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Outros Retratos – Ensaiando um panorama do ... - Itaú Cultural

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88 Carlos Nader Filme livre 89O que me preocupa de fato é que, ao reunir na cabeça a maioria das críticas, específicas,feitas ao filme, ocorreu-me a possibilidade de que no subsolo desta época mais libertaestivesse germinan<strong>do</strong>, geral, <strong>um</strong>a espécie de catálogo implícito de regras e parâmetroscom os quais seria possível aferir se determina<strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário é ou não experimental.Uma espécie de cânon <strong>do</strong> experimentalismo. Cheguei a essa consideração porque ascríticas, tão uniformes, não questionavam a legitimidade com que tratei o tema racial, masse referiam sobretu<strong>do</strong> às técnicas fílmicas que utilizei. Todas elas pelo visto tradicionaisdemais e experimentais de menos. Assim, a princípio fiquei confuso. Mas, se por <strong>um</strong> la<strong>do</strong> oconceito <strong>do</strong> que é <strong>um</strong> trabalho experimental para esses críticos me pareceu vago (apenassinônimo de “artístico” ou mesmo de “bom”?), por outro, aquilo que faria de <strong>um</strong> trabalho algoexperimental era bastante específico, que parecia seguir alg<strong>um</strong>a cartilha preestabelecida.Como se o experimentalismo pudesse realmente estar conti<strong>do</strong> n<strong>um</strong> conjunto de ditamesconsensuais que devem ser segui<strong>do</strong>s a priori. E como se, de acor<strong>do</strong> com tais ditames, <strong>um</strong><strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário experimental, para ser experimental, devesse necessariamente lançar mãode técnicas bem particulares como, por exemplo, dispositivos de linguagem marcantes e/ou efeitos que realçassem <strong>um</strong>a subjetividade autoral ostensiva. Além disso, outro sintomade que realmente se tratava de <strong>um</strong> cânon é que ele parecia ser ainda mais específico emrelação aos seus tabus, ou seja, às técnicas que <strong>um</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário experimental não devee/ou não pode usar, como, por exemplo, a realização de entrevistas em plano americanocom especialistas e/ou a colocação de música que não faça referência explícita ao universo<strong>do</strong>s personagens.Ao mesmo tempo em que eu percebia que Preto e Branco não c<strong>um</strong>pria as exigências<strong>do</strong>s defensores <strong>do</strong> Cânon <strong>do</strong> Experimentalismo, eu o via como <strong>um</strong> trabalhoprofundamente experimental. E experimental, no meu próprio canonzinho de <strong>um</strong>aregra só, é simplesmente to<strong>do</strong> trabalho que decorre de <strong>um</strong>a experiência legítima. Emsen<strong>do</strong> algo que decorre, a experimentalidade é necessariamente <strong>um</strong>a qualidade quese dá a posteriori, ou seja, depois da experiência, e não em função da escolha a prioride <strong>um</strong> conjunto de técnicas. Assim, a experimentalidade legítima, para mim, não sónão é <strong>um</strong> conjunto de pressupostos que norteie a experiência relativa a <strong>um</strong>a obra,como também é seu oposto. A própria legitimidade a que me refiro está intimamenteassociada à liberdade, à abertura, à ausência de regras restritivas com que o ato deexperimentar é encara<strong>do</strong>. É nesse senti<strong>do</strong> que eu via e vejo Preto e Branco como <strong>um</strong>trabalho experimental. Ele decorreu de quatro anos de imersão profunda e aberta naquestão racial, <strong>um</strong>a experiência transforma<strong>do</strong>ra para mim, que acredito ter resulta<strong>do</strong>,por meio <strong>do</strong> filme, n<strong>um</strong>a experiência também relativamente transforma<strong>do</strong>ra para boaparte <strong>do</strong>s especta<strong>do</strong>res. Sobretu<strong>do</strong> aqueles para os quais as discussões sobre estilosentre cineastas é secundária. Ou aqueles que acreditam que o estilo, como disse Proust,não deve ser <strong>um</strong>a questão de técnica, mas <strong>um</strong>a questão de visão. Não vai aqui, é claro,nenh<strong>um</strong> tipo de ataque específico a qualquer filme que se utilize de <strong>um</strong>a