as marcas do caráter literário nas cartas de clarice lispector

as marcas do caráter literário nas cartas de clarice lispector as marcas do caráter literário nas cartas de clarice lispector

12.07.2015 Views

Anais Eletrônicos do IV Seminário Nacional Literatura e CulturaSão Cristóvão/SE: GELIC/UFS, 03 e 04 de maio de 2012.ISSN: 2175-41281AS MARCAS DO CARÁTER LITERÁRIO NAS CARTAS DECLARICE LISPECTORLara Angélica Vieira de Aguiar - laraaguiar0@gmail.comI – A natureza epistolarAs cartas trocadas entre escritores tem sido objeto de estudo em váriaspesquisas relacionadas ao fazer literário. Isso acontece porque as correspondênciasrevelam informações que vão além de detalhes biográficos. Os textos epistolaresdesses famosos escritores nacionais trazem, muitas das vezes, uma carga de literaturaque vai servir como base para análises direcionadas aos estudos da criação literária.A escritura de si, que acontece no gênero epistolar, vem carregada de viésliterário justamente porque esse estilo é inerente aos escritores. É como se o discursoliterário já fosse algo intrínseco, e por isso mesmo, além de os autores descreverem odia a dia e as dificuldades de se construir uma obra, também produzem um conteúdocom recursos próprios da literatura. A afinidade nos contatos estabelecidos nascorrespondências faz com que eles contem de si e ainda sintam-se à vontade para“enfeitar” a linguagem.Um dos fatores mais instigantes do texto epistolar é a sua proximidade com otexto ficcional. Por ser um gênero leve e variado dentro de suas limitações, a cartapermite diversas inserções literárias e pragmáticas. Claro que as discussões e ascorrentes sobre o que de fato é literatura ainda estão em andamento, mas o óbvio nãose pode deixar de notar: cartas nem sempre são secas e objetivas, principalmentequando quem escreve já tem intimidade com a literatura.Para Focault, os cadernos de notas constituem exercícios de escrita pessoalque podem ser utilizados como matéria-prima para textos que são enviados a outros.“Em contrapartida, a missiva, texto por definição destinado a outrem, dá também

Anais Eletrônicos <strong>do</strong> IV Seminário Nacional Literatura e CulturaSão Cristóvão/SE: GELIC/UFS, 03 e 04 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 2012.ISSN: 2175-41281AS MARCAS DO CARÁTER LITERÁRIO NAS CARTAS DECLARICE LISPECTORLara Angélica Vieira <strong>de</strong> Aguiar - laraaguiar0@gmail.comI – A natureza epistolarAs cart<strong>as</strong> trocad<strong>as</strong> entre escritores tem si<strong>do</strong> objeto <strong>de</strong> estu<strong>do</strong> em vári<strong>as</strong>pesquis<strong>as</strong> relacionad<strong>as</strong> ao fazer <strong>literário</strong>. Isso acontece porque <strong>as</strong> correspondênci<strong>as</strong>revelam informações que vão além <strong>de</strong> <strong>de</strong>talhes biográficos. Os textos epistolares<strong>de</strong>sses famosos escritores nacionais trazem, muit<strong>as</strong> d<strong>as</strong> vezes, uma carga <strong>de</strong> literaturaque vai servir como b<strong>as</strong>e para análises direcionad<strong>as</strong> aos estu<strong>do</strong>s da criação literária.A escritura <strong>de</strong> si, que acontece no gênero epistolar, vem carregada <strong>de</strong> viés<strong>literário</strong> justamente porque esse estilo é inerente aos escritores. É como se o discurso<strong>literário</strong> já fosse algo intrínseco, e por isso mesmo, além <strong>de</strong> os autores <strong>de</strong>screverem odia a dia e <strong>as</strong> dificulda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> se construir uma obra, também produzem um conteú<strong>do</strong>com recursos próprios da literatura. A