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Piercings na língua: Hilda Hilst e Kiki Smith - Grupo de Estudos em ...

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<strong>Piercings</strong> <strong>na</strong> <strong>língua</strong>:<strong>Hilda</strong> <strong>Hilst</strong> e <strong>Kiki</strong> <strong>Smith</strong>A<strong>na</strong> ChiaraEla enveredou./Exasperou/Ficou uma/porca/com uma/Rosa/ cor-<strong>de</strong>-Rosa/ <strong>na</strong> boca.Eduardo Sinkevisque. Comentário I1Espasmos da <strong>língua</strong>... a <strong>língua</strong> como ‘piercing’. <strong>Hilda</strong> e <strong>Kiki</strong> são artistas<strong>de</strong> ‘piercings’ implantados <strong>na</strong> <strong>língua</strong> da arte que produz<strong>em</strong>. Artistas <strong>de</strong> uma<strong>língua</strong> outra. O metal <strong>na</strong> <strong>língua</strong> – com que operam – cria outra boca, outramão. Produz gosma, outros sons; imagens atravessam <strong>de</strong> través a tradição.Outra <strong>língua</strong>... Criam <strong>em</strong> outra <strong>língua</strong>... Da <strong>língua</strong>, o céu do ‘piercing’. Trava,travo lingüístico, travo artístico. Des-linguar. Des-pren<strong>de</strong>r. Des-enraizar.Plantar outros sons e imagens. No chão da <strong>língua</strong>, o ‘piercing’. Pasmam alinguag<strong>em</strong>, a matéria com que trabalham.Trago a esta ce<strong>na</strong> <strong>de</strong> escrita duas artistas: <strong>Hilda</strong> <strong>Hilst</strong> (1922-1995),brasileira, escritora, dramaturga, poeta, e <strong>Kiki</strong> <strong>Smith</strong> (1954), <strong>na</strong>scida <strong>em</strong>Nur<strong>em</strong>berg quase por acaso, moradora nos Estados Unidos, artista plástica.Ambas buscam dar forma ao “impossível real” dos corpos f<strong>em</strong>ininos pormeio <strong>de</strong> estratégias discursivas e/ou formais que expressam, representam, a“<strong>na</strong>tureza car<strong>na</strong>l”, a fisiologia, excreções, fluidos, vulnerabilida<strong>de</strong> e força;mas ultrapassam o domínio da representação do real – do realismo <strong>em</strong> arte– para criar<strong>em</strong> um corporal reinventado.Desprezam, por conseguinte, a idéia inicial <strong>de</strong> representação realista<strong>em</strong> favor <strong>de</strong> um <strong>de</strong>slocamento radical da linguag<strong>em</strong>. A possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>representação negada <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início por ser ilusória, a impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>representar o real do corpo, transforma-se <strong>em</strong> busca <strong>de</strong> linguag<strong>em</strong>, <strong>na</strong> qualos sentidos estabilizados são transgredidos, violentados e dissolvidos; supera-sea noção <strong>de</strong> “organismo”, segundo Artaud/Deleuze 1 , <strong>de</strong>sarticulando-se1 Refiro-me ao conceito <strong>de</strong> corpo s<strong>em</strong> órgãos <strong>de</strong> Antonin Artaud (vi<strong>de</strong>: Para acabar com o julgamento <strong>de</strong> Deus)e ao <strong>de</strong>senvolvimento dado por Deleuze à questão <strong>em</strong>: Deleuze, Mil platôs-capitalismo e esquizofrenia.


