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Outros Retratos – Ensaiando um panorama do ... - Itaú Cultural

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32 Sheila Schvarzman Tendências e perspectivas <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário contemporâneo: <strong>um</strong> olhar histórico retrospectivo 33Propaganda (DIP) traziam para a tela homens vivos excepcionais – começan<strong>do</strong> pelopresidente Getúlio Vargas, artistas como o pintor Pancetti, artesãos e trabalha<strong>do</strong>res deextração simples, que haviam se destaca<strong>do</strong> em suas atividades. Mas o verdadeiro focodesses filmes, o sujeito dessas ações, era antes de tu<strong>do</strong> o Esta<strong>do</strong> que, na figura <strong>do</strong>presidente, resguardava o cidadão, ou dava àqueles profissionais a chance de sobressair.Tanto em <strong>um</strong> como em outro exemplo, era muito clara a separação total entre ospersonagens da tela e os da vida real. Na tela, to<strong>do</strong>s eram parte da mesma ficção construídapelo regime por meio <strong>do</strong> cinema.Nos anos 1950, finda a ditadura, e com novos tempos políticos e culturais, os heróis e asvirtudes pedagógicas construí<strong>do</strong>s pelo Ince se desfizeram. A forma <strong>do</strong>c<strong>um</strong>ental se impôssobre a pedagogia, e H<strong>um</strong>berto Mauro passou a registrar de forma sistemática os mo<strong>do</strong>sde vida tradicionais que o avanço da modernização pareceu ameaçar. São filmes comoFabricação da Rapadura (1958), Pedra Sabão (1957), ou canções populares românticas – asvárias Brasilianas (1945-1958). Entretanto, em todas as obras o homem ainda não aparececomo personagem importante. Ele é parte de <strong>um</strong> sistema no qual está imerso, juntocom o Carro de Bois (1956) ou o engenho (Engenhos e Usinas, 1955); estes, verdadeirossujeitos <strong>do</strong>s filmes que abordavam a cultura brasileira tradicional n<strong>um</strong> momento de fortetransformação, com a industrialização e a urbanização.Em Aruanda, de Linduarte Noronha e Rucker Vieira (1960), o homem já tem consistênciae existência própria, não é mais a entidade abstrata <strong>do</strong>s momentos anteriores. Énele que se edificam os traços <strong>do</strong> homem popular como depositário da verdadeiratradição e <strong>do</strong>s valores brasileiros. A construção romântica se transfere <strong>do</strong> grandehomem para o homem simples. Ainda que pobre, ele é a verdadeira nacionalidade– sua inconsciente salvaguarda.Em 5 Vezes Favela (Carlos Diegues e outros, 1962), a beleza e a poesia não escondem oviés romântico que permeia a abordagem <strong>do</strong>s tipos populares; viés cujo ponto de vistacertamente era motivo de conflito entre os diretores cinema-novistas. Nesse senti<strong>do</strong>,Opinião Pública (1967), de Arnal<strong>do</strong> Jabor, muda o tom e evita o romantismo, ao abordar apopulação de classe média de Copacabana, no Rio.A magnificação <strong>do</strong> homem <strong>do</strong> povo é marcante nos filmes da Caravana Farkas, queprocurou registrar o “verdadeiro homem brasileiro” a partir de mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s anos 1960.Tratava-se, no dizer de Geral<strong>do</strong> Sarno, <strong>um</strong> de seus realiza<strong>do</strong>res, de mostrar a “nobrezaintrínseca <strong>do</strong> ocupa<strong>do</strong> e a sua competência”. Uma obrigação tão nobre que certamentenão oculta, no tratamento da imagem e na eloqüência da narração, a culpa e a máconsciência <strong>do</strong>s realiza<strong>do</strong>res pelos débitos sociais que se explicitam nos filmes. Essafrase demonstra o grau de idealização em relação ao homem das camadas populares:n<strong>um</strong> país de tanta desigualdade, é difícil tratar o outro de forma igualitária sem chamarpara si – cineasta culto e bem alimenta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Sul – a responsabilidade pela mudança.Em filmes como Viramun<strong>do</strong> (Geral<strong>do</strong> Sarno, 1965), apesar de as mudanças técnicas e deconcepção cinematográfica <strong>do</strong> cinema direto terem permiti<strong>do</strong> “dar voz ao povo”, deixan<strong>do</strong>patentes as carências <strong>do</strong>s homens que ali se enfocavam, a “voz sociológica” se sobrepôs àsnovas vozes; falou por elas, falou no seu lugar 1 . Isso certamente falou com mais eloqüênciada visão <strong>do</strong> realiza<strong>do</strong>r <strong>do</strong> que daquele que é alvo da câmera.Esse viés persiste ainda nos anos 1970 e 1980. Mas essa tendência