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Outros Retratos – Ensaiando um panorama do ... - Itaú Cultural

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42 Francisco Elinal<strong>do</strong> Teixeira Doc<strong>um</strong>entário expandi<strong>do</strong> – Reinvenções <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário na contemporaneidade 43e imagem sincroniza<strong>do</strong>s, roteiro mínimo ou construí<strong>do</strong> em campo com os personagensreais, to<strong>do</strong>s esses elementos que foram sen<strong>do</strong> apropria<strong>do</strong>s pelo cinema ficcional maiscriativo <strong>do</strong> pós-guerra, <strong>do</strong> neo-realismo à nouvelle vague e cinemas novos. Segun<strong>do</strong>, comas mudanças operadas na estrutura narrativa, na construção <strong>do</strong>s relatos, quan<strong>do</strong> o real eo ficcional se contaminaram n<strong>um</strong>a tal escala de mo<strong>do</strong> que impugnou o discurso anteriorde demarcação de fronteiras. Essa instabilidade já tivera início com os primeiros filmesneo-realistas, que haviam lança<strong>do</strong> para fora <strong>do</strong>s estúdios suas equipes e as posiciona<strong>do</strong>diante de cenários em ruínas, portanto, frente aos da<strong>do</strong>s de <strong>um</strong>a realidade que de tãoextraordinária parecia exceder toda faculdade de imaginação que alimentara o cinemaficcional. Curiosamente, <strong>um</strong>a das sugestões de nomeação <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário nascente nosanos 1920 havia si<strong>do</strong> a de cinema neo-realista!De mo<strong>do</strong> que as trocas entre os <strong>do</strong>mínios da ficção e <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário aí processadasvarreram de vez a noção de realismo no cinema ou da imagem como <strong>um</strong> mero naturalismo.Doravante, qualquer realismo <strong>do</strong>c<strong>um</strong>ental passava por <strong>um</strong> crivo construtivista mínimoou total, ou seja, pela idéia de que o realismo era <strong>um</strong>a construção estética como outraqualquer e não a operação direta de <strong>um</strong>a realidade que se expunha em sua integridadeou autenticidade. Esse desbloqueio veio repor <strong>um</strong> da<strong>do</strong> aparentemente banal, mas degrandes conseqüências: o de que, por mais que caminhasse tecnicamente na direçãode <strong>um</strong>a mimese cada vez mais aperfeiçoada em relação à realidade (com a imagemem movimento, o som, a cor, a profundidade de campo etc.), o cinema continuavainscrito no paradigma perspectivista clássico, ou seja, continuava sen<strong>do</strong> <strong>um</strong>a simulação<strong>do</strong> olho h<strong>um</strong>ano diante <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, a simulação de <strong>um</strong> ponto de vista lança<strong>do</strong> sobreas coisas, <strong>um</strong>a máquina de visão com to<strong>do</strong>s os seus defeitos ou anomalias (imagemplana, estática, bidimensional etc.), e não o mun<strong>do</strong>, as coisas, a realidade em si mesmos.Essa desnaturalização, desfamiliarização ou estranhamento <strong>do</strong> dispositivo imagéticoencontra-se no cerne das renovações que a imagem videográfica, depois <strong>do</strong> cinema, vemimprimin<strong>do</strong> no <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário desde os anos 1970.E aqui chegamos ao nosso terceiro deslocamento, o das relações <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário como <strong>do</strong>mínio <strong>do</strong> experimental. Talvez aqui se encontre <strong>um</strong> locus por excelência da expansãoe renovação das formas <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entárias na contemporaneidade. A vertente realista <strong>do</strong>cinema <strong>do</strong>c<strong>um</strong>ental <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> entre a Primeira e a Segunda Guerras (<strong>do</strong>c<strong>um</strong>entáriogriersoniano e quejan<strong>do</strong>s) defrontou-se desde o início com <strong>um</strong>a vertente “formativista”,de vanguarda ou experimental, atenta às preocupações formais, estilísticas, expressivas,poéticas <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário, que nos legou peças como Rien que les Heures (AlbertoCavalcanti, 1926), Berlim, Sinfonia de <strong>um</strong>a Grande Cidade (Walter Ruttman, 1927), OHomem da Câmera (Dziga Vertov, 1929), Chuva (Joris Ivens, 1929), A Propósito de Nice(Jean Vigo, 1929) etc. Essa vertente, embora retomada sob vários aspectos desde osanos 1950 e 1960, empalideceu diante da maior exposição da tendência realistahegemônica, <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário oficial ou espetacular, permanecen<strong>do</strong> em circulaçãopor <strong>um</strong>a via subterrânea que, no entanto, não parou de alimentá-lo e realimentá-lo dediversas maneiras e em diversos momentos.Como esbocei anteriormente, o problema <strong>do</strong> cinema de vanguarda para o<strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário era sua feição antiilusionista que, em vez de mergulhar no canto de cisne<strong>do</strong>s aprimoramentos técnicos como suplementos de mais realidade na imagem, tiravaproveito justamente da precariedade <strong>do</strong> dispositivo, de seu artificialismo, fazen<strong>do</strong> disso<strong>um</strong>a base de lançamento de <strong>um</strong>a nova era de criação artística. Essa veia experimental<strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário, com grande relevo hoje para as concepções vertovianas de <strong>um</strong> “cineolho”que contorna e ultrapassa a mera percepção e o alcance <strong>do</strong> sistema perceptivo edas máquinas sensórias que lhe servem de suporte, tornou-se crucial e estratégica parasua renovação quan<strong>do</strong> <strong>do</strong> surgimento de novas máquinas além da <strong>do</strong> cinema e seusdes<strong>do</strong>bramentos internos. Com a irrupção da imagem-vídeo na cultura audiovisual, asensação que se tem é a de <strong>um</strong> completo desbloqueio da construção imagética quenos lança n<strong>um</strong> novo tempo de investigação e experimentação, que não deixa dereverberar aquele das primeiras décadas <strong>do</strong> século XX com a efervescência de suasvanguardas artísticas, dispostas a lançar por terra tu<strong>do</strong> que fosse da ordem de <strong>um</strong>a “arteretiniana” que por séculos havia erigi<strong>do</strong> a postura vertical h<strong>um</strong>ana como condicionantede nosso universo óptico e a imagem especular, primeiro pictórica, depois fotográfica ecinematográfica, como “janela aberta para o mun<strong>do</strong>”.Esses três vetores de deslocamento <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário – em relação a si, à ficção e aoexperimental – constituem <strong>um</strong>a expansão de seus limites a princípio rígi<strong>do</strong>s, mas que já hácerto tempo se abriram à contaminação e à hibridização (conforme expressão hipertrofiadaposta em circulação pelo espírito da época) de múltiplas maneiras, configuran<strong>do</strong>-se ele, naatualidade, em geral segun<strong>do</strong> modalidades eminentemente ensaísticas.A noção de ensaio é de enorme pertinência para situar essa turbulência metamórfica,transformacional, posta em curso nos últimos tempos. Não se trata de <strong>um</strong> formatoespecífico de <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário, mas de tendências de estruturação dele, mesmo os maissisu<strong>do</strong>s e reticentes quanto à investigação formal e estilística, que operam com elementoscomo a diversidade de materiais, a fragmentação, a falta de univocidade e totalização, asubjetividade e a expressividade, as elipses, os deslocamentos e condensações, sem falar<strong>do</strong>s inúmeros traços de auto-reflexividade que têm marca<strong>do</strong> a produção em larga escala.Mas, sobretu<strong>do</strong>, de reflexividade no senti<strong>do</strong> de <strong>um</strong> trabalho de pensamento que se debruçasobre suas matérias para moldá-las e manipulá-las conforme propósitos que não estãoda<strong>do</strong>s nelas, que não são evidentes, que nascem da relação mesma <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entaristacom os entornos que sua vista ou imaginação alcançam, com seus objetos, agentes oupersonagens implica<strong>do</strong>s, suas derivas, oscilações, dúvidas em relação ao processo decriação, que raramente se esgotam n<strong>um</strong> resulta<strong>do</strong> pronto e acaba<strong>do</strong>.Enfim, na distância que percorreu em relação aos primeiros tempos, o <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário sereinventa na contemporaneidade como <strong>um</strong>a forma de “escritura” que tem no ensaio suasorientações e estratégias mais criativas.

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