180 A<strong>na</strong> Chiaraos limites binários: <strong>de</strong>ntro/fora, interior/exterior. <strong>Hilda</strong> e <strong>Kiki</strong> contrariam,portanto, qualquer noção simplista <strong>de</strong> realismo <strong>em</strong> arte, corromp<strong>em</strong> “por<strong>de</strong>ntro” os próprios pressupostos que fundam esta noção. Plasmam larvas,lavas vulcânicas, incan<strong>de</strong>scências, in<strong>de</strong>cências. O trabalho <strong>de</strong>las po<strong>de</strong>ria sercomparado à ação <strong>de</strong> fuçar das porcas, animal tão caro à <strong>Hilda</strong> <strong>Hilst</strong> comoencar<strong>na</strong>ção <strong>de</strong> um “f<strong>em</strong>inino” <strong>em</strong> da<strong>na</strong>ção, <strong>de</strong>rrelição. Enfrentam o corpo, amatéria, <strong>em</strong> todas suas formas: pus, vômito, uri<strong>na</strong>, sêmen, sangue, lágrimas,leite, cuspe, <strong>de</strong>tritos. Refiro-me explicitamente ao trabalho <strong>de</strong> <strong>Kiki</strong> <strong>Smith</strong>“Untitled”, composto por 12 garrafas <strong>de</strong> vidro prateado, apresentadas sobreum bloco <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira branca, on<strong>de</strong> cada garrafa ostenta um <strong>de</strong>sses nomesdos fluidos corporais 2 .O idioma das duas artistas não é fácil. Desliza por quatro gêneros: o masculino,o f<strong>em</strong>inino, o neutro e o coletivo. Colam a <strong>língua</strong> no chão da Línguae lavam as palavras, as imagens, das cristalizações do excesso dos sentidos<strong>de</strong>positados. Trabalham como se lambess<strong>em</strong> o chão <strong>de</strong> pregos, escarificam aLíngua: letras mudas, duplos sentidos, formas i<strong>na</strong>cabadas, <strong>de</strong>composições.Escovam as palavras <strong>na</strong> prancha da linguag<strong>em</strong> artística, faz<strong>em</strong> acrobaciadas marcas, aceitam os tombos acrobáticos <strong>de</strong> uma <strong>língua</strong> que dispara, fulguraçãos<strong>em</strong> nome próprio, s<strong>em</strong> marcas próprias, apropriações e metáforasfulgurantes. Amor ao i<strong>na</strong>cabado da arte, extraindo da linguag<strong>em</strong> artística suapotência máxima. Linguag<strong>em</strong> flexível e virg<strong>em</strong> <strong>de</strong> on<strong>de</strong>, <strong>em</strong> galope, disparame mergulham <strong>de</strong> cabeça no excesso e no impossível.A noção do crime as tange <strong>em</strong> direção à máqui<strong>na</strong> da escrita e das artesplásticas e visuais, numa vertig<strong>em</strong> compulsiva... Renúncia ao b<strong>em</strong> estar, aosentido, à interpretação. Filiam-se a Sa<strong>de</strong> e a Bataille. Sa<strong>de</strong> pela noção <strong>de</strong>transgressão, por estar<strong>em</strong> no além da Língua, do possível da <strong>língua</strong>, e Bataille,pelo dispêndio: o gasto s<strong>em</strong> retorno. Uma economia lingüística s<strong>em</strong> troca.Renúncia a trocas. Soberania da linguag<strong>em</strong> <strong>de</strong>rrotando o pensamento. Nessesentido, são artistas solares, luminosida<strong>de</strong>s cegantes e fatais, triunfam sobrea razão e entregam-se ao excesso e ao impossível.Faz<strong>em</strong> “tudo por amor à <strong>língua</strong>”, anuncia <strong>Hilda</strong> <strong>em</strong> Fluxo-flo<strong>em</strong>a 3 ; estranholivro, no qual as mutações imperam. Os sons exalados, pela <strong>língua</strong> literária <strong>de</strong><strong>Hilst</strong>, arranham a garganta, limpam-<strong>na</strong>, por força <strong>de</strong> esfregá-la, dos sentidoscomuns, dos sentidos acumulados pelo caudal da tradição da máqui<strong>na</strong> do2 <strong>Smith</strong>, A Gathering, p.108.3 <strong>Hilst</strong>, Fluxo-flo<strong>em</strong>a.


