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Outros Retratos – Ensaiando um panorama do ... - Itaú Cultural

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70 Cao Guimarães Doc<strong>um</strong>entário e subjetividade – Uma rua de mão dupla 71extensão de você mesmo; e você, a extensão da realidade.Olhar o mun<strong>do</strong> através de <strong>um</strong> aparelho óptico, enquadrar a realidade, já possui em si <strong>um</strong>adimensão subjetiva muito forte. É impossível destituir o <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário da subjetividade. Éontologicamente impossível.Ao planejar <strong>um</strong> filme, ao escolher <strong>um</strong> assunto, você de certa forma começa <strong>um</strong> processode múltiplos recortes, <strong>do</strong> macro ao micro, <strong>do</strong> to<strong>do</strong> às partes. Você objetiviza <strong>um</strong> espaçoreal, prepara a cama onde seu olhar vai poder se deitar. Encontra <strong>um</strong> lugar para se permitirestar perdi<strong>do</strong>. Potencializa <strong>um</strong> descontrole necessário. Esse movimento dialético entre oque vem de dentro e o que vem de fora gera <strong>um</strong> espaço, onde o filme habita. O importanteé não perder esse lugar de vista; lugar que é na verdade <strong>um</strong> fluxo no qual as coisas seembaralham, esvaziam-se de si e revelam-se outras por alg<strong>um</strong> momento. Esse lugar é olugar da câmera ligada diante de alguém ou de alg<strong>um</strong>a coisa. Esse lugar é <strong>um</strong> momento,<strong>um</strong> <strong>do</strong>s muitos momentos mágicos <strong>do</strong> processo cinematográfico.“Antes de estudar zen, <strong>um</strong> homem é <strong>um</strong> homem, <strong>um</strong>a montanha é <strong>um</strong>a montanha. Aoestudar zen, <strong>um</strong> homem é <strong>um</strong>a montanha e <strong>um</strong>a montanha é <strong>um</strong> homem. Depois deestudar zen, <strong>um</strong> homem é <strong>um</strong> homem, <strong>um</strong>a montanha é <strong>um</strong>a montanha. Só que vocêestá com os pés <strong>um</strong> pouco fora <strong>do</strong> chão.”Esse pensamento <strong>do</strong> <strong>do</strong>utor Suzuki, via John Cage, retrata bem o processo da feitura de<strong>um</strong> filme que lida com o real. Ao pensar no objeto de <strong>um</strong> filme, ao imaginar o universo de<strong>um</strong> determina<strong>do</strong> assunto, falsas certezas pululam em seu imaginário, você se sente <strong>um</strong>Deus crian<strong>do</strong> <strong>um</strong> determina<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>.Ao ir de encontro ao objeto de seu filme, ao acionar o botão <strong>do</strong> descontrole, todas ascoisas se transformam, suas certezas desvanecem, você troca o lugar deifica<strong>do</strong> de <strong>um</strong>mun<strong>do</strong> imaginário pela crueza da realidade diante de seus olhos.Você volta a brincar de Deus associan<strong>do</strong> imagens e sons uns com os outros e esculpin<strong>do</strong>o tempo e o ritmo de seu filme na edição. Fundamental lugar <strong>do</strong> reencontro, onde ohomem volta a ser homem, e a montanha, montanha. Olhar as coisas pela segunda vez,realinhar o caos, reinventar o mun<strong>do</strong> por meio da imagem e não apenas <strong>do</strong> imaginário.Finalmente, na sala de cinema, to<strong>do</strong>s flutuam com os pés <strong>um</strong> pouco acima <strong>do</strong> chão.A realidade é <strong>um</strong>a coisa híbrida, multifacetada pela incidência de olhares diversos, espelhosem fun<strong>do</strong> de <strong>um</strong> homem, <strong>um</strong>a cultura, <strong>um</strong> país. Se a pensarmos como <strong>um</strong>a lâminareflexiva, que nos reflete e nos faz pensar, se a compararmos à superfície de <strong>um</strong> lago,poderemos nos relacionar com ela de pelo menos três maneiras:– Poderemos ficar senta<strong>do</strong>s no barranco contemplan<strong>do</strong> sua superfície (e acho que a peledas coisas é <strong>um</strong> universo imenso que revela muito <strong>do</strong> que no fun<strong>do</strong> se