudantes. Em 1963, aprimeira ocupação. Construído paraservir de alojamento durante os JogosPan-Americanos, o conjunto foraconcebido para se converter, acabadoo torneio, em moradia estudantil.Finalidade, porém, só cumpridamediante a pressão dos ocupantes.Após a ação dos chamados “pioneiros”,seguiram-se as ocupaçõesdos blocos F e G, em 1967 e 1968respectivamente, para fazer frenteà falta de vagas. Compunha-se, aospoucos, um espaço de intensa sociabilidade,palco de grupos de estudos,teatro, shows, local de assembléiase ponto de partida para passeatase viagens de carona. “O Crusp foiuma grande aprendizagem de convivência,onde trabalhamos nossos58


Revista <strong>Adusp</strong>Março 2009Populares enfrentam a repressão no Butantã, durante protesto contra a invasão do CruspFoto: Agência EstadoTornaramsecélebres aspiadas sobre a revistarealizada pela repressão nosapartamentos do Crusp. Provasmateriais da “subversão” — livrosproscritos, preservativos, e atéum despertador! — foramdepois expostas aopúblico...valores, nossas noções de mundo”,avalia Tereza Lajolo, que estudouGeografia, e morava no 501-A, mesmoapartamento de Margarida.Tomavam forma, também, osespaços de representação cruspianos:de comitês por andarese blocos à Associação deUniversitários Rafael Kauan(AURK), surgida em 1967.A “entidade espúria”, comoa caracterizou o IPM, homenageavaum estudante presente naocupação de 1963, morto mesesdepois em acidente, e passou a tervoz e voto nas entidades estudantis jáexistentes.Mais tarde, evidências da conivênciada universidade comos órgãos de repressão precipitarama autogestão do Crusp. “Alguémfoi preso e se soube que a ficha delefoi entregue pelo ISSU [Instituto deSaúde e Serviço Social da Universidade,depois Coordenadoria de AssistênciaSocial, Coseas] ao DOPS.Então o pessoal fez uma passeataaté a Reitoria, jogou todos os arquivosdo Crusp pela janela epôs fogo, aqui na frente. E agente mesmo começou a administrá-lo”,lembra MouzarBenedito, estudante de Geografia,morador do 202-F, e autorde 1968, por aí...: Memóriasburlescas da ditadura.Inicialmente centrada em reivindicaçõesrelativas às condiçõesde vida no Crusp, como a greve de1965 contra o aumento do preçodo restaurante universitário, a mobilizaçãoassumiu um corte cada59


Março 2009vez mais contestatório, atacando,para além da burocracia universitária,a própria Ditadura militar. Asprincipais tendências políticas deesquerda estavam representadas alie parte dos moradores ingressou naluta armada — alguns foram assassinadospela repressão.Para o primeiro presidente daAURK, Rafael de Falco Netto, umpolitécnico que habitava o apartamento609-B, o Crusp era, alémde espaço aglutinador,“uma baseterritorial de muito fácil mobilização”,que dava guarida a líderesestudantis procurados, e onde setomavam decisões centrais, comoa da realização do Congresso daUNE em Ibiúna.Por conseguinte, era tambémum alvo. A invasão de 1968 veioapenas quatro dias após a decretação,no dia 13 de dezembro, doAI-5 — saudado pelo Comando deCaça aos Comunistas (CCC), nasduas madrugadas seguintes, comdisparos contra os blocos A e F. Porconta desses ataques, os estudantesreforçaram a defesa: “A gente fezumas curvas com umas tubulaçõesde concreto, na rua, e o carro queviesse tinha que entrar fazendo ziguezague,no máximo a 10 km porhora”, lembra Mouzar. “E ficou umpessoal lá com umas bombas molotov,um cara com uma garruchinha.No dia 17, a gente estava esperandouma invasão. Tinha esse esquemade armazenar pedra e garrafaem cima dos prédios, o ziguezaguee uma sirene nessa barricada.”Diante de Exército, Força Públicae Polícia Marítima (munidos debaterias antiaéreas e o respaldo doAI-5), não houve reação.To r n a r a m - s ecélebres as piadassobre a revista realizadapelos agentesda Ditaduranos apartamentosdo Crusp, que terialevado à apreensãode perigosíssimoslivros, por exemploBombas hidráulicas.Provas materiais da“subversão” — livrosproscritos, preservativos, umdespertador suspeito (!) — foramexpostas ao público na sede dos DiáriosAssociados. À tacanhice, combinavam-searbitrariedade e violência.Tereza e mais duas garotas passarammal e foram autorizadas a subir paraum apartamento — à porta, postouseum militar. “Nós dissemos paraele: ‘Escuta, como é que você estáde metralhadora com três mulheresaqui passando mal?’. Aí ele falou:‘Olha, para fazer essa invasão nósficamos quinze dias reclusos e disserampara nós que vocês tinham bateriaantiaérea’. Nós começamos a rir.‘Moço, nós somos estudantes’.”O namorado de Margarida pôdepermanecer no Crusp, pois estavacom hepatite; ao sair da prisãoe retornar ao apartamento, elateve de convencer os militares adeixá-la entrar. “Ele quase entrouem coma hepática, ficou 40 horassem comer, e teve que ser internado”.Quando Mouzar, depois desolto, ousou exigir dos militaresseus objetos pessoais que haviamdesaparecido do Crusp interditado,foi preso novamente.Como arremate ao golpe desfechadocontra os estudantes, oRevista <strong>Adusp</strong>Arquivo pessoalAcima, "Formiga" e Teck no Teatro Novo, nosanos 1960. Abaixo, reencontra uma colegaIPM de 1968 já “recomendava”,em defesa da ordem social e política,a não reabertura do Crusp;para os estudantes sem condiçõesde se manter ao longo do curso,propunha-se a concessão debolsas-moradia. Seria necessáriomais um ciclo de ocupações estudantis,de 1979 a 1983, paraque os prédios fossem retomados.“Uma das coisas que maisincomoda é o estado em que sedeixou ficar o Conjunto Residencial;parece que foi um planoarquitetado de deterioração doambiente”, lamenta Suyama. “Oque deveria ser um projeto deresidência estudantil tornou-seuma excrescência à Universidade,todo mundo olha como se fossealgo a ser suportado, e não algointegrado, que faça parte da formaçãodo estudante.”Daniel Garcia60


Revista <strong>Adusp</strong>Fotos: Agência EstadoMarço 2009Mouzar Benedito, do 202-F:resistênciaDurante a invasão do Crusphouve prisões, como aregistrada na imagem maioracima, respaldadas pelapresença dos “brucutus”,nome dado aos blindados daForça Pública (posteriormentetransformada em PM). Osestudantes tentaram resistirpor meio de barricadasimprovisadas, como se vê nafotografia central. Na imagemao lado, assembléia estudantilno restaurante do Crusp61


Março 2009Revista <strong>Adusp</strong>Professores persão eméritos da FacDanielaJornDaniel GarciaConfraternização e reencontros ao final da cerimônia na Faculdade de Medicina62


Revista <strong>Adusp</strong>Março 2009seguidos agorauldade de MedicinaAlarconalistaEm sessão especial da Congregação, oito pesquisadores afastadose exilados durante a Ditadura militar foram simbolicamentereincorporados ao corpo docente da USP. Sete deles receberam o títulode professor emérito (um já o possuía), gesto que foi definido pelodiretor da Faculdade como uma tentativa de “repactuar a história”,recuperar trajetórias interrompidas e destacar o prejuízo causado àuniversidade por tais perdas. A homenagem estendeu-se também aoutros docentes que se bateram contra as arbitrariedades do regimeHouve um tempo emque, no enxergarenviesado dos conservadoresaninhadosna burocracia daUSP, a ameaça comunistarondava os corredores daFaculdade de Medicina (FMUSP)e de outras unidades: em reuniõesacadêmicas, agentes da subversãoestariam tramando um golpe contraa ordem. Era preciso intervir!Meses depois de os militares assumiremo poder, veio a primeiraresposta, quando o reitor Gama eSilva estabeleceu uma comissão especialpara investigar os suspeitos.Os professores que compunham acomissão secreta sugeriram a suspensãodos direitos políticos de 52pessoas, entre professores, estudantese funcionários. Era o início deuma longa história de perseguições.Em seguida, viria uma constelaçãode inquéritos policiais militares(IPMs), até 1969, quando, após oAto Institucional nº5, dois decretosfederais determinaram o afastamentode mais 27 professores.Fichados, cassados, aposentados,presos ou exilados ao longo dessesanos, os “subversivos” deixaram oslaboratórios e salas de aula.Cerca de quatro décadas depois,oito professores perseguidos durantea Ditadura militar foram simbolicamentereincorporados ao corpodocente da USP, em uma sessão especialda Congregação da FMUSP,63


Março 2009em 18 de setembro de 2008. ErneyFelício Plessmann de Camargo,Luiz Hildebrando Pereira da Silva,Luiz Rey, Michel Pinkus Rabinovitch,Pedro Henrique Saldanha eThomaz Maack tornaram-se professoreseméritos. Isaias Raw, quejá possuía o título, recebeu a medalha“Arnaldo Vieira de Carvalho”.A peculiar fuga de cérebros promovidapela Ditadura com a cumplicidadedos setores conservadoresda USP espalhou os professoresmundo afora. Suas contribuiçõesao ensino, pesquisa e extensão chegarama países como França, EstadosUnidos e Tunísia, e elesacabaram reconhecidos pelacomunidade acadêmica internacional.“A maioria de nós conseguiurefazer a vida e manterlaços com o país”, observouMaack, que trabalha até hoje naUniversidade de Cornell, em NovaYork. “Quem mais sofreu foiquem viveu o exílio interno”, disse,lembrando, além dos professoresjá falecidos que também sofreramperseguições, aqueles que, apesarde não terem sido forçados a deixaro país, foram submetidos a pressõesque dificultariam seu acesso às ferramentasnecessárias ao desenvolvimentoacadêmico.Entre eles, Samuel Barnsley Pessoa.Responsável desde 1931 pelacátedra de Parasitologia, Pessoa desenvolveuuma das principais linhasde estudos sobre o tema na Américado Sul; em 1945, ele já aventavahipóteses sobre a leishmaniose queoutros pesquisadores só redescobririamrecentemente. Para a Ditadurae seus apoiadores, porém, o64Professor Thomas MaackAo lado deprofessores comtrajetória de militânciapolítica, figuravam entreos perseguidos alguns que nãofaziam oposição direta ao regimefora do âmbito acadêmico, eoutros que sequer eramde esquerdaFotos: Daniel Garciamédico não passava de um mentorcomunista, em torno do qual secongregavam estudantes e professores“subversivos”. Segundo LuizHildebrando, que foi seu aluno, aotestemunhar a perseguição a seuscolegas Pessoa teria jurado nuncamais pôr os pés na faculdade: “Elefoi para o [Instituto] Butantã porque,como ele dizia, trabalhar comcobra não dava IPM”.Os trabalhos de campo haviamfortalecido as posições políticas domédico, que ajudou a desenvolverlaboratórios de parasitologia em outrasuniversidades do país e atuouem políticas de Estado, anteriores àProfessor Luiz HildebrandoRevista <strong>Adusp</strong>Ditadura, que buscavam combatermoléstias como a esquistossomosee a malária. “AParasitologia era uma cátedracom propensão a atitudes sociais,porque tratava as doençasque, em geral, eram dos pobres”,observa Gerhard Malnic, professoraposentado do Instituto de CiênciasBiomédicas, também presente àcerimônia na FMUSP. A repressãopraticamente ceifaria o departamentode Pessoa, com os expurgos, entreoutros, do casal Leonidas e MariaDeane, já falecidos, de Plessmannde Camargo, de Luiz Hildebrando eLuiz Rey (vide quadro).Ainda que considerado menos“comunista” que a Parasitologia,o Departamento de Fisiologia erademasiado “esquerdista” e, portanto,junto ao de Bioquímica,também foi alvo da repressão. Catedráticoda Fisiologia em 1964,Alberto Carvalho da Silva resistiuà pressão dos militares, negandosea demitir Maack, jovem professor-assistente,outrora militante