<strong>Piercings</strong> <strong>na</strong> <strong>língua</strong>181sentido. As corporificações <strong>de</strong> <strong>Kiki</strong> são monstruosida<strong>de</strong>s híbridas: mulheresque sa<strong>em</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> animais, mulheres-lobo, mulheres <strong>de</strong> cujos ânus sai umaimensa cauda <strong>em</strong> material <strong>de</strong> efeito asqueroso, tripa ou excr<strong>em</strong>ento 4 . A arte<strong>de</strong>las anuncia um amor impossível <strong>de</strong> se cumprir, amor à realida<strong>de</strong> monstruosae mortífera, performatizam a impossibilida<strong>de</strong> criativa, a busca s<strong>em</strong> trégua.Trabalham com a inter<strong>língua</strong>, com a infra<strong>língua</strong>, com o lixo. Entre os lugaresda boca, duros, moles, molhados, alvéolos, <strong>de</strong>ntes, <strong>língua</strong>, papilas, palato,move-se in<strong>de</strong>cente a inter<strong>língua</strong> <strong>de</strong>ssas duas artistas. Move-se entre os lugares:Rio, Campi<strong>na</strong>s, Casa do Sol, São Paulo, Nova York. Move-se s<strong>em</strong>ovente.A inter<strong>língua</strong> do sim, a inter<strong>língua</strong> do não: “A <strong>língua</strong> é presa num filete rosado<strong>de</strong> matéria, é áspera, pesa <strong>na</strong> minha boca, tudo pesa, a maior parte do dia ficaà procura <strong>de</strong> migalhas, <strong>de</strong>pois se disten<strong>de</strong> procurando a palavra. PESA” 5 .Língua que se move entre lugares <strong>de</strong> <strong>de</strong>scanso impossível. A inter<strong>língua</strong> dointerdito, do entre<strong>de</strong>ntes, do entreouvido, lido, visto, experimentado? Moveseinquieta, busca afinida<strong>de</strong>s ocultas, nexos perdidos... Sentidos incomuns...move-se, move-se, s<strong>em</strong> parelha. Move-se. Movimento dos lábios, (peixepreso <strong>em</strong> aquário), palavras cacos, cacofonias, <strong>de</strong>tritos confusos, pequenoscadáveres, bestas, feras, r<strong>em</strong>iniscências do horror experimentado <strong>na</strong> inocência<strong>de</strong> superfície dos contos <strong>de</strong> fadas...O ‘piercing’ <strong>na</strong> <strong>língua</strong> inflama s<strong>em</strong> cicatrizar. A <strong>língua</strong> <strong>de</strong> Fluxo-flo<strong>em</strong>abalbucia, <strong>de</strong>la escorr<strong>em</strong> filetes <strong>de</strong> sangue, fala como se fosse água parada,sovertendo-se, re<strong>de</strong>moinho, boca banguela, comendo a si mesma, comouma das perso<strong>na</strong>gens:um outro feito <strong>de</strong> mim, mas todo nu, <strong>de</strong>spojado <strong>de</strong> tudo, nu no corpo, nu por <strong>de</strong>ntro,ah, vai balbuciar, isso vai, não abro mão do balbucio, vai dizer blu, plinka, plinka,oheohahu, vai entrar <strong>de</strong>ntro do rio e gritar OHEOHUOHAHU 6 .O painel <strong>de</strong> fetos <strong>de</strong> <strong>Kiki</strong> <strong>Smith</strong>, intitulado All Souls, <strong>de</strong> 1988, exibe acondição huma<strong>na</strong> entre o <strong>na</strong>scimento e a morte, o i<strong>na</strong>cabado da vida com amorte já se fazendo, fetos n<strong>em</strong> <strong>na</strong>scidos e já mortos, estag<strong>na</strong>dos <strong>em</strong> frascos <strong>de</strong>museu. O painel prolifera o horror, a <strong>língua</strong> recua nestes dois casos, tor<strong>na</strong>-seproto<strong>língua</strong>. Balbucios <strong>de</strong> <strong>Hilda</strong> e fetos <strong>de</strong> KIKI prenunciam, prefiguram,4 <strong>Smith</strong>, Tale, 1992.beewawax, microcrystaline wax, pigment, and papier-mâché.5 <strong>Hilst</strong>, op. cit., p. 234.6 Id., p. 68.


