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Outros Retratos – Ensaiando um panorama do ... - Itaú Cultural

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34 Sheila Schvarzman Tendências e perspectivas <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário contemporâneo: <strong>um</strong> olhar histórico retrospectivo 355 Bernardet, Jean-Claude. A entrevista(Casa de Cachorro, À Margem daImagem). In: Cineastas e imagens <strong>do</strong>povo. Op. cit. p. 281.formas cinematográficas, como mostram os últimos planos de À Margem da Imagem(Eval<strong>do</strong> Mocarzel, 2003), que as contradições dessa postura supostamente igualitáriaafloram. A cena final mostra o entrevista<strong>do</strong>, mora<strong>do</strong>r de rua, responden<strong>do</strong> ao cineasta oque achou <strong>do</strong> filme, <strong>do</strong> qual participou e no qual se contam suas histórias. O que ele dizé revela<strong>do</strong>r <strong>do</strong> dispositivo de filmagem e <strong>do</strong> abismo que a diferença social de classe e deeducação põe entre os interlocutores: ele diz que, fora <strong>do</strong> âmbito da filmagem, se batesseà porta <strong>do</strong> diretor, pedin<strong>do</strong> <strong>um</strong> prato de comida, seria tão rejeita<strong>do</strong> quanto sempre foiem to<strong>do</strong>s os outros lugares. Essa fala, excepcionalmente significativa, termina com <strong>um</strong>corte em que o diretor avisa que “valeu!”. Terminou o filme. Terminou, portanto, para odiretor, essa história toda! Jean-Claude Bernardet 5 , em seu artigo sobre a entrevista, cobrade Mocarzel <strong>um</strong>a posição diante <strong>do</strong> interlocutor, algo que não acontece. O entrevista<strong>do</strong> ésagra<strong>do</strong>, resta como <strong>um</strong> objeto de interesse exterior. Tu<strong>do</strong> o que diz vale para o filme, maso interesse, tal como se revela nas imagens, se res<strong>um</strong>e ao filme.O <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário contemporâneo, portanto, incorporan<strong>do</strong> a reflexibilidade que busca deixartransparentes as relações entre quem filma e quem é filma<strong>do</strong>, termina por engendrar outrainterrogação: quem está no centro <strong>do</strong> filme? Quem é o verdadeiro alvo: o entrevista<strong>do</strong> ouo dispositivo emprega<strong>do</strong> pelo diretor para ressaltar seu próprio cuida<strong>do</strong> com o “objeto”?Em se tratan<strong>do</strong> das questões da alteridade no <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário contemporâneo, éobrigatório falar de Eduar<strong>do</strong> Coutinho. Sua obra, desde Cabra Marca<strong>do</strong> para Morrer (1984),restará certamente como <strong>um</strong>a baliza na história <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário que procuramosescrever. Ainda que a reflexibilidade não seja sua invenção, é a partir <strong>do</strong>s seus trabalhosque os vários contratos supostos no <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário se explicitam: o pagamento, ocaráter encena<strong>do</strong> <strong>do</strong> rito da entrevista, a presença da equipe. Essa noção de <strong>um</strong>a obraconjunta que se explicita diante <strong>do</strong> especta<strong>do</strong>r – <strong>do</strong> entrevista<strong>do</strong> e de Coutinho e suaequipe – parece ser <strong>um</strong>a das chaves que explicam a empatia <strong>do</strong> interlocutor, bemcomo o acolhimento que se dá a ele. É assim que esse pode se constituir como sujeitodiante da câmera. Nesse cinema basicamente da palavra, da memória e da fabulação, apersonalidade de Coutinho é o ponto essencial. Ainda que exista aí <strong>um</strong> dispositivo, eleparece basear-se, antes de tu<strong>do</strong>, inteiramente na postura generosa de interlocução <strong>do</strong>diretor. Assim, o objeto de interesse deixa de ser o filme em si mesmo, ou o dispositivo,e o entrevista<strong>do</strong> pode virar sujeito.Mais <strong>do</strong> que a prevalência de <strong>um</strong> dispositivo há em Coutinho a consistência cinematográficade <strong>um</strong>a prática oriunda <strong>do</strong>s anos 1960, e que tem seu traço principal na forma de trataras pessoas, no espaço que lhes é dedica<strong>do</strong>, no desejo de se aproximar delas, de deixarque se mostrem diante da câmera. E isso