Revista <strong>Adusp</strong>Março 2009Samuel Pessoa sob o crivoda Fundação RockefellerO suposto “desvio ideológico”de Samuel Pessoa já fora notadopela Fundação Rockefeller, da qualo médico foi bolsista. Luiz Antoniode Castro Santos pesquisou, no RockefellerArchive Center, as fichasde acompanhamento dos bolsistas.“Talvez a mais insólita das anotaçõespertença ao perfil do parasitologistaSamuel Pessoa”, comenta,no prefácio do livro Norte-americanosno Brasil: Uma história daFundação Rockefeller na Universidadede São Paulo (1934-1952), deMaria Gabriela Marinho.Os primeiros registros, nosanos 1920, elogiavam o desenvolvimentoacadêmico do médico.Paralelamente ao acirramento daGuerra Fria, porém, as consideraçõesmudam de tom: Pessoa estariaatuando, ao mesmo tempo,como professor e “doutrinadorsubversivo”. Seus assistentes estariam“provavelmente recebendosubsídios além de seus saláriosnormais”, supostamente para realizarproselitismo político.Pesava contra o médico sua filiaçãoao antigo Partido Comunistado Brasil: em 1945, candidatou-se adeputado federal pelo então PCB.Sua visita à China comunista, nosanos 1950, confirmaria as suspeitas.Ainda que tenha viajado comomembro de uma comissão científica,aos olhos da Fundação Rockefellerele “prostituiu” sua “indiscutívelcompetência científica”.Em um discurso na UniversidadeFederal da Bahia, já em 1962,Pessoa denunciaria o que, ao seuver, era um dos objetivos do imperialismonorte-americano: “transformaro estudante brasileiro emum ‘técnico’, desligado do mundoem que vive, tal como se passa como estudante norte-americano”.Depois que deixou a USP, o assédiocontra Pessoa seria mantidopor longos anos: a última investida,segundo Luiz Hildebrando, veioem 1976, quando, aos 77 anos deidade, foi levado encapuzado à sededo DOI-CODI, na rua Tutóia, esubmetido a interrogatório. Morreriaum ano depois. Sua mulher, JovinaPessoa, engajada politicamentedesde jovem, adentraria os anos1980, já idosa, saindo às ruas paradenunciar as atrocidades das ditadurasdo Cone Sul, como membrodo Comitê Feminino pela Anistia.trotskista. Maack, que lembrou oepisódio durante a homenagem naFMUSP, acabou preso no mesmoano, depois de ter sua casa invadida.Exilou-se nos EUA, após setemeses aprisionado no navio-presídioRaul Soares, em Santos — noqual também foi confinado LuizHildebrando, que se exilou em Paris,onde se tornou pesquisadordo Instituto Pasteur (e, filiado aoPCB, atuou no Comitê Brasileirode Anistia de Paris).Ao lado desses e de outros professorescom trajetória de militânciapolítica, figuravam na lista de perseguidosalguns que não expressavamoposição direta ao regime fora doâmbito acadêmico, e outros aindaque sequer poderiam ser consideradosde esquerda. O “indesejável”traço que os unia, identifica Maack,era a defesa da reforma universitáriae do papel social da universidade.Carvalho da Silva, por exemplo,não desempenhou atividade político-partidária.“Mas em política universitáriafoi muito ativo”, lembraMalnic, que foi seu orientando nodoutorado, “tanto assim que fundoua Associação dos Auxiliares deEnsino, que anos mais tarde dariaorigem à <strong>Adusp</strong>”. As reivindicaçõesdos professores reunidos na associaçãogiravam em torno de melhoriasna carreira (como tempo <strong>integral</strong> eaumento salarial) e, especialmente,da extinção da cátedra vitalícia. “Sóo catedrático tinha um posto fixona universidade. O resto, se brigavacom o catedrático, era mandado embora”,recorda Malnic.As disputas internas à USP, muitasligadas à obtenção de cátedras,convergiriam com as práticas de delaçãoengendradas pelo golpe. Em1978, a publicação da <strong>Adusp</strong> O livronegro da USP apresentou provas daatuação do conservadorismo internoem perseguições políticas (estaobra foi relançada em 2004 sob o65


Março 2009Revista <strong>Adusp</strong>Fotos: Daniel GarciaProfessor Boulos, diretor da FMProfessor Gerhard Malnic emociona-setítulo O Controle Ideológico na USP[1964-1978]). Ao vencer o concursopara catedrático, Carvalho da Silvafoi acusado por seu concorrente deser “esquerdista”, e submetido aum IPM. “Quando depus no InquéritoPolicial Militar que se instalouna Faculdade de Medicina em 1964,o coronel Ênio Pinheiro me perguntoupor que apenas os homensde esquerda tinham vez na universidade.Respondi que era simples —eram quase os únicos interessados,os que faziam pesquisa, e por essemotivo estavam assumindo cargos”,relatou Carvalho da Silva em depoimentoa Malnic e Plessmann deCamargo.Apesar de liberado em 1964,cinco anos depois seria aposentadocompulsoriamente e afastado daFapesp, que ajudara a criar. “Em1969 não houve inquérito”, disseele. “Uma das alegações para a minhacassação foi a de que, como diretorcientífico da Fapesp, eu teriaaprovado muitas bolsas e auxíliospara comunistas. Contaram-me queessa foi a explicação do Gama eSilva.” Sua cassação, junto a dezenasde outros professores da USP,desencadearia uma greve estudantilna FMUSP, logo reprimida.Um dos estudantes ativos nagreve esteve presente na homenagemde 18 de setembro. “Queroagradecer ao professor GerhardMalnic”, disse o ministro da SecretariaEspecial dos Direitos Humanos,Paulo Vannuchi, estudante daFMUSP entre 1969 e 1970, “queteve a coragem de ser minha testemunhade defesa na AuditoriaMilitar, no momento em que todossabiam que isso podia lhe custar investigação,problemas na carreira”.Recém-chegado ao Brasil quandodo golpe de 1964, após quase trêsanos de pós-doutorado em Cornell,Malnic ganhou pecha de esquerdista,por conta da amizade comfiguras como Maack e Carvalho daSilva, o que, ele mesmo reconhece,de certo modo o expunha a possíveisrepresálias dos militares. “Maseu não tinha muito medo. Como eunão tinha muita atividade políticaantes, achava que não ia ter problema.”Ajudou não só Vannuchi, mastambém outros alunos perseguidos.Esses, além de médicos e funcionáriosdo Hospital das Clínicasque também foram alvos darepressão, serão homenageados embreve, informa o professor MarcosBoulos, diretor da FMUSP. Estásendo preparada, ainda, uma compilaçãode depoimentos sobre aépoca, a ser publicada no centenárioda faculdade, em 2012. ParaBoulos, a concessão dos títulos deprofessor emérito foi um espaçopara “repactuar a história”, recuperandotrajetórias interrompidase destacando o prejuízo causadopor tais ausências ao desenvolvimentoda universidade. “A perdadessas competências atrasou e muitoo crescimento da nossa casa. Atéhoje sentimos as conseqüências daarbitrariedade praticada.”66


Revista <strong>Adusp</strong>Março 2009O poder da palavraimpressa: os livros dedenúncia da torturaapós o golpe de 1964Flamarion MauésDoutorando em História na FFLCH-USP67


Março 2009Desde o golpe de 1964,a tortura voltou a serutilizada como armade repressão política.O objetivo desse artigoé apresentar deforma sucinta alguns dos primeiroslivros publicados no Brasil que denunciarama tortura de dissidentespolíticos após o golpe. Trata-se deum levantamento preliminar, apenasde obras editadas até 1979.A tortura foi certamente o maisvil e covarde método utilizadopela ditadura brasileira de 1964contra os adversários políticos.Principalmente a partir de 1969,a organização de um sistema repressivoaltamente centralizado eseletivo será uma das marcas doregime. A repressão e a torturanão tiveram nada de improvisado:não se tratou de “excessos” deum ou outro militar mais violento.Foi algo planejado e estruturado,realizado sob o comando das ForçasArmadas, que empregaramseus homens, instalações e conhecimentospara esse fim.As vítimas da tortura levam suasmarcas para sempre. Não há comoapagá-las. É um mal que não temfim, um crime cujas seqüelas sãopermanentes e atingem tambémos familiares e amigos das vítimas.Mas, para além desse aspecto, atortura tem também um lado social,político, da maior importância.Como destaca Maria Helena MoreiraAlves, em Estado e oposiçãono Brasil – 1964-1984: “O uso generalizadoe institucionalizado da torturanuma sociedade cria um ‘efeitodemonstrativo’ capaz de intimidaros que têm conhecimento de suaexistência e inibir a participaçãopolítica”.O livro Torturas e torturados,de Márcio Moreira (1966),foi proibido e recolhido,mas liberado pela justiça emjulho de 1967, ano em quesaiu a segunda ediçãoRevista <strong>Adusp</strong>Já em 1964 surgiram as primeirasdenúncias de torturas, que deramorigem, em 1966, ao primeirolivro de denúncia desses fatos: Torturase torturados, de Márcio Moreira(Rio de Janeiro, Idade Nova,1966). O livro foi proibido e recolhidopelo governo federal, sendoliberado pela justiça em julho de1967, ano em que saiu a segundaedição da obra. É um livro documental,que procura registrar oscasos de tortura ocorridos naqueleperíodo da forma mais detalhadapossível.A partir de 1969, a estrutura derepressão será reorganizada sob novosmoldes, com o fim de combatere eliminar a dissidência política,principalmente a armada, de formaseletiva. Em julho surgirá a OperaçãoBandeirante (OBAN), emSão Paulo, que inova ao criar umaestrutura mais dinâmica para a repressão,em que o comando estavacom as Forças Armadas, mas queincluía também setores das políciascivis estaduais.O modelo terá êxito e será institucionalizadoem 1970, com a criaçãodos Destacamentos de Operaçõesde Informações dos Centrosde Operações de Defesa Interna(DOI-CODI). É nesse período, entre1969 e 1975, que serão assassinadossob tortura ou desaparecerãoa grande maioria dos mortos e desaparecidosda ditadura brasileira.Houve, ainda que de forma muitolimitada, denúncias dessas atrocidades,principalmente por meiode cartas enviadas à imprensa porfamiliares de pessoas que erampresas ou sumiam repentinamente.Algumas dessas cartas foram publicadas.Houve também denúnciaslevadas a público por bispos e pelaCNBB, ou pela OAB, mas a suarepercussão era muito reduzida, emvirtude do clima político ditatoriale da censura.68


