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Outros Retratos – Ensaiando um panorama do ... - Itaú Cultural

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28 José Carlos Avellar A realidade como crítica de cinema – O cinema como crítica da realidade 29é isso mesmo, filme feito por <strong>um</strong> especta<strong>do</strong>r ativo, meio distante ou no centro da cena.Não é a primeira vez que isso ocorre n<strong>um</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário, nem é tão incom<strong>um</strong> assim que<strong>um</strong> realiza<strong>do</strong>r construa seu filme montan<strong>do</strong> imagens que não filmou. Aqui, ou porque ospresos passaram antes por <strong>um</strong>a breve oficina sobre o uso de câmeras digitais, ou porque,como toda a gente hoje, foram “educa<strong>do</strong>s” visualmente pelo contato regular com cinemae televisão, ou ainda porque o manejo das câmeras de vídeo digital é relativamente fácilgraças a controles automáticos, por qualquer <strong>um</strong>a dessas razões separar o que foi filma<strong>do</strong>por eles e o que foi registra<strong>do</strong> pelo realiza<strong>do</strong>r não é tão simples nem colabora para amelhor compreensão <strong>do</strong> projeto. O diretor não estava presente em boa parte da filmagem,mas em nenh<strong>um</strong> instante se ausentou da concepção <strong>do</strong> filme, porque de certo mo<strong>do</strong>procurou se comportar como o outro, ser <strong>um</strong> deles, sentir a prisão como <strong>um</strong>a metáfora<strong>do</strong> mal-estar de nossa sociedade.O Prisioneiro da Grade de Ferro remonta o cotidiano <strong>do</strong> presídio recém-destruí<strong>do</strong> n<strong>um</strong>aimplosão, trabalha no eco <strong>do</strong> massacre de detentos ocorri<strong>do</strong> há pouco mais de dez anos.O que os presos filmam revela a prisão como <strong>um</strong> microcosmo da sociedade <strong>do</strong> la<strong>do</strong> defora. Exageran<strong>do</strong> <strong>um</strong> pouco, corre<strong>do</strong>res e celas <strong>do</strong> presídio não são muito diferentes <strong>do</strong>scorre<strong>do</strong>res e apartamentos conjuga<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Edifício Master, de Eduar<strong>do</strong> Coutinho. Nem ashistórias contadas pelos presos <strong>do</strong> Carandiru são muito diferentes daquelas contadas pelosmora<strong>do</strong>res <strong>do</strong> edifício de Copacabana. Uns e outros são excluí<strong>do</strong>s, não são <strong>um</strong> desvio oudeformação <strong>do</strong>s ideais da sociedade.Brasil, quinta-feira, 28 <strong>do</strong> 10 de 76, primeiro caderno, página 15: Filmagem causa espantoe irrita filha e amigos. Um, <strong>do</strong>is, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez, onze, <strong>do</strong>ze...Corta! Agora dá <strong>um</strong> close na cara dele! Barba por fazer, calça de brim azul-marinho, casacoazul-escuro, camisa esporte quadriculada, sapatos marrons, o cineasta Glauber Rocha estápara<strong>do</strong> ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong> caixão <strong>do</strong> pintor Di Cavalcanti no Museu de Arte Moderna...” .Dominan<strong>do</strong> a imagem com sua voz, entran<strong>do</strong> em cena e acompanhan<strong>do</strong> o enterro, nocentro <strong>do</strong> plano, à frente <strong>do</strong> caixão (e não com o jeito discreto e encolhi<strong>do</strong> com o qualo diretor de <strong>um</strong> filme <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário cost<strong>um</strong>a aparecer na imagem), Glauber filma a simesmo para falar <strong>do</strong> pintor, para falar de cinema. Retomemos a possibilidade de que aidéia de pedir Passaporte Húngaro e buscar a mãe biológica tenha surgi<strong>do</strong> para