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Outros Retratos – Ensaiando um panorama do ... - Itaú Cultural

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26 José Carlos Avellar A realidade como crítica de cinema – O cinema como crítica da realidade 27<strong>do</strong> que está fora de quadro: Kiko aparece n<strong>um</strong>a espécie de fusão conseguida graças aoângulo da câmera diante da janela, meio vidro, meio espelho, que, enquanto deixa ver ola<strong>do</strong> de fora, reflete parte <strong>do</strong> la<strong>do</strong> de dentro, a televisão ligada il<strong>um</strong>inan<strong>do</strong> o rosto de Kiko.Mostrar-se assim, fora <strong>do</strong> campo visual, é <strong>um</strong> mo<strong>do</strong> de levar o especta<strong>do</strong>r a se dar contada composição como elemento essencial <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário, que deixa de ser <strong>um</strong> simplesregistro visual e sonoro <strong>do</strong> fragmento da realidade diante dele. Um <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário nãorepete, não reapresenta a realidade: representa, pensa.5.“Não há como negar, Nelson Freire é feito de lacunas.” João Moreira Salles definiu assimseu trabalho, depois de lembrar o que conseguiu registrar: “Nelson tocan<strong>do</strong> o Segun<strong>do</strong>Concerto de Brahms no Municipal <strong>do</strong> Rio, tocan<strong>do</strong> o mesmo concerto no sul da Françacom a Filarmônica de São Petersburgo, tocan<strong>do</strong> a quatro mãos e <strong>do</strong>is pianos com suagrande amiga Martha Argerich, tocan<strong>do</strong> a Fantasia de Sch<strong>um</strong>ann em pelo menos trêsocasiões diferentes (todas elas de tirar o fôlego), tocan<strong>do</strong> Villa-Lobos dentro de <strong>um</strong>a igrejabarroca com vista para o Mediterrâneo. Porém, não há como negar”, conclui, “Nelson Freire(2003) também é feito de lacunas”. E essa é a primeira informação que se recebe <strong>do</strong> filme.No pedacinho inicial <strong>do</strong> que ainda vai ser a primeira imagem se anuncia com clareza: ofilme se constrói como fragmento, pedaço, parte, estilhaço, intervalo, fora de quadro. Ofragmento primeiro é <strong>um</strong>a unidade mínima de som logo cortada – mal começa, acaba. Umgolpe seco, não se percebe nada além disso. A música acabou, a orquestra parou, a platéiaaplaude. O pianista curva-se para agradecer e, ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong> maestro, caminha na direção dacâmera, que está no fun<strong>do</strong> <strong>do</strong> palco, por trás <strong>do</strong>s músicos, escondida nos basti<strong>do</strong>res. Oquase-som que ouvimos dura pouco e é logo esqueci<strong>do</strong> porque – sem intervalo alg<strong>um</strong>,quase sem silêncio entre <strong>um</strong> e outro – novo som forte cobre a imagem: o aplauso daplatéia. E, ao contrário da batida inicial, o som <strong>do</strong> aplauso se alonga, continua. Continua. Econtinua. Entusiasma<strong>do</strong>, mais forte e presente na imagem que a conversa entre o pianistae o maestro nos basti<strong>do</strong>res. Eles trocam poucas palavras. Comentam que tu<strong>do</strong> correubem. O pianista diz que gostaria de <strong>um</strong> cigarro, mas, insta<strong>do</strong> pelo maestro, volta ao palcopara agradecer. A câmera o acompanha.A longa duração dessa primeira imagem pode, à primeira vista, dar a sensação contrária,de que o filme não é assim como dissemos que ele é. Para fragmento, o plano de aberturaparece grande demais. É <strong>um</strong> longo plano-seqüência. Quanto dura? Dois, três, quatrominutos? Parece mais. Não importa o tempo real, parece mais. Mas igualmente nãoimporta aqui a duração real nem a sensação de que dura mais <strong>do</strong> que o que realmentedura. O plano se estica no tempo, mas estruturalmente é <strong>um</strong> fragmento, mostra só ointervalo entre duas apresentações <strong>do</strong> pianista.Ele volta ao palco e a câmera sai <strong>do</strong>s basti<strong>do</strong>res, avança, esgueiran<strong>do</strong>-se entre os músicos,para ver de perto o agradecimento e o entusiasmo da platéia. Os aplausos seguem, opianista volta aos basti<strong>do</strong>res, e a câmera vem com ele. Bebe <strong>um</strong> pouco d’água, pede <strong>um</strong>cigarrinho, mas o maestro insiste: “cigarrinho, depois”. Antes, <strong>um</strong> extra, <strong>um</strong> brinde, “<strong>um</strong><strong>do</strong>cinho de coco para o público”, para agradecer. Pianista e maestro voltam à cena, curvamsediante <strong>do</strong>s aplausos, que não diminuem. De novo nos basti<strong>do</strong>res, o maestro insiste: <strong>um</strong>extra, <strong>um</strong> brinde. O pianista diz que não dá. Depois desse concerto, não seria possível.Pede ao maestro que o acompanhe ao palco para novo agradecimento – porque a platéiasegue aplaudin<strong>do</strong>. Os <strong>do</strong>is c<strong>um</strong>primentam os músicos. O maestro faz <strong>um</strong> gesto para quetoda a orquestra se levante e volta para os basti<strong>do</strong>res com o pianista. O plano não acaba aí.Renova-se o apelo: <strong>um</strong>a peça pequenina, diz o maestro, <strong>um</strong> <strong>do</strong>cinho de coco. Cigarrinhosó depois. E nova entrada em cena para mais <strong>um</strong> agradecimento.Um plano-seqüência mais intervalo que seqüência. Uma observação detalhada de <strong>um</strong>entreato. O concerto, que não vimos, acabou. Vai começar outra coisa que igualmentenão veremos. Nessa nova entrada em cena o pianista senta-se ao piano para tocar algo,e o plano acaba. Vemos o vazio entre o último pedaço de som <strong>do</strong> concerto e o gestode sentar-se ao piano – o gesto e só: agora nenh<strong>um</strong> som – para o extra. O que acabouimporta pouco. O que vai começar não faz falta. Vemos o vazio entre <strong>um</strong>a coisa e outra e,graças a ele, percebemos melhor e mais acuradamente o que de fato importa.“Doc<strong>um</strong>entaristas têm a estranha mania de achar que tu<strong>do</strong>, ou quase tu<strong>do</strong>, deve serfilma<strong>do</strong>. Não precisa ser necessariamente assim”, diz João Moreira Salles. “Uma boaparte <strong>do</strong> público de música erudita gosta de ver o seu pianista dan<strong>do</strong> golpes debraço à direita e à esquerda, como se o tecla<strong>do</strong> fosse <strong>um</strong> mar, e ele, <strong>um</strong> afoga<strong>do</strong>. Oproblema desse destempero é que quase sempre a música acaba desaparecen<strong>do</strong> portrás da ginástica. Com Nelson isso nunca acontece. O seu piano é <strong>um</strong> mar calmíssimo.Acredito que essa elegância seja <strong>um</strong>a decisão estética; é como se ele dissesse: ‘Prestematenção na música e não se deixem ludibriar pela performance’. E suspeito tambémque se trata de <strong>um</strong>a questão de recato [...] N<strong>um</strong> mun<strong>do</strong> cada vez mais exibi<strong>do</strong>, esserecato é o traço mais belo de Nelson e, na minha opinião, a razão da extraordináriapureza de sua música” 5 .Recato. Lacuna. Intervalo. Bem no instante em que a tecnologia digital apontaconcretamente para a possibilidade de filmar tu<strong>do</strong>, e bem de perto, até invadir e vencertoda e qualquer intimidade, o que começa a aparecer nos filmes como construção maisrefinada – Nelson Freire, 33 e Passaporte Húngaro, por exemplo – pode ser res<strong>um</strong>i<strong>do</strong> naspalavras acima. O <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário, experiência em que o diretor quase se reduz a <strong>um</strong>especta<strong>do</strong>r <strong>do</strong> filme que dirige, começa a ser pensa<strong>do</strong> como <strong>um</strong>a expressão recatada, a seperguntar se, por acaso, em vez de ser o que mostra todas as coisas <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, não seria,de fato, o que mostra só o intervalo entre as coisas.Intervalo, autoria. Quan<strong>do</strong>, em O Prisioneiro da Grade de Ferro (2003), Paulo Sacramentoentregou a câmera a detentos <strong>do</strong> presídio <strong>do</strong> Carandiru para que eles se filmassem, nãoestava renuncian<strong>do</strong> à autoria de seu filme, mas passan<strong>do</strong> a atuar como <strong>um</strong> especta<strong>do</strong>rativo da realidade ou <strong>do</strong> filme que produz para discuti-la. É <strong>um</strong> filme que se realizaestimula<strong>do</strong> por ele mas quase independente dele. Até certo ponto, to<strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário5 Em “O elogio <strong>do</strong> recato”, entrevista aDaniel Schenker Wajnberg, Marcelo Janote Maria Sílvia Camargo publicada naedição de 9 de maio de 2003 da revistacriticos.com.br.

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