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Outros Retratos – Ensaiando um panorama do ... - Itaú Cultural

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18 José Carlos Avellar A realidade como crítica de cinema – O cinema como crítica da realidade 19começo da década de 1960: o <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário (como as rápidas anotações ao vivo dasnuvens) como esboço necessário para a ficção (as paisagens pintadas em estúdio).De certo mo<strong>do</strong>, a fotografia e o cinema concretizaram o que já vinha sen<strong>do</strong> esboça<strong>do</strong>pela pintura desde o começo <strong>do</strong> século XIX. Francisco de Goya, por exemplo: a seqüênciafeita entre 1806 e 1807 (no acervo <strong>do</strong> Art Institute de Chicago), El Maragato Amenazacon el Fusil a Fray Pedro de Zaldivia, e as outras cinco telas que complementam a ação daprimeira – frei desvia o fuzil; frei luta para desarmar o Maragato; frei golpeia o Maragatocom o fuzil; frei dispara o fuzil; e frei amarra o Maragato. O que temos aqui é <strong>um</strong> filme<strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário antes <strong>do</strong> cinema, tanto nesses seis quadros como nos <strong>do</strong>is pinta<strong>do</strong>s em1814 (no acervo <strong>do</strong> Museu <strong>do</strong> Pra<strong>do</strong> de Madri): El Dos de Mayo de 1808 en Madrid, la Luchacon los Mamelucos e El Tres de Mayo de 1808 en Madrid: los Fusiliamentos de la Montaña delPríncipe Pío. Doc<strong>um</strong>entário antes <strong>do</strong> cinema são também as gravuras que José GuadalupePosada publicou da Gaceta Callejera <strong>do</strong> México no fim <strong>do</strong> século XIX, como Ballazos enCalle de San Hipolito, ou El Motín de los Estudiantes en Mayo de 1892, ou ainda Fusiliamentodel Capitán Clo<strong>do</strong>miro Cota.Outro exemplo de representação visual que tem algo a ver com o que se concretizaria naprática <strong>do</strong> cinema <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário é o quadro que J. M. W. Turner pintou em 1842 e quesurpreende primeiro pela indicação precisa em seu longo título: Snow Storm – Steamboatoff a Harbour’s Mouth Making Signals in Shallow Water, and Going to the Lead. The Author Wasin this Storm on the Night the Ariel left Harwich. Algo que surpreende ainda mais quan<strong>do</strong>o título se liga à imagem, pois a pintura parece contrariar a promessa de <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entáriocontida no seu meio título, meio legenda. Nenh<strong>um</strong> detalhe da tempestade de neveimobiliza<strong>do</strong> para <strong>um</strong>a observação minuciosa, nenh<strong>um</strong>a forma claramente identificávelcomo o navio Ariel que sinaliza ao tentar deixar o porto. Somente manchas pouco precisasque compõem <strong>um</strong> ritmo nervoso. Talvez <strong>um</strong> traço fino no centro <strong>do</strong> quadro possa sercompreendi<strong>do</strong> como o mastro de <strong>um</strong> navio, mas, de fato, nada <strong>do</strong> registro preciso que sepoderia esperar <strong>do</strong> relato de alguém que esteve lá, na tempestade, amarra<strong>do</strong> no mastro<strong>do</strong> navio, como diz o pintor, que garante ter esta<strong>do</strong> lá: “Pedi aos marinheiros que meamarrassem ao mastro <strong>do</strong> vapor para contemplar a tempestade. Fiquei amarra<strong>do</strong> durantequatro horas, cheguei a achar que não iria sobreviver; mas só pensava em registrar atempestade se porventura saísse vivo dela”.Registrar, <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entar, sim, mas registrar de outro mo<strong>do</strong>, <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entar outra questão. Atempestade de neve em Harwich na noite em que o Ariel deixou o porto foi pintada noexato momento em que os franceses Nicéphore Niépce, Louis Daguèrre e Hippolyte Bayard,o alemão Peter Voitgländer e o inglês William Fox Talbot aperfeiçoavam os processos, asobjetivas e os aparelhos fotográficos. Consciente ou não (pouco importa) <strong>do</strong> registroessencialmente objetivo da aparência das coisas por meio da fotografia, Turner pintamovi<strong>do</strong> por <strong>um</strong>a vontade de <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entar de <strong>um</strong> mo<strong>do</strong> não (ou além <strong>do</strong>) fotográfico: “Nãopintei a tempestade para que ela pudesse ser compreendida, mas porque queria mostraralgo pareci<strong>do</strong> com esse espetáculo. Queria mostrar o que se sente com <strong>um</strong> tal espetáculo” 1 .A questão levantada por Turner na metade <strong>do</strong> século XIX é, a rigor, a mesma que alimentaa discussão em torno da prática <strong>do</strong> cinema <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário desde a metade <strong>do</strong> século XX:como ir além <strong>do</strong> registro puramente (fotográfico? jornalístico?) da superfície, da aparênciavisual primeira das coisas? Como levar o especta<strong>do</strong>r a sentir mais <strong>do</strong> que simplesmentever o que se passa? Como fazer da imagem <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário algo que mostre a realidadenão exatamente como ela é, mas como foi percebida e sentida pelo realiza<strong>do</strong>r?Talvez seja possível dizer que, em Rocha que Voa (2002), Eryk Rocha pinta sua imagemassim como Turner fotografou sua tempestade de neve. E que em Ônibus 174 (2002) JoséPadilha grava <strong>um</strong> incidente trágico da vida <strong>do</strong> Rio de Janeiro tal como Posada fotografoutiroteios, motins e fuzilamentos em sua gazeta de rua <strong>do</strong> fim <strong>do</strong> século XIX. Isto é, essesfilmes não se apoiaram na pintura de Turner ou na gravura de Posada, mas lembrarimagens produzidas mais de <strong>um</strong> século antes permite situar melhor em que tradição derepresentação visual se insere o cinema <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário e reconhecer o que se faz hoje nocinema como a realização de <strong>um</strong> desejo sonha<strong>do</strong> muito antes da invenção <strong>do</strong>s meiostécnicos para realizá-lo; e permite verificar que, de certo mo<strong>do</strong>, o cinema <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário,hoje, parece voltar-se para o instante em que foi sonha<strong>do</strong>.2.Rio de Janeiro, 13 de maio de 1988, 13 horas, avenida 13 de maio: os 13 integrantes daConfraria <strong>do</strong> Garoto comemoram a seu mo<strong>do</strong> o aniversário da confraria e o centenário daabolição – diz o narra<strong>do</strong>r de O Fio da Memória sobre imagens que mostram <strong>um</strong> pequenoe anima<strong>do</strong> grupo que se diverte ao som de Cidade Maravilhosa. Como parte da festa,prossegue o narra<strong>do</strong>r, preparam a coroação da rainha <strong>do</strong> centenário da abolição em frenteà Igreja <strong>do</strong> Rosário e de São Benedito. Surge então <strong>um</strong>a imagem que se move para to<strong>do</strong>sos la<strong>do</strong>s, que pega o especta<strong>do</strong>r de assalto, que não deixa tempo para organizar a visão.Em frente ao quadro, a festa da coroação: Fátima Ju – anos antes escolhida a mulatamais bonita <strong>do</strong> Brasil no programa <strong>do</strong> Chacrinha – recebe a faixa e a coroa de rainha <strong>do</strong>centenário da abolição. Por trás da coroação, outra festa na Igreja <strong>do</strong> Rosário, a da escravaAnastácia, que muita gente diz ser responsável por milagres e que, insiste <strong>um</strong> garotoentrevista<strong>do</strong> em sala de aula, foi quem de verdade libertou os escravos. Ela, porque ela éque brigou mesmo pela libertação, ela, a escrava Anastácia, n<strong>um</strong> 13 de maio, seu dia, e nãoa Princesa Isabel, que apenas assinou a lei que pôs fim ao cativeiro.Uma festa rui<strong>do</strong>sa em frente: alguém coloca nos braços de Fátima Ju <strong>um</strong> menino de poucomais de 1 ano e tenta deslocar a coroa da cabeça dela para a da criança, que protesta echora. Outra festa menos barulhenta lá atrás, na igreja. Tu<strong>do</strong> isso se mistura dentro daimagem, e de quan<strong>do</strong> em quan<strong>do</strong> algo que o enquadramento empurra para <strong>um</strong> cantoou para trás salta para o primeiro plano. É assim que, de repente, perdemos Fátima Ju devista e nos encontramos diante de <strong>um</strong>a mulher negra que protesta com força e chama a1 O relato de Turner nem sempre é aceitocomo autêntico. Ele tinha 67 anos aopintar a tempestade de neve, e não háinformações de <strong>um</strong> navio Ariel deixan<strong>do</strong>o porto de Harwich, nem de <strong>um</strong>a estada<strong>do</strong> pintor naquela região. O quadropode ter si<strong>do</strong> <strong>um</strong>a livre invenção a partirda memória de <strong>um</strong>a tempestade deneve que ele atravessara nos Alpes 30anos antes. Com base nela ele desenhoudiversas notas para “fotografar” rapidamenteno papel o que via e pintou em1812 Snow Storm: Hannibal and his ArmyCrossing the Alps. Esses esboços podemter servi<strong>do</strong> também para outra SnowStorm pintada em 1836 na Suíça. Dequalquer mo<strong>do</strong>, a pintura realizada combase em anotações, em esboços feitosao vivo (como <strong>um</strong>a filmagem?) e depoisorganiza<strong>do</strong>s n<strong>um</strong> quadro (como n<strong>um</strong>amontagem?) que não reproduz objetiva,fiel, fotograficamente o aconteci<strong>do</strong>, masexpressa a sensação sentida durante oacontecimento, aproxima sua pintura decerto mo<strong>do</strong> de fazer cinema <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entáriohoje.

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