182 A<strong>na</strong> Chiaraa arte do <strong>de</strong>vir. Não se trata <strong>de</strong> arte mo<strong>de</strong>rnista, arte do t<strong>em</strong>po futuro, masdaquilo que, estando a caminho, não se estabiliza numa dimensão t<strong>em</strong>poral anão ser no presente s<strong>em</strong>pre eterno da arte. São signos artísticos, no entanto,convert<strong>em</strong> a i<strong>de</strong>alida<strong>de</strong> do signo artístico como, por ex<strong>em</strong>plo, <strong>de</strong> Proust,numa dimensão material com o veneno mortal das voltas escorpiônicas sobrea consciência da perecibilida<strong>de</strong>.Como aproximar essas duas artistas que usam materiais tão diversos? Anão ser pelo modo com que a matéria fulgura nos trabalhos <strong>de</strong> ambas? Sãoartistas da experiência, não se <strong>de</strong>scolam do sentir, experimentar, vivenciaros materiais e imprimir ao material a experiência, não <strong>de</strong> uma vida, não <strong>de</strong>suas vidas, mas a experiência da experiência, seja experiência do vivido ouexperiência estética, experiência vivida do estético, vivência estética da experiência,das sensações, dos sentidos corporais, da sensibilida<strong>de</strong>, dos afetos.A matéria corporal, biológica, corruptível constitui a entrega excruciante<strong>de</strong>sse tipo <strong>de</strong> arte. O corpo humano <strong>em</strong> seus <strong>de</strong>vires, <strong>em</strong> suas metamorfosesanimais, bestiais, corpos <strong>em</strong> <strong>de</strong>composição como o <strong>de</strong> Lázaro 7 , <strong>em</strong> <strong>Hilda</strong>,corpos calci<strong>na</strong>dos como os corvos 8 <strong>de</strong> <strong>Kiki</strong> (pequenos corpos espalhados sobreo solo ama<strong>de</strong>irado da sala <strong>de</strong> exposição) compõ<strong>em</strong> um quadro repulsivo efasci<strong>na</strong>nte ao mesmo t<strong>em</strong>po, um quadro lúgubre <strong>de</strong> <strong>de</strong>solação, estão mortos,são um ‘m<strong>em</strong>ento mori’, mi<strong>na</strong>ndo a ilusão da percepção realista.Perante os olhares <strong>de</strong>sviantes <strong>de</strong> escândalo ou aturdimento dos leitoresou do público, as duas <strong>de</strong>monstram como é impossível dissolver a dúvidaprimordial sobre a criação até o momento <strong>em</strong> que <strong>de</strong>põ<strong>em</strong> as mãos, enxugamo suor e se curvam diante do fracasso. <strong>Hilda</strong> tor<strong>na</strong>-se uma pergunta: qu<strong>em</strong>fala por mim agora? <strong>Kiki</strong> pergunta: por qu<strong>em</strong> este tipo <strong>de</strong> arte fala? Ambasforçam os limites da busca, anseiam pela transcendência da própria condição,parec<strong>em</strong> <strong>de</strong>sejar a dispersão no Todo. Lugar oco, no caso <strong>de</strong> <strong>Hilda</strong>, <strong>de</strong> um<strong>de</strong>us s<strong>em</strong> função; transcendência da própria condição <strong>em</strong> formas arcaicas,larvares, folclóricas, científicas, no caso <strong>de</strong> <strong>Kiki</strong>. Matéria dolorosa, matéria <strong>de</strong>dor e <strong>de</strong> superação da dor, fragilida<strong>de</strong> e força, <strong>de</strong>rrelição (como nos gran<strong>de</strong>sespectros ensangüentados <strong>de</strong> gampi paper e methyl celulose, compostos por<strong>Kiki</strong> <strong>na</strong> década <strong>de</strong> 1980, quando muitos <strong>de</strong> seus amigos, inclusive o irmão,foram atingidos pela epi<strong>de</strong>mia <strong>de</strong> AIDS 9 ), mas também <strong>de</strong> riso libertador:7 Trata-se da perso<strong>na</strong>g<strong>em</strong> do conto <strong>de</strong> mesmo nome no livro citado.8 <strong>Smith</strong>, Crows (Six Crows) 1995. Silicon Bronze.9 <strong>Smith</strong>, Tale, 1992.beewawax, microcrystaline wax, pigment, and papier-mâché, p. 154.