Revista <strong>Adusp</strong>Março 2009No exterior houve muitas denúnciasdas torturas praticadas noBrasil. Na Europa, na AméricaLatina (principalmente antes dosgolpes no Chile e na Argentina) enos Estados Unidos organizaramsegrupos de exilados, de familiarese de pessoas, geralmenteligadas à universidade e a igrejas,que produziram dossiês sobre asviolações aos direitos humanospromovidas ou toleradas pela ditadurabrasileira. Foram açõesde grande importância: apesarde praticamente não repercutiremno Brasil, devido à censura,tiveram grande repercussão internacional,criando constrangimentosao governo.Ao reunirem farta documentaçãosobre casos de torturas,mortes e desaparecimentos, essesgrupos também colaboraram parao surgimento das primeiras publicações— boletins, jornais e, depois,livros — editadas no exterior sobreo assunto. Formaram também a memóriadesses casos. No Brasil, todavia,prevalecia o silêncio sobre arepressão e as torturas.Romances de AntonioCallado (Bar Don Juan,de 1971) e Lygia Fagundes(As Meninas, 1973) estãoentre os primeiros livros adenunciar a tortura no Brasildurante a Ditadura MilitarUm dos primeiros livros editadosno Brasil a denunciar a torturaé o romance Bar Don Juan, deAntonio Callado (Rio de Janeiro,Civilização Brasileira, 1971). Éum romance crítico à luta armada,mas que registra a violência comque ela estava sendo combatidapelo regime, ao mostrar como ospersonagens João e Laurinha foramtorturados.Em 1973 outra obra de ficçãoaborda o tema: As meninas, de LygiaFagundes Telles (Rio de Janeiro,José Olympio, 1973). Uma daspersonagens, Lia, é simpatizantedos grupos guerrilheiros de esquerdae namora um guerrilheiroque está preso e que lhe fala dastorturas na prisão. No capítulo 6,surge a reprodução da carta deum preso político, denunciando69


Março 2009com detalhes as torturas que haviasofrido. De acordo com a autora,trata-se de um relato verídico queela recebeu por carta de um presopolítico e reproduziu na íntegrano livro 1 .Em 1974 apareceu o que talvezseja a primeira obra de não-ficçãoeditada no país a abordar aquestão da tortura, um livro depronunciamentos políticos. Tratasede Oposição no Brasil, hoje, deMarcos Freire, advogado pernambucanoe deputado federal peloMDB, que concorria à eleição parao Senado naquele ano (e sairiavencedor). O livro, da editora Paze Terra, à época já adquirida porFernando Gasparian (proprietáriotambém do jornal alternativoOpinião), reproduz discursos e debatesparlamentares. O capítulo 2,intitulado “Em defesa dos direitoshumanos”, traz denúncias sobreo desaparecimento do ex-deputadoRubens Paiva, reproduzindodepoimento de sua esposa, EunicePaiva, além de abordar váriosoutros casos de pessoas presas edesaparecidas e de denúncias detorturas.Outro livro de não-ficção queapresentava um breve relato sobreum caso de tortura e morte de dissidentepolítico foi o 20º. volumeda coleção “História da RepúblicaBrasileira”, do historiador HélioSilva, intitulado Dos GovernosMilitares – 1969-1974 (São Paulo,Editora Três). Publicado em 1975,foi retirado das livrarias pela censurapor tratar, entre as páginas132 e 136, da morte de Stuart EdgarAngel, militante do MovimentoRevolucionário 8 de Outubro (MR-8) desaparecido em 14 de maio de1971. A mãe de Stuart, Zuzu Angel,comprou vários exemplares nasbancas antes do recolhimento, e osdistribuiu a conhecidos 2 .Em 1977, o romance Em câmaralenta (São Paulo, Alfa-Omega),de Renato Tapajós, descreve cenasde tortura sofridas por AuroraMaria Nascimento Furtado (semmencionar seu nome), militanteda Ação Libertadora Nacional(ALN) morta em 10 de novembrode 1972. O livro foi proibido e seuautor preso.Em 1978, Memóriasdo exílio: Brasil 1964-19?? é publicado como“obra coletiva” que teria o“patrocínio” de Paulo Freire,Abdias do Nascimento eNelson Werneck SodréTambém em 1977, Cadeia paraos mortos: Histórias de ficção política(São Paulo, Alfa-Omega),um livro de contos de RodolfoKonder, apresentava descriçõesde torturas vividas pelo próprioautor em 1975, quando estevepreso no DOI-CODI/SP. O livrofoi publicado na mesma coleçãode Em câmara lenta.O mesmo autor publicou em1978 Tempo de ameaça (Autobiografiapolítica de um exilado), emque as mesmas cenas de torturasão descritas, mas dessa vez nãomais como parte de um texto deRevista <strong>Adusp</strong>ficção, mas sim como memórias.O livro também foi editado pelaAlfa-Omega.Inventário de cicatrizes, livro depoemas de Alex Polari (São Paulo/Rio de Janeiro, Ed. Global/TeatroRuth Escolar/Comitê Brasileiropela Anistia-RJ, 1978), descrevesituações vividas pelo autor naprisão.Outro importante livro saiuem 1978: Memórias do exílio: Brasil1964-19??, apresentado como“Obra coletiva dirigida por PedroCelso Uchoa Cavalcanti e JovelinoRamos sob o patrocínio de PauloFreire, Abdias do Nascimento eNelson Werneck Sodré”. O livro,que já havia sido publicado em1976 em Portugal, foi editado noBrasil pela Editorial Livramento.Entre diversos depoimentos e entrevistascom exilados brasileiros,destaca-se o “Dossier Frei Tito”,que descreve em detalhes as atrocidadesa que Tito de Alencar Limafoi submetido, levando ao seusuicídio, na França, em 1974.Em 1978 houve ainda a ediçãode A sangue-quente: A morte do jornalistaVladimir Herzog (São Paulo,Alfa-Omega), longa reportagem deHamilton Almeida Filho que haviasido publicada originalmente no jornalalternativo EX, em novembro de1975. Desmontava a versão de suicídioapresentada para a morte deHerzog e descrevia o clima de medoe terror que se vivia naqueles dias.Devemos mencionar ainda os livrosDas catacumbas: Cartas da prisão(1969-1971), de Frei Betto (Riode Janeiro, Civilização Brasileira) eEnsaio Geral, de Antonio Marcello(São Paulo, Alfa-Omega).70


Revista <strong>Adusp</strong>Março 2009Em 1979 são lançadosdiversos títulos que têm atortura como tema centralou importante, entre elesTortura, de Antonio CarlosFon, e Dossiê Herzog, deFernando Pacheco JordãoFoi em 1979 que a tortura passoude fato a ser um temarecorrente em diversos livros.O clima político umpouco mais aberto, a campanhada Anistia e as discussõessobre reorganizaçãopartidária mostravam que opaís começava a entrar emum novo momento político.Temos aí já uma variedade deobras que abordam a questãoda tortura, seja como um deseus temas centrais, seja comoum dos elementos do livro.Entre os livros que abordama tortura como um de seus temascentrais temos:- Desaparecidos políticos: Prisões,seqüestros, assassinatos, organizadopor Reinaldo Cabral eRonaldo Lapa (Rio de Janeiro,Edições Opção e CBA-RJ). Organizadopelo CBA-RJ, é uma espéciede dossiê de casos de pessoaspresas, torturadas, mortas ou desaparecidas,reunindo informaçõesdetalhadas sobre cada caso.- Tortura: A história da repressãopolítica no Brasil, do jornalista71


Março 2009Antonio Carlos Fon (São Paulo,Global). O livro é conseqüênciade uma reportagem de Fon paraa revista Veja e mostra em detalhescomo havia sido organizadoo aparelho repressivo do regimemilitar e como a tortura de presospolíticos passara a ser utilizada deforma sistemática e “científica”contra os “subversivos”. A descriçãodas técnicas de suplício éfeita de forma circunstanciada,de modo impactante para o leitor.Logo após a reportagem ter sidopublicada, o então ministro doExército, general Fernando Bethlem,pediu o enquadramento dojornalista no artigo 14 da Lei deSegurança Nacional.- Dossiê Herzog: Prisão, torturae morte no Brasil (São Paulo, Global),de Fernando Pacheco Jordão,uma longa reportagem quedesmonta detalhadamente a farsasobre a morte de Herzog em 1975e narra todo o movimento de solidariedadee de resistência a quesua morte deu origem.- 131-D. Linhares: Memorial daprisão política, de Gilney AmorimViana (Contagem, Editora História/ComitêBrasileiro pela Anistia/Movimento Feminino pela Anistia).Traz as memórias e as reflexõesdo autor, então ainda presono Rio de Janeiro.O livro de Viana era de certaforma sintoma do início de umboom de livros de memórias ede depoimentos, que ocorreria apartir daquele ano. Desses livros,vários traziam relatos de torturassofridas pelo próprio autor ou porpessoas com quem ele conviveu.Alguns deles: Milagre no Brasil, deAugusto Boal (Rio de Janeiro, CivilizaçãoBrasileira); Nas profundasdo inferno, de Arthur Poerner(Rio de Janeiro, Codreci) escritoem 1976 mas publicado no Brasilapenas em 1979; O que é isso, companheiro?,de Fernando Gabeira(Rio de Janeiro, Codecri); Poemasdo Povo da Noite, de Pedro Tierra,pseudônimo de Hamilton Pereirada Silva (São Paulo, EditorialLivramento); Confesso que pegueiem armas, de Pinheiro Salles (BeloHorizonte, Editora Veja); Esquerdaarmada: testemunhos dos presospolíticos do Presídio Milton DiasMoreira no Rio de Janeiro, organizadopor Luzimar Nogueira Dias(Vitória, Edições do Leitor).Breves conclusões. Feito estesumaríssimo levantamento dasprincipais obras publicadas nesseperíodo sobre o tema, podemosconcluir que os livros não forampioneiros na denúncia da torturacontra dissidentes políticos noBrasil. Mesmo com as severas restriçõesque a imprensa sofria, jornaise revistas estamparam em suaspáginas algumas notícias e, principalmente,cartas que tratavamdo tema no período mais duro darepressão, entre 1969 e 1975.Revista <strong>Adusp</strong>As denúncias no exterior tambémtiveram um peso importantepara que tais notícias se propagasseminternacionalmente, caracterizandoo governo brasileiro comouma ditadura que torturava presospolíticos, comparável a Grécia,Portugal, Espanha, Paraguai e Chile,na mesma época.Todavia, o papel dos livros queno Brasil primeiro fizeram estadenúncia não pode ser subestimado.Alguns desses livros tiveramsucesso de vendas, ocupando aslistas dos mais vendidos à época,como é o caso de Tortura, DossiêHerzog e O que é isso, companheiro?.O impacto desses trabalhos sedava por constituírem um conjuntode informações até certo pontoconsolidadas sobre os métodos decombate aos grupos de oposiçãoclandestinos que atuaram no Brasilentre o final dos anos 1960 emeados da década de 1970, comdiversos testemunhos em primeiramão sobre as torturas, mortes edesaparecimentos.Parece razoável deduzir queestes livros cumpriram um certopapel na denúncia das arbitrariedadesda ditadura e colaborarampara que este tema tão importante— e tão sensível para osmilitares, muitos dos quais negamaté hoje que existisse tortura— entrasse na pauta do debatepolítico nacional.Notas* Este artigo tem como base a comunicação apresentada no evento “200 anos da imprensa no Brasil”, organizado pelo CEDEM/Unesp, em 8 e 9/10/2008. “O poder da palavra impressa” foio título de uma das mesas.1 SUCUPIRA, Elizabeth. “O engajamento de Lygia Fagundes Telles”. Publicado originalmente por em 01/02/2005. Disponível em:. Acesso em 3/10/2008.2 TELES, Janaina de Almeida. Os herdeiros da memória: a luta dos familiares de mortos e desaparecidos políticos no Brasil. Dissertação de mestrado em História, FFLCH-USP, 2005.72