muda, e muito, emmea<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s anos 1980 e 1990.Os anos 1980, fortemente marca<strong>do</strong>s pelo neoliberalismo, sepultaram as utopias socializantesque faziam <strong>do</strong> povo <strong>um</strong> objeto a ser salvo e ampara<strong>do</strong>. Ao ruírem, essas crenças permitirama livre manifestação da persistente linhagem conserva<strong>do</strong>ra de parte <strong>do</strong> pensamentonacional que, desde o final <strong>do</strong> Império, sempre viu o povo de forma negativa.Se, até os anos 1980, o Nordeste era o objeto de interesse e os filmes <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entavam<strong>um</strong> mo<strong>do</strong> de vida ti<strong>do</strong> como arcaico, pobre, miserável – mas respeitosamente tradicional,como se vê em A Bolandeira (Vladimir Carvalho, 1969), por exemplo –, a partir desse momentoo foco muda. O centro das atenções passam a ser os marginaliza<strong>do</strong>s urbanos, queos efeitos deletérios <strong>do</strong> “milagre brasileiro” só fizeram multiplicar. Assim, são <strong>do</strong>c<strong>um</strong>enta<strong>do</strong>sa vida no morro, as favelas, o apego à religião, o tráfico de drogas, a delinqüência e,ao mesmo tempo, seus antí<strong>do</strong>tos ou mecanismos de defesa como o rap etc. A imagemcruenta, ou intensa, como lembra Fernão Ramos, parece ser a forma de “tematizar, no<strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário contemporâneo, a exclusão e a violência social que permeiam a sociedadebrasileira.(...) <strong>um</strong> narcisismo às avessas” 2 .Se mu<strong>do</strong>u a geografia, se o urbano substituiu o rural, se o jovem substituiu os homensmaduros envolvi<strong>do</strong>s em profissões e atitudes tradicionais, é como se a própria h<strong>um</strong>anidadetivesse se transforma<strong>do</strong> na imagem. Depura<strong>do</strong> <strong>do</strong> viés romântico que alimentava no povoa idéia de raiz, de autenticidade, o elemento popular aparece desprovi<strong>do</strong> de qualidades,imensamente carente. Como já observou Ramos, em alguns filmes da época 3 , “o especta<strong>do</strong>r,através de <strong>um</strong>a postura auto-agressiva, aceita e se deleita com a crueldade narrativa,embutida na enunciação, na imagem <strong>do</strong> HORROR (imagens <strong>do</strong> grito, da morte, da miséria,da sordidez, <strong>do</strong> sofrimento, <strong>do</strong> dilaceramento corporal, <strong>do</strong> sangramento, da h<strong>um</strong>ilhação,da sujeira). A favela, os cortiços, a prisão, os lixões, os esgotos, o campo devasta<strong>do</strong> são oscenários privilegia<strong>do</strong>s dessa imagem. É a fratura de classes da sociedade brasileira quepermite a representação desse ‘outro’ que denominamos ‘representação <strong>do</strong> popular’ ” 4 .Por outro la<strong>do</strong>, persiste ainda como característica dessa fase – talvez pela urgênciadessas questões – <strong>um</strong> olhar exterior que continua a permear a relação com o outro. Umolhar exterior e de classe, que denuncia, mas também revela, na maior parte das vezes,a má consciência em relação ao outro pobre. Mesmo nas formas cinematográficas maisdespojadas – como no diálogo entre o cineasta e seu entrevista<strong>do</strong> – , é essa má consciênciaque se mostra quan<strong>do</strong> se revelam os dispositivos de elaboração de <strong>um</strong> filme. É nessas1Bernardet, Jean-Claude. O modelosociológico ou a voz <strong>do</strong> <strong>do</strong>no. In:Cineastas e imagens <strong>do</strong> povo. São Paulo:Companhia das Letras, 2003. p. 15.2Ramos, Fernão Pessoa. Três voltas <strong>do</strong>popular e a tradição escatológica <strong>do</strong> cinemabrasileiro. In: Estu<strong>do</strong>s de cinemaSocine II e III. São Paulo: Annabl<strong>um</strong>e,2004. p. 48.3 Como Notícias de <strong>um</strong>a Guerra Particular(João Salles, 1999), Uma Avenida ChamadaBrasil (Octavio Bezerra, 1989), Boca deLixo (Eduar<strong>do</strong> Coutinho, 1992), Os Carvoeiros(Nigle Noble, 1999), Mamazônia,a Última Floresta (Celso Lucas, BrasíliaMascarenhas, 1996), O Rap <strong>do</strong> PequenoPríncipe contra as Almas Sebosas (PauloCaldas, Marcelo Luna, 2000), O Prisioneiroda Grade de Ferro (Paulo Sacramento,2003), Ônibus 174 (José Padilha, 2001),Falcão, Meninos <strong>do</strong> Tráfico (MV Bill, CelsoAthayde, 2003).4 Ramos, Fernão Pessoa. As três voltas<strong>do</strong> popular e a tradição escatológica <strong>do</strong>cinema brasileiro. Op. cit.

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