<strong>Piercings</strong> <strong>na</strong> <strong>língua</strong>183potência e impotência da matéria. Em ambas, uma incli<strong>na</strong>ção para a concepçãoreligiosa do cosmos; sentimento místico, mítico, contudo, aberto aovazio, ao abandono dos <strong>de</strong>uses. Artistas da profa<strong>na</strong>ção dos sentidos dogmáticos<strong>de</strong>slocam o caráter totalitário da veneração do sagrado para o campoda experimentação da matéria, contagiam, <strong>de</strong>slocam, subvert<strong>em</strong>, sujam osel<strong>em</strong>entos sagrados:Religio não é o que une homens e <strong>de</strong>uses, mas aquilo que cuida para que se mantenhamdistintos. Por isso à religião não se opõ<strong>em</strong> a incredulida<strong>de</strong> e a indiferença com relaçãoao divino, mas a “negligência”, uma atitu<strong>de</strong> livre e “distraída” – ou seja, <strong>de</strong>svinculadada religio das normas – diante das coisas e <strong>de</strong> seu uso, diante das formas da separaçãoe seu significado. Profa<strong>na</strong>r significa abrir a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma forma especial <strong>de</strong>negligência, que ignora a separação, ou melhor, faz <strong>de</strong>la um uso particular 10 .Mas, como <strong>de</strong>finir a “poética dos materiais” nesses modos tão diversose particulares <strong>de</strong> lidar com aquilo <strong>de</strong> que dispõ<strong>em</strong>? O que pergunto? O queponho <strong>em</strong> questão? Como converter a idéia <strong>de</strong> matéria <strong>em</strong> matéria? Comofazer para que a idéia <strong>de</strong> matéria se manifeste encar<strong>na</strong>da nos materiaisartísticos? Se <strong>Hilda</strong> trabalha com a palavra, nela a palavra é distendida aomáximo, transubstanciada, feita carne, pois nela cola-se o significante nosignificado, horizontaliza-se.Releio o início do texto “Flo<strong>em</strong>a”:Koyo, <strong>em</strong>u<strong>de</strong>ci. Vestíbulo do <strong>na</strong>da. Até on<strong>de</strong> está a lacu<strong>na</strong>. Vê apalpa. A fronte. Chegaaté o osso. Depois a matéria quente, o vivo. Pega os instrumentos, a faca e abre. Primeiroa primeira, incisão mais funda, <strong>de</strong>pois a segunda, pensa: não me importo, estoucortando o que não conheço. Koyo, o que eu digo é impreciso, não é, não anotes, tudoestá para dizer, e se eu digo <strong>em</strong>u<strong>de</strong>ci, <strong>na</strong>da do que eu digo estou dizendo 11 .Logo se percebe a afinida<strong>de</strong> entre a ativida<strong>de</strong> cirúrgica, da qual querorecuperar a etimologia da mão que faz uma intervenção, uma incisão, umalesão. Etimologia vinda do grego kheirourgia, <strong>de</strong> kheír, kheíros (mão) e érgon, ou(obra trabalho) 12 . Precisão cirúrgica da escritora <strong>Hilda</strong> (que se <strong>de</strong>sdobra <strong>em</strong>ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> prosa, poesia e teatro) e a da artista plástica <strong>Kiki</strong> (que trabalha10 Agamben, Profa<strong>na</strong>ções, p. 66.11 <strong>Hilst</strong>, op. cit., p. 225.12 Houaiss, Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, p. 730.


184 A<strong>na</strong> Chiaracom os materiais mais diversos – <strong>em</strong> pinturas, <strong>de</strong>senhos, fotos, instalações eobjetos – tais como o duro bronze, o amolecido papier-mâché, o frágil vidro,a porosa terracota, a docilida<strong>de</strong> da massa). Precisão atordoante <strong>em</strong> lidarcom os materiais, porque envolve logro, já que <strong>em</strong> <strong>Hilst</strong> e <strong>Smith</strong> o métodoé performatizar a fragmentação, a dispersão, por meio da comutação <strong>de</strong>formas, da proliferação, da dispersão (digamos assim) que atordoam o leitorou o público, com a exposição irônica da matéria corruptível <strong>de</strong> que somosfeitos e <strong>de</strong> que é feito o mundo que nos cerca.A instabilida<strong>de</strong> do mundo revela-se, <strong>de</strong>sta maneira, exposta pela força<strong>de</strong> uma arte que se apresenta como o efeito <strong>de</strong> uma operação violenta,técnica, precisa que nos coloca <strong>em</strong> frente do que a ilusão realista nos priva,agindo contra o habeas corpus da percepção gasta diante da cruelda<strong>de</strong> doreal, <strong>de</strong>sbloqueando os sentidos selvagens que subjaz<strong>em</strong> ao efeito <strong>de</strong> umolhar <strong>de</strong>spreocupado e obediente. Ao mundo or<strong>de</strong><strong>na</strong>do, orgânico, ilusórioda representação realista, opõ<strong>em</strong> uma dimensão crua e incômoda do real.Enfrentam a matéria nos estados extáticos, incomuns, <strong>de</strong>lirantes. Estadosexcessivos, nos quais o corpo humano regressa ao <strong>de</strong>sor<strong>de</strong><strong>na</strong>do da fisicalida<strong>de</strong>,com liberação <strong>de</strong> energia sexual, car<strong>na</strong>l, bestial. Trata-se da liberação<strong>de</strong> energia e das perdas exigidas pela arte, segundo a noção <strong>de</strong> dispêndio <strong>de</strong>Georges Bataille, para qu<strong>em</strong> a arte não se <strong>de</strong>ve inscrever <strong>na</strong> lógica do capital,do valor <strong>de</strong> troca, n<strong>em</strong> do