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Outros Retratos – Ensaiando um panorama do ... - Itaú Cultural

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SOBRE FAZER DOCUMENTÁRIOSSão Paulo, 2007


S<strong>um</strong>ário6Apresentação8<strong>Outros</strong> <strong>Retratos</strong> – <strong>Ensaian<strong>do</strong></strong> <strong>um</strong> <strong>panorama</strong> <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário independente no BrasilCláudia Mesquita16A realidade como crítica de cinema – O cinema como crítica da realidadeJosé Carlos Avellar30Tendências e perspectivas <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário contemporâneo: <strong>um</strong> olhar histórico retrospectivoSheila Schvarzman3844Doc<strong>um</strong>entário expandi<strong>do</strong> – Reinvenções <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário na contemporaneidadeFrancisco Elinal<strong>do</strong> TeixeiraO filme-dispositivo no <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário brasileiro contemporâneoConsuelo Lins52Tendências <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário contemporâneoLiliana Sulzbach60A expressão cinematográfica no território <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entalLuiz Eduar<strong>do</strong> Jorge68Doc<strong>um</strong>entário e subjetividade – Uma rua de mão duplaCao Guimarães74O <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário como experiênciaÉrika BauerSobre fazer <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entários / Vários autores. – São Paulo : Itaú <strong>Cultural</strong>, 2007.124 p.Acompanha 1 DVD1. Audiovisual 2. Doc<strong>um</strong>entários 3. Técnica 4. Produção 5. Brasil I. TítuloCDD 791.43829296108Filme livreCarlos Nader<strong>Outros</strong> novos r<strong>um</strong>osPaschoal SamoraR<strong>um</strong>os Itaú <strong>Cultural</strong> Cinema e Vídeo: trajetória e perspectivaRoberto Moreira S. CruzRelatório de viagemFlavia Celidônio


Desde a retomada da produção cinematográfica no país, em mea<strong>do</strong>s da décadade 1990, o <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário cada vez mais tem ocupa<strong>do</strong> espaço nos festivais esalas exibi<strong>do</strong>ras, despertan<strong>do</strong> a atenção <strong>do</strong> público e geran<strong>do</strong> interesse pelasimagens <strong>do</strong> gênero. Em sincronia com essa tendência, o Itaú <strong>Cultural</strong> desenvolveu<strong>um</strong>a política de difusão e fomento à produção de <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entários por meio <strong>do</strong>programa R<strong>um</strong>os Itaú <strong>Cultural</strong> Cinema e Vídeo. Nos últimos dez anos foramrealizadas atividades estimulan<strong>do</strong> o pensamento crítico, crian<strong>do</strong> ações de difusão,exibição e apoian<strong>do</strong> a realização de mais de 35 filmes e vídeos.ApresentaçãoSobre Fazer Doc<strong>um</strong>entários apresenta reflexões e opiniões de cineastas epesquisa<strong>do</strong>res, tratan<strong>do</strong> <strong>do</strong>s processos de realização, tendências e modelos delinguagem e perspectivas históricas sobre essas produções. O livro é o resulta<strong>do</strong> de<strong>um</strong>a série de palestras realizadas em 13 cidades durante o perío<strong>do</strong> de lançamentoe apresentação da 5ª edição <strong>do</strong> programa R<strong>um</strong>os Itaú <strong>Cultural</strong> Cinema e Vídeo.Uma contribuição pontual para o leitor que se interessa pelos r<strong>um</strong>os <strong>do</strong> audiovisualno país, especialmente pelo <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário.


