12.07.2015 Views

Outros Retratos – Ensaiando um panorama do ... - Itaú Cultural

Outros Retratos – Ensaiando um panorama do ... - Itaú Cultural

Outros Retratos – Ensaiando um panorama do ... - Itaú Cultural

SHOW MORE
SHOW LESS
  • No tags were found...

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

46 Consuelo Lins O filme-dispositivo no <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário brasileiro contemporâneo 471 Retomo, aqui, de forma muitíssimo breve,alguns arg<strong>um</strong>entos da oportuna síntesee atualização <strong>do</strong> debate feita por IsmailXavier em “As aventuras <strong>do</strong> dispositivo(1978-2004)”. Aconselho vivamente a leituradesse capítulo acrescenta<strong>do</strong> à novaedição <strong>do</strong> livro O Discurso Cinematográfico:A Opacidade e a Transparência. São Paulo:Paz e Terra, 2005. p. 175.2 Dispositifs, in Déjouer l’image. Nîmes:Critiques d’Art, Editions JacquelineChambon, 2002. p. 21.3 Sob o risco <strong>do</strong> real, in Catálogo <strong>do</strong>5º Festival <strong>do</strong> Filme Doc<strong>um</strong>entário eEtnográfico. Belo Horizonte, nov. 2001.p. 99, 111. Ver também Voir et Pouvoir.L’innocence Perdue: Cinema, Telévision,Fiction, Doc<strong>um</strong>entaire. Verdier, 2004.projetor, favorecen<strong>do</strong> a identificação dele com os heróis na tela e com o que produz oespetáculo, a própria câmera 1 .O especta<strong>do</strong>r, produto desse dispositivo, é <strong>um</strong> ser necessariamente aliena<strong>do</strong>: naturalizao que é artifício, negan<strong>do</strong> a representação como representação; vive a ilusão de queé o centro <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> e que dele emana o senti<strong>do</strong> das imagens, o que em tempos dedesconstrução e de crítica às noções de sujeito e autoria é <strong>um</strong> ultraje. E o pior, para essacrítica, é que essa experiência alienante se repete a cada filme, por mais diferentes quesejam as histórias narradas, pois é de forma estrutural que o dispositivo cinematográficodefine as condições e a natureza da experiência <strong>do</strong> especta<strong>do</strong>r.Tampouco nos deteremos, nos limites deste artigo, em instalações que utilizam vídeo,computa<strong>do</strong>r ou cinema em galerias ou museus, embora várias características dessesdispositivos se assemelhem ao uso que fazemos deles aqui. Nesses dispositivos de criaçãoe/ou exibição das obras, o especta<strong>do</strong>r experimenta sensações físicas e mentais pormeio da disposição de elementos (telas múltiplas, câmeras etc.) em <strong>um</strong>a determinadaorganização espacial. Imagens podem ser produzidas antes e/ou durante a exploraçãoque o especta<strong>do</strong>r faz da obra; em alguns casos, são imagens em circuito fecha<strong>do</strong>, nasquais o que está em questão é o deslocamento perceptivo <strong>do</strong> especta<strong>do</strong>r.Contu<strong>do</strong>, a produção dessas imagens difere da das imagens criadas pelos dispositivosde filmagem de certos <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entários, que são necessariamente anteriores ao momentode exibição <strong>do</strong>s filmes. De toda maneira, “dispositivo” é, nesses <strong>do</strong>is contextos, <strong>um</strong>procedimento produtor, ativo, cria<strong>do</strong>r – de realidades, imagens, mun<strong>do</strong>s, sensações,percepções que não preexistiam a ele. Como enfatiza Anne-Marie Duguet, “to<strong>do</strong> dispositivovisa produzir efeitos específicos” 2 . O que acontece mesmo na teoria <strong>do</strong> cinema comodispositivo: a dimensão produtora está presente, só que o dispositivo cinematográficoproduz, segun<strong>do</strong> seus críticos <strong>do</strong>s anos 1970, apenas <strong>um</strong> tipo de experiência. No caso<strong>do</strong>s dispositivos artísticos, trata-se de sistemas diferencia<strong>do</strong>s que estruturam experiênciassensíveis, a cada vez de mo<strong>do</strong> específico.É também de mo<strong>do</strong> específico que os dispositivos <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entais funcionam. Não é, emabsoluto, algo que se dá em to<strong>do</strong> filme de forma semelhante, estrutural, no cinemacomo <strong>um</strong> to<strong>do</strong>, mas cria<strong>do</strong> a cada obra, imanente, contingente às circunstâncias defilmagem, e submeti<strong>do</strong> às pressões <strong>do</strong> real. Trata-se de <strong>um</strong> uso da noção de dispositivoque tem no crítico e cineasta Jean-Louis Comolli seu defensor mais inspira<strong>do</strong>. Para ele,diante da “crescente roteirização das relações sociais e intersubjetivas”, <strong>do</strong>s “roteirosque se instalam em to<strong>do</strong> lugar para agir (e pensar) em nosso lugar”, parte da produção<strong>do</strong>c<strong>um</strong>ental tem a possibilidade de se ocupar <strong>do</strong> que resta, <strong>do</strong> que sobra, <strong>do</strong> que nãointeressa às versões fechadas <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> que a mídia nos oferece. Ao contrário <strong>do</strong>sroteiros que temem o que neles provoca fissuras e afastam o que é acidental e aleatório,os