valor <strong>de</strong> uso, pois é gasto, dom, doação: “Oraé necessário reservar o nome <strong>de</strong> dispêndio a essas formas improdutivas” 13 .Bataille aproxima essas formas artísticas do conceito <strong>de</strong> sacrifício – “issosignifica, com efeito, da maneira mais precisa, criação por meio da perda.Seu sentido é então vizinho daquele do sacrifício” 14 – e o artista é vistoradicalmente como um ser margi<strong>na</strong>l ao processo econômico da socieda<strong>de</strong> etambém no sentido <strong>de</strong> sua própria (do artista) experiência.Arte da dissolução e do <strong>de</strong>sapego ao eu que, <strong>na</strong> contracorrente do <strong>na</strong>rcisismocont<strong>em</strong>porâneo, mergulha no anonimato, <strong>na</strong>s baixas conformações.Seres s<strong>em</strong> psicologia, s<strong>em</strong> ‘caráter’, são <strong>em</strong>briões <strong>de</strong> perso<strong>na</strong>gens (vi<strong>de</strong> <strong>Hilda</strong>),fetos como curiosida<strong>de</strong>s museológicas, animais e perso<strong>na</strong>gens dos contos <strong>de</strong>fada, do imaginário infantil, recuam (vi<strong>de</strong> <strong>Kiki</strong>) ao campo fantasmático. Arte,como crime contra a <strong>na</strong>tureza, como império do artifício, corrompe e ilumi<strong>na</strong>13 Bataille, La Part Maudite, p. 28. (tradução minha).14 Id., “Il signifie, en effet, <strong>de</strong> la façon la plus precise, creation au moyen <strong>de</strong> la perte. Son sens est doncvoisin <strong>de</strong> celui du sacrifice”, p. 31. (tradução minha).


<strong>Piercings</strong> <strong>na</strong> <strong>língua</strong>185os sentidos calcificados. Arte da truculência e <strong>de</strong>struição, da virginda<strong>de</strong> e dalimpi<strong>de</strong>z do ato. Jorro inestancável <strong>de</strong> palavras como lava vulcânica, projétilentre os dois olhos do público que sucumbe ao incômodo da cruelda<strong>de</strong> <strong>de</strong>steamor à <strong>língua</strong>. Deste manejo da <strong>língua</strong> que <strong>de</strong>sperta nele a consciência <strong>de</strong>sua própria cruelda<strong>de</strong>, truculência, como um princípio <strong>de</strong> júbilo e submissãodiante da soberania da arte. Tent<strong>em</strong>os observar o método <strong>de</strong> <strong>Hilda</strong> e <strong>Kiki</strong><strong>de</strong> modo mais próximo.3O leitor <strong>de</strong> <strong>Hilda</strong> <strong>em</strong> Fluxo-Flo<strong>em</strong>a, livro publicado <strong>em</strong> 1970, <strong>de</strong>ve percorreros <strong>de</strong>smoro<strong>na</strong>mentos <strong>de</strong> uma linguag<strong>em</strong> tortuosa, blasf<strong>em</strong>a, <strong>de</strong> riso<strong>de</strong>safiador que, ao contrário das <strong>na</strong>rrativas tradicio<strong>na</strong>is, não cria, n<strong>em</strong> <strong>de</strong>senvolveperipécias, n<strong>em</strong> conflitos, n<strong>em</strong> <strong>de</strong>lineia contornos psicológicos paraperso<strong>na</strong>gens. <strong>Hilda</strong> <strong>Hilst</strong> muito menos ancora a <strong>na</strong>rrativa numa perso<strong>na</strong>g<strong>em</strong>monológica. A<strong>na</strong>tol Rosenfeld chama atenção para a estrutura tripartite dostextos <strong>de</strong> Fluxo-flo<strong>em</strong>a, cujas oscilações por zo<strong>na</strong>s <strong>de</strong> luz e sombra, criamuma simbólica solar / lu<strong>na</strong>r: “Em cada um dos textos há três “perso<strong>na</strong>gens”,melhor três máscaras que se <strong>de</strong>stacam” 15 . A linguag<strong>em</strong> dramatiza-se, perpassadiferentes vozes <strong>na</strong>rrativas, confun<strong>de</strong> e fun<strong>de</strong> essas vozes. Não se trata,a meu ver, <strong>de</strong> um fluxo <strong>de</strong> consciência nos mol<strong>de</strong>s joyceanos, n<strong>em</strong> nos <strong>de</strong>Virgínia Woolf, nenhum <strong>de</strong>sses altos mo<strong>de</strong>los das estratégias discursivas doalto mo<strong>de</strong>rnismo do século XX cont<strong>em</strong>pla uma aproximação com o queestudamos <strong>em</strong> Fluxo-flo<strong>em</strong>a, pois não se investiga uma possível interiorida<strong>de</strong><strong>de</strong>salinhada, n<strong>em</strong> tampouco a linguag<strong>em</strong> perfaz o jogo surrealista da escritaautomática. Talvez se aproxime do esvaziamento substancialista, comoobservado <strong>em</strong> Beckett 16 . Com efeito, o controle que <strong>Hilda</strong> exerce sobre alinguag<strong>em</strong> parece vir <strong>de</strong> sua vocação <strong>de</strong> dramaturga, da afinida<strong>de</strong> com adramaturgia beckttia<strong>na</strong>. Basta-nos ver a epígrafe <strong>de</strong>sse livro: “Havia <strong>em</strong>suma, três, não, quatro Molloys. O das minhas entranhas, a caricatura queeu fazia <strong>de</strong>sse, o <strong>de</strong> Gaber e o que, <strong>em</strong> carne e osso, <strong>em</strong> algum lugar esperavapor mim [...]” 