<strong>Outros</strong> <strong>Retratos</strong> – <strong>Ensaian<strong>do</strong></strong> <strong>um</strong> <strong>panorama</strong> <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entárioindependente no BrasilCláudia MesquitaProfessora da Universidade Federal de Santa Catarina. Jornalista formada pela UFMG, mestreem cinema pela ECA/USP e <strong>do</strong>utoranda na mesma instituição, onde desenvolve pesquisasobre representações da experiência religiosa pelo <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário brasileiro. Atuou comopesquisa<strong>do</strong>ra nos <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entários Peões (Eduar<strong>do</strong> Coutinho, 2004) e Em Trânsito (HenriGervaiseau, 2005), e como assistente de direção em Saudade <strong>do</strong> Futuro (Cesar e Marie-ClemencePaes, 2000). Realizou Terra da Lua (1992, com Anna Karina e Tania Caliari), A Folia de Adão (2001)e 5 Mulheres de Paraisópolis (2004).Proponho com este artigo <strong>um</strong> <strong>panorama</strong> breve e sintético da produção <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entalbrasileira a partir <strong>do</strong>s anos 1960, quan<strong>do</strong> ganha força e relevância estética o<strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário independente no país. A idéia é relacionar condições de produçãoe opções estéticas e temáticas ten<strong>do</strong> como recorte a questão da alteridade, ou asrepresentações <strong>do</strong> “outro de classe” 1 . O texto está estrutura<strong>do</strong> segun<strong>do</strong> <strong>um</strong>a periodizaçãoda produção, dividida em três “momentos”: <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário moderno (1960-1984), temposde vídeo (1984-1999) e <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário da “retomada” (1999 em diante). A demarcação dessesperío<strong>do</strong>s não é rigorosa ou exata, mas aproximada, guian<strong>do</strong>-se por marcos simbólicos 2 ; eua utilizo para apresentar características <strong>do</strong>minantes em cada “momento”, bem como parasugerir transformações no decorrer desse percurso histórico.Doc<strong>um</strong>entário moderno (1960-1984): a emergência <strong>do</strong> “outro”Sabemos que, no Brasil, o enfrentamento da alteridade ganhou especial interesse, expressãoe atenção a partir da entrada <strong>do</strong>s anos 1960 3 . Com a emergência <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entárioindependente, entram em pauta, sob olhares críticos, as histórias, os problemas e asexperiências das classes populares. Nesse perío<strong>do</strong>, <strong>do</strong>minaram os curtas e os médiasmetragens,produzi<strong>do</strong>s com baixos orçamentos e com o apoio de instituições que detinhame emprestavam os equipamentos básicos. Quan<strong>do</strong> se fala em <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário modernobrasileiro, portanto, deve-se pensar n<strong>um</strong> contexto não profissionaliza<strong>do</strong> e na circulaçãoextremamente restrita das obras – rejeitadas pelo circuito comercial, elas circulavam emfestivais, cineclubes ou organizações políticas e culturais (Bernardet, 1987: 169).Em Cineastas e Imagens <strong>do</strong> Povo (1985), livro sobre o <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário moderno brasileiro quese tornou referência indispensável, Jean-Claude Bernardet estabeleceu como eixo para oentendimento de sua trajetória <strong>um</strong>a questão posta justamente pela relação de alteridade:1Como aponta Bernardet (1987: 168),<strong>do</strong>is filmes curtos realiza<strong>do</strong>s em 1959 esboçamtendências iniciais para o moderno<strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário brasileiro: de <strong>um</strong> la<strong>do</strong>,O Poeta <strong>do</strong> Castelo (Joaquim Pedro deAndrade) propõe <strong>um</strong> retrato intimista de<strong>um</strong> indivíduo “especial”, o poeta ManuelBandeira; de outro, Arraial <strong>do</strong> Cabo (PauloCésar Saraceni) se volta à abordagemcrítica da problemática vivida por <strong>um</strong>acomunidade pobre de pesca<strong>do</strong>res. Éesse veio aberto pelo segun<strong>do</strong> filme queestará em pauta neste artigo.2Estou ciente das ilusões da “periodização”,tão bem expostas por Bernardet emHistoriografia Clássica <strong>do</strong> Cinema Brasileiro(2004). Será possível seccionar a história<strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário brasileiro em “fatiastemporais que tenham <strong>um</strong>a significação<strong>do</strong>minante intrínseca, bem como <strong>um</strong>asignificação para os diversos elementosque a compõem?” (2004: 59). Apesar <strong>do</strong>slimites <strong>do</strong> méto<strong>do</strong>, que certamente nãodá conta da diversidade da produção emcada “momento”, opto pela periodizaçãopor sua eficácia didática. Aqui, o perío<strong>do</strong><strong>do</strong> “<strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário moderno” inicia-secom Aruanda (Linduarte Noronha, 1960)e se encerra com Cabra Marca<strong>do</strong> paraMorrer (Eduar<strong>do</strong> Coutinho, 1984). O <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entárioda “retomada” inicia-se comSanto Forte (Eduar<strong>do</strong> Coutinho, 1999),situan<strong>do</strong>-se o perío<strong>do</strong> <strong>do</strong>s “tempos devídeo” entre os <strong>do</strong>is marcos (1984-1999).3Antes da emergência <strong>do</strong> cinemanovo, a maioria <strong>do</