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Outros Retratos – Ensaiando um panorama do ... - Itaú Cultural

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48 Consuelo Lins O filme-dispositivo no <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário brasileiro contemporâneo 49Dispositivo e jogoAnalisemos mais detidamente <strong>do</strong>is filmes <strong>do</strong> mineiro Cao Guimarães: Rua de MãoDupla, concebi<strong>do</strong> inicialmente como videoinstalação para a 25ª Bienal Internacionalde São Paulo, em 2002, e Acidente (2005), realiza<strong>do</strong> em parceria com Pablo Lobato. Écomo se nesses <strong>do</strong>is filmes a idéia de dispositivo se lapidasse, ganhasse em limpideze incluísse <strong>um</strong>a dimensão lúdica, de jogo, de brincadeira com o real. Em Rua de MãoDupla, Cao Guimarães convi<strong>do</strong>u seis pessoas pertencentes às camadas médias dapopulação de Belo Horizonte para participar de <strong>um</strong>a experiência inusitada: divididasem duplas, elas trocariam de casa por 24 horas e, munidas de <strong>um</strong>a pequena câmeradigital, filmariam o que bem lhes aprouvesse na casa alheia, tentan<strong>do</strong> “elaborar <strong>um</strong>a‘imagem mental’ <strong>do</strong> outro(a) através da convivência com seus objetos pessoais e seuuniverso <strong>do</strong>miciliar” 7 . Ao final, dariam <strong>um</strong> depoimento para a câmera, contan<strong>do</strong> comoimaginaram esse ”outro”. Portanto, o diretor não filma nem dirige, mas concebe <strong>um</strong>jogo, distribui cartas, determina regras, escolhe joga<strong>do</strong>res, fornece câmeras, transporte,comida. Provê o necessário e sai de campo. Trata-se de <strong>um</strong>a maquinação que implica aausência de controle <strong>do</strong> diretor sobre o material filma<strong>do</strong>, propician<strong>do</strong> <strong>um</strong>a espécie de“retirada estética” não propriamente <strong>do</strong> filme – afinal, o dispositivo é dele, assim como amontagem <strong>do</strong> filme –, mas das imagens e <strong>do</strong>s sons que seu filme vai conter, atribuin<strong>do</strong>a seis outros indivíduos a tarefa de filmar e se autodirigir 8 .O dispositivo que “dispara” a filmagem de Acidente é, de certa maneira, o mais conceitualde to<strong>do</strong>s os que vimos até aqui. Não há inicialmente nenh<strong>um</strong> interesse particular<strong>do</strong>s cineastas por <strong>um</strong> aspecto concreto da realidade. É como se houvesse, antes detu<strong>do</strong>, pairan<strong>do</strong> no ar, <strong>um</strong>a questão imensa, questão de vida, em que os cineastas seperguntassem como se relacionar com o mun<strong>do</strong> diante de tantas possibilidades, detantos filmes já feitos, de tantas imagens prontas, sem suc<strong>um</strong>bir nem ao caos nem aosclichês. Ou, como diria J. L. Comolli, “como fazer para que haja filme” 9 ? Cao Guimarãese Pablo Lobato decidem se apegar às palavras: criam <strong>um</strong> dispositivo-poema e deposse dele começam a filmar. Mas não são palavras quaisquer retiradas <strong>do</strong> dicionário– poderiam ser, mas gerariam outro filme.filmar; retira deles o direito de recusar <strong>um</strong>a cidade caso não gostem dela, porque nessecaso o poema deixaria de funcionar. Reduz o excesso de intencionalidade. É <strong>um</strong> jogo quetem suas regras, às quais eles devem se submeter. Não se trata em absoluto de adaptarpalavras às coisas, nomes às cidades, mas de construir <strong>um</strong>a forma de se confrontar como caos <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> sem submergir, de imprimir <strong>um</strong>a direção inicial, abrin<strong>do</strong> ao mesmotempo o filme aos acasos, imprevistos e imponderáveis <strong>do</strong> real.Mas os dispositivos, como já destacamos, não garantem filmes e podem ser abala<strong>do</strong>sno confronto com o real. “O movimento <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> não se interrompe para permitir ao<strong>do</strong>c<strong>um</strong>entarista polir seu sistema de escritura.” 