12.07.2015 Views

Outros Retratos – Ensaiando um panorama do ... - Itaú Cultural

Outros Retratos – Ensaiando um panorama do ... - Itaú Cultural

Outros Retratos – Ensaiando um panorama do ... - Itaú Cultural

SHOW MORE
SHOW LESS
  • No tags were found...

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

24 José Carlos Avellar A realidade como crítica de cinema – O cinema como crítica da realidade 25toma<strong>do</strong> como <strong>um</strong>a representação <strong>do</strong> problema que o cinema <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário enfrentaagora: como revelar no quadro o espaço mais amplo fora de quadro? O assunto, o tema,a questão registrada são somente <strong>um</strong>a forma de compor <strong>um</strong> quadro que durante to<strong>do</strong> otempo joga o olhar para fora dele, para <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entar no que está ali, imediatamente visível,o que não se traduz para o olhar: reproduction interdite.4.No começo de Passaporte Húngaro (2002), Sandra Kogut fala ao telefone. Ela pergunta aoconsula<strong>do</strong> da Hungria se <strong>um</strong>a pessoa com <strong>um</strong> avô húngaro tem direito a <strong>um</strong> passaportedaquele país. Na verdade, são duas conversas, em francês, montadas como <strong>um</strong>a falacontínua, mas feitas em momentos e em telefones diferentes. A voz masculina que atendea <strong>um</strong>a das chamadas acha que não, que <strong>um</strong> neto de húngaro não tem direito a PassaporteHúngaro. A voz feminina que atende à outra chamada pergunta se ela poderia reunir<strong>do</strong>c<strong>um</strong>entos capazes de provar a origem húngara de seus avós.No começo de 33 (2003), Kiko Goifman fala com o especta<strong>do</strong>r. Diz que sempre gostoude contar que é filho a<strong>do</strong>tivo em momentos inespera<strong>do</strong>s e observar como as pessoasse sentem nessas ocasiões. Diz que tem 33 anos, que foi a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong> por Berta, que nasceuem 1933, e que naquele dia, 9 de setembro de 2001, começava a remexer no passa<strong>do</strong>,partin<strong>do</strong> em busca de sua mãe biológica por 33 dias e por “<strong>um</strong> caminho metódico e torto”.Decidira ir ao escritório de detetives para pedir dicas, usar as manhãs e tardes para asinvestigações e as noites para “a procura de imagens, nas poucas luzes e nos vazios“.O que aproxima esses <strong>do</strong>is filmes não é apenas o começo, com imagens diferentes masparecidas entre si: <strong>um</strong> breve discurso para apresentar <strong>um</strong>a busca e definir seus limites. São<strong>do</strong>c<strong>um</strong>entários próximos <strong>um</strong> <strong>do</strong> outro porque neles os realiza<strong>do</strong>res estão no centro dashistórias que contam; porque radicalizam algo presente em to<strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário de formavelada: o pedaço em que o <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário, filme volta<strong>do</strong> para o outro, até certo pontodetermina<strong>do</strong> pelo outro, sem tirar os olhos <strong>do</strong> outro, se refere a si mesmo, fazen<strong>do</strong> <strong>do</strong> retrato<strong>do</strong> outro também <strong>um</strong> auto-retrato, como quem diz “ eu sou o outro”. A imagem aqui é <strong>um</strong>espelho como o de La Reproduction Interdite. Sandra e Kiko, no centro <strong>do</strong> filme desde oprimeiro instante, aparecem como Edward James na pintura de Magritte: rostos invisíveis.Em muitos planos de 33 vemos a câmera na mão de Kiko. Ele não filma a si mesmo n<strong>um</strong>espelho, apenas deixa visível em qualquer superfície lisa capaz de refletir <strong>um</strong>a imagem acâmera com que (se) filma. Conscientemente ou não, define-se como <strong>um</strong> homem com <strong>um</strong>acâmera; reafirma a importância de seu instr<strong>um</strong>ental sensível, o cinema; indica que mantera atenção voltada para a câmera, para o cinema, é aqui tão importante quanto observar asações <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entadas durante a busca de sua mãe biológica. O personagem que está emcena filma a cena. O Kiko diretor e o Kiko personagem em cena são ao mesmo tempo <strong>do</strong>ise <strong>um</strong> só, e reiteram: eu e meu eu/outro, antes de qualquer coisa, fazemos cinema. O Kikodiretor busca (busca talvez mais importante que a da mãe biológica efetuada pelo Kikopersonagem) imagens para dizer o que ele sente e pensa durante a procura.Também em Passaporte Húngaro a pessoa que filma participa da cena com a câmera na mão,age na cena que está filman<strong>do</strong> 2 . Usa <strong>um</strong> pequeno vídeo digital, e as pessoas que estão sen<strong>do</strong>filmadas nem percebem a câmera, ou, se percebem, acham natural que ela esteja ali, objetosemelhante a <strong>um</strong>a caneta, bolsa, livro ou caderneta. Em cena as pessoas filmadas conversamna presença de <strong>um</strong> terceiro olhar, pequenino, discreto, silencioso. Sem esse terceiro olhar, acena seria diferente ou talvez nem viesse a existir. Na verdade, trata-se de <strong>um</strong> jogo em quea intervenção é de mão dupla. Sandra, a realiza<strong>do</strong>ra, age