Revista <strong>Adusp</strong>Março 2009Anistia e reparaçõesavançam, mas restam24 mil casos a apreciarTatiane KleinEstudante de Jornalismo (ECA-USP)Fotos: Daniel GarciaSessão da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, na Câmara Municipal de São Bernardo do Campo (SP)73


Março 2009Revista <strong>Adusp</strong>Decorridos 30 anos da edição da Lei da Anistia, constata-se que25 mil brasileiros que solicitaram o estatuto de anistiado políticotiveram seus pedidos atendidos em sete anos de funcionamentoda Comissão de Anistia, órgão do Ministério da Justiça. Destes,porém, só 9 mil tiveram direito a uma reparação econômica.Outros 13 mil pedidos foram indeferidos, restando por analisar24 mil casos. Acompanhamos uma audiência pública em SãoBernardo do Campo que deferiu 41 pedidos. Levantamos tambémo incrível caso de 495 ex-cabos da FAB que foram desanistiadosAo iniciar-se a sessão dejulgamento promovidaem 23 de setembro de2008 na Câmara Municipalde São Bernardodo Campo (SP), pelaComissão de Anistia do Ministérioda Justiça, o ex-metalúrgico NarrudenValadares não tinha certeza deque seria reconhecido como perseguidopolítico. Mas Narruden, de69 anos, que perdeu a perna direitaem decorrência de espancamentopolicial em 1981, deixou o plenárioanistiado e indenizado. Receberáuma parcela única de R$ 12.450 (30salários mínimos), como reconhecimentode que sofreu perseguiçãopolítica por um ano.Naquela tarde, Narruden ouviuo Estado brasileiro pedir desculpaspelos crimes cometidos contra ele eseus companheiros operários. “Elesme machucaram na época. [A polícia]me botou no camburão e rodou74por São Bernardo”, conta. Depoisde uma hora e meia de agressão pordois policiais empunhando cacetetes,o operário, que nunca chegoua ser dirigente sindical, foi solto.As pancadas deixaram marcas indeléveis:“Depois que bateu [é] queempreteceu minha perna”, explicaNarruden, esclarecendo que apósalgum tempo perdeu o emprego.Desde então, o ex-metalúrgico nãovoltou a conseguir um emprego eviveu adoentado.Homens como Narruden sãoa prova de que o Brasil caminhaainda a passos lentos para a democraciae a reconciliação. Os jornaisde grande circulação fazem ascontas dos gastos do governo comindenizações e dão destaque aosanistiados de renome. As críticasapresentam a Anistia como espéciede privilégio concedido a indivíduose grupos. Mas na verdade, comoinstrumento político, o instituto daAnistia lembra o Estado brasileirodos erros e crimes que ele própriocometeu.Paulo Abrão Pires, presidente daComissão de Anistia, avalia que aindahá muita desinformação: “Issofaz com que algumas pessoas creiamque os valores das indenizações sãofixados arbitrariamente, sem qualquercritério”. Para ele, a reparaçãoeconômica de natureza jurídica indenizatóriae o instituto da Anistia,estabelecidos pela Lei da Anistia de1979 e pela Lei 10.599/02, têm nexoprofundo com as normas fundantesdo regime democrático. Não se trata,esclarece, de recomposição deperdas trabalhistas: “Isso é [papel]da Justiça do Trabalho”; a anistiae as reparações econômicas teriamdimensão sempre simbólica.Dentro de seu protocolo, a Comissãode Anistia registra mais de62 mil processos de requerimentosdo estatuto de anistiado político.


Revista <strong>Adusp</strong>Destes, 38 mil foram apreciadosnos sete anos de funcionamentoda Comissão, sendo 13 mil indeferidose 25 mil deferidos. Abrãoesclarece: “Porém, desses 25 mildeferidos nem todos receberam odireito à reparação econômica, somentea mera declaração de anistiadopolítico, pois a Comissão deAnistia entendeu que não haviadanos morais ou materiais a seremcobertos para aquele anistiando”.O número dos que efetivamentereceberam algum tipo de indenizaçãoé bem menor: 9 mil.O foco da discussão deve ser outro,diz Abrão: “A cada realizaçãode uma sessão de julgamento daComissão de Anistia, nas suasCaravanas da Anistia, há umaoportunidade ímpar paratoda a sociedade brasileiraresgatar boa parte dahistória, recontar aqueleperíodo, rever os personagensprincipais daqueles fatos,para fazer desse processode anistia política um efetivoprocesso de reconciliação nacional.Esses perseguidos políticosaguardam até hoje uma respostapor parte do Estado brasileiro”.Nas sessões de julgamento, oscasos são apreciados em bloco ou individualmente,sempre baseados naanálise de documentos e no voto deum conselheiro. Aos processos soma-setodo tipo de registro que possacomprovar a perseguição políticado anistiando, de cópias de matériasde jornal às suspensões em fábricapor envolvimento em greves.“Não é só o companheiro quefoi torturado, no pau de arara, nãoé só o companheiro que foi preso;Se estavaempregada à épocado regime militar econsegue provar que foidemitida exclusivamenteem razão de perseguiçãopolítica, a pessoa tem direito aprestação mensal vitalícia,correspondente ao salárioque teria se tivessemantido o empregoaqui tem companheiros que nãopassaram por isso, mas só por teremparticipado das greves nuncamais conseguiram emprego. Haviauma lista, todo mundo sabe disso,e esses companheiros eram marcadospara nunca mais conseguiremprego”, lembrou o deputadoVicente Paulo da Silva (PT-SP) aoplenário, na sessão de São Bernardodo Campo. “Quantos irmãos,em [19]80, foram arrancados dafábrica, levados direto para a cadeia?Quantos perderam a vida?Quantos desapareceram, que ninguémsabe onde estão?”, perguntaainda Vicentinho.Entre os 41 requerimentos deanistia apreciados na sessão reservadaaos metalúrgicos da regiãodo ABC, aparecem histórias comoa de Jaime Vicente da Silva Ferreira,conhecido como Jaiminho.Marcado em 1979 em uma das listasnegras, o então militante doNarruden ValadaresMarço 2009PCdoB passou a não parar ememprego; logo era demitido.“Eu fui seqüestrado muitasvezes nas greves”, contaJaiminho. Sem conseguirtrabalhar, o ex-inspetor dequalidade viveu anos emdepressão profunda, em situaçãoquase miserável. “Nenhumaluta é em vão. A democraciapermanece”, reflete. Anistiado,deve receber R$ 2.723,75 em prestaçãomensal vitalícia, além de umretroativo de R$ 404.340,69.No Brasil, diferentemente deoutros países da América Latina,não há lei que fixe um teto paraas indenizações de anistiados. Se apessoa estava empregada à épocado regime militar e consegue provarque foi demitida exclusivamenteem razão de perseguição política,tem direito a uma prestação mensal“permanente continuada”, ou seja,vitalícia — em valor correspondenteà remuneração a que faria jusse não tivesse sido afastada de seu75


Março 2009Revista <strong>Adusp</strong>Anistiado conquista direitode voltar a estudar na USPQuem vê Jorge Gonzaga, oGim, perambular pela Escola deComunicações e Artes da USP(ECA-USP) não imagina queem 1969 ele já estivesse lá comocalouro do curso de Jornalismo.Gim foi julgado à revelia e condenado,naquele ano, por distribuirpanfletos contra o regimemilitar, dois anos antes, na CompanhiaSiderúrgica Nacional, emVolta Redonda, onde trabalhava.Ele, que pertencia à JuventudeOperária Católica (JOC), foi forçadoa passar um ano longe dauniversidade e, ao voltar a ela,não conseguiu permanecer nocurso.“Existia na USP uma repressãomuito forte. Volta e meia estavasumindo alguém, várias pessoasforam presas”, conta Gim. Aindaque não estivesse envolvido maisdiretamente com o movimentode resistência, o estudante e exoperáriomantinha ligações coma JOC e a Ação Popular (AP) emSão Paulo. A decisão de se afastarda USP partiu dele mesmo: “Aqualquer momento eu podia serpreso”, justifica.Gim partiu para o Nordeste,onde passou a trabalhar com teatrode bonecos e cultura popular.Hoje, ele avalia que o trabalhopolítico realizado por lá, que incluia criação de um centro cultural, foirico: “Dentro da minha concepçãosocialista, não me alienei, não vireipequeno-burguês”. A declaraçãode anistiado político e o direito àreparação econômica chegarampara ele em 1985.Quatro anos depois de requisitaro direito de retomar seusestudos na USP é que Gim, commais de 60 anos, pôde voltar àECA: “O Ministério da Justiça jáhavia determinado o meu retornoe a USP não me dava essa vaga”.Os muitos anos de espera e detrabalho com a arte fizeramnodistanciar-se do jornalismo.Depois de seis novos mesesentre o jornalismo e as disciplinasoptativas nos departamentosde artes, Gim afirma estar emdúvida sobre o que fazer na universidade.Mas não se arrependeda luta pela vaga.emprego. Os indeferidos ou descontentescom o valor da reparaçãopodem interpor recurso em até 30dias. Para as pessoas que não tinhamvínculo laboral à época ounão conseguem comprová-lo, a leiestabelece o direito a, no máximo,30 salários mínimos por ano de perseguiçãopolítica. Fatos relativos àtortura e violência, por exemplo,são descritos em todos os processos,mas, conta o presidente da Comissão,não contam para a fixaçãodos valores da indenização.“A Lei de Anistia é imperfeita”,avalia Abrão, “mas ela assim foiaprovada por unanimidade no CongressoNacional. Eu particularmente76Paulo Abrão, presidente da ComissãoDaniel Garciadiscordo dos critérios que ela estabeleceu,pois acabam por aprofundaras desigualdades sociais brasileirase não identificam efetivamenteas pessoas que tiveram um maiorprejuízo ou que tiveram maior sofrimentoem razão das perseguiçõesque sofreram”. Como são utilizadosvalores de mercado (salários pagosàs diferentes categorias ou funções)como parâmetro para o cálculo dasreparações econômicas, o valor médiodas indenizações em prestaçãomensal vitalícia caiu de R$ 6.000em 2007 para R$ 2.500 em 2008,segundo a Comissão de Anistia. Osvalores são consultados junto ao DatafolhaInstituto de Pesquisas.


