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Outros Retratos – Ensaiando um panorama do ... - Itaú Cultural

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10 Cláudia Mesquita <strong>Outros</strong> retratos – <strong>Ensaian<strong>do</strong></strong> <strong>um</strong> <strong>panorama</strong> <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário independente no Brasil 11“quem é o <strong>do</strong>no <strong>do</strong> discurso?” (Saraiva, 2004). Com base na análise pormenorizada de23 filmes, o autor identificou diferentes mo<strong>do</strong>s de construção cinematográfica <strong>do</strong> “outrode classe” (“o modelo sociológico ou a voz <strong>do</strong> <strong>do</strong>no”, “a voz <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entarista”, “a voz<strong>do</strong> outro” etc.).Para caracterizar o que chamou de “modelo sociológico”, <strong>do</strong>minante nos anos 1960, oautor toma Viramun<strong>do</strong> (1965), de Geral<strong>do</strong> Sarno, como exemplo paradigmático. Nessefilme, já são utilizadas entrevistas, possibilitadas pela emergência técnica de gravação desom direto. Mas esse uso ainda é bastante restrito, limita<strong>do</strong> pelas condições materiais deprodução e pelo paradigma <strong>do</strong>c<strong>um</strong>ental clássico, ainda <strong>do</strong>minante. A “voz <strong>do</strong> povo” já sefaz presente, portanto, mas ela não é o elemento central, sen<strong>do</strong> mobilizada na obtenção deinformações e ilustrações que apóiam o <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entarista na estruturação de <strong>um</strong> arg<strong>um</strong>ento(via de regra elabora<strong>do</strong> de antemão) sobre a situação real focalizada. De maneira geral,os <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entários desse perío<strong>do</strong> estão interessa<strong>do</strong>s em estabelecer diagnósticos sobresituações sociais abrangentes e candentes. Almeja-se a macroanálise: o homem singular,a situação particular e o local específico são transforma<strong>do</strong>s em “categorias”, pelas quaisse tecem significações genéricas, com a pretensão de il<strong>um</strong>inar dinâmicas sociais queconformam a experiência (de mo<strong>do</strong> geral problemática) de muitos brasileiros. A relaçãoobservada nesse “modelo” é clássica, centrada na intransponível “exterioridade” <strong>do</strong> sujeitoque filma em relação aos objetos filma<strong>do</strong>s, como problematizou Omar (1978: 407): “Parahaver <strong>um</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário é preciso <strong>um</strong>a exterioridade <strong>do</strong> sujeito e <strong>do</strong> objeto. Cada qual de<strong>um</strong> la<strong>do</strong> da linha, sem se tocarem. Só se <strong>do</strong>c<strong>um</strong>enta aquilo de que não se participa”.Segun<strong>do</strong> o julgamento implícito em Cineastas e Imagens <strong>do</strong> Povo, esse “modelo” resultariaem representações autoritárias <strong>do</strong> “outro de classe”, reduzi<strong>do</strong> a objeto de <strong>um</strong>a interpretaçãoexterior, erudita, unívoca. Em resposta aos limites desse “modelo”, Bernardet investigou,em curtas <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entais <strong>do</strong>s anos 1970, experimentos que buscavam “promover” osujeito da experiência à posição de sujeito <strong>do</strong> discurso. Uma dessas vias se materializou noímpeto de “dar a voz”, notável em curtas como Tar<strong>um</strong>ã (1975), de Aloysio Raulino, em quese observa certa “magreza estética” ou “estilo pobre”, que reduz sua forma de expressãoao mínimo, para que “o outro de classe ass<strong>um</strong>a o discurso e não seja abafa<strong>do</strong> pela voz <strong>do</strong>cineasta” (1985: 110). Mas, como escreve Bernardet, “o olhar continua sen<strong>do</strong> o <strong>do</strong> cineasta”(p. 110); não se problematiza a contento o gesto de “dar a voz”, a natureza da mediação(ainda obviamente presente) entre o especta<strong>do</strong>r e a experiência <strong>do</strong> “outro”.Como adverte ao leitor, Bernardet finalizou seu livro antes de assistir a Cabra Marca<strong>do</strong>para Morrer. Lança<strong>do</strong> em 1984, o filme de Eduar<strong>do</strong> Coutinho foi sauda<strong>do</strong> como <strong>um</strong>“divisor de águas”. Entre as primeiras filmagens (interrompidas pelo golpe militar de1964) e o lançamento definitivo, 20 anos se passaram. Cresceu a influência da TV, notávelna retomada <strong>do</strong> projeto, quan<strong>do</strong> Coutinho incorpora a