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Outros Retratos – Ensaiando um panorama do ... - Itaú Cultural

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12 Cláudia Mesquita <strong>Outros</strong> retratos – <strong>Ensaian<strong>do</strong></strong> <strong>um</strong> <strong>panorama</strong> <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário independente no Brasil 13perspectiva que se propõe “interna”. Em termos de abordagem, a entrevista é o carrochefe,revelan<strong>do</strong> o ímpeto de “dar a voz”, de abrir o microfone aos sujeitos da experiência,opção que tem como correspondente a ausência progressiva de voz over interpretativaou totaliza<strong>do</strong>ra (n<strong>um</strong>a espécie de continuação <strong>do</strong> cinema anti-retórico da “voz <strong>do</strong> outro”).É o caso de Santa Marta – Duas Semanas no Morro (1987) e Boca de Lixo (1992), de Eduar<strong>do</strong>Coutinho. Embora possam ser considera<strong>do</strong>s trabalhos autorais, eles se vinculam (em termosde produção) a entidades relacionadas ao movimento <strong>do</strong> vídeo popular 6 . Em ambos, aestratégia de abordagem <strong>do</strong>minante é a entrevista, embora ainda estejamos distantes daradicalidade de seu uso na obra recente de Coutinho. Em Santa Marta, sobretu<strong>do</strong>, ainda seobserva <strong>um</strong> esforço “contextualista”: o projeto de associar as experiências <strong>do</strong>s entrevista<strong>do</strong>sàs de <strong>um</strong> grupo maior, <strong>do</strong> qual fariam parte e ao qual dariam expressão (a “comunidade”).Visivelmente está em pauta a reconstrução <strong>do</strong> espaço público no Brasil, após 20 anos deregime autoritário, e os movimentos sociais organiza<strong>do</strong>s (notadamente as associações demora<strong>do</strong>res) são vistos como atores políticos fundamentais. Para além das relações formaisde trabalho, outras formas de vínculo e de pertencimento entram em cena: a populaçãocarcerária, os mora<strong>do</strong>res de favelas e de ruas, as prostitutas, os trabalha<strong>do</strong>res informais.Entram em cena outros “sujeitos” – que “buscam”, na nova conjuntura, sua identidade(Oliveira, 2001: 11). É, portanto, nos anos 1980, na esteira <strong>do</strong> vídeo popular, que se iniciaa elaboração de “auto-representações” ou representações efetivamente “de dentro” – talbusca será <strong>um</strong>a das tônicas a partir <strong>do</strong>s anos 2000, como veremos adiante 7 .histórica dificuldade de acesso à televisão, embora alguns experimentos recentes sugiram,se não mudanças efetivas de rota, novos percursos possíveis 9 .Anomalias e distorções de merca<strong>do</strong> à parte, creio que a “retomada” <strong>do</strong>c<strong>um</strong>ental já merece<strong>um</strong> balanço estético, sen<strong>do</strong> possível levantar características marcantes e recorrentes. Entreelas, destacaria <strong>um</strong>a tendência à particularização <strong>do</strong> enfoque: em vez de almejarem grandessínteses, os <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entários atuais buscam seus temas pelo recorte mínimo, abordan<strong>do</strong>histórias e expressões circunscritas a pequenos grupos 10 . Nesse senti<strong>do</strong>, é freqüente aabordagem de experiências estritamente individuais, a investigação de singularidades. Há<strong>um</strong>a valorização da subjetividade <strong>do</strong> homem com<strong>um</strong>, <strong>um</strong> investimento no que, para alémdas determinações e normatizações sociais, é expressão “autêntica”, singular (Senra, 2004).Relacionada a essa investigação de subjetividades, há <strong>um</strong>a tônica de abordagem empíricadas situações – via experiência, via “encontro” com os personagens, evitan<strong>do</strong> interpretaçõesprévias. As experiências focalizadas são, de mo<strong>do</strong> geral, tratadas como irredutíveis. Nemtipos, nem exemplos, nem casos raros ou comuns, entre outros casos. O valor está no“registro” e no trato respeitoso com elas, expon<strong>do</strong> suas singularidades – e não no “olho”que vê mais longe, relacionan<strong>do</strong> essas experiências à conjuntura ou à estrutura social.Como bem observou Ismail Xavier (2000: 104), “a vontade agora é explorar mais os sujeitosno que têm de singular (…) evitam-se generalizações, a busca <strong>do</strong>s porquês”.6 Santa Marta foi produzi<strong>do</strong> pela ONGcarioca Instituto de Estu<strong>do</strong>s da Religião(Iser); Boca de Lixo teve apoio <strong>do</strong> Centrode Criação de Imagem Popular (Cecip),<strong>um</strong>a das principais entidades responsáveispela produção de vídeos para osmovimentos sociais no Rio a partir demea<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s anos 1980.7 Um <strong>do</strong>s mais interessantes experimentossurgiu nos anos 1980: o Vídeo nasAldeias. Sua proposta inicial era ofereceraos índios instr<strong>um</strong>entos para criaremsuas próprias imagens, usadas para trocade informações entre diferentes povos.Desde 1998, por meio de oficinas, o projetotem forma<strong>do</strong> realiza<strong>do</strong>res indígenas,que assinam seus próprios <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entáriose são hoje “mestres” nos processosde formação.8 Basta dizer que, de to<strong>do</strong> o montantearrecada<strong>do</strong> com filmes nacionais em2003, 92% correspondeu a produções daGlobo Filmes (todas elas ficcionais).O <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário da “retomada” (1999...): subjetividades e auto-representaçõesConvencionou-se falar em “retomada” <strong>do</strong> cinema