afinida<strong>de</strong> nos contatos estabeleci<strong>do</strong>s n<strong>as</strong>correspondênci<strong>as</strong> faz com que eles contem <strong>de</strong> si e ainda sintam-se à vonta<strong>de</strong> para“enfeitar” a linguagem.Um <strong>do</strong>s fatores mais instigantes <strong>do</strong> texto epistolar é a sua proximida<strong>de</strong> com otexto ficcional. Por ser um gênero leve e varia<strong>do</strong> <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> su<strong>as</strong> limitações, a cartapermite divers<strong>as</strong> inserções literári<strong>as</strong> e pragmátic<strong>as</strong>. Claro que <strong>as</strong> discussões e <strong>as</strong>correntes sobre o que <strong>de</strong> fato é literatura ainda estão em andamento, m<strong>as</strong> o óbvio nãose po<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> notar: cart<strong>as</strong> nem sempre são sec<strong>as</strong> e objetiv<strong>as</strong>, principalmentequan<strong>do</strong> quem escreve já tem intimida<strong>de</strong> com a literatura.Para Focault, os ca<strong>de</strong>rnos <strong>de</strong> not<strong>as</strong> constituem exercícios <strong>de</strong> escrita pessoalque po<strong>de</strong>m ser utiliza<strong>do</strong>s como matéria-prima para textos que são envia<strong>do</strong>s a outros.“Em contrapartida, a missiva, texto por <strong>de</strong>finição <strong>de</strong>stina<strong>do</strong> a outrem, dá também


Anais Eletrônicos <strong>do</strong> IV Seminário Nacional Literatura e CulturaSão Cristóvão/SE: GELIC/UFS, 03 e 04 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 2012.ISSN: 2175-41282lugar a exercício pessoal”. (FOCAULT, 1992) Ao <strong>de</strong>svendarmos a intimida<strong>de</strong> reveladan<strong>as</strong> cart<strong>as</strong> trocad<strong>as</strong> entre os escritores Fernan<strong>do</strong> Sabino e Clarice Lispector, sãoencontrad<strong>as</strong> marc<strong>as</strong> textuais que sinalizam a constituição <strong>do</strong> processo <strong>de</strong> autoretratação<strong>de</strong> si.Escrever é, pois, “mostrar-se”, dar-se a ver, fazer aparecer o rostopróprio junto ao outro. E <strong>de</strong>ve-se enten<strong>de</strong>r por tal que a carta ésimultaneamente um olhar que se volve para o <strong>de</strong>stinatário (por meioda missiva que recebe, ele sente-se olha<strong>do</strong>) e uma maneira <strong>de</strong> oremetente se oferecer ao seu olhar pelo que <strong>de</strong> si mesmo lhe diz. Decerto mo<strong>do</strong>, a carta proporciona um face-a-face. (FOCAULT, 1992)Clarice Lispector, numa carta en<strong>de</strong>reçada a Fernan<strong>do</strong> Sabino, em 1946,transmite a imagem <strong>de</strong> uma personalida<strong>de</strong> frágil e que se lamenta <strong>do</strong>s problem<strong>as</strong> quea afligem. Em um da<strong>do</strong> momento, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>sse <strong>de</strong>sabafo ao amigo, entra sutilmenteo teor <strong>literário</strong> no texto, inserin<strong>do</strong> metáfor<strong>as</strong> e hipérboles, como no trecho a seguir:Não trabalho mais, Fernan<strong>do</strong>. P<strong>as</strong>so os di<strong>as</strong> procuran<strong>do</strong> enganarminha angústia e procuran<strong>do</strong> não fazer horror a mim mesma. Temdi<strong>as</strong> que me <strong>de</strong>ito às 3 da tar<strong>de</strong> e acor<strong>do</strong> às 6 para em seguida ir parao divã e fechar os olhos até <strong>as</strong> 7 que é hora <strong>de</strong> jantar. Isso tu<strong>do</strong> não ébonito. Sei que é horrível. Caí inteiramente e não vejo um começosequer <strong>de</strong> alguma coisa n<strong>as</strong>cen<strong>do</strong>. (SABINO, 2003, p. 35)Segun<strong>do</strong> Proença Filho, a fala comum se caracteriza pela transparência. “Omesmo não acontece com o discurso <strong>literário</strong>. Este se encontra a serviço da criaçãoartística”. É o que acontece na carta <strong>de</strong> Clarice, quan<strong>do</strong> ela utiliza os termos “caíinteiramente” e “coisa n<strong>as</strong>cen<strong>do</strong>”, pois são figur<strong>as</strong> <strong>de</strong> linguagem que não ocorremem um discurso objetivo e referencial.O texto da literatura é um objeto <strong>de</strong> linguagem ao qual se <strong>as</strong>sociauma representação <strong>de</strong> realida<strong>de</strong>s físic<strong>as</strong>, sociais e emocionaismediatizad<strong>as</strong> pel<strong>as</strong> palavr<strong>as</strong> da língua na configuração <strong>de</strong> um objetoestético. (...) Já se percebe o alto índice <strong>de</strong> multissignificação <strong>de</strong>ssamodalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> linguagem que, <strong>de</strong> antemão, quan<strong>do</strong> com ela


Anais Eletrônicos <strong>do</strong> IV Seminário Nacional Literatura e CulturaSão Cristóvão/SE: GELIC/UFS, 03 e 04 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 2012.ISSN: 2175-41283travamos contato, sabemos ser especial e distinta da modalida<strong>de</strong>própria <strong>do</strong> uso cotidiano. Quem se aproxima <strong>do</strong> texto <strong>literário</strong> sabe apriori que está diante <strong>de</strong> manifestação da literatura. (PROENÇA ,2003, p. 7 e 8)A literatura é um sistema semântico on<strong>de</strong> a conotação é a figura presente notexto. Em mais uma d<strong>as</strong> cart<strong>as</strong>, Clarice <strong>de</strong>sabafa: “Agora começou a chover <strong>de</strong> fato e<strong>de</strong>sta vez acho que é para sempre”. (SABINO, 2003, p. 39) Proença i<strong>de</strong>ntifica que “aconotação se centraliza na parte <strong>do</strong> senti<strong>do</strong> d<strong>as</strong> palavr<strong>as</strong> ligad<strong>as</strong> às funções emotiva econotativa”. (PROENÇA, 2003, p. 30)Em outro momento <strong>de</strong> uma carta <strong>de</strong> 1946, Clarice <strong>de</strong>rrama uma <strong>do</strong>se <strong>de</strong>lirismo no texto: “A moça chorava tanto que já não tinha olhos”. (SABINO, 2003, p. 40)Ora, se a linguagem utilizada em correspondênci<strong>as</strong> <strong>de</strong> escritores traz a força daliterarieda<strong>de</strong> é justamente porque “a prosa se socorre da conotação quan<strong>do</strong> o fluxonarrativo o permitir ou requerer”. (MOISÉS, 2005, p. 85)II – Crítica genéticaAs cart<strong>as</strong>, por fazerem parte <strong>de</strong> acervo pessoal, têm um laço comum com osmanuscritos. A crítica genética, por exemplo, se aprofunda nesse material com oobjetivo <strong>de</strong> resgatar os processos pelos quais p<strong>as</strong>saram e <strong>as</strong>sim chegar a vári<strong>as</strong><strong>de</strong>scobert<strong>as</strong> sobre a criação <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminad<strong>as</strong> obr<strong>as</strong> literári<strong>as</strong>. Para isso, a genéticatextual tem a função <strong>de</strong> tornar legível o material “manuscritológico” i .À mesma área pertencem <strong>as</strong> confissões, o diário íntimo, aepistolografia, <strong>as</strong> memóri<strong>as</strong>, a autobiografia, a biografia e ahistoriografia, visto que se caracterizam como <strong>do</strong>cumento, em que seregistra a veracida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s fatos ou em que se busca a verda<strong>de</strong> fundadana interpretação serena e objetiva <strong>do</strong>s acontecimentos individuais ecoletivos (MOISÉS, 2005, p. 160 - Prosa II)


