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Outros Retratos – Ensaiando um panorama do ... - Itaú Cultural

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94 Paschoal Samora <strong>Outros</strong> novos r<strong>um</strong>os 95universos de cada projeto li<strong>do</strong> e fala<strong>do</strong>, encontrei-me novamente diante dessa espessa neblina.Vieram à tona durante o ciclo de palestras realizadas em diversas capitais <strong>do</strong> país aolongo <strong>do</strong> programa R<strong>um</strong>os questões inesgotáveis, longamente discutidas na história <strong>do</strong><strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário desde a sua invenção, que atribuem ao processo <strong>do</strong>c<strong>um</strong>ental <strong>um</strong> caráterexistencial por excelência, por situar-se nos limites entre o que é realidade e o que éinvenção ou, ainda, pela transposição para filme de sua matéria-prima tão “concreta”,“palpável” e ao mesmo tempo tão “inconstante” e “volátil” – o real.Com a mesma pertinência de questões capitais como essas, fui contempla<strong>do</strong> nesseprocesso com a convivência com grandes pensa<strong>do</strong>res contemporâneos desse gênero,com reflexões novas e bastante instigantes acerca <strong>do</strong> filme <strong>do</strong>c<strong>um</strong>ental.Francisco Elinal<strong>do</strong> Teixeira, realiza<strong>do</strong>r e teórico de cinema, autor <strong>do</strong> livroDoc<strong>um</strong>entário no Brasil, defende com muita propriedade o que ele chama de“cinema expandi<strong>do</strong>”, partin<strong>do</strong> da idéia de que toda forma de experimentação noâmbito cinematográfico encontra no gênero <strong>do</strong>c<strong>um</strong>ental <strong>um</strong> terreno fértil para ocruzamento dessas formas de expressão.Seja pela linguagem, seja pela própria natureza aberta e visceral, o <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário tornousea ferramenta de investigação de artistas e profissionais de outras sintaxes, extrapolan<strong>do</strong>os limites entre o <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário, as artes plásticas e a poesia.Em sua arg<strong>um</strong>entação, Teixeira reconstrói a história da linguagem no <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário,partin<strong>do</strong> de conflitos entre conceito e resulta<strong>do</strong> na obra de Dziga Vertov e culminan<strong>do</strong>n<strong>um</strong>a rica discussão a respeito da produção audiovisual brasileira contemporânea, emque cita Arthur Omar e Cao Guimarães. Um autor imperdível.José Carlos Avellar, professor e produtor, chama atenção para o fato de que a televisão noBrasil, que seria o espaço <strong>do</strong>s naturais (<strong>do</strong>c<strong>um</strong>entários), pertence aos posa<strong>do</strong>s (ficção), fatocontraditório, mas possível, afinal, a televisão brasileira nasceu <strong>do</strong> rádio.Avellar faz essa observação a fim de discutir os espaços <strong>do</strong> cinema <strong>do</strong>c<strong>um</strong>ental nachamada “retomada <strong>do</strong> cinema brasileiro”, com o difícil objetivo de identificar esse “ser”invisível chama<strong>do</strong> “merca<strong>do</strong>”, n<strong>um</strong> país onde a falta de políticas específicas para o gêneroe onde a banalização diante de <strong>um</strong> modelo televisivo nivela<strong>do</strong>r já seriam suficientes paraempurrar o <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário para <strong>um</strong> abismo sem precedentes, condiciona<strong>do</strong> a <strong>um</strong> modelode produção medíocre, óbvio e maçante.Eis a grande contradição: a televisão como espaço natural <strong>do</strong>s “naturais”, em regra geral,sempre representou o “túmulo <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário” no Brasil.Entretanto, Avellar sinaliza com muita fé e sabe<strong>do</strong>ria para trabalhos recentes como EdifícioMaster, de Eduar<strong>do</strong> Coutinho, e Nelson Freire, de João Moreira Salles, que superaram aprópria impossibilidade e se estabeleceram bem nas salas de cinema, espaço natural <strong>do</strong>sposa<strong>do</strong>s, sobretu<strong>do</strong> pela força e personalidade de sua abordagem.Consuelo Lins