“Controvérsia interpretativa”dificulta decisão sobre anistiaa ex-cabos da FABEm dezembro último, a OAB Nacional ajuizou umaArgüição de Descumprimento de Preceito Fundamental(ADPF 158) junto ao Supremo Tribunal Federal. Odocumento, patrocinado pelo advogado Maurício Gentile baseado em parecer de Carlos Roberto SiqueiraCastro, fala de um dos casos mais complexos em análisena Comissão de Anistia: o de cabos da Aeronáuticaque foram atingidos pela Portaria 1.104/GM3, de1964. Segundo a ADPF 158, “O Alto Comando dasForças Armadas e a Comissão de Anistia (...) têminterpretado equivocadamente a legislação que rege amatéria, interpretação essa que legitima a instituiçãode um regime diferenciado e discriminado em relaçãoaos militares anistiados políticos”.O texto da argüição parte da situação, relatada àOAB pela Associação Democrática Nacionalista deMilitares (ADNAM), de servidores militares, anistiadospolíticos, que estão sofrendo dificuldades no reconhecimentode seus direitos. É citado também o caso de 495ex-cabos da Força Aérea Brasileira (FAB) que ingressaramna força após a edição da portaria, e que foram“anistiados e posteriormente desanistiados por portariado Ministério da Justiça” (como consta na argüição). Oministro da Justiça, à época, era Márcio Thomaz Bastos.Océlio Gomes Ferreira, um desses 495 ex-cabos,conta parte de sua história: “A partir da decretaçãodo AI-5, em 1968, tivemos ‘liberdade vigiada’. Fomosmantidos sob vigilância constante: não tínhamos odireito de votar, de ocupar cargos públicos, casar, terfilhos, participar de associações, reuniões em clube etrajar à paisana. Ainda, quando estávamos em períodode férias, não podíamos nos ausentar dos nossos Estadosou País. Aqueles que fossem suspeitos de ligaçõespolíticas eram presos ou expulsos, excluídos e desligadospela famigerada Portaria nº 1.104 /GM3/1964”.Em carta remetida à Comissão de Anistia em 2001, omajor-brigadeiro-do-ar Rui Moreira Lima, que à épocaera Comandante da Base Aérea de Santa Cruz, no RioArquivo pessoal - Océlio FerreiraBrigadeiro Rui Lima (à esquerda) e ex-cabo Océlio Ferreirade Janeiro, fala do caráter político da portaria — quedeterminava o desligamento dos cabos caso, em oitoanos, eles não ascendessem na hierarquia. Segundo obrigadeiro, os cabos da FAB teriam sido punidos drasticamentee sem direito de defesa, “com prisões, seguidasde exclusões e desligamentos, mascarando a puniçãoque deveria ser imposta através dos Atos Revolucionáriosde Exceção em simples punições administrativas”,pelo que ele chama de “Revolução de 31 de março”. Acarta indica ainda que os cabos que ingressaram antesde 1964 na FAB estavam organizados em torno da Associaçãode Cabos da FAB (Acafab) e realizavam “manifestaçõesde natureza política”.Os requerimentos dos cabos do pré-1964 e dos 495do pós-1964 foram julgados pela Comissão de Anistiaem 2002, ano em que a Comissão editou um enunciadoadministrativo classificando a Portaria nº 1.104 como“ato de exceção de natureza exclusivamente política”e anistiou os requerentes. Em 2003, contudo, passarama ocorrer as anulações das portarias de anistia


O comandanteda FAB em 2003,tenente-brigadeiro LuizCarlos da Silva Bueno,pediu ao então ministro MárcioThomaz Bastos, da Justiça, ocancelamento das portarias deanistia que beneficiavamex-cabos da força. Econseguiudos cabos do pós-1964. Para militares como Océlio, omotivo é claro: “Eles não querem aceitar, têm medodo Comando da Aeronáutica. Isso não dá ibope para ogoverno. Só querem anistiar quem dá ibope”.Mas o presidente da Comissão de Anistia, PauloAbrão, dá outra explicação: “Os militares representamo segundo maior grupo de requerimentos na Comissãode Anistia, superados apenas pelos ex-vereadores.Conforme registros de 2003, houve uma controvérsiainterpretativa sobre a abrangência dos efeitos da Portaria1.104/64 da FAB como ato de exceção, restringindoo direito de anistia apenas aos que ingressaram naforça até a sua expedição. Estes 495 foram de ingressantespós-1964 e já tinham sido declaradosanistiados em decisão anterior àmudança de entendimento”.Através da ADNAM, a Revista<strong>Adusp</strong> teve acesso a documentosque indicam a interferência doComando da Aeronáutica naanulação das portarias deanistia dos 495 ex-cabos dopós-1964. O ofício 058/CMT/188-Brasília, de 31de janeiro de 2003, enviadopelo à época comandante daAeronáutica, tenente-brigadeiro-do-arLuiz Carlos da SilvaBueno, para o então ministro daJustiça, Márcio Thomaz Bastos,solicita o cancelamento das portariasde anistia de ex-militares da Aeronáutica.Em seguida, o Aviso 1.362, assinado por Bastos,pede que sejam devolvidos os requerimentos de anistiados cabos incluídos na FAB após a edição da Portaria1.104; e a Informação 907/COJAER/2002 afirmaque aqueles cabos foram licenciados por conclusãode tempo de serviço e não por atos de exceção — oque contraria o entendimento da Comissão de Anistiasobre a Portaria nº 1.104. O argumento defendidonesses documentos, para o pedido de anulação de taisportarias de anistia, é de que elas dispenderiam muitodinheiro, podendo lesar o erário público.Questionado sobre a “desanistia” dos 495 cabos,Abrão responde que a Comissão de Anistia e o ministroBastos “entenderam que estes cabos pós-1964tinham sido equivocadamente enquadrados em dispositivojurídico impróprio, gerando a concessão deanistia sem que ficasse caracterizada a perseguiçãopolítica”. O argumento central é o de que tais cabos jáingressaram na FAB sabendo das regras limitantes dacarreira impostas pela Portaria 1.104 e não poderiamalegar perseguição política.“Pela mesma razão a Comissão não concede indenizaçõespara os vereadores que se candidataram aosmandatos já sabendo que eles deveriam cumpri-logratuitamente por força de ato institucional. Não épossível alegar dano material. A anulação dá-se pelaconstatação de que tais cabos não foramatingidos pelo ato. A distinção é simples:o ato previa o afastamento daforça para aqueles que não se reengajassemem prazo determinado(no caso, oito anos). Se sofreramperseguição política dentroda força precisam provarnos autos, uma vez quejá era sabido de antemãoque seriam desligados apósprazo previamente determinado”,finaliza Abrão, lembrandoque os muitos militaresque estavam na ativa e foramafastados por força da portaria de1964 receberam anistia.A Portaria 1.104 vigeu até 1971 e,por isso, na opinião do Océlio, ela atingiuinclusive aqueles cabos que ingressaram na Aeronáuticaapós a sua edição. Ele explica: “Quando nósentramos na Aeronáutica, não assinamos documentonenhum dizendo que seríamos desligados em oitoanos. Todo mundo foi incorporado pela Lei de ServiçoMilitar”. Océlio afirma ainda que, ao tempo do deferimentodas anistias, o entendimento de um dos conselheirosda Comissão era o de que a Portaria 1.104 teriavigido até 1982. A ADPF/158, que já foi encaminhadapara a AGU, também passou pela Presidência daRepública, pelo Senado e pela Câmara dos Deputados.“A gente não tem para quem apelar”, reclama o excaboOcélio. “A nossa única saída agora é o Supremo”.


Revista <strong>Adusp</strong>Março 2009Na USP Ribeirão,Faepa quer ampliar HCpara escondera “segunda porta”Antonio BiondiJornalistaAntonio BiondiEntrada do hospital, no campus da USP de Ribeirão Preto: a serviço do SUS, mas gerido por entidade privada79


Março 2009Revista <strong>Adusp</strong>A Faepa, fundação privada “de apoio” à FMRP, está à frentedo projeto de construção de uma nova unidade hospitalar públicaem Ribeirão Preto, no campus da USP e ligada ao Hospital dasClínicas daquela faculdade. O novo centro contaria com umaunidade de pesquisas (UPC) financiada por fundos públicossetoriais do Ministério da Tecnologia e do Ministério da Saúde,mas ofereceria simultaneamente atendimentos e serviçosa convênios de saúde e a pacientes privados, por meioda Clínica Civil mantida pela própria Faepa!OHospital das Clínicasda Faculdade de Medicinade RibeirãoPreto (HCFMRP-USP) possui hojeuma ambigüidadeestrutural: é um hospital públicoque, além de atender à populaçãoem geral, possui uma Clínica Civildedicada ao atendimento de convêniose particulares. A situaçãonão só é delicada e pouco claraaos olhos da população, como exigiuque a Fundação de Apoio aoEnsino, Pesquisa e Assistência doHCFMRP-USP (Faepa), entidadeprivada responsável pela gestãodo hospital, assinasse um termo deajustamento de conduta (TAC) como Ministério Público Estadual, a fimde adequar a situação às regras doSistema Único de Saúde, o SUS.O projeto de construção de umanova unidade hospitalar no campusda USP, vinculada ao HCFMRP,está sendo avaliado pelas direçõesda fundação e do próprio hospitalcomo o caminho para se resolver a80ambigüidade. O novo prédio teriacomo objetivo agrupar diferentessetores que constituem a Unidadede Pesquisa Clínica (UPC) doHCFMRP, ligada ao Ministério daCiência e Tecnologia (MCT), e potencializariaas pesquisas já desenvolvidaspelos docentes e estudantesda Faculdade de Medicina, hojedispersas no hospital.Por outro lado, o prédio abrigariaa Clínica Civil. Ou seja, emlugar de resolver a ambigüidade,tenderia a transferi-la para o novoprédio. Longe dos olhos do públicoatendido em geral no HCFMRP,portanto, mas com o risco de criaroutro problema. As unidades depesquisa ligadas ao MCT contamcom especificações bastante particulares,e não devem ser voltadaspara outras finalidades — comoocorrerá caso ali venha a funcionara Clínica Civil.Hoje, a clínica está instaladadentro do próprio HCFMRP. Nocaso do hospital, reconhecido comoum dos principais centros de medicinado Estado (cerca de 30% dospacientes provêm de outras regiõespaulistas e até de outras regiõesdo país), é oferecido atendimentopúblico e gratuito a toda a população.Já a Clínica Civil abre espaçopara a comunidade USP, para osconvênios, e, por fim, para atendimentosa particulares, que seguemvalores de mercado — e que chegam,certas vezes, à casa de algumascentenas de reais por consultaou procedimento. Quem recebepor tais serviços são docentes daprópria FMRP. O profissional fixao valor da consulta e a fundaçãoretém o percentual devido à USPe ao HCFMRP e depois repassa osrespectivos recursos.Em 2007, de acordo com o relatóriode atividades disponibilizadopela instituição em seu site, a Faepaobteve uma receita de R$ 119,44milhões, sendo que 90% desse montantevinculava-se à execução doconvênio com o HCFMRP. A maiorparte desses recursos, R$ 92,26 milhõesou 77,24% do total arrecada-