dispositivos <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entais extraem da precariedade, da incerteza e <strong>do</strong> risco de não serealizar sua vitalidade e condição de invenção 3 .Em Eduar<strong>do</strong> Coutinho (Santo Forte, Babilônia 2000, Edifício Master, O Fim e o Princípio), odispositivo é, antes de qualquer coisa, relacional, <strong>um</strong>a máquina que provoca e permite filmarencontros. Relações que acontecem dentro de linhas espaciais, temporais, tecnológicas,acionadas por ele cada vez que se aproxima de <strong>um</strong> universo social. A dimensão espacialdesse dispositivo – as filmagens em locações únicas – é a mais importante. Para Coutinho,pouco importa <strong>um</strong> tema ou <strong>um</strong>a idéia se não estiverem atravessa<strong>do</strong>s por <strong>um</strong> dispositivo,que não é a “forma” de <strong>um</strong> filme, tampouco sua estética, mas impõe determinadas linhasà captação <strong>do</strong> material. Em João Salles (Futebol, Santa Cruz, Entreatos), há <strong>um</strong>a opção porfilmagens longas, mais observa<strong>do</strong>ras <strong>do</strong> que interativas, inspiradas nas técnicas <strong>do</strong> cinemadireto. É <strong>um</strong> dispositivo em que a dimensão temporal é crucial e produz efeitos no filme,diferente das intervenções curtas de Coutinho, em que o tempo de filmagem não contaespecialmente para a narrativa 4 .O tempo também é a principal linha <strong>do</strong> dispositivo de Passaporte Húngaro, de SandraKogut, mas não se trata de <strong>um</strong> filme de observação, pois a ação que integra seu dispositivo– tirar <strong>um</strong> passaporte – obriga a diretora a muita conversa e negociação. É <strong>um</strong> filme emque o autor é ator, em que a escrita fílmica está ligada à noção de agir: o diretor age paracriar suas histórias. O mesmo acontece com 33, de Kiko Goifman 5 , que também é resulta<strong>do</strong>de <strong>um</strong> dispositivo fortemente temporal, mas com limitações no tempo de filmagem queinexistem nos <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entários anteriores. Seus 33 anos de idade lhe deram o número dedias que ele tinha para encontrar sua mãe biológica.Essa regra orto<strong>do</strong>xa imprime ao filme <strong>um</strong>a tensão: ou ele consegue material suficientenesses 33 dias de filmagem e investigação, ou não há filme.“33 dias porque tenho 33 anos”: por mais arbitrário que o dispositivo de Kiko Goifmanpossa parecer, ele apenas revela, sem meias palavras, a arbitrariedade presente em to<strong>do</strong>e qualquer filme-dispositivo, com mais ou menos força, com mais ou menos sutileza.Não há qualquer fundamento “lógico” para esse número de dias. Da mesma maneira,não é nada “natural” que <strong>um</strong>a brasileira tire Passaporte Húngaro em Paris, já que noBrasil seria muito mais fácil, e provavelmente não daria filme. É também da ordem<strong>do</strong> artifício produzir encontros para ser filma<strong>do</strong>s ou seguir personagens durante <strong>do</strong>isanos, e é bom que seja assim. Por que não seis meses? Por que esses personagens enão outros? Ora, porque <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entários não brotam <strong>do</strong> coração <strong>do</strong> real, espontâneos,naturais, rechea<strong>do</strong>s de pessoas e situações autênticas, prontas para ser capturadas porseres sensíveis, cheios de idéias na cabeça e câmeras na mão; são, sim, gera<strong>do</strong>s pelomais “puro” artifício, na acepção literal da palavra: “processo ou meio através <strong>do</strong> qual seobtém <strong>um</strong> artefato ou <strong>um</strong> objeto artístico” (Dicionário Aurélio). Muitos deles, e talvezos melhores, são frutos de <strong>um</strong>a “maquinação”, de <strong>um</strong>a lógica, de <strong>um</strong> pensamento, queinstitui condições, regras, limites para que o filme aconteça; e de <strong>um</strong>a “maquinaria” 6 queproduz concretamente a obra.4 Evidentemente não me refiro a CabraMarca<strong>do</strong> para Morrer (1964-1984), masaos filmes posteriores <strong>do</strong> diretor.5Jean-Claude Bernardet identifica nomovimento <strong>do</strong>s filmes de Kogut eGoifman – em que “a <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entação tendea se tornar o registro da busca” – <strong>um</strong><strong>do</strong>s mais estimulantes <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entáriorecente. “Novos r<strong>um</strong>os <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entáriobrasileiro?”, in Catálogo <strong>do</strong> 7º Festival <strong>do</strong>Filme Doc<strong>um</strong>entário e Etnográfico. BeloHorizonte, nov./dez. 2003.6Retomamos essas noções de PhilippeDubois, que as utiliza mais especificamentepara falar de filmes com dimensõesautobiográficas e relaciona<strong>do</strong>s àmemória, mas que nos parecem férteispara pensar os filmes-dispositivos de<strong>um</strong>a forma mais ampla. “A foto-autobiografia”, in Revista Imagens. Campinas: Ed.Unicamp. p. 64-76. Dubois amplia o usodessas noções em Cinema, Vídeo, Godard.São Paulo: Cosac & Naif, 2004.

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!