ou mais dastécnicas propostas pelo Cânon <strong>do</strong> Experimentalismo. Gosto de vários filmes, inclusivealguns dirigi<strong>do</strong>s por mim mesmo, que se encaixariam perfeitamente nos ensinamentosexperimentalistas <strong>do</strong> Cânon. Mas entre aquilo que me faz gostar desses filmes estácertamente o fato de que eles não parecem ter ti<strong>do</strong> a preocupação fundamental de seenquadrar em cânon nenh<strong>um</strong> (a não ser que estivéssemos falan<strong>do</strong> da marca japonesada câmera utilizada).Não estou dizen<strong>do</strong> aqui que o artista pode estar livre de toda intenção. Nem de to<strong>do</strong>princípio, nem mesmo de to<strong>do</strong> artifício. Claro que sempre há <strong>um</strong>a intenção inicial. Masacredito ser fundamental que, durante a experiência da criação, o cria<strong>do</strong>r – e em particularo <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entarista, que lida com <strong>um</strong> imponderável bastante externo a si próprio – estejaaberto a mudar cada <strong>um</strong>a de suas intenções iniciais, se a realidade pedir. Foi o queaconteceu com Preto e Branco. Em vários momentos da produção, experimentei efeitosmais ostensivos de linguagem. Mas o filme – esse ser que, como to<strong>do</strong> cria<strong>do</strong>r sabe, é<strong>do</strong>ta<strong>do</strong> de certa vida própria – tratou de expelir alguns desses efeitos. E, se nem semprerejeitou to<strong>do</strong>s os efeitos em si, não aceitou em nenh<strong>um</strong> momento a ostensibilidade delesou qualquer expressivismo objetivo demais de <strong>um</strong>a subjetividade “de autor”. Estou falan<strong>do</strong>de <strong>um</strong> caso específico. O processo de realização de P&B ensinou-me que a linguagemexpressiva não deveria estar entre os protagonistas e que, justamente por isso, ela serviriamelhor à própria mensagem que naquele momento carregava. Além disso, repito, não éque o filme esteja livre de artifícios de linguagem. Nenh<strong>um</strong> filme existe sem artifícios delinguagem; <strong>um</strong> filme é, em si, <strong>um</strong> artifício de linguagem.Que fique claro: tenho grande admiração por vários artistas que dedicam suas trajetóriasa realizar experiências no campo da inovação da linguagem. É algo que especialmenteme interessa e a que também dedico parte <strong>do</strong> meu trabalho. Mas, como Richard Rorty,acredito que “as linguagens não são tentativas de copiarmos o que existe, mas simferramentas para lidarmos com o que existe; assim não há como separar a ‘contribuiçãoque o objeto traz ao nosso conhecimento’ da ‘contribuição dada por nossa subjetividade’ ”.As linguagens não são <strong>um</strong> espelho, subjetivo ou objetivo, aparta<strong>do</strong> <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. São a redede conexão <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Não é possível dissociá-las nem <strong>do</strong>s autores, nem <strong>do</strong>s seus objetos.Mesmo no caso hipotético de <strong>um</strong>a obra que tenha a própria linguagem como fim oucomo objeto principal, ela precisará também de linguagem para ter acesso a seu objeto,a linguagem. Linguagem sobre linguagem. Assim, <strong>um</strong> “experimentalismo de linguagem”– que é, em última instância, aquilo em que os que crêem no cânon vêem como deusúnico e que é também <strong>um</strong>a das divindades da minha cosmogonia – poderá resultar emtrabalhos interessantíssimos ou jogos de espelhos vazios. Uma experiência artística delinguagem também terá de ser necessariamente <strong>um</strong>a experiência artística de vida e, ameu ver, também terá sua legitimidade diretamente ligada à liberdade com que se dá.Gosto de pensar o conjunto de linguagens que constituem a arte como <strong>um</strong> subgênero<strong>do</strong> conjunto de linguagens que constituem a vida.Preto e Branco não tem entre suas propostas a de discutir ou inovar as linguagens. O filmequer apenas usá-las como ferramenta. Muitas vezes, a linguagem é como a tecnologia:torna-se mais eficiente à medida que se torna mais transparente, na medida em que deixade aparecer. Aliviar o peso <strong>do</strong>s artifícios de linguagem, ou seja, eliminar a ostensibilidade

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