Revista <strong>Adusp</strong>do, correspondeu a verbas oriundasdo SUS (vide tabela). Os atendimentosde particulares na ClínicaCivil geraram receita de R$ 2,46milhões (2,06% do total), ao passoque os atendimentos a convênios eos contratos com laboratórios renderamR$ 5,6 milhões (4,69%). Dototal de atendimentos prestados noHCFMRP em 2007, 97,9% foramde usuários do SUS e filantrópicos,contra 2,1% da Clínica Civil.Quando se lê atentamente o relatóriode atividades da Faepa em2007 nota-se que, embora lide comrecursos públicos, a lógica que predominana movimentação financeirada fundação é privada. Desse modo,o documento aponta polpudos superávitesde R$ 8,62 milhões no exercíciode 2006 e de R$ 7,23 milhõesem 2007. Além disso, a Faepa experimentouum salto substancialem suas aplicações financeiras:passou do total de R$ 30,26milhões em 2006 para R$37,99 milhões em 2007.A existência de dois tiposde atendimento, sob lógicasopostas, é evidentemente incômodaaos olhos da populaçãoque madruga nas filas doHCFMRP para ser atendida. Opróprio superintendente do hospital,Milton Laprega, consideraque “se conseguirmos deslocar esseatendimento daqui para a Unidadede Pesquisa Clínica, acredito queconsigamos deixar as coisas maisclaras e transparentes. Hoje, precisamosmuitas vezes nos justificar,explicar, responder a essas críticasde segunda porta. É ruim para nós.Com a criação da UPC, isso vai ficardevidamente separado.”Receitas da Faepa: 2006 e 2007 (em R$)O hospital conta atualmente com650 leitos, além de outros 160 leitosna Unidade de Emergência. “Dos 650leitos, 23 são usados para a ClínicaCivil”, informa Laprega, explicandoque os professores, autorizados pelaUSP, podem dedicar até 8 horas porsemana aos atendimentos particulares.Segundo o superintendente, doisterços da receita do hospital provêmMarço 2009Origem da receita 2006 2007Renda Hospitalar – SUS 89.100.368 92.256.301Renda Hospitalar – Convênios 4.910.635 5.595.737Renda Hospitalar – Particular 1.923.977 2.464.963Renda SUS – Aditivos 1.362.589 3.738.612Projetos e Pesquisas 3.761.592 3.346.686Receitas com Locações 375.027 387.711Receitas com Estacionamentos 422.482 428.649Receitas Centro de Convenções 585.964 946.186Convênios Públicos 4.443.831 4.696.118Receitas c/ Cursos e Concursos 1.182.781 1.734.814Receitas Financeiras 3.375.021 2.900.843Outras Receitas (operacionais) 340.213 450.712Total receitas operacionais 111.784.480 118.947.332Total receitas não operacionais 711.911 490.133Totais gerais 112.496.391 119.437.465Fonte: Faepa, relatório de 2007A Faepa obtevesuperávites de R$ 8,62milhões em 2006 e R$ 7,23milhões em 2007, e experimentouum salto substancial nas aplicaçõesfinanceiras: passou de R$ 30,26milhões em 2006 para R$37,99 milhões em 2007do Orçamento do Estado, e um terçocorresponderia às verbas do SUS (essesvalores não devem ser confundidoscom a receita da Faepa).De acordo com Laprega, os recursosgerados pelos atendimentosa particulares e convêniosna Clínica Civil representampouco em relação à receitatotal do HCFMRP. “Não dependemosdisso para mantero hospital”, diz. Então, por quemanter a Clínica Civil? Porque,para Laprega, ela tem sido vitalpara que os professores fiquem emperíodo <strong>integral</strong> na FMRP, realizandono hospital atendimentos quepoderiam oferecer em consultóriose hospitais particulares da cidade.A Faepa, por sua vez, alega que amudança será positiva para as pesquisasno HCFMRP, tanto no gerenciamentoquanto nos resultados, inclusiveacadêmicos. É a avaliação do diretorexecutivo da Faepa, Jair Lício FerreiraSantos, para quem a nova unidade irátambém garantir uma separação mais81


Março 2009efetiva de receitas e despesas em relaçãoao restante do hospital. Santos,que é docente do departamento deMedicina Social da faculdade, entendeque a nova unidade, ao permitirque a Clínica Civil separe-se do prédioprincipal do hospital, fará com queseja superada “aquela falsa idéia deque uma pessoa chegou agora e já vaiser atendida, ao passo que a outra estáesperando para ser atendida e nãoconsegue”.Questionado pela Revista <strong>Adusp</strong>quanto à eficácia da mudança (a novalocalização dos atendimentos nãose limitaria a encobrir o problemado ingresso diferenciado?), o diretorinsiste: “Temos tudo documentadoque é uma inverdade que existamprivilégios, que exista um corredorespecial”. Os atendimentos a particulares,sustenta, se dão em momentosde “ociosidade” dos equipamentose equipe no que dizrespeito ao SUS.Outras fontes procuradaspela reportagem contestama aparente solução representadapela nova unidade hospitalar.Cleusa Cascaes Dias,presidenta do Centro Médicode Ribeirão Preto, declara quea defesa do SUS é unânime entreas entidades do setor. As reivindicaçõessalariais dos docentes da USPsão justas, pondera, mas “corrigir adefasagem salarial abrindo a portado setor público para o privado é umprecedente muito sério”. A situaçãogera distorções entre, de um lado,aqueles médicos que são docentes daUSP, e de outro lado o restante da categoria,tanto em termos de remuneraçãoe direitos trabalhistas como emmatéria de acesso aos equipamentos82Governo estadual apóia a política de "dupla porta"A fundaçãonega que existamprivilégios para pacientesprivados, mas o Centro Médicode Ribeirão Preto condena aabertura da “segunda porta” parao setor privado e denunciadistorçõese à tecnologia do HCFMRP, observaa presidenta do Centro Médico. ParaCleusa, “a comunidade universitáriaprecisa refletir com profundidade sobreeste tema”.O Conselho Federal de Medicinae o Centro Acadêmico Rocha Lima,da FMRP, ambos procurados pelaRevista <strong>Adusp</strong>Antonio BiondiRevista <strong>Adusp</strong>, mantiveram um silêncioconstrangedor sobre o tema. OConselho Regional de Medicina,por meio de uma de suas diretoras,informou que não háconsenso na diretoria sobre opolêmico tema, e que por issonão poderia se posicionar.O promotor Sebastião Silveira,do Ministério Público Estadual,firmou um termo de ajustamentode conduta (TAC) com aFaepa em 2000, que fixa teto de 6%dos atendimentos na Clínica Civilem relação ao total de atendimentosdo HCFMRP, proíbe o uso de funcionáriospúblicos na Clínica Civil,veda privilégios e determina que oatendimento privado não pode prejudicaros pacientes do SUS (Revista<strong>Adusp</strong> 24, 2001, p. 108). O promotorafirmou à Revista <strong>Adusp</strong> que a Faepatem cumprido 100% do acordado,e que pretende renegociar algumas


Revista <strong>Adusp</strong>Março 2009Duas opiniõessobre o projeto“Solução adequada”“O HCFMRP presta atendimentoa particulares há mais de50 anos, respaldado na lei estadual1.467/51, que criou a FMRP. Em1999, quando seu Conselho Deliberativodecidiu ampliar esse atendimentoa pacientes vinculados aplanos de saúde, teve o cuidado dedefinir que a ampliação não poderiaser feita com redução na qualidadeou no volume do atendimentoprestado ao SUS. A ampliaçãoda área de atendimento era umanecessidade antiga da Clínica Civil.A construção de um novo espaçoque abrigue a UPC do HCFMRPe o atendimento de pacientes conveniadose particulares representauma solução adequada para as limitaçõesmencionadas.”Benedito Maciel, professortitular do Departamento de ClínicaMédica, ex-diretor da Faepacondições do TAC. Silveira entendeque, mais do que às consultas, é necessáriaatenção especial aos examese cirurgias. Para o promotor, é “injustificávele inadmissível que o contribuinteespere meses, até anos, parapoder realizar uma cirurgia e que opaciente que tem o atendimento privadoseja imediatamente atendido”.Se a ambigüidade público-privadonão parece resolvida pela açãodo TAC, nem com a mera mudançade lugar da Clínica Civil, note-seque a convivência desta, num mesmoprédio, com uma Unidade de“Preocupaçõeslegítimas”“Há que se reconhecercomo legítimasas preocupaçõesquanto a prejuízosque o exercício daClínica Civil poderiacausar ao atendimentode pacientes do SUS. Adepender da sua dimensão,a clínica poderia impor limitesaos serviços oferecidos a pacientesdo SUS, mas vários dispositivosexistem para impedir queisso venha a ocorrer. A USP eo HCFMRP dispõem de instrumentosque, bem utilizados, sãosuficientes para prevenir potenciaisdanos colaterais ao atendimentodo SUS.”Ricardo Brandt de Oliveira,professor titular do Departamentode Clínica MédicaPesquisa Clínica pode vir a ferir ospressupostos exigidos para a criaçãode UPCs.Maura Pacheco, secretária técnicado Fundo Setorial de Ciência e Tecnologia-Saúde(Fundo Setorial CT-Saúde) e analista da Financiadora deEstudos e Projetos (Finep), ambosvinculados ao MCT, explica: “A unidadede pesquisa pública não podeintegrar o hospital, seja ele públicoou privado. Tem que ser à parte, deacordo com as boas regras internacionaisde pesquisa. Não pode estarno mesmo ambiente que o outro”.“A unidadede pesquisa pública nãopode integrar o hospital, sejapúblico ou privado”, diz MauraPacheco, do Fundo Setorial CT-Saúde.“Tem que ser à parte, de acordo comas boas regras internacionaisde pesquisa”Isso porque a UPC não tem comofoco o atendimento de pessoasdoentes: elas são parte da pesquisa,se voluntariam para isso. As direçõesda Faepa e do HCFMRP estão cientesdessa exigência, esclarece Maura.A Clínica Civil pode até convivercom a UPC, admite, mas ressaltaque “o projeto é para a construçãode uma unidade de pesquisa clínicanos moldes acima colocados”, porque“é para isso eles estão recebendoos recursos”.Existem 19 UPCs no país, todasligadas a hospitais universitários, formandoa Rede Nacional de PesquisaClínica. Pretende-se chegar ao númerode 37 UPCs até o final do governoLula. A expansão dessas unidades depesquisa conta com recursos de diversosfundos setoriais. A Finep coordenaa Rede Nacional, realiza as chamadaspara candidaturas a UPC, selecionaas propostas e implementa o projetoque, de 2005 a 2008, recebeu aportesda ordem de R$ 60 milhões.As empresas interessadas emtestes de medicamentos e equipa-83


