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Outros Retratos – Ensaiando um panorama do ... - Itaú Cultural

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22 José Carlos Avellar A realidade como crítica de cinema – O cinema como crítica da realidade 23Lembra, adiante, que “José de França amaziou-se com Almerinda em 12 de fevereiro de1964. Santos D<strong>um</strong>ont fez o primeiro vôo em 1906. A reforma agrária foi assinada no dia 13de março de 1964 pelo presidente da República. João Goulart assinou às quatro da tarde noRio de Janeiro. A ordem é: quem não obedecer vai para a Ilha das Flores. O marechal CasteloBranco tomou posse em presidente da República em início de abril de 1964. Getúlio Vargasenviou as forças brasileiras para a guerra na Europa no dia 13 de novembro de 1943”.O texto de Gabriel tem <strong>um</strong>a construção tão indisciplinada quanto a cena da coroaçãoda rainha <strong>do</strong> centenário da abolição. Filme e texto obedecem a <strong>um</strong> mesmo princípiode composição e levam o especta<strong>do</strong>r a sentir (não afirmam diretamente, não explicam,sugerem, levam o especta<strong>do</strong>r a sentir sem se dar conta disso de forma consciente) quea desagregação imposta ao negro foi transformada por ele n<strong>um</strong> diferente mo<strong>do</strong> de seagregar e se expressar culturalmente. Ao selecionar <strong>um</strong>a fala em que Gabriel conta queé governa<strong>do</strong> pelo sonho, O Fio da Memória abre espaço para se explicar por meio deGabriel. O <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário está, como sempre, interessa<strong>do</strong> em ouvir, mas está ao mesmotempo falan<strong>do</strong>, explican<strong>do</strong> sua dramaturgia: “Eu me deito muito ce<strong>do</strong>. Não para <strong>do</strong>rmir,para pensar. Eu tenho <strong>um</strong> pensamento vivo. Meu pensamento é vivo, e quan<strong>do</strong> chegameia-noite fico a<strong>do</strong>rmeci<strong>do</strong>. Sonho toda noite. Sou governa<strong>do</strong> para fazer essas coisas nopensamento e no sonho. Ninguém me ensinou, é coisa espiritual. A senhora pensa que eutinha inteligência para fazer isso? Eu mesmo faço, eu mesmo me admiro”.Imaginar <strong>um</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário (mo<strong>do</strong> de fazer cinema que em princípio se pretende tãoobjetivo, direto e controla<strong>do</strong> pela razão quanto possível) como forma governada pelosonho define a questão principal de O Fio da Memória: <strong>um</strong> diálogo entre seus <strong>do</strong>isnarra<strong>do</strong>res, o filme está mesmo interessa<strong>do</strong> em conversar: com a câmera, com as pessoasdiante dela no instante da filmagem, com o especta<strong>do</strong>r na sala de projeção depois <strong>do</strong>filme pronto. Estamos to<strong>do</strong>s (a expressão popular é o que melhor traduz o que se passa)jogan<strong>do</strong> conversa fora. Os entrevista<strong>do</strong>s estão à vontade na imagem, mas essa sensação oespecta<strong>do</strong>r só recebe porque a <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entação se organiza com <strong>um</strong> rigor que parece maiscoisa solta, contraditória, indisciplinada, que rigorosa. Assim, o especta<strong>do</strong>r percebe cadadepoimento como <strong>um</strong>a informação dupla, como <strong>um</strong>a representação <strong>do</strong> diálogo entre os<strong>do</strong>is narra<strong>do</strong>res que orienta sua estrutura.De quan<strong>do</strong> em quan<strong>do</strong> a imagem é longa, porque se trata de deixar que o entrevista<strong>do</strong> serevele na conversa: ele não apenas conta determina<strong>do</strong> episódio que viveu ou presenciouno passa<strong>do</strong>: conta sua memória, conta o que ele próprio é, se revela nos gestos, nasexpressões, no mo<strong>do</strong> de falar. De quan<strong>do</strong> em quan<strong>do</strong> a conversa é curta, porque <strong>um</strong>a ouduas frases são o suficiente para levar o homem com a câmera a engolir em seco diantede gente de quem se tirou a possibilidade de se expressar, como as crianças aban<strong>do</strong>nadasem centros de triagem: a menina que nem sabe como veio para o centro responde