investiga <strong>um</strong> mecanismo recorrente na produção <strong>do</strong>c<strong>um</strong>ental brasileira, aoqual se atribui o conceito de cinema-dispositivo, citan<strong>do</strong> filmes como 33, de Kiko Goifman,e O Fim e o Princípio, de Eduar<strong>do</strong> Coutinho, nos quais o realiza<strong>do</strong>r delimita principalmenteo tempo e o espaço de seu recorte e, ao estabelecer esses limites na investigação, ass<strong>um</strong>ede antemão sua impossibilidade, que se converte automaticamente em liberdade desustentar, ou quem sabe suportar, o seu propósito de realização <strong>do</strong> filme.O conceito de cinema-dispositivo, de certa forma, liberta o realiza<strong>do</strong>r <strong>do</strong> terrível far<strong>do</strong> <strong>do</strong>“real”, afinal, esse objeto de estu<strong>do</strong>, e de desejo, <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entarista é tão infinito, tão vasto,tão concreto, que pode ser <strong>um</strong>a grande armadilha ante o imponderável.De fato, esse realiza<strong>do</strong>r talvez busque a si mesmo em cada personagem ou em cadaparagem em que se encontre, e encontra-se, por fim, em busca de <strong>um</strong> lugar no mun<strong>do</strong>.São fatores como esses que caracterizam o <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário hoje como “arte <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>ento”,porque se realimenta, ao longo de sua história, dessa postura de “construção em temporeal”, de reflexão sobre a natureza de sua sintaxe que confunde sujeito e objeto, de buscainfinita de acesso a níveis sutis de realidade.É justamente essa vocação existencial <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário que ponho em questão: anatureza de construção, desconstrução e reconstrução de <strong>um</strong> filme.De fato o <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entarista é <strong>um</strong> ser em conflito, pois a busca desses níveis sutis de realidadese dá geralmente no meio de <strong>um</strong> turbilhão, a partir de fatos que ele cria ou nos quaisinterfere, utilizan<strong>do</strong>-se da ferramenta <strong>do</strong> filme a fim de torná-los “fatos únicos”.Para<strong>do</strong>xalmente, o <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entarista também é aquele que detém a ferramenta <strong>do</strong>registro, é o elemento mobiliza<strong>do</strong>r <strong>do</strong> ato <strong>do</strong>c<strong>um</strong>ental, mas com o desejo de que, paraalém <strong>do</strong> espera<strong>do</strong> ou calcula<strong>do</strong>, exista algo muitas vezes indizível a ser flagra<strong>do</strong>.Nesse senti<strong>do</strong>, o <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entarista passa a ser mais <strong>um</strong> personagem incondicional de seupróprio filme, e é nessa busca estética e ética de sua abordagem que o <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário“moderno” se apresenta. Um cinema de “descoberta”, em tempo real.À idéia de <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário, hoje, soma-se a história de sua invenção e reinvenção ao longode mais de <strong>um</strong> século e essa visceral natureza de busca e descoberta inerente a ele,ao advento <strong>do</strong> digital, <strong>um</strong>a espécie de “democratização” da ferramenta que traz certospoderes de expressão a nós, seres <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entaristas e marginais por excelência.Seja pela verdade, seja pela invenção ou, ainda, pela invenção da verdade que se fazurgente e acessível, de fato, o <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário descobriu na última década a possibilidadede ser e estar no mun<strong>do</strong> como meio de expressão, por tornar-se algo viável, possível, eque brinca e brinda a própria imprevisibilidade.O resulta<strong>do</strong> é nada menos que <strong>um</strong>a produção efervescente e multilateral que imprime anecessidade e a urgência desse meio em si.O <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário carrega como seus maiores trunfos a dualidade, a imprevisibilidade, acriação e a impossibilidade, fatores esses naturais, comuns à vida e à existência.

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