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Outros Retratos – Ensaiando um panorama do ... - Itaú Cultural

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50 Consuelo Lins O filme-dispositivo no <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário brasileiro contemporâneo 51Quanto a Rua de Mão Dupla, a grande invenção <strong>do</strong> filme, responsável pela solidez daproposta, é a solicitação <strong>do</strong> diretor de que os “outros” em questão, os participantes<strong>do</strong> filme, se interessem por outros e não por eles mesmos, atitude que redireciona odesejo da “besta da confissão” (Michel Foucault) em que nos transformamos a partir<strong>do</strong> momento em que <strong>um</strong>a câmera é postada diante de nós. Cao Guimarães não querque eles se voltem para si, que falem de sua vida, que se revelem para a câmera;pede, antes, que falem de pessoas desconhecidas e filmem casas alheias. A mudançade foco <strong>do</strong> “eu” para o “outro” faz com que os personagens fiquem menos atentos aautocontroles, censuras e filtros que normalmente acionamos para oferecer a imagemque desejamos de nós mesmos. A maneira como se relacionam com o espaço alheio, oque escolhem filmar, o que dizem, como falam, as palavras, as sintaxes e as entonaçõesque colocam em cena, tu<strong>do</strong> isso revela muito mais deles mesmos <strong>do</strong> que poderíamosesperar. São imagens <strong>do</strong> outro fortemente embebidas da visão de mun<strong>do</strong> e <strong>do</strong>s afetosdaquele que filma.O que o filme mostra de mo<strong>do</strong> cristalino é quão encharca<strong>do</strong> de memórias e afecçõescorporais é nosso olhar sobre o mun<strong>do</strong>, quão arraiga<strong>do</strong>s somos a determinadas maneirasde ver e sentir, o tanto que ignoramos nossos preconceitos, o tanto de impossibilidade denos colocarmos no lugar <strong>do</strong> outro, de aceitá-lo em sua diferença e singularidade. Em s<strong>um</strong>a,nos mostra que “estamos” onde menos esperamos, não especialmente no “conteú<strong>do</strong>” <strong>do</strong>que dizemos ou pensamos de forma consciente, tampouco em <strong>um</strong>a “interioridade” prévia,já dada, mas em “toneladas de subjetividades” 12 que se constituem e se expressam nanossa relação com o mun<strong>do</strong> e com o outro.Por meio de <strong>um</strong> gesto à primeira vista pequeno – alterar a direção <strong>do</strong> que se solicitaaos personagens em grande parte <strong>do</strong>s <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entários basea<strong>do</strong>s em conversas –, CaoGuimarães imprime <strong>um</strong> estron<strong>do</strong>so deslocamento em relação a todas as querelas emtorno da “voz <strong>do</strong> outro” que atravessam a história <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário. Se a “eficácia” artísticae política <strong>do</strong>s dispositivos artísticos é medida pelo potencial produtor e transforma<strong>do</strong>r<strong>do</strong> que é proposto, os filmes de Cao Guimarães respondem com vigor à possibilidade dedeslocar visões estabelecidas, criar novas maneiras de ver, experimentar outras sensações,narrativas, espaços e temporalidades.12 Expressão de Peter Pál Pelbart, in VidaCapital: Ensaios de Biopolítica. São Paulo:Il<strong>um</strong>inuras, 2003. p. 20.

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