decabeça baixa que não veio, está ali desde sempre; o menino que com o rosto escondi<strong>do</strong> nasombra diz que já fez “<strong>um</strong>a pá de coisas nessa vida”, já fez de tu<strong>do</strong>, roubou, matou, traficou.Longas ou breves, as conversas são sempre abertas, inconclusivas, <strong>um</strong> primeiro encontro.O entrevista<strong>do</strong> não repete para a câmera <strong>um</strong> depoimento previamente ensaia<strong>do</strong>. Ele nãose encontrara antes com o diretor. Coutinho envia <strong>um</strong> assistente para combinar a conversa,mas só se encontra com a pessoa que vai filmar no instante da filmagem. E começa a filmarlogo que chega, sem combinar previamente sobre o que vai ser a conversa. Entrevista<strong>do</strong>re entrevista<strong>do</strong> se surpreendem ao mesmo tempo <strong>um</strong> com o outro. Alg<strong>um</strong>a coisa nova,única, imprevista, se dá então, alg<strong>um</strong>a coisa aberta como a pequena confusão diante daIgreja <strong>do</strong> Rosário pouco depois das 13 horas <strong>do</strong> dia 13 de maio de 1988.A arquitetura dramática desestruturada, porque inspirada na Casa da Flor e nos textos deGabriel Joaquim <strong>do</strong>s Santos, porque preocupada em ser <strong>um</strong>a imagem viva <strong>do</strong> tema quea inspira, porque solta como <strong>um</strong>a conversa, não é o que primeiro aparece em O Fio daMemória. Enquanto o filme está na tela o que prende mesmo a atenção não é a câmera,mas as pessoas diante dela. O desenho <strong>do</strong> quadro e a forma de organização <strong>do</strong> filme sóse percebem depois de terminada a projeção, quan<strong>do</strong> volta à memória o texto de Gabrielque abre e encerra a narração: “O Brasil já foi manda<strong>do</strong> por Portugal. O Brasil já foi <strong>um</strong>a roçaportuguesa. Aqui já foi tu<strong>do</strong>. Existiu aqui <strong>um</strong> cativeiro muito perigoso, os portugueses acarregar negros da costa da África pra botar aqui pra trabalhar na enxada. E essas coisastu<strong>do</strong> já passou. Aí o português entregou isso. D. Pedro I fez a independência. Botou o Brasilpra cá e Portugal pra lá. E ficou o Brasil por conta de nós próprio”.3.Imaginemos que o cinema <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário se realize n<strong>um</strong> espaço entre a pintura (o desejode reproduzir o movimento se movimentan<strong>do</strong>, Goya, Constable, Turner, por exemplo) e apintura (a proibição de reproduzir, René Magritte e La Reproduction Interdite, por exemplo).N<strong>um</strong>a tela de 1937, Magritte antecipa e res<strong>um</strong>e a questão que os filmes <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entários (osbrasileiros, mas não só) começaram a se propor mais recentemente. A tela La ReproductionInterdite se propõe como <strong>um</strong> retrato de Edward James. Nela, <strong>um</strong> homem diante <strong>do</strong> espelhovê refletida não a imagem de seu rosto, mas aquela mesma figura que o especta<strong>do</strong>r <strong>do</strong>quadro vê: no espelho ele aparece de costas, como se o essencial de sua imagem nãopudesse se refletir no espelho. Magritte pinta quase como quem fotografa, reproduzin<strong>do</strong>tal e qual as costas de <strong>um</strong> homem diante <strong>do</strong> espelho – melhor, de <strong>um</strong>a pessoa em particular,Edward James, com seu pentea<strong>do</strong>, seu porte físico e as <strong>do</strong>bras <strong>do</strong> paletó. Pinta como quemfotografa o livro sobre a bancada de mármore em que se apóia o espelho (e igualmenterefleti<strong>do</strong> no espelho como o vemos, <strong>do</strong> mesmo ângulo de visão). É evidente que Magrittenão pintou La Reproduction Interdite para discutir o <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário (por mais que gostassede cinema; por mais que tivesse, à margem de sua expressão visual, feito experiências comfotografia e cinema). Mas como tu<strong>do</strong> na imagem parece fotografar <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entalmente ohomem que diante <strong>do</strong> espelho vê não o seu rosto, mas as suas costas, o quadro pode ser

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