primeiro como <strong>um</strong> personagemde seu filme. Lida com a câmera como se estivesse também sen<strong>do</strong> observada pela objetiva.Vive o instante que filma como personagem da cena, não como quem a dirige. Não <strong>do</strong>minaa cena nem sabe o que vai acontecer com ela. Busca Passaporte Húngaro e <strong>do</strong>c<strong>um</strong>enta oprocesso – que se estendeu por <strong>do</strong>is anos entre idas a consula<strong>do</strong>s e arquivos, além de visitasa familiares, to<strong>do</strong>s filma<strong>do</strong>s. O mesmo ocorre com o projeto de Kiko Goifman: 33, tal comoplaneja<strong>do</strong>, só teria senti<strong>do</strong> se ele mesmo se filmasse 3 . A idéia de procurar e filmar a procurada mãe biológica e a idéia de pedir e <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entar o pedi<strong>do</strong> de Passaporte Húngaro parecemter surgi<strong>do</strong> ao mesmo tempo, em fusão, <strong>um</strong>a dentro da outra. Observan<strong>do</strong> a questão sob<strong>um</strong> ponto de vista exclusivamente cinematográfico, é possível supor, com alg<strong>um</strong> exagero,que o fato de procurar a mãe biológica e o de pedir Passaporte Húngaro tenham surgi<strong>do</strong>primeiro como idéia de filme.A<strong>do</strong>tan<strong>do</strong> a expressão com que Geral<strong>do</strong> Sarno res<strong>um</strong>iu a questão 4 , o que <strong>um</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário<strong>do</strong>c<strong>um</strong>enta com veracidade não é o que está em quadro, e sim o mo<strong>do</strong> de compor oquadro, a maneira de <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entar <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entarista, seu mo<strong>do</strong> de reagir às questõesconcretas que surgem durante a realização <strong>do</strong> filme, aquelas criadas pelo objeto a ser<strong>do</strong>c<strong>um</strong>enta<strong>do</strong> e as provocadas pelo sistema de produção. Nos filmes de Sandra e de Kiko,além disso, mais <strong>do</strong> que se mostrar indiretamente no mo<strong>do</strong> de estruturar o discurso, o<strong>do</strong>c<strong>um</strong>entarista <strong>do</strong>c<strong>um</strong>enta a si mesmo. Filma o seu outro eu. Filma sua família. É o que<strong>do</strong>c<strong>um</strong>enta e o que está sen<strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>enta<strong>do</strong>. Está no centro da história, bem no centro– se aceitarmos a possibilidade de <strong>um</strong> centro excêntrico.Nas imagens iniciais de Passaporte Húngaro vemos <strong>um</strong> telefone e logo <strong>um</strong> outro filma<strong>do</strong>s,ao que tu<strong>do</strong> indica, sob o ponto de vista de quem fala ao telefone. A imagem que se produzentão equivale à que se obtém com o gesto automático de riscar <strong>um</strong>a coisa qualquer nopapel durante <strong>um</strong>a conversa telefônica. O especta<strong>do</strong>r vê o telefone na tela assim comoSandra, no instante da filmagem, viu a imagem: ela foi construída para mostrar a conversa enão o aparelho. Olhamos o telefone e vemos Sandra, que fala aqui, e o homem e a mulherque respondem <strong>do</strong> outro la<strong>do</strong> da linha. O que vemos nesse momento não é o que estáao alcance <strong>do</strong>s olhos, mas o que se constrói pela estrutura de composição – porque n<strong>um</strong>filme cada plano, quadro, fragmento é apreendi<strong>do</strong> pelo especta<strong>do</strong>r não somente como aexpressão <strong>do</strong> que a imagem imediatamente revela, mas como <strong>um</strong> gesto da ordem expressivaque organiza a imagem. Não importa que Sandra não esteja ali; o que o <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário então<strong>do</strong>c<strong>um</strong>enta é Sandra, fora de quadro, refletida n<strong>um</strong> falso espelho como o de Magritte. Kikoestá igualmente fora de quadro no falso espelho de 33. A imagem apenas sugere <strong>um</strong> pouco2Em depoimento feito para o site dePassaporte Húngaro (http://www.repúblicapureza.com.br/passaporte),SandraKogut conta por que não aparece naimagem <strong>do</strong> filme: “Foi <strong>um</strong>a decisão quetomei na hora da edição. Achei que, n<strong>um</strong>filme sobre identidade, seria redutor ter<strong>um</strong>a imagem, <strong>um</strong> corpo... Ao mesmotempo, não é <strong>um</strong> filme autobiográfico,acho mais importante estar presentecom o olhar: o que me interessa é, através<strong>do</strong> meu olhar, mostrar outras pessoas[...] Não existe <strong>um</strong> motivo central. Se euestivesse pedin<strong>do</strong> <strong>um</strong> passaporte porquequeria <strong>um</strong>a cidadania européia, achoque não faria <strong>um</strong> filme. Eu só quis fazer ofilme porque era <strong>um</strong>a coisa complexa,porque não havia <strong>um</strong> único motivo”.3Sobre 33, de Kiko Goifman, ver tambémna internet a página <strong>do</strong> filme: http://www. uol.com.br/33.4 SARNO, Geral<strong>do</strong>. Quatro notas e <strong>um</strong>depoimento sobre o <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário. In:Cinemais, n. 25, set./out. 2000.

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!