esconde). Existe aí apossibilidade de <strong>um</strong> distanciamento, <strong>um</strong>a relação filtrada por <strong>um</strong> olhar distante, <strong>um</strong> olharpassante, algo que incide e elege, no momento mesmo <strong>do</strong> encontro entre a imagem queé dada e os olhos que a percebem. Uma atitude, <strong>um</strong>a opção de posicionamento, comon<strong>um</strong> campo de batalha, como a posição <strong>do</strong>s rifles em <strong>um</strong>a emboscada n<strong>um</strong> faroesteamericano, como as cenas iniciais de F for Fake, de Orson Welles – a câmera distanteacompanha <strong>um</strong>a bela mulher que caminha pela rua sen<strong>do</strong> devorada pelos olharesdesavergonha<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s homens pelos quais passa.– Poderemos, ainda senta<strong>do</strong>s no barranco ou em pé na margem <strong>do</strong> lago, lançar <strong>um</strong>apedra na água para vê-la reverberar, gerar <strong>um</strong> movimento tectônico em sua superfície,embaralhar seus elementos, desorganizar o aparentemente organiza<strong>do</strong>. Essa pedra como<strong>um</strong> conceito, <strong>um</strong> dispositivo, <strong>um</strong>a proposição. Os trabalhos oriun<strong>do</strong>s desse méto<strong>do</strong>são fundamenta<strong>do</strong>s no princípio de ação e reação. Uma proposição qualquer aciona<strong>um</strong> movimento que produz <strong>um</strong>a reação. São trabalhos que jogam com a noção <strong>do</strong>esvaziamento da autoria ou, pelo menos, nutrem o desejo <strong>do</strong> compartilhamento desta.Um jogo não se joga sozinho, jogos são também fundamenta<strong>do</strong>s em <strong>um</strong>a ação queespera <strong>um</strong>a reação.– E, finalmente, poderemos nos lançar a nós mesmos nesse lago. Afundarmo-nos inteirosnessas misteriosas águas e, de dentro, abrir os olhos e ver o que acontece. Essa atitudeimersiva reflete <strong>um</strong> desejo de entrega e investigação, <strong>um</strong>a propensão ao embate, à mescla,a vivenciar <strong>um</strong> pouco mais de perto o que se esconde dentro <strong>do</strong> espelho, no fun<strong>do</strong> daságuas, encarar o peixe nos olhos, deixar-se levar pela correnteza ou hipnotizar-se com acalmaria <strong>do</strong> lago.Portanto, existe o lago e existe você. E no meio disso, na margem disso, ronronares desapos dissonantes, balé da vegetação ao vento, metamorfoses de peixes em luz, bolhas dear atravessan<strong>do</strong> a água. Tu<strong>do</strong> participa dessa experiência e a autoriza. Tu<strong>do</strong> estimula, seduz,desorganiza, afeta sua percepção. Pois no espaço real <strong>um</strong>a folha que cai é tão expressivaquanto o vesti<strong>do</strong> de Marilyn Monroe que voa e a sonoridade de <strong>um</strong> deserto tão intensaquanto <strong>um</strong>a cantora lírica no palco.2.Um helicóptero sobrevoa <strong>um</strong>a favela lançan<strong>do</strong> <strong>um</strong> facho de luz sobre seus casebres. Dapracinha <strong>um</strong> homem observa o belo movimento circular <strong>do</strong> helicóptero e o facho de luzcortan<strong>do</strong> a noite escura. Eu observo o homem da pracinha observan<strong>do</strong> o helicóptero.Alguém com <strong>um</strong> binóculo pode estar me observan<strong>do</strong> observar o homem da pracinhaobservan<strong>do</strong> o helicóptero. Enquanto observo o homem da pracinha observan<strong>do</strong> ohelicóptero imagino o que ele está ven<strong>do</strong> e imagino também o que o piloto ou o foquistada luz estão ven<strong>do</strong> lá de cima. De repente alguém grita no meio da favela. Movo meus olhosna direção <strong>do</strong> grito, por instinto, por curiosidade. Vejo apenas o facho de luz percorren<strong>do</strong>os casebres apaga<strong>do</strong>s. O grito se cala, o helicóptero se vai, o homem da pracinha deitana grama e fecha os olhos. Uma rede de imagens se constrói em minha memória. O querealmente vi e o que imaginei ter visto? O que realmente aconteceu e o que imaginei ter

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