Março 2009Revista <strong>Adusp</strong>Fundap analisa mudanças na gestão do HCFMRPA Fundação do DesenvolvimentoAdministrativo (Fundap),fundação pública estadual, desenvolveatualmente um convêniocom a Secretaria de Saúde doEstado, voltado ao fortalecimentodo SUS. O projeto, de três anos,prevê, entre outras ações, a capacitaçãode gestores, melhoria dosprocessos em âmbito regional emunicipal e melhoria da gestão doHCFMRP.Segundo a diretora técnica dePolíticas Sociais da Fundap, VeraLúcia Cabral Costa, o diagnósticoda gestão do HCFMRP “deveser concluído até março de 2009,e será propositivo”, sendo que onorte deve ser “a flexibilização dealgumas questões, assim como abusca por metas e resultados”.Vera argumenta que o trabalhonão buscará “algo que seja maisdo mesmo”, e que não deve repetir,por exemplo, o modelo dasorganizações sociais. Explica que,diante dos crescentes questionamentosàs fundações privadas “deapoio”, e da proposta do governofederal de transformar os hospitaispúblicos em fundações estataispúblicas de direito privado, o diagnósticobuscará atuar em uma terceiradireção: a de quem defendeque, “dentro do atual marco legal,é possível aprimorar o modelo degestão”.Quando à possibilidade de oHCFMRP prescindir da Faepa— que é aventada, por exemplo,pelo superintendente do hospital,Milton Laprega — a diretorada Fundap acredita que esta “éuma resposta que poderemos darao final da pesquisa”. Avalia que,“hoje, não seria possível”, masque, “dentro do processo iniciado,de melhoria do modelo, pode serque sim, que possa prescindir,ao menos nos moldes em que arelação se dá hoje”.Instituída pelo governo estadualem 1974, a Fundap tem personalidadejurídica de direito privadoe goza de autonomia técnica,sendo vinculada à Secretaria deGestão Pública. Em 2008, contoucom um orçamento de R$ 55,93milhões, dos quais cerca de R$41 milhões são recursos próprios,obtidos por convênios, e o restanteé repassado pelo Tesouro estadual.A fundação oferece cursos, prestaconsultorias e realiza atividadescom outros órgãos do governo doEstado, com a União e com prefeituras.O trabalho da Fundap põe emxeque o modelo das fundações“de apoio” às universidades. Se oEstado conta com uma fundaçãocomo a Fundap, com 212 funcionários,um orçamento de cercade R$ 50 milhões ao ano e querealiza tantas atividades junto aosórgãos públicos, como justificarque as fundações “de apoio” contemcom orçamentos que podemchegar a R$ 100 milhões anuais,inflados, quase sempre, por recursospúblicos?mentos costumam contratar diretamenteprofissionais das universidadespúblicas, não raro ignorando ovínculo institucional. Segundo Maura,“a idéia é que haja algum controle,que seja feito de forma institucionalizada,e que os benefíciosretornem para o público, uma vezque estão utilizando serviços públicos”.As UPCs, acrescenta, “deverãorealizar pesquisas de acordocom demandas apresentadas pelo84Ministério da Saúde”.A Faepa, atualmente, busca osrecursos para a construção da novaunidade. O Banco Nacional de DesenvolvimentoEconômico e Social(BNDES), um dos potenciais financiadoresdo empreendimento, afirmou,por meio de sua assessoria deimprensa que, em dezembro último,a proposta apresentada pela fundaçãofoi “enquadrada”, passo inicialpara o financiamento do banco aoprojeto, via Fundo Tecnológico doBNDES (Funtec). Solicitado pelaRevista <strong>Adusp</strong> a fornecer uma cópiado projeto, Eduardo Barbosa Coelho,diretor científico da Faepa eprofessor do departamento de ClínicaMédica da FMRP, respondeuque “ainda não é possível, uma vezque o projeto é confidencial” porestar “em fase de julgamento noBNDES com demais competidorespara o Funtec”.


Revista <strong>Adusp</strong>A dança dos milhõesMarço 2009da Codevasf e Fundespano rio São FranciscoAntonio BiondiJornalistaFábio Pozzebom/Agência BrasilTribunal de Contas da União encontra graves irregularidades em convêniocelebrado, sem licitação, entre a companhia federal responsável por obras norio São Francisco e a fundação privada que atua no Instituto Oceanográfico daUSP. Chamou a atenção do TCU a realização de um aditamento que elevou ovalor do projeto para R$ 40 milhões, quase quatro vezes o montante original,“sem qualquer documento que comprovasse sua necessidade”. A própriaCodevasf decidiu suspender a execução do convênio em setembro de 200885


Março 2009Um projeto inicialmenteorçado em R$ 11,57milhões, e que, apósum aditamento, teveseu valor ampliadopara R$ 40 milhões, éagora motivo de controvérsia entrea Companhia de Desenvolvimentodos Vales do São Francisco e doParnaíba (Codevasf) e a Fundaçãode Estudos e Pesquisas Aquáticas(Fundespa, instituição “de apoio”ao Instituto Oceanográfico daUSP). Em setembro de 2008, a Codevasf,que dois anos antes contrataraa Fundespa para que esta executasseuma série de providênciasrelacionadas à revitalização do rioSão Francisco, suspendeu o respectivoconvênio, em razão deadvertências do Tribunal deContas da União (TCU) ede uma auditoria realizadapela própria empresa estatal,que constatou a existência degraves irregularidades.Destinado à execução deações relacionadas ao Projeto Hidroviado Rio São Francisco, o convênioCodevasf-Fundespa previa, emseu objeto, a “obtenção de licençasambientais, supervisão e acompanhamentode obras de conformataçãodo leito do Rio São Francisco,no trecho Ibotirama (BA) a PilãoArcado (BA), com extensão de aproximadamente320 km, incluindo aconstrução de um campo de provasem Barra (BA)”. De acordo com aCodevasf, o projeto “consiste na revitalizaçãoda navegação de carga nomédio curso do rio São Francisco,com a conseqüente interação dessetrecho de hidrovia com o sistemaintermodal do país”.86O convênio entre Codevasf eFundespa foi estabelecido em setembrode 2006, com o exato valorde R$ 11.569.249,54. Em 17 de julhode 2008, contudo, sofreu umaditamento — um acréscimo deitens a executar e de verbas a serempagas à fundação privada — queelevou seu valor em mais de R$ 36milhões. O aditamento foi assinado,portanto, a dois meses e oito diasdo término do prazo do convênio,que teria duração até 25 de setembrode 2008.O TCUconcluiu que a Fundespavem realizando atividadesestranhas aos seus objetivosestatutários, conduzindo licitaçõesque poderiam ser feitas pelaprópria Codevasf sem ônuspara o erárioO aditamento e a situação doprojeto não passaram em brancoaos olhos do TCU. O relatório publicadopelo tribunal em setembrode 2008, assinado pelo auditorMarcos Bemquerer, afirmava que“a Codevasf não encaminhou qualquerdocumento que comprovasseefetivamente”, “com base emcritérios técnicos consistentes”, “anecessidade de se destinar mais R$36.576.144,02” ao convênio.Revista <strong>Adusp</strong>Segundo a Codevasf, a fundaçãofoi selecionada, sem licitação,para executar o projeto por ser“detentora de conhecimentos técnicosvoltados ao setor hidrológicoe ambiental” e por haver adquirido“inquestionável bagagem técnica”em projetos semelhantes desenvolvidospara o Governo da Bahia.Mas, conforme constatou o TCU,a Fundespa “tem simplesmentecontratado a execução de diversosprojetos necessários à execução doempreendimento”, tais como “serviçosde engenharia para realizarinvestigações geotécnicas e elaborarprojetos executivos de reconstruçãoe proteção de margens” dorio, “serviços de levantamentoshidrográficos”, “empresa paralevantamentos de campo, projetobásico e estudo ambientalpara abertura de canal denavegação” etc.O auditor Bemquerer conclui,com base na investigaçãorealizada, que “a Fundespavem realizando atividades querefogem aos seus objetivos estatutários,conduzindo certames licitatóriosque poderiam ser realizadospela própria Codevasf sem que oerário fosse onerado com os elevadoscustos impostos pela estruturaadministrativa montada pela entidadeconvenente” (vide Informativo<strong>Adusp</strong> 268).Em sintonia com as conclusõesdo TCU, a Codevasf, após suspendero repasse dos recursos àFundespa, passou a executar diretamenteo projeto, com auxíliodo Exército. Segundo a empresa,pertencente ao governo federal, afundação havia recebido R$ 11,3


Revista <strong>Adusp</strong>Obras do Exército na regiãoExército Brasileiromilhões até a suspensão dos repasses.Em dezembro de 2008, a Codevasftransmitiu à Revista <strong>Adusp</strong>sua expectativa de que, “no próximociclo hidrológico”, o Departamentode Engenharia e Construçãodo Exército venha a assumiro objeto do convênio “em sua<strong>integral</strong>idade”.Os esclarecimentos da Codevasfsobre a situação doconvênio só chegaram à Revista<strong>Adusp</strong> após passar pelapresidência da companhia eaté pelo gabinete do ministroda Integração Nacional, GeddelVieira Lima. Inicialmente,as informações seriam prestadaspelo diretor da área de DesenvolvimentoIntegrado e Infra-Estruturada Codevasf, Clementino deSouza Coêlho, mas o presidente daempresa, Orlando da Costa Castro,resolveu repassar a consulta à assessoriade imprensa do ministro, umavez que a Codevasf é vinculada àpasta da Integração Nacional.Clementino Coêlho e OrlandoCastro figuram entre os signatáriosdo aditamento do convênio pelacompanhia, ao lado do diretor-presidenteda Fundespa, Luiz RobertoTommasi, professor titular aposentadoe ex-diretor do Instituto Oceanográficoda USP.Quando as respostas chegaramà equipe da Revista <strong>Adusp</strong>, enviadaspela Codevasf, surgiram, contudo,novas dúvidas, que foramcomunicadas à assessoria da companhia.Em meio a uma verdadeiradança de números, nas primeirasinformações enviadas por suaassessoria a Codevasf chegou aafirmar que o valor do convênioera de R$ 40.076.144,01, e não deR$ 48 milhões, sendo que tal diferençadizia respeito a um “erroformal de cálculo na totalizaçãoA Fundespaafirmou que o Exércitonão teve condição de executaras obras que lhe cabiam. Mas oExército negou responsabilidades“em relação a qualquer convêniofirmado entre Fundespae Codevasp”do valor do convênio”. A reportagembuscou esclarecer junto àempresa se houve erro no cálculodo valor inicial ou no valor doaditamento, e solicitou esclarecimentosadicionais.De acordo com a Codevasf,“não houve erro de cálculo inicialno convênio”, cujo valor “foi determinadopelas circunstâncias orçamentáriasda época de sua celebração,que contemplavam apenasR$ 11,5 milhões”. O advento doMarço 2009Programa de Aceleração do Crescimento(PAC), que deu ênfase àsações no rio São Francisco, permitiuque fossem disponibilizados novosrecursos, adequando o projetoao planejamento ideal elaboradopelo Executivo federal.O novo plano de trabalho terialevado a “um incremento deR$ 28,5 milhões ao plano original,passando o valor global do convêniopara R$ 40 milhões”. Nesta segundaresposta, a companhia reiterouque, “em razão de um erro material,que já foi corrigido, no aditivocontratual indevidamente foi lançadoo valor de R$ 48 milhões”. Ouseja, o aditivo de R$ 36 milhõesteria como valor correto R$ 28,5milhões, o que explicaria a diferençade R$ 8 milhões novalor total de recursos destinadosao projeto.A Fundespa, por sua vez,afirmou à Revista <strong>Adusp</strong> queo valor total de R$ 48 milhões“não corresponde à verdade” eque, “na realidade, o valor totaldo convênio, com inclusão de termosaditivos”, previu a alocação derecursos da ordem de “pouco maisde R$ 34 milhões”.Em matéria publicada na revistaCarta Capital (edição 520,novembro de 2008), Luciano Wahhab,apresentado como administradorda Fundespa, declara que,entre outros motivos que elevaramsubstancialmente os gastosdo convênio, “um dos problemasocorridos é que o Exército iriarealizar obras de engenharia naárea, mas não teve condição deexecutar. Tivemos então de contrataroutras empresas”.87