Anais Eletrônicos <strong>do</strong> IV Seminário Nacional Literatura e CulturaSão Cristóvão/SE: GELIC/UFS, 03 e 04 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 2012.ISSN: 2175-41284Ao buscar uma referência ten<strong>do</strong> como b<strong>as</strong>e os manuscritos <strong>de</strong> algum autor, opesquisa<strong>do</strong>r <strong>de</strong>ve se atentar para <strong>as</strong> possíveis r<strong>as</strong>ur<strong>as</strong> <strong>do</strong> texto, expressões riscad<strong>as</strong> eacréscimos, além <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificar o que po<strong>de</strong> estar escondi<strong>do</strong> n<strong>as</strong> entrelinh<strong>as</strong>.A <strong>de</strong>cifração <strong>do</strong>s manuscritos é fixada em uma transcrição quepo<strong>de</strong>rá, se for o c<strong>as</strong>o, ser publicada a fim <strong>de</strong> que o material genéticofique disponível à comunida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s críticos, que terão a possibilida<strong>de</strong><strong>de</strong> reportar-se a ela diretamente para su<strong>as</strong> pesquis<strong>as</strong> interpretativ<strong>as</strong>,sem ter <strong>de</strong> refazer o imenso trabalho <strong>de</strong> estabelecimento, cl<strong>as</strong>sificaçãoe <strong>de</strong>cifração <strong>do</strong> <strong>do</strong>ssiê. (BERGEZ, 2006, p. 25)III – AutobiografiaTo<strong>do</strong> <strong>do</strong>cumento, incluin<strong>do</strong> o estilo carta, possui característic<strong>as</strong> histórica eliterária. Claro que o teor histórico é mais visível, e por isso mesmo, mais comenta<strong>do</strong>e utiliza<strong>do</strong> para fins <strong>de</strong> estu<strong>do</strong> científico. Porém, o teor <strong>literário</strong> também é b<strong>as</strong>tantereconheci<strong>do</strong> em obr<strong>as</strong> <strong>de</strong> <strong>caráter</strong> biográfico ou autobiográfico. Algum<strong>as</strong> cart<strong>as</strong>chegam a ser revela<strong>do</strong>r<strong>as</strong> <strong>do</strong> íntimo <strong>de</strong> quem <strong>as</strong> escreve.A vida biográfica e a enunciação biográfica são sempre cercad<strong>as</strong> <strong>de</strong>uma fé ingênua, seu clima é quente; a biografia é profundamentecrédula m<strong>as</strong> <strong>de</strong> uma credulida<strong>de</strong> ingênua (sem crises), pressupõe umativismo bon<strong>do</strong>so, que se situa fora <strong>de</strong>la e a engloba; no entanto, essenão é o ativismo <strong>do</strong> autor; este mesmo necessita <strong>de</strong>le juntamente coma personagem (pois ambos são p<strong>as</strong>sivos e ambos se encontram nomesmo universo da existência). (BAKHTIN, 2006, p.152)Caminhar pela estrada da literatura epistolar é o mesmo que percorrerespaços entre o <strong>do</strong>cumento e a ficção, entre a história e a literatura. Nesse senti<strong>do</strong>,Welleck e Warren explicam que os estu<strong>do</strong>s sobre biografia po<strong>de</strong>m ser trabalha<strong>do</strong>s <strong>de</strong>três form<strong>as</strong>: quan<strong>do</strong> explica o produto da poesia; quan<strong>do</strong> volta a atenção para a