parece corresponder, antes de tu<strong>do</strong>, a <strong>um</strong>aevolução de Coutinho que está vinculada à idealização <strong>do</strong> povo, com<strong>um</strong> nos anos 1960e nos <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entários da época.Nesse senti<strong>do</strong>, é interessante observar o diálogo que se estabelece entre os recortes <strong>do</strong>morro nas lentes de Eduar<strong>do</strong> Coutinho, por <strong>um</strong> la<strong>do</strong>, e de João Salles, por outro. Deve-seressaltar, contu<strong>do</strong>, que eles partiam de olhares e questões infinitamente diversas. Salles nosfala da urgência de <strong>um</strong>a guerra cotidiana que permeia a sociedade brasileira, na cidade <strong>do</strong>Rio de Janeiro, onde exclusão, criminalidade, repressão, corrupção e impotência destroemo teci<strong>do</strong> social espraian<strong>do</strong>-se por toda a sociedade, configuran<strong>do</strong> a guerra retratada nasimagens de Notícias de <strong>um</strong>a Guerra Particular (1999).Já Santa Marta: Duas Semanas no Morro (1987), de Eduar<strong>do</strong> Coutinho, cujo foco centraltambém é a vida na favela, acaba por tirar <strong>do</strong> interlocutor relatos totalmente distintos. Seno primeiro filme, o de João Salles, o morro é concreto e hostil, e corresponde ao imaginárioque <strong>do</strong> exterior se elabora sobre ele – na mídia, na opinião pública que demoniza a favelacomo lugar da marginalidade –, no de Coutinho ele é lugar de vivências e de imaginação,construí<strong>do</strong> a partir de dentro, por seus mora<strong>do</strong>res. Com Salles, somos intima<strong>do</strong>s a agir,a nos posicionar perante essa guerra da qual também somos parte. No <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entáriode Coutinho, a palavra está com o mora<strong>do</strong>r, que nos esclarece sobre o que é, afinal, essemorro Santa Marta, o lugar que ama e no qual vive.Entretanto, essa forma de abordagem de Coutinho que parece aparentemente fácilinduziu, e tem induzi<strong>do</strong>, o <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário atual a repetir em grande parte esse sistema,sem o mesmo sucesso, levan<strong>do</strong> a forma da entrevista a <strong>um</strong>a crise de saturação devi<strong>do</strong> àsua aparente facilidade, ao baixo custo etc. 6Se a entrevista se torna <strong>um</strong>a das formas mais usadas e desgastadas <strong>do</strong>s filmes recentes,dela decorrem outras posturas. Uma delas é a idéia de dar aos depoentes a câmera, paraque produzam a sua própria imagem.Assim têm agi<strong>do</strong> cineastas, antropólogos e outros especialistas que vêm colaboran<strong>do</strong> nacriação de filmes pelos índios, por exemplo, gênero extremamente fértil desde a obra <strong>do</strong>Major Thomaz Reis. Essa filmografia hoje é extensa, o que se deve, em grande parte, aosaportes de ONGs nacionais e internacionais. Neles, mostram-se temas caros aos índios apartir de seu próprio olhar.Em Prisioneiro da Grade de Ferro (2004), Paulo Sacramento entregou a câmera aos presos<strong>do</strong> Carandiru. Nessas imagens, o sujeito encarcera<strong>do</strong> se ergue e se idealiza. Redime-see se mostra h<strong>um</strong>ano. A exclusão se dissolve n<strong>um</strong>a nova identidade e atesta o princípionortea<strong>do</strong>r <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário de depoimento que estabeleceu, ao longo de sua história, acrença inabalável de que to<strong>do</strong> depoente fala sempre a verdade. Parece – parafrasean<strong>do</strong>André Bazin – que a “ontologia da imagem <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entária no Brasil” é o prima<strong>do</strong> da verdadedaquele que fala.E, se o assunto é o depoimento como sinônimo de verdade, vamos nos voltar para o<strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário mais constante nesse perío<strong>do</strong>, assim como em toda a história <strong>do</strong><strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário brasileiro, aquele que estabelece a ponte com os primórdios da produçãoe sua tradição pedagógica e exemplar: a biografia.6 Bernardet, Jean-Claude. A entrevista(Casa de Cachorro, À Margem da Imagem).In: Cineastas e imagens <strong>do</strong> povo.Op. cit. p. 281.

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