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Outros Retratos – Ensaiando um panorama do ... - Itaú Cultural

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20 José Carlos Avellar A realidade como crítica de cinema – O cinema como crítica da realidade 21atenção de to<strong>do</strong>s: “está prova<strong>do</strong>, a escravidão nunca que acabou!”. Ela fala com voz firme,se movimenta enquanto fala. A mistura indisciplinada – o riso da rainha, o choro <strong>do</strong> garotocom a coroa enfiada na cabeça, a música alegre, o vozeirão zanga<strong>do</strong> da mulher negra, osorriso de ironia de quem passa mais interessa<strong>do</strong> na rainha meio nua <strong>do</strong> que na festa, aseriedade que passa com olhos só para a escrava Anastácia, o riso malandro de quem estásó queren<strong>do</strong> ser filma<strong>do</strong> –, a aparente desordem da imagem segue sua ordem.A mulher negra segue protestan<strong>do</strong>: “o preconceito não vai acabar”; a rainha coroada,“magricela, parece mais homem que mulher”; ela “prova e reprova com toda a confiança<strong>do</strong> fun<strong>do</strong> da alma que o branco não gosta mesmo de preto”; e segue com frases queparam na metade porque <strong>um</strong> homem branco entra na conversa, decidi<strong>do</strong> a mostrar quenão existe preconceito de cor no Brasil. Ele corta a fala da mulher negra, mas também nãoconsegue concluir o que queria dizer. “Cinqüenta e <strong>um</strong> por cento da população brasileira...”,tenta <strong>um</strong>a primeira vez sem conseguir atenção. Tenta de novo, e de novo, e de novo,mas ninguém parece interessa<strong>do</strong> em ouvi-lo. A mulher negra não lhe dá ouvi<strong>do</strong>s, diz quenão está falan<strong>do</strong> com ele, que está falan<strong>do</strong> com o repórter. As pessoas em volta entramna discussão, muita gente fala ao mesmo tempo, ninguém escuta nada. N<strong>um</strong> instante,aproveitan<strong>do</strong> <strong>um</strong>a brecha na gritaria, o homem branco solta a voz e quase completa oque queria dizer: “Cinqüenta e <strong>um</strong> por cento da população brasileira tem a raça negra.Em qualquer companhia, quem tem 51% das ações controla a empresa. Se o negro nãoconsegue controlar o país...” Ao que parece ele ia dizer algo como “é por falta de capacidade”ou “é por falta de organização”, ou <strong>um</strong> qualquer outro “por falta de”. Não consegue. Aí,sim, toda a gente em volta interfere rui<strong>do</strong>samente. Adivinham a conclusão da frase e...exatamente aí, quan<strong>do</strong> a ação começa a esquentar mesmo, a cena se interrompe, o filmemuda de assunto.Esse fragmento é insuficiente para dar <strong>um</strong>a idéia precisa <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário que Eduar<strong>do</strong>Coutinho iniciou às vésperas <strong>do</strong> 13 de maio de 1988 e terminou três anos depois, mas é <strong>um</strong>bom exemplo da narração fragmentada e aberta para to<strong>do</strong>s os la<strong>do</strong>s de O Fio da Memória.Esse mo<strong>do</strong> de narrar aparece como parte da coisa narrada, como <strong>um</strong>a representação <strong>do</strong>mo<strong>do</strong> de viver imposto ao negro.Primeiro sinal da fragmentação: <strong>do</strong>is diferentes narra<strong>do</strong>res. Uma só narração, mas <strong>do</strong>isnarra<strong>do</strong>res. O primeiro – o texto é de Coutinho, a voz é de Ferreira Gullar – dá informaçõesimediatas, introduz as diversas situações, como a festa da Confraria <strong>do</strong> Garoto. Diz, porexemplo, que com a abolição o negro, analfabeto, desacultura<strong>do</strong>, sem cidadania e semfamília, teve de lutar contra a desagregação e reunir os estilhaços de sua identidade. Esseprimeiro narra<strong>do</strong>r volta mais tarde para anunciar a marcha de militantes <strong>do</strong> movimentonegro <strong>do</strong> Rio de Janeiro, no dia 20 de novembro, aniversário da morte de Z<strong>um</strong>bi <strong>do</strong>sPalmares e Dia da Consciência Negra. Volta também, sempre como <strong>um</strong>a voz de poucaspalavras, para apresentar brevemente os entrevista<strong>do</strong>s, entre outros Manuel Deo<strong>do</strong>roMaciel, ex-escravo