Sandra epara Kiko primeiro como idéia de filme. Ou seja: mais <strong>do</strong> que o pedaço de realidade que<strong>do</strong>c<strong>um</strong>entam, os filmes de Sandra e de Kiko, como os de Paulo e de Eryk, e antes delesto<strong>do</strong>s os de Coutinho e Glauber, são filmes. Ao mesmo tempo em que nos revelam asbuscas objetivas em que seus realiza<strong>do</strong>res estão empenha<strong>do</strong>s (e sem sair delas, pois elas éque dão corpo à idéia), expressam a busca subjetiva de seus diretores: discutir na realidade(o cinema então como <strong>um</strong> instr<strong>um</strong>ento crítico dela) o cinema (a realidade então comoinstr<strong>um</strong>ento crítico dele), discutir a condição <strong>do</strong> especta<strong>do</strong>r durante a projeção quan<strong>do</strong>(para melhor criticar <strong>um</strong>a coisa e outra) abre mão de sua identidade como passaportenecessário para melhor perceber o filme como expressão vizinha à de Constable, Turner,Goya ou Posada, vizinha, sobretu<strong>do</strong>, ao espelho de Magritte.Não é a primeira vez que o cinema sugere o cárcere como <strong>um</strong>a metáfora da sociedade,nem a primeira vez que a câmera procura pensar o mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> ponto de vista de <strong>um</strong>prisioneiro – efetivamente preso ou em liberdade condicional, como os mora<strong>do</strong>res deconjuga<strong>do</strong>s. O que importa é observar como os diferentes presos conversam entre si,confessan<strong>do</strong> a meia-voz o sonho com<strong>um</strong> a to<strong>do</strong>s os excluí<strong>do</strong>s: mudar de vida.6 Di, Prêmio Especial <strong>do</strong> Júri no Festivalde Cannes de 1977, foi <strong>um</strong> <strong>do</strong>s filmesdebati<strong>do</strong>s por Roberto Rosselini no seminárioaberto que ele, presidente <strong>do</strong>júri, organizou para discutir o cinema deautor e os filmes em concurso naqueleano. Rosselini discutia a perda de potência<strong>do</strong> cinema de autor (“o filme de autorvirou <strong>um</strong>a espécie de gênero, os autoresrenunciam à invenção e se repetem aoinfinito”), e identificou no filme de Glauber<strong>um</strong>a nova atitude autoral, em que oautor se inseria na história que narravacomo parte inseparável dela.6.Os <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entários que fazemos hoje parecem abraçar <strong>um</strong>a construção cinematográficaque parte de idéias esboçadas entre nós na década de 1960: o cinema como busca/afirmação/invenção de <strong>um</strong>a identidade em permanente busca de si mesmo, o impulso<strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário como forma de levar o cinema ao direto enfrentamento <strong>do</strong> presente. Sãofilmes que partem <strong>do</strong> que se esboçou na década de 1960 e que passam pela experiênciade Cabra Marca<strong>do</strong> para Morrer (1984), de Eduar<strong>do</strong> Coutinho, e de Di (1977) 6 , de GlauberRocha. No primeiro, o realiza<strong>do</strong>r se situa no centro da história e fora de quadro (20 anosdepois, no Nordeste, em busca <strong>do</strong>s companheiros de trabalho no filme interrompi<strong>do</strong> pelogolpe militar de 1964). No segun<strong>do</strong>, o realiza<strong>do</strong>r começa gritan<strong>do</strong> a apresentação <strong>do</strong> filme(que não tem letreiros e se anuncia pelo som): “Di Cavalcanti. Título <strong>do</strong> filme: ninguémassistirá ao formidável enterro de sua última quimera, somente a ingratidão, aquela pantera,foi sua companheira inseparável”. Em seguida, voz alta, exaltada, Glauber lê <strong>um</strong>a notíciade jornal sobre a filmagem: “Filmagem causa espanto e irrita família e amigos. Jornal <strong>do</strong>

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