17 . Por conta <strong>de</strong>ssa vocação dramatúrgica e complexa, julgo15 Rosenfeld, http://www.angelfire.com/ri/casadosol/criticaar.html. Também constante como prefácio daprimeira edição do livro pela editora.16 Segundo Flora Sussekind, Beckett tor<strong>na</strong> complexo o lugar da enunciação por meio do efeito <strong>de</strong><strong>de</strong>saparecimento. Cf. “Um lugar on<strong>de</strong> a ausência t<strong>em</strong> lugar”.17 Beckett, apud <strong>Hilst</strong>, op. cit.


<strong>Piercings</strong> <strong>na</strong> <strong>língua</strong>189s<strong>em</strong> ter percebido <strong>em</strong> nós a possibilida<strong>de</strong> do sofrimento, assim como a daabjeção” 24 . Tanto <strong>Hilda</strong> – confira-se, <strong>em</strong> Fluxo-flo<strong>em</strong>a, o conto “Lazarus”– quanto <strong>Kiki</strong> voltam-se para as patologias corporais como forças exercidassobre a matéria, forças reveladoras do t<strong>em</strong>po-espaço, usam-<strong>na</strong>s como umaforma <strong>de</strong> meditação sobre a experiência <strong>de</strong> se estar vivo. O corpo humanoe seus pa<strong>de</strong>cimentos exerceram sobre <strong>Kiki</strong>, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> quando ela era criança,uma fasci<strong>na</strong>ção retomada <strong>em</strong> sua produção adulta:Cresci numa família cheia <strong>de</strong> doenças. Era a preocupação com o corpo. Tambémsendo católicos – fazendo coisas fisicamente – ficavam obcecados com o corpo. Istopareceu cair realmente b<strong>em</strong> para mim: falar através do corpo <strong>de</strong> como estamos aquie <strong>de</strong> como viv<strong>em</strong>os 25 .<strong>Kiki</strong> <strong>Smith</strong> po<strong>de</strong>ria ser uma estudiosa <strong>de</strong> a<strong>na</strong>tomia, uma artista <strong>de</strong> um<strong>na</strong>turalismo cientificista tal sua aplicação nos estudos <strong>de</strong> biologia. No entanto,assim como <strong>Hilda</strong> ultrapassa a mímese reprodutiva <strong>na</strong> Literatura, <strong>Kiki</strong><strong>de</strong>scobre como po<strong>de</strong> ir além do corpo-organismo. Sua arte <strong>de</strong>sencorpa oscorpos tal como ela mesma nos po<strong>de</strong> explicar:Eu estava me <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>ndo com os fatos ou quase fatos – usando a linguag<strong>em</strong> comoum fosso. Era como se eu pu<strong>de</strong>sse me proteger, dizendo: isso é um fato: exist<strong>em</strong>duzentos e seis ossos e ei-los aqui. Coisas que não se discut<strong>em</strong>. Mas <strong>em</strong> Vie<strong>na</strong>, eucomecei a sair disso. Nas mostras, os corpos eram <strong>de</strong>sencorpados, virados do avesso,manobrados, mal-usados 26 .Ao superar<strong>em</strong>, portanto, a estética realista <strong>em</strong> suas formas mais recentes,elas po<strong>de</strong>m ser chamadas <strong>de</strong> artistas <strong>de</strong> um realismo pós-utópico, pós-metafísico,ao se contrapor<strong>em</strong> às formas b<strong>em</strong> acabadas da arte. Ao abrir<strong>em</strong> mão dovisual <strong>em</strong> favor do plástico, do táctil, mas ainda assim <strong>de</strong>sviante, <strong>de</strong>slizante,24 Borges, “Georges Bataille: imagens do êxtase”.25 <strong>Smith</strong>, A gathering, 1980-2005, p. 59: “I grew up in a family with a lot of illness. There was a preoccupationwith the body. Also being Catholic – making things physical – they are obsessed with thebody. It se<strong>em</strong>ed to me a form that suited me really well – to talk through the body about the waywe´re here and how we´re living”.26 <strong>Smith</strong>, op. cit., p. 65: “I was <strong>de</strong>fending myself with facts or quasi facts – used language like a moat. Itwas as if I could protect myself by saying, this is a fact: there are two hundred and six bones in thebody, and here they are. Things you can ´t dispute. But in Vie<strong>na</strong> I started coming out of the bag alittle. In the show bodies were dis<strong>em</strong>bodied, turned away, shunned, misbehaving”.