de 120 anos de idade; a família que criou o Cacique de Ramos, osmenores <strong>do</strong> centro de triagem de meninas aban<strong>do</strong>nadas de Charitas, em Niterói; e, ainda,é ele que nos apresenta o segun<strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r, Gabriel Joaquim <strong>do</strong>s Santos, que viveu nodistrito de Vinhadeiro, município de São Pedro d’Aldeia, quase divisa com Cabo Frio, amenos de 200 quilômetros <strong>do</strong> Rio de Janeiro, nasceu em 13 de maio de 1892 e morreuno começo de 1985, aos 92 anos. O primeiro narra<strong>do</strong>r apresenta e praticamente cede olugar ao segun<strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r. A voz é de Milton Gonçalves, o texto é de <strong>um</strong> depoimentograva<strong>do</strong> no fim <strong>do</strong>s anos 1970 e <strong>do</strong>s cadernos em que Gabriel anotava (como quem faz<strong>um</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário?) alternadamente fatos de seu cotidiano, da história da região e dahistória <strong>do</strong> Brasil.Gabriel conta que, por volta de 1926, depois de entrar para a Igreja Batista, conheceu “<strong>um</strong>menino bem sabi<strong>do</strong>” que ensinou “alg<strong>um</strong>a coisa de leitura” para ele n<strong>um</strong>a “cartilha decriança” e que desde então começou a anotar o que se passava n<strong>um</strong> caderninho. Fala detu<strong>do</strong>, e a informação mais importante não vem propriamente <strong>do</strong>s fatos narra<strong>do</strong>s, mas deseu mo<strong>do</strong> descontínuo de narrar, que salta de <strong>um</strong>a frase para outra e de <strong>um</strong> fato a outropor meio de <strong>um</strong> corte seco. É esse segun<strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r, Gabriel, quem determina o modelode construção <strong>do</strong> filme e o sentimento que o comanda, porque, em alg<strong>um</strong> momento <strong>do</strong>processo de realização, o homem com a câmera viu a vida de Gabriel, seu jeito de falar e defazer as coisas, como <strong>um</strong>a imagem da condição <strong>do</strong> negro brasileiro que constrói seu espaçoà margem <strong>do</strong> país, tal como Gabriel construiu sua Casa da Flor com pedaços de coisasapanhadas no lixo: “Quan<strong>do</strong> acabei a obra da casinha, aí veio <strong>um</strong> pensamento para enfeitaressa casinha. Enfeitar de que maneira?, pensei. A gente não tinha dinheiro para comprarcertas coisas, então imaginei de apanhar aqueles caquinhos de louça <strong>do</strong> lixo. Apanhar cacode vidro, fazer aquelas florzinhas de vidro para pregar na parede da casa para enfeitar. Veioaquela coisa na mente. Só apanhar os cacos, resto das grandes obras da cidade”.A casa se impôs como exemplo da força <strong>do</strong> pobre, diz Gabriel: “Os moços <strong>do</strong> Rio chegamaqui e eu digo a eles: lá no Rio tem tanta coisa linda. Eles: não, aquilo não é lin<strong>do</strong>, nosconformemos com o Rio de Janeiro porque lá é a força da riqueza, é a força da engenharia– tem casa, tem palacete, mas é a coisa bem organizada da riqueza. Eles vêm aqui para vera força da pobreza. Eu quero que eles admirem é a força da pobreza”.Ele conta que começou a trabalhar na salina em 1912 e “saiu de lá no ano 1960, cansa<strong>do</strong>e encosta<strong>do</strong> pelo instituto”. Naquele tempo os operários ganhavam por dia: “no ano de1912, <strong>do</strong>is cruzeiros; 1920, três cruzeiros; 1930, seis cruzeiros; 1940, sete cruzeiros; 1950,chegou a 60 cruzeiros”. Logo em seguida anota: “as leis <strong>do</strong> cativeiro no Brasil começouno tempo da colonização no ano de 1532”. E continua, soman<strong>do</strong> outros fragmentos:“Guilherme me deu <strong>um</strong> vintém feito em 1869. Me deu em 30 de abril de 1955. O preço<strong>do</strong>s gêneros alimentícios em 1963: 1 quilo de carne, 700 cruzeiros; 1 quilo de feijão, 180cruzeiros; 1 quilo de açúcar, 140 cruzeiros; 1 quilo de arroz, 200 cruzeiros; 1 quilo de farinha,70 cruzeiros; <strong>um</strong> pão, 15 cruzeiros. No dia 17 de abril de 1963 começou a greve na salina.O papa de Roma morreu em 3 de julho de 1963”.

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