experiência da reportagemtelevisiva, treinada no Globo Repórter. Em 1964, tentou-se a ficção de matriz neo-realista,os camponeses como atores de suas histórias, roteirizadas em cenas e diálogos. Em 1984,<strong>do</strong>mina a entrevista como palco <strong>do</strong> encontro/desencontro (sem roteiro prévio) entre“desiguais”: o cineasta, os camponeses. A entrevista aqui não é simples “depoimento”, nãoé “dar a voz”. Ass<strong>um</strong>ida no filme como diálogo, ela é permanente negociação. Marcan<strong>do</strong>sua voz e presença em cena, Coutinho abre caminho para <strong>um</strong>a reflexão mais amadurecidasobre a elaboração de senti<strong>do</strong>s pelo <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário, pon<strong>do</strong> em crise tanto as ilusões deconhecimento objetivo <strong>do</strong> “modelo sociológico” quanto a falsa neutralidade <strong>do</strong> “dar a voz”:tu<strong>do</strong> é negociação, mediação, elaboração de versões, de discursos. Além de realizar <strong>um</strong>aespécie de “balanço crítico” <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> moderno, Cabra sonda o futuro, estabelecen<strong>do</strong>parâmetros de linguagem que se tornariam muito influentes – tanto em termos deestratégias de abordagem e estilística (<strong>do</strong>mínio da entrevista, ass<strong>um</strong>ida como “palco”,desnaturalizada) quanto de temática (a experiência <strong>do</strong>s “homens ordinários” como focoprivilegia<strong>do</strong> de interesse 4 ).Tempos de vídeo (1984-1999): discursos “de dentro”A carreira de Coutinho é emblemática. Depois <strong>do</strong> sucesso de Cabra Marca<strong>do</strong> para Morrer,o cineasta levaria 15 anos para voltar a produzir <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entários longos em formato 35milímetros, destina<strong>do</strong>s às salas de cinema 5 . Nesse perío<strong>do</strong>, produziu quase exclusivamenteem vídeo. Com a crise <strong>do</strong> cinema brasileiro, a penetração progressiva da TV e a popularização<strong>do</strong>s aparelhos de vídeo, desenvolve-se <strong>um</strong>a significativa produção <strong>do</strong>c<strong>um</strong>ental nesseformato no Brasil. Essa produção não chega ao cinema e se limita a circuitos exibi<strong>do</strong>resespecíficos: festivais, associações, TVs comunitárias. Portanto, diferentemente <strong>do</strong> cinemaficcional (notadamente em longa-metragem), o <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário não “suc<strong>um</strong>biu” à virada<strong>do</strong>s anos 1980 para os 1990. Seguiu seu destino de gênero “menor”, aparta<strong>do</strong> <strong>do</strong> merca<strong>do</strong>de salas, situação que parece se modificar razoavelmente a partir da chamada “retomada”<strong>do</strong> cinema brasileiro, como veremos.De <strong>um</strong> la<strong>do</strong>, a produção <strong>do</strong>c<strong>um</strong>ental <strong>do</strong>s “tempos de vídeo” tem fortes relações com osmovimentos sociais, que surgiram ou reconquistaram espaço com a redemocratização.Desde o começo <strong>do</strong>s anos 1980, desenvolve-se a realização de vídeos em que o exercício<strong>do</strong> “processo” de registro e discussão importa tanto quanto os produtos. No chama<strong>do</strong>“movimento <strong>do</strong> vídeo popular”, não vale a escalada da profissionalização em curso nomerca<strong>do</strong> audiovisual brasileiro daquela época, observan<strong>do</strong>-se <strong>um</strong>a notável imbricaçãoentre produtores de vídeo e atores <strong>do</strong>s movimentos sociais. Não tematizarei aqui talprodução, que por suas particularidades mereceria <strong>um</strong> estu<strong>do</strong> à parte. Não poderia,entretanto, deixar de notar a grande influência (temática, estética e de produção) <strong>do</strong> vídeopopular sobre o <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário independente, n<strong>um</strong> perío<strong>do</strong> em que os movimentossociais davam o tom das representações.É muito freqüente, por exemplo, o projeto de elaborar, “de dentro”, as identidades <strong>do</strong>sgrupos sociais retrata<strong>do</strong>s, em oposição ao estigma; de dar-lhes visibilidade de <strong>um</strong>a4 Sobre a noção de “homem ordinário” esua presença no <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário brasileirocontemporâneo, ver o trabalho de CésarGuimarães (2005).5A exceção parcial é O Fio da Memória,longa em 16 milímetros lança<strong>do</strong> – demo<strong>do</strong> restrito – em 1991.

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