190 A<strong>na</strong> Chiaramovente, <strong>Hilda</strong> e <strong>Kiki</strong> mostram o que não <strong>de</strong>v<strong>em</strong>. Mostram-nos as <strong>língua</strong>sobsce<strong>na</strong>s, mostram o que não “<strong>de</strong>veriam” mostrar. São duas porcas quefocinham no plasma, no sêmen, no sangue e que nos beijam <strong>de</strong>pois. Beijame nos abando<strong>na</strong>m. Seus beijos <strong>de</strong> Língua têm efeitos fatais, são <strong>de</strong>mais. Sãocomo um gancho que nos ata a <strong>língua</strong> <strong>na</strong> Língua vermelha, brilhante, salobrae inquietante da Arte. De uma arte que seduz e exaspera.Referências bibliográficasAg a m b e n , Giorgio. Profa<strong>na</strong>ções. Trad. e apresentação <strong>de</strong> Selvino José Assmann.São Paulo: Boit<strong>em</strong>po, 2007.Bataille, Georges. Visions of excess. Minneapolis: University of MinnesotaPress, 1985.Bo r g e s , Augusto Contador. “Georges Bataille: imagens do êxtase”. RevistaAgulha. Disponível <strong>em</strong> http:/www.revista.agulha.nom.br/ag.9.bataillhe/htm. Acesso <strong>em</strong> abr. 2008.Cava l c a n t i, Isabel. Eu que não estou aí on<strong>de</strong> estou: o teatro <strong>de</strong> SamuelBeckett (o sujeito e a ce<strong>na</strong> entre o traço e o apagamento). Rio <strong>de</strong> Janeiro:7letras, 2006.Deleuze, Gilles. A ilha <strong>de</strong>serta e outros textos: textos e entrevistas (1953-1974).Edição preparada por Davi Lapouja<strong>de</strong>: organização da edição brasileirae revisão técnica <strong>de</strong> Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Iluminuras, 2006._______. Mil platôs-capitalismo e esquizofrenia. v. 3. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Editora34, 1996.Ho u a i s s, Antonio. Dicionário Houaiss da <strong>língua</strong> portuguesa. Rio <strong>de</strong> Janeiro:Objetiva, 2001.<strong>Hilst</strong>, <strong>Hilda</strong>. Fluxo-flo<strong>em</strong>a. São Paulo: Globo, 2003.Sm i th , <strong>Kiki</strong>. <strong>Kiki</strong> <strong>Smith</strong>: all creatures great and small. Carl Haenlein: KestnerGesellschaft, 1998._______. A Gathering (1980-2005) / Siri Engberg (with contributions by LindaNochin, Lynne Tillman and Mari<strong>na</strong> Warner). Walk Art Center, 2005. 27Recebido <strong>em</strong> maio <strong>de</strong> 2008.Aprovado para publicação <strong>em</strong> junho <strong>de</strong> 2008.A<strong>na</strong> Chiara – “<strong>Piercings</strong> <strong>na</strong> <strong>língua</strong>: <strong>Hilda</strong> <strong>Hilst</strong> e <strong>Kiki</strong> <strong>Smith</strong>”. <strong>Estudos</strong> <strong>de</strong> Literatura Brasileira Cont<strong>em</strong>porânea,nº. 31. Brasília, janeiro-junho <strong>de</strong> 2008, pp. 179-190.

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