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Outros Retratos – Ensaiando um panorama do ... - Itaú Cultural

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76 Érika Bauer O <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário como experiência 77É importante também dizer que é <strong>um</strong> ato de extrema coragem se expor edesmistificar o conheci<strong>do</strong>, ass<strong>um</strong>ir diferenças e indiferenças. Lançar-se ao mun<strong>do</strong>para se diferenciar, mesmo sem buscar nada de novo na forma, se o conteú<strong>do</strong> assimo exigir. Ser ou não ser.É <strong>um</strong>a maneira, também, de juntar os pedaços, aqueles milhares de fragmentosdispersos e mal conta<strong>do</strong>s de nossa história coletiva, e nisso redescobrir algo de nossahistória pessoal. Reunir episódios, desvelar a história oficial e reconstruir a “crônica <strong>do</strong>svence<strong>do</strong>res”. As imagens de arquivo no Brasil são, em sua maioria, sobre aqueles que“deram certo”.O <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário quer ser linguagem, quer se comunicar. E com tal força que influenciaos filmes de ficção brasileiros. Assistin<strong>do</strong> ao maravilhoso Cinema, Aspirinas e Urubus, deMarcelo Gomes, me lembrei <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário de Wladimir Carvalho O País de São Saruê. Avisceralidade das imagens, o sol <strong>do</strong> sertão convocan<strong>do</strong> o especta<strong>do</strong>r ao calor <strong>do</strong>s relatos<strong>do</strong>s sobreviventes. O preto no branco. Os galhos secos rasgan<strong>do</strong> a tela. A verdade dequem desconhece banalidades.A realidade chama, chacoalha, estremece. Precipita novos realiza<strong>do</strong>res, e não tão novos, aresponder àquilo que incomoda e/ou emociona. Faz-nos nos mover e entrar em choquecom novos dilemas éticos, políticos e estéticos. A história não fala por si só. É preciso quea façamos falar!Existe <strong>um</strong>a procura muito grande, por parte <strong>do</strong>s realiza<strong>do</strong>res, por projetos de filmes<strong>do</strong>c<strong>um</strong>entários. Isso é gera<strong>do</strong> não só pelas facilidades <strong>do</strong>s meios, hoje mais acessíveis,mas também pelas políticas públicas de regionalização e por <strong>um</strong>a sempre presentenecessidade de melhor compreender e apreender o mun<strong>do</strong> à sua volta.Muitos universitários me procuram para apresentar temas como o primeiro bairro emBrasília, a colonização finlandesa em Pene<strong>do</strong>, a terceira idade nas cidades-satélites, aviolência juvenil em Brasília, o rap em Ceilândia... Porém, mostrar não é mais preciso; <strong>um</strong>telejornal, qualquer dia, o fará. O que importa, para mim, é aproximar a lente, levantarnovas questões, conviver com o seu objeto e se perguntar por quê.Entender-se nesse processo de busca, buscar dialogar com seu tema, trabalhar o impactosocial, ir ao fun<strong>do</strong> <strong>do</strong> poço das questões que serão levantadas n<strong>um</strong>a pesquisa sobre otema, tu<strong>do</strong> isso é que vai dar o verdadeiro senti<strong>do</strong> para o filme. Tu<strong>do</strong> isso, claro, alia<strong>do</strong> aotempo, que amadurece tu<strong>do</strong>. Tanto o tema quanto o realiza<strong>do</strong>r, para entender realmentepara onde será preciso ir.O tempo dá e constrói, no amadurecimento desse diálogo, a dimensão h<strong>um</strong>ana aos filmes<strong>do</strong>c<strong>um</strong>entários. Como <strong>um</strong> embrião que vai crescen<strong>do</strong> até virar filme, lançan<strong>do</strong> luz na história<strong>do</strong> ser h<strong>um</strong>ano, buscan<strong>do</strong> lacunas e construin<strong>do</strong> outra história, não-oficial. E não-oficialpoderá ser o processo investigativo, conduzi<strong>do</strong> de maneira independente, à luz de <strong>um</strong>apesquisa insistente e impertinente. E muitos serão os obstáculos encontra<strong>do</strong>s nessa busca.Não existe <strong>um</strong> modelo, e por isso a diversidade deve ser preservada, sem o dever de levarrespostas e de ser utilitária.Essa necessidade h<strong>um</strong>ana de se comunicar está profundamente associada ànecessidade de conhecer, de se perguntar e participar. É o que nos move para novosolhares e para <strong>um</strong>a compreensão <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, nossa maneira de encontrar <strong>um</strong> lugarno mun<strong>do</strong>.Antes das câmeras, microfones e tantos outros equipamentos, existiam as imagenspintadas, o teatro de sombras, a palavra falada e também a dança e o ritual. Tínhamosmeios de expressão, da mesma forma que fazemos hoje com nossos filmes.O <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário faz uso das mesmas possibilidades de que o filme de ficção dispõepara compor <strong>um</strong>a cena: plano aberto, plano fecha<strong>do</strong>, travelling, panorâmica,flashback, sem falar daquilo que a montagem pode oferecer para <strong>um</strong> melhor arranjoentre as imagens. Mas existe <strong>um</strong> elemento básico que diferencia <strong>um</strong> <strong>do</strong> outro, queé a abordagem <strong>do</strong> tema, a maneira como <strong>um</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entarista se aproxima de seuobjeto, mais sujeito a surpresas, levan<strong>do</strong> a <strong>um</strong> desnudamento, forçan<strong>do</strong> aberturaspara o indetermina<strong>do</strong>, e conseqüentemente à abundância inata daquilo que arealidade nos oferece.Segun<strong>do</strong> Bill Nichols, professor da Universidade de Rochester, os <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entários podemser expositivos, observacionais, interativos e/ou reflexivos. O formato varia de acor<strong>do</strong> como tema e a abordagem que se queira dar a ele.Como no filme Estamira, cujo diretor, depois de intensa pesquisa, optou por <strong>um</strong>alinguagem mais experimental, ao utilizar os recursos visuais <strong>do</strong> filme para interagircom o personagem e sua loucura. O filme traz imagens quase bíblicas, quan<strong>do</strong> atempestade chega e entra o off de Estamira naquele lixão sob <strong>um</strong> forte vento. Fascina<strong>do</strong>pelas imagens e pelo carisma <strong>do</strong> personagem, <strong>um</strong> deslize: ao encontrar <strong>um</strong> vidro compalmitos (provavelmente estraga<strong>do</strong>s), Estamira fala <strong>do</strong>s almoços que faz, <strong>do</strong> macarrão, decomo fica bom etc. No cinema, especta<strong>do</strong>res fazem cara de nojo. Em seguida, vemos osfamiliares na casa de Estamira comen<strong>do</strong> justamente o macarrão que ela comentara emcena poucos minutos atrás... Um pequeno rasgo na ética <strong>do</strong> filme. E, claro, provavelmenteo palmito não estava lá, <strong>um</strong>a mentira.Como <strong>um</strong>a criança diante de diferentes brinque<strong>do</strong>s, assim se inicia a jornada <strong>do</strong><strong>do</strong>c<strong>um</strong>entarista – aberto, sem idéias fixas e com olhares ainda dispersos. Assim tambémpoderia ser o seu amadurecimento, o seu processo de autoconhecimento na fase finalda montagem – aberto às inúmeras possibilidades de interpretação <strong>do</strong> mesmo fato. E aívem a questão fundamental: a ética.

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