brasileiro a partir de mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong>sanos 1990. Será essa periodização aplicável à produção de <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entários? Também sefala em boom <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário. Mas boom em que senti<strong>do</strong>? Convém lembrar que o<strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário continuou sen<strong>do</strong> produzi<strong>do</strong> no Brasil nos anos 1980 e 1990, à margem <strong>do</strong>merca<strong>do</strong> de salas. Por outro la<strong>do</strong>, seria exagera<strong>do</strong> afirmar que o gênero conquistou naatual década <strong>um</strong> merca<strong>do</strong> sóli<strong>do</strong> 8 . Mas, mesmo que o público não seja expressivo, há <strong>um</strong>anovidade considerável, como aponta Carlos Augusto Calil: o fato de o <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário ter“supera<strong>do</strong> a barreira da tela grande” <strong>do</strong> cinema, “janela <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> até então interditadaa este gênero” (Calil, 2005: 159). Desde 1992, foram lança<strong>do</strong>s comercialmente mais de 50longas <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entais (o formato tradicional até os anos 1990 eram os curtas e os médiasmetragens,com raras exceções).Essa intensificação da produção de <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entários para o cinema tem razões objetivas.Há maior agilidade e barateamento da produção pela captação com câmeras digitais emontagem com equipamento não-linear. Também há estímulo objetivo à produção pormeio de <strong>um</strong>a legislação de incentivo ancorada em mecanismos de renúncia fiscal, queatrai patrocina<strong>do</strong>res priva<strong>do</strong>s. Mas o incentivo à produção ainda esbarra no problemada distribuição. Muitos longas <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entais são produzi<strong>do</strong>s, poucos são distribuí<strong>do</strong>ssatisfatoriamente. Por outro la<strong>do</strong>, a produção <strong>do</strong>c<strong>um</strong>ental independente mantém aSanto Forte (1999), que marcou a volta de Coutinho à tela grande, estabeleceu parâmetrosde linguagem bastante influentes. O filme compõe-se da montagem de entrevistascom 11 mora<strong>do</strong>res de <strong>um</strong>a favela na Zona Sul <strong>do</strong> Rio, que conversam com o cineastasobre suas experiências religiosas. Optan<strong>do</strong> pela circunscrição espacial, o cineasta evitaa tipicidade na escolha <strong>do</strong>s personagens. Ênfase total é posta na entrevista (ou conversa)como forma de abordar suas subjetividades. Na montagem, há <strong>um</strong>a minimização <strong>do</strong>srecursos narrativos, bastante reduzi<strong>do</strong>s (evita-se narração, música, imagens de coberturaetc.) para não impor (aos sujeitos da experiência) qualquer tipo de comentário externo.Investin<strong>do</strong> em seqüências individuais, o diretor evita tomar os entrevista<strong>do</strong>s como casos“representativos” ou “tipos” porta<strong>do</strong>res de características que poderiam ser estendidas a<strong>um</strong> grupo maior de indivíduos. Por meio da ênfase em expressões verbais, to<strong>do</strong> o poder éda<strong>do</strong> aos sujeitos na elaboração de senti<strong>do</strong>s e interpretações sobre sua própria e singularexperiência.Outro marco é O Prisioneiro da Grade de Ferro (Auto-<strong>Retratos</strong>), de 2003, de Paulo Sacramento,principal longa da tendência de “auto-representações”, muito presente na produçãoaudiovisual brasileira atual (ainda que nem sempre chegue à tela grande) 11 . O Prisioneiroé resulta<strong>do</strong> de iniciativa independente que promoveu oficinas de vídeo com detentos <strong>do</strong>extinto Carandiru. Já por seu desenho de produção, como escreveu Saraiva (2004: 176), ofilme “provoca reflexões cruciais para o cinema, em especial para o <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário”. A buscapela afirmação <strong>do</strong>s sujeitos da experiência (como “<strong>do</strong>nos <strong>do</strong> discurso”) foi possibilitada,nesse caso, pelo uso de pequenas câmeras digitais, de fácil manuseio. Trata-se, portanto, de9 O DOCTV, por exemplo, representa <strong>um</strong>esforço inédito de relacionamento entrea TV aberta e a produção independente.Parceria entre Ministério da Cultura,TV Cultura e Associação Brasileiradas Emissoras Públicas, Educativas eCulturais (Abepec), o programa, basea<strong>do</strong>em concursos estaduais, temviabiliza<strong>do</strong> a produção regional de <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entáriose sua veiculação em redenacional, sem a “obediência” a modelosde conteú<strong>do</strong> ou formatos prévios.10 Karla Holanda (2004) diagnosticou<strong>um</strong>a tendência à particularização <strong>do</strong>enfoque no <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário contemporâneobrasileiro – tendência que elacompara à meto<strong>do</strong>logia da micro-história,em oposição às macroanálises.11 Há <strong>um</strong>a série de experimentos (viaoficinas de formação) que visam à elaboraçãode representações pelos sujeitosda experiência, aparta<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s meios deprodução e difusão de imagens. Citaria,além <strong>do</strong> Vídeo nas Aldeias, as OficinasKinofor<strong>um</strong>, realizadas na periferia deSão Paulo, desde 2001, pelo FestivalInternacional de Curtas.

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