Anais Eletrônicos <strong>do</strong> IV Seminário Nacional Literatura e CulturaSão Cristóvão/SE: GELIC/UFS, 03 e 04 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 2012.ISSN: 2175-41285personalida<strong>de</strong> humana; e quan<strong>do</strong> a biografia é utilizada como material para umaciência como a psicologia da criação artística.A biografia po<strong>de</strong> ser julgada em termos <strong>do</strong>s esclarecimentos queoferece sobre a produção efetiva <strong>de</strong> poesia, m<strong>as</strong> po<strong>de</strong>mos,naturalmente, <strong>de</strong>fendê-la e justificá-la como um estu<strong>do</strong> <strong>do</strong> homem <strong>de</strong>gênio, <strong>do</strong> seu <strong>de</strong>senvolvimento moral, intelectual e emocional, que éinteressante por si só, e, finalmente, po<strong>de</strong>mos pensar na biografiacomo fornece<strong>do</strong>ra <strong>de</strong> materiais para um estu<strong>do</strong> sistemático dapsicologia <strong>do</strong> poeta e <strong>do</strong> processo poético. ( WELLECK; WARREN,2003, p. 86)Dentre os escritores, tornou-se comum produzir material autobiográfico, comintencionalida<strong>de</strong> ou não <strong>de</strong> virar um <strong>do</strong>cumento para a posterida<strong>de</strong>. No c<strong>as</strong>o daescritora Clarice Lispector, <strong>as</strong> cart<strong>as</strong> trocad<strong>as</strong> com o romancista Fernan<strong>do</strong> Sabinotratavam <strong>de</strong> questões literári<strong>as</strong> e pessoais. Só após sua morte é que Sabino juntou omaterial que resultou no livro “Cart<strong>as</strong> perto <strong>do</strong> coração”.O testemunho biográfico, para muitos poet<strong>as</strong>, tornou-se abundanteporque os poet<strong>as</strong> tornaram-se mais conscientes <strong>de</strong> si, porque seimaginaram viven<strong>do</strong> aos olhos da posterida<strong>de</strong> (como Milton, Pope,Goethe, Wordsworth ou Byron) e <strong>de</strong>ixaram muit<strong>as</strong> <strong>de</strong>claraçõesautobiográfic<strong>as</strong>, além <strong>de</strong> atrair muita atenção <strong>do</strong>s contemporâneos.(...) Esses poet<strong>as</strong> falaram <strong>de</strong> si não apen<strong>as</strong> em cart<strong>as</strong> privad<strong>as</strong>, diáriose autobiografi<strong>as</strong> m<strong>as</strong> também nos seus pronunciamentos maisformais. (WELLECK; WARREN, 2003, p. 89)Toda a correspondência enviada e recebida por Clarice Lispector trazesclarecimentos para pesquisa<strong>do</strong>res que buscam produzir material biográfico sobre aescritora. Em uma d<strong>as</strong> cart<strong>as</strong> en<strong>de</strong>reçada a Sabino, ela conta sobre o processo<strong>do</strong>loroso <strong>de</strong> confecção <strong>de</strong> uma obra: “Meu livro há meses está para<strong>do</strong> por falta <strong>de</strong>movimento íntimo e ‘êxtimo’. Espero em Deus acordar <strong>de</strong>ste mau sonho que está seprolongan<strong>do</strong> mais <strong>do</strong> que posso às vezes suportar”. (SABINO, 2003, p. 65)


Anais Eletrônicos <strong>do</strong> IV Seminário Nacional Literatura e CulturaSão Cristóvão/SE: GELIC/UFS, 03 e 04 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 2012.ISSN: 2175-41286Na mesma carta, Clarice apresenta característic<strong>as</strong> consi<strong>de</strong>rad<strong>as</strong> pontos <strong>de</strong>literarieda<strong>de</strong>, tais como os <strong>de</strong>svios em “relação às ocorrênci<strong>as</strong> comuns dalinguagem”. (SOUZA, 2007, p. 52) A marca da literatura, neste c<strong>as</strong>o, surge através <strong>de</strong>uma elaboração especial da linguagem, traduzin<strong>do</strong> em um evi<strong>de</strong>nte universoimaginário ou ficcional, como segue abaixo:Às vezes estou num esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> graça tão suave que não quero quebrálapara exprimi-la, nem po<strong>de</strong>ria. Esse esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> graça é apen<strong>as</strong> umaalegria que não <strong>de</strong>vo a ninguém, nem a mim, uma coisa que suce<strong>de</strong>como se me tivessem mostra<strong>do</strong> a outra face. Se eu pu<strong>de</strong>sse olhar maistempo essa face e se pu<strong>de</strong>sse <strong>de</strong>screvê-la, você veria como é esse onome da fera que você esqueceu no sonho. (SABINO, 2003, p. 65 e 66)Ainda na mesma correspondência, encontrada na página 67 <strong>do</strong> livro “Cart<strong>as</strong>Perto <strong>do</strong> Coração”, Clarice propõe uma poesia concreta e visual, ou seja, mais umindício <strong>de</strong> literatura encontra<strong>do</strong> em um <strong>do</strong>cumento íntimo. Em vári<strong>as</strong> cart<strong>as</strong> tambémé encontra<strong>do</strong> um ponto <strong>do</strong> estilo peculiar <strong>de</strong> Lispector em su<strong>as</strong> obr<strong>as</strong>: o fluxo <strong>de</strong>consciência. Segun<strong>do</strong> Carvalho, “a ficção <strong>de</strong> fluxo da consciência procura justamenteexprimir a fluida realida<strong>de</strong> psíquica quebran<strong>do</strong> os mol<strong>de</strong>s da linguagem tradicional”.(CARVALHO, 1981, p. 61)Em “Cart<strong>as</strong> Perto <strong>do</strong> Coração” (2001), o fluxo <strong>de</strong> consciência está presenten<strong>as</strong> correspondênci<strong>as</strong> <strong>de</strong> Clarice, uma vez que “apresenta, através <strong>de</strong> uma linguagemtruncada ou <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>nada, o pensamento ainda não claramente formula<strong>do</strong> <strong>do</strong> ponto<strong>de</strong> vista lógico ou linguístico”. (CARVALHO, 1981, p. 61) Portanto, <strong>as</strong> cart<strong>as</strong> <strong>de</strong> Lispectorsão revela<strong>do</strong>r<strong>as</strong> <strong>de</strong> uma literatura pulsante, que não se contentava em ficar restrita àsobr<strong>as</strong> da autora e que se liberava também através <strong>de</strong> <strong>do</strong>cumentos íntimos queserviram como veículos <strong>de</strong> subjetivida<strong>de</strong> e criação poética.


REFERÊNCIASAnais Eletrônicos <strong>do</strong> IV Seminário Nacional Literatura e CulturaSão Cristóvão/SE: GELIC/UFS, 03 e 04 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 2012.ISSN: 2175-41287BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes,2006.BERGEZ, Daniel. Méto<strong>do</strong>s críticos para a análise literária. Trad. Olinda MariaRodrigues Prata. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.CARVALHO, Alfre<strong>do</strong> Leme Coelho <strong>de</strong>. Foco narrativo e fluxo da consciência –Questões <strong>de</strong> teoria literária. 1ª ed. São Paulo: Pioneira, 1981.FOUCAULT, Michel. O Que é Um Autor. 2ª ed. Lisboa: Vega Editora, 1992.MOISÉS, M<strong>as</strong>saud. A análise literária. 15ª ed. São Paulo: Cultrix, 2005.MOISÉS, M<strong>as</strong>saud. A criação literária – Prosa II. 19ª ed. São Paulo: Cultrix, 2005.PROENÇA FILHO, Domício. A linguagem literária. 7ª ed. São Paulo: Ática, 2003.SABINO, Fernan<strong>do</strong>. Cart<strong>as</strong> Perto <strong>do</strong> Coração – Fernan<strong>do</strong> Sabino/Clarice Lispector.5ª ed. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Record, 2003.SOUZA, Roberto Acízelo <strong>de</strong>. Teoria da literatura. 10ª ed. São Paulo: Ática, 2007.WELLECK, René; WARREN, Austin. Teoria da literatura e meto<strong>do</strong>logia <strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>s<strong>literário</strong>s. Trad. Luís Carlos Borges. 1ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!