12.07.2015 Views

Outros Retratos – Ensaiando um panorama do ... - Itaú Cultural

Outros Retratos – Ensaiando um panorama do ... - Itaú Cultural

Outros Retratos – Ensaiando um panorama do ... - Itaú Cultural

SHOW MORE
SHOW LESS
  • No tags were found...

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

86 Carlos Nader Filme livre 87estranhamento, talvez pela subjetividade excessiva de sua proposta, a aceitação <strong>do</strong>caráter <strong>do</strong>c<strong>um</strong>ental deles também acabou vin<strong>do</strong> a tempo. Nesse senti<strong>do</strong>, <strong>do</strong>is eventos“oficializaram”, pelo menos para mim, esse processo. Em 2000, O Fim da Viagem foi <strong>um</strong><strong>do</strong>s 25 trabalhos escolhi<strong>do</strong>s para compor a New Doc<strong>um</strong>entary, <strong>um</strong>a mostra <strong>do</strong> MoMA deNova York que apontava novas linguagens <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entais para o milênio que se iniciava.E, em 2003, a Conferência Internacional de Doc<strong>um</strong>entários, vinculada ao festival É Tu<strong>do</strong>Verdade, apresentou, justamente com destaque positivo para a subjetividade no gênero<strong>do</strong>c<strong>um</strong>ental, vídeos como Carlos Nader, Trovoada e Concepção.Obviamente não fui o único realiza<strong>do</strong>r a participar da Conferência ou a viver essas questões.Artistas audiovisuais brasileiros tão diferentes como Arthur Omar, Cao Guimarães, CarlosAdriano, Eder Santos, Eduar<strong>do</strong> Coutinho, Fernan<strong>do</strong> Meirelles, Francisco César Filho, InêsCar<strong>do</strong>so, João Moreira Salles, Joel Pizzini, Karim Aïnouz, Kiko Goifman, Lucas Bambozzi,Lucila Meirelles, Luis Duva, Marcello Dantas, Marcelo Macha<strong>do</strong>, Marcelo Gomes, Marcelo Tas,Piche Martirani, Roberto Moreira, Sandra Kogut, Tadeu Jungle, Tata Amaral, Walter Silveira,entre outros, também teriam histórias parecidas para contar. N<strong>um</strong> determina<strong>do</strong> momentohistórico da criação audiovisual, inseri<strong>do</strong> entre aquele fim <strong>do</strong>s anos 1980 e começo <strong>do</strong>s1990, eles pegaram o bastão <strong>do</strong>s pioneiros <strong>do</strong> vídeo e transitaram deliberadamentepelos <strong>do</strong>is la<strong>do</strong>s de <strong>um</strong>a fronteira arbitrária e caduca, contribuin<strong>do</strong> para apagá-la. Assim,ajudaram a transformar o que era <strong>um</strong> critério de exclusão n<strong>um</strong> parâmetro de inclusão. Se,no meio das artes plásticas, a eletrônica é hoje <strong>um</strong> suporte deseja<strong>do</strong>, no meio <strong>do</strong> cinema<strong>do</strong>c<strong>um</strong>ental, aquilo a que se dá o nome ora de “subjetividade”, ora de “experimentalidade”é algo hoje recorrentemente incentiva<strong>do</strong> na prática. Se nos debruçarmos sobre os últimoscinco ou seis anos <strong>do</strong> mais importante e tradicional festival de <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entários brasileiros,o É Tu<strong>do</strong> Verdade, observaremos que os principais premia<strong>do</strong>s são belos filmes que seencaixariam com facilidade nos rótulos de “experimental” ou “subjetivo”. É certamente ocaso de Rocha que Voa (2002), O Prisioneiro da Grade de Ferro (2003), A Alma <strong>do</strong> Osso (2004) eAboio (2005). Vale ressaltar, também, que critérios semelhantes parecem pautar a escolhade boa parte <strong>do</strong>s editais públicos de premiação e fomento à produção. Houve, no espaçode dez anos, <strong>um</strong>a efetiva e libera<strong>do</strong>ra mudança de paradigmas. O tipo de experimentalismoaudiovisual, pelo qual alegremente nos batemos no começo da década passada, tem hoje<strong>um</strong> grau de reconhecimento inédito pelas correntes culturais mais centrais.Eu gostaria de estar aqui apenas festejan<strong>do</strong> esse reconhecimento. Eu o festejo, claro, emuito, mas começo a enxergar na institucionalização dele alguns perigos. Para tentarexplicá-los, terei de lançar mão, mais <strong>um</strong>a vez, de <strong>um</strong>a história pessoal. Afinal, não é desubjetividade que estamos tratan<strong>do</strong> aqui? Passei quatro anos, de 2000 a 2004, envolvi<strong>do</strong>n<strong>um</strong> projeto sobre a questão racial brasileira. Foi <strong>um</strong> perío<strong>do</strong> de dedicação intensa emque intercalei leituras sobre o assunto, conversas com especialistas e acompanhamentode personagens que literalmente vivem a questão da raça na pele. O resulta<strong>do</strong> dessemergulho, <strong>um</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário de longa-metragem chama<strong>do</strong> Preto e Branco, foi exibi<strong>do</strong> pelaprimeira vez no É Tu<strong>do</strong> Verdade de 2004 e chegou a entrar em cartaz em <strong>um</strong> pequenocinema comercial de São Paulo. A reação ao filme me surpreendeu, novamente pelaesquizofrenia com que se deu. Se o (pequeno) público em geral e a crítica de jornal viram nofilme sobretu<strong>do</strong> qualidades, <strong>um</strong> determina<strong>do</strong> setor <strong>do</strong> meio cinematográfico – <strong>um</strong> gruporelativamente pequeno também, mas inteligente e influente – pareceu incomoda<strong>do</strong>. Essefato me surpreendeu especialmente por tratar-se de <strong>um</strong> grupo basicamente forma<strong>do</strong> porpessoas que têm como bandeira, justamente, <strong>um</strong> cinema experimental, de que muitasvezes gosto e que sempre respeito. Ao perguntar a alg<strong>um</strong>as dessas pessoas quais eram asrestrições ao filme, recebi respostas muito parecidas às criticas feitas a O Beijoqueiro, maisde dez anos antes. Entre outros peca<strong>do</strong>s, Preto e Branco fazia uso exagera<strong>do</strong> da música,usava <strong>um</strong>a linguagem parecida demais com a da TV ou a <strong>do</strong> cinema tradicionais e nãocolocava <strong>um</strong>a determinada “postura de autor” como protagonista ululante. E, ainda piorque O Beijoqueiro, Preto e Branco misturava histórias diferentes, não ia “fun<strong>do</strong>” em nenh<strong>um</strong>adelas, entrevistava “especialistas”, evitava cenas catárticas e não parecia contar comnenh<strong>um</strong> dispositivo ou personagem excepcional para abordar a questão.Diante das críticas, eu tentei afirmar que tinha si<strong>do</strong> sempre absolutamente deliberadaa decisão de que tanto a maioria das técnicas narrativas quanto a maioria das situaçõescênicas de P&B não se caracterizassem pela excepcionalidade. Em vários momentos daedição final, as emoções espetaculares que as câmeras cost<strong>um</strong>am extrair de quem está àfrente delas foram cortadas. Tu<strong>do</strong> que fosse “gestual” demais, de minha parte ou da parte<strong>do</strong>s personagens, acabou me parecen<strong>do</strong> sempre fora de lugar nesse filme. Por isso, além debuscar <strong>um</strong>a sobriedade técnica, não quis ver nele mendigos proféticos, nem presidentesda República, nem rappers raivosos, nem presidiários carismáticos, nem beijoqueiros.Não só porque esse tipo de personagem não garante experimentalidade nenh<strong>um</strong>a, nemporque a “<strong>do</strong>c<strong>um</strong>entografia” nacional recente já está bem servida deles. Minha decisãodeu-se sobretu<strong>do</strong> em razão de <strong>um</strong>a fidelidade narrativa a meu tema, o racismo brasileiro,cujo mo<strong>do</strong> de operação se caracteriza por <strong>um</strong> tom bem diverso: a conversa “pequena”entre personagens “pequenos”. E antes que alg<strong>um</strong> defensor da moral <strong>do</strong>c<strong>um</strong>ental seaflija, digo aqui apressadamente que eu também acredito que de perto nenh<strong>um</strong>apessoa real é pequena. Mas digo ainda que essa minha opção por excluir personagens,técnicas ou gestos “grandiosos” se deu exatamente por <strong>um</strong>a motivação não moral, masética. Simplesmente a de tentar discutir <strong>um</strong> tema, se não com justiça, pelo menos comjusteza. Por essa mesma razão, incluí no corte final as entrevistas com “especialistas”, afinalo embate teórico interminável é <strong>um</strong> protagonista histórico da questão racial brasileira,vivi<strong>do</strong> de forma muito prática na criação de leis ou na formação de opiniões. Fato é que,apesar de não acreditar na existência de <strong>um</strong>a balança que necessariamente contraponhaética e estética, creio que minhas decisões em Preto e Branco se pautaram mais por <strong>um</strong>atentativa objetiva de comunicabilidade e justeza em relação ao tema <strong>do</strong> que pelo desejode expressão de <strong>um</strong>a subjetividade autoral. Não é o que eu proponho ou defen<strong>do</strong> parato<strong>do</strong>s os <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entários; mas é o que eu acredito que esse <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário específico, aolongo de seu processo de realização, tenha me pedi<strong>do</strong>.Não me passa pela cabeça, é claro, que Preto e Branco seja <strong>um</strong> filme livre de defeitos, tantoestéticos (<strong>do</strong>losos) quanto éticos (culposos). E nem é isso que coloco em questão aqui.

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!