Março 2009À Revista <strong>Adusp</strong>, contudo, oExército manifestou que “não temresponsabilidades em relação aqualquer convênio firmado entrea Fundespa e a Codevasp”. A assessoriada força acrescenta que“o Exército tem totais capacidadesde realizar todos os trabalhosplanejados, porém somente poderesponsabilizar-se pelos serviçosprevistos em Plano de Trabalhoaprovado”.Quanto à Fundespa, delegou atarefa de atender à reportagem aoescritório de advocacia PinheiroPedro (vide quadro). De acordocom o texto enviado pelo advogadoCássio Felippo Amaral, “se,hoje, o Exército Brasileiro estápronto para atuar nas obras, àépoca a situação era bem outra”, e“todas as despesas incorridas pelaFundespa na construção do campode provas e nas atividades deapoio foram muito bem comprovadase não houve, em nenhummomento, aplicação irregular detais recursos”.Enquanto a Codevasf já tratoude suspender o convênio, e a Fundespaameaça ir à Justiça, o TCUavança, em caráter de urgência,na apuração sobre o projeto esobre quem terá de arcar com osprejuízos ao erário. Por meio daunidade local da sua Secretariade Controle Externo (Secex-BA),o tribunal colheu depoimentos,analisou documentos, checou econfrontou versões. As conclusõesda equipe do TCU na Bahiaseriam remetidas a Brasília, ondeo ministro relator deveria se debruçarsobre o tema a partir defevereiro de 2009.Revista <strong>Adusp</strong>Em vez de esclarA Fundespa diz desenvolvervárias atividades junto à comunidadee colaborar com o InstitutoOceanográfico (IO) em diversosaspectos. Nos esclarecimentos relativosao convênio firmado com aCodevasf, enviados pelo escritóriode advocacia Pinheiro Pedro àRevista <strong>Adusp</strong>, cita-se, por exemplo,que “no Dia Mundial de Limpezade Rios e Praias, a Fundespaleva cerca de 10 alunos por ano àspraias para contribuir com o meioambiente”; que “o Projeto Descobrindoo Mar levou, neste ano de2008, a educação ambiental marinhade forma atrativa para mais de10.000 alunos da rede pública municipale estadual de São Paulo” etc.O advogado Cássio FelippoAmaral, do escritório PinheiroPedro, não se limitou, porém, aproclamar as atividades educativasda fundação privada. No textoenviado, Amaral faz ameaças àRevista <strong>Adusp</strong>, e procura cercear adivulgação do caso: “parte das informaçõesque ora motivam V. Sas.a essas indagações versam sobreassuntos estratégicos e confidenciais,que não poderiam estar sendoventilados para fora dos murosda fundação, exatamente porquedizem respeito a questões negociais,comerciais e profissionais da Fundespae que não deveriam ter chegadoao conhecimento de outrem,além da direção da fundação”.Nesse sentido, continua, “a divulgaçãode tais assuntos poderá serconsiderada crime, dada a violaçãodo sigilo que as resguarda, bemcomo, caso entenda a Fundespanecessário, todas as medidas judiciaiscabíveis serão adotadas”.As respostas enviadas, prossegueele em tom intimidatório,“deverão ser publicadas <strong>integral</strong>mente,sem exceção de nenhumtrecho ou parágrafo, pois, do contrário,serão tomadas todas asmedidas administrativas e judiciaisaplicáveis ao caso”.Sobre o convênio com a Codevasf,o escritório afirma que “porconta de grandes atrasos por parteda Codevasf no repasse de recursos,(...) a Fundespa, ante a totalimpossibilidade de adiantamentoda totalidade dos pagamentos dasdespesas (...), não teve alternativa,senão iniciar suspensão programadadessas atividades”.Amaral acrescenta que “a Codevasf,entendendo que os recursos jáliberados poderiam fazer frente àsdespesas já incorridas, o que não condizcom a realidade”, “resolveu, unilateralmente,suspender o convênio,chamando para si a responsabilidadepelo cumprimento de apenas algunsdos contratos públicos licitados pelaFundespa”.A fundação estaria solicitando,administrativamente, à Codevasf,o reembolso das despesas já quitadas,“e, em caso de respostanegativa, adotará todas as medidasjudiciais para reposição do numeráriojá desembolsado”.A diretora do IO, professoraAna Maria Setúbal Pires Vanin,88


Revista <strong>Adusp</strong>ecimentos, retórica intimidatóriaMarço 2009respondeu por e-mailàs questões enviadaspela reportagem sobrea relação entre o institutoe a fundação.Ela preside o conselhocurador da Fundespae integra o conselhoconsultivo da fundação.Situação semelhanteà do vice-diretordo IO, professorRolf Roland Weber,que também participados conselhos da Fundespa(vide quadro).“Vejo sem problemaético minha participaçãonos fóruns decisórioscitados, poisOs vínculos entre a Fundespa e a USPCONSELHO CURADORCargo que exerce na fundaçãoProfessora Ana M. Setúbal Vanin- PresidenteProfessor Rolf Roland WeberProfessora Eduinetty Ceci P. Moreira de SousaProfessor Belmiro Mendes de Castro FilhoProfessor Michel Michaelovitch de MahiquesProfessor Felipe Antonio de Lima ToledoDIRETORIACargo que exerce na fundaçãoProfessor Luiz R. Tommasi- Presidentepermite ao IO uma participação econtrole efetivo da política e conduçãoda Fundespa, e uma avaliaçãoe discussão constante sobre seuandamento e rumo”, afirma aprofessora Ana Maria.A página eletrônica dafundação informa que a Fundespa“apóia as Unidades daUniversidade de São Pauloque solicitarem seu apoio eem especial, o Instituto Oceanográficoda USP”. A diretorado IO entende que “a Fundespa éa fundação do IO”, acrescentandoque “seu conselho curador é compostopor docentes do IO e presididopelo Diretor do IO”.Segundo a professora Ana Maria,a Fundespa repassa 2% do seuorçamento para um fundo IO/Fundespa,o que implica um repasseanual de R$ 70 mil nos últimosanos. Os recursos, de acordo comela, têm auxiliado docentes e estudantes.Os estudantes, por exemplo,Cargo no Instituto OceanográficoProfessora titular e diretora do IOProfessor titular e vice-diretor do IOProfessora doutora do IOProfessor titular do IOProfessor titular do IOProfessor doutor do IOCargo no Instituto OceanográficoProfessor Salvador Gaeta- Diretor de Pesquisa Professor titular do IOProfessor colaborador do IO. Ex-diretor do IOProfessor Ilson da Silveira- Diretor de Extensãoe EventosProfessor doutor do IOFonte: sítio do Instituto Oceanográfico na internet“Vejosem problemaético minha participaçãonos fóruns decisórios citados, poispermite ao IO uma participação econtrole efetivo da política e conduçãoda Fundespa”, diz a professoraAna Maria Setúbal Vanin,diretora da unidadetêm sido beneficiados com bolsasde mestrado, bolsas variadas paraa graduação e pleitos de entidadescomo IO Jr. e a Atlética.Com relação aos docentes, adiretora do IO explica queesses “contam com o apoioda Fundespa em administraçãode projetos científicos”,“além de apoio a eventoscientíficos”.A professora Ana Mariaafirmou à Revista <strong>Adusp</strong> que oprojeto do rio São Francisco erade complexidade “muitas vezesmaior do que a daqueles em quea Fundespa tem tido participação”e que “trouxe uma experiênciamuito grande e capacitação degerenciamento que ela não possuíaantes”.89


Março 2009Revista <strong>Adusp</strong>Reitoria opta por “convivênciapacífica” com as fundaçõesEm abril de 2007, a Revista<strong>Adusp</strong> 40 publicou entrevista como vice-reitor, Franco Lajolo, sobrea atuação das fundações privadasna USP. Na ocasião, o professor Lajoloanunciou uma reavaliação dosconvênios firmados entre a Universidadee essas entidades. Tambémdefendeu a necessidade de mecanismospara impedir que algumprofessor venha a ter “um poderexagerado gerenciando as verbas dafundação junto com as da unidade”.Decidimos realizar uma nova entrevistacom Lajolo, a fim de compreendercomo a situação evoluiu, quasedois anos depois. As tentativas de realizaçãoda entrevista levaram cercade um mês, até que, diante da “faltade agenda” alegada pelo vice-reitor,combinou-se que as perguntas e respostasseriam trocadas por e-mail.Indagamos ao professor sobre acriação de uma comissão formada pelospró-reitores, encarregada de avaliaro mérito dos convênios existentescom fundações privadas ditas deapoio, tal como anunciado por ele em2007 e sobre os avanços planejadospela Reitoria em termos de agilizaçãodos procedimentos da Universidade.A atuação da Promotoria de Fundaçõesdo Ministério Público Estadual(MPE) e o termo de ajustamento deconduta (TAC) assinado pelas fundaçõesem 2006 também foram objeto90das perguntas encaminhadas.Por fim, foi solicitado, sem sucesso,o envio das informações referentesao valor dos repasses feitos pelasfundações às unidades da USP e àReitoria em 2006, 2007 e 2008.As respostas do professor Lajoloparecem indicar que a Reitoria seacomodou ao modus operandi dasfundações.O vice-reitor informou que emabril de 2008, “por meio da Resolução5449 de 18/04/08, criou-se o processoeletrônico de convênios, a Assessoriade Convênios, que faz a análise jurídica,financeira e a gestão dos convênios”,e que a mesma resolução criou,também, a Comissão de Convênios.“A análise de mérito dos convênios érealizada pelos colegiados das Unidades,nas Pró-Reitorias e acompanhadapela Comissão de Convênios que contacom representantes das Pró-Reitorias,CCint e Agência de Inovação”.Ainda segundo o professor Lajolo,o “processo eletrônico, criadopela citada Resolução 5449/08, agilizaa tramitação, armazenando dadosque facilitam o acompanhamentodos convênios, permitindo a emissãode relatórios gerenciais”.No entanto, explica ele, “ainda nãohá dados suficientes relativos à execuçãodos convênios”, pois “o sistemaé recente”. Mesmo assim, consideraque “já houve grande avanço quanto àagilização da tramitação, visibilidade eacompanhamento dos convênios, emboraainda não seja possível a emissãode relatórios completos, o que deveráacontecer em breve”.Com relação ao TAC, Lajolo confirmouque foi realizada uma reuniãono MPE em 10 de novembro de2008, na qual foi entregue à Reitoriaa documentação relativa à aprovaçãodas contas das fundações signatárias,emitida pela Promotoria de Fundações.Esta questão foi um dos pontosde divergência entre a Reitoria e aPromotoria, durante o processo deelaboração do TAC. Isso porque aprimeira exigia as contas completas,enquanto a segunda respaldou a posiçãodas fundações de emitir-se apenasum atestado de aprovação dascontas. O que a Reitoria recebeu nareunião com o MPE foi exatamenteeste documento: um atestado, emitidopelo promotor de fundações.“Na reunião, foi avaliada a repercussãodo termo, no período pós-assinatura,e que a sua existência conferemaior visibilidade às relaçõesda Universidade com as fundaçõesde apoio”, afirmou o vice-reitor, “demodo que estudos deveriam ser desenvolvidosno sentido de serem firmadosnovos instrumentos com asdemais fundações e buscado cada vezmais o aperfeiçoamento de suas cláusulas,em benefício da Universidade”.

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