10 A segunda regra <strong>do</strong> jogo era buscar aorigem <strong>do</strong>s nomes das cidades escolhidas, o que se verificou improdutivo já no inícioda filmagem. Se, para chegar a essas cidades anônimas, distantes da imagem de cartãopostaldas cidades históricas mineiras, o poema foi fundamental – e respeita<strong>do</strong> até ofim –, a conexão para essa segunda etapa foi aban<strong>do</strong>nada sem pena. Talvez porquefosse <strong>um</strong> caminho conheci<strong>do</strong>, cujo resulta<strong>do</strong> colocaria o filme próximo <strong>do</strong> pitoresco,<strong>do</strong> que é curioso, <strong>do</strong> que pode ser turístico no interior mineiro – de tu<strong>do</strong> aquilo <strong>do</strong> qualos diretores queriam distância. O poema implicava <strong>um</strong>a abertura na relação com ascidades que essa temática da origem destruía. “Excluiu-se, portanto, o assunto, e o filmeficou sobre assunto nenh<strong>um</strong>”, diz Cao Guimarães.Os <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entários que resultaram desses dispositivos são profundamente distintosentre si: Acidente é <strong>um</strong> filme que reinventa a imagem-tempo em esplêndi<strong>do</strong>s planosseqüência,a maioria deles fixa ou com sutis movimentos de câmera, que capturam aduração, o tempo que passa, em várias camadas, nas pequenas cidades mineiras. OndeAcidente mais parece se aproximar da fotografia – em razão <strong>do</strong>s belíssimos recortes <strong>do</strong>mun<strong>do</strong> realiza<strong>do</strong>s pela câmera de vídeo ou em película super-8 – é justamente ondeo filme mais se distancia da imagem estática, em razão da duração. Na cidade de EntreFolhas, por exemplo, vemos o cair da tarde <strong>do</strong> balcão de <strong>um</strong> bar onde praticamentenada acontece, a não ser os movimentos infra-ordinários de seu proprietário ou a raracirculação de carros e pessoas <strong>do</strong> la<strong>do</strong> de fora. Na cidade de Palma, o filme se atém a<strong>um</strong>a ladeira em que os tempos mortos se alternam com microacontecimentos.7Cao Guimarães, no texto da contracapa<strong>do</strong> vídeo Rua de Mão Dupla.8Esse filme é analisa<strong>do</strong> por mim maislongamente no artigo “Rua de MãoDupla: <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário e arte contemporânea”,in Kátia Maciel. Transcinemas. Riode Janeiro: Contracapa, 2006.9Idem, p. 99.São nomes de cidades mineiras cuja lista eles pesquisaram no site <strong>do</strong> IBGE. Selecionaram100 e as imprimiram. Espalharam os papéis sobre a mesa e começaram a brincar com aspalavras. Sonoridades, senti<strong>do</strong>s, materialidades, ressonâncias: foi isso que contou para oscineastas, e não <strong>um</strong> conhecimento prévio da realidade das cidades, das quais, aliás, elesignoravam tu<strong>do</strong>. Chegaram a <strong>um</strong> poema com 20 nomes que evoca <strong>um</strong>a fábula de amore <strong>do</strong>r: “Helio<strong>do</strong>ra, Virgem da Lapa, Espera Feliz, Jacinto Olhos d’Água, Entre Folhas, Ferros,Palma, Caldas, Vazante, Passos, Pai Pedro Abre Campo, Ferve<strong>do</strong>uro Descoberto, Tiros,Tombos, Planura, Águas Vermelhas, Dores de Campos”.O dispositivo-poema torna-se, portanto, <strong>um</strong>a máquina de produzir imagem e adquire,como to<strong>do</strong>s os dispositivos, certo poder sobre os cineastas. Decide por eles onde vãoSão blocos de espaço-tempo que nos fazem ver e sentir “<strong>um</strong> pouco de tempo em esta<strong>do</strong>puro”, à maneira de Ozu 11 . O filme inteiro é captura<strong>do</strong> por <strong>um</strong>a espécie de inação, quecontamina personagens e cineastas, favorecen<strong>do</strong> <strong>um</strong>a atenção inédita e concentradanas pequenas coisas <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, nos seres, nos movimentos, nos gestos, nos ruí<strong>do</strong>s,nas conversas. O especta<strong>do</strong>r também é envolvi<strong>do</strong> nesse circuito em que as conexõesentre palavras e coisas, nomes e cidades, acontecimentos e personagens são tênues,frágeis e, finalmente, de pouca importância. Trata-se de <strong>um</strong> filme em que a dimensãopropositiva <strong>do</strong> dispositivo se mistura a <strong>um</strong>a dimensão mais plástica, contemplativa eformal, mesclan<strong>do</strong> em <strong>um</strong> só tempo <strong>do</strong>is movimentos que Cao Guimarães identifica emsua trajetória, em trabalhos diferentes.10Idem, p. 106.11 Expressão de Gilles Deleuze, referin<strong>do</strong>seao cineasta japonês, em A Imagem-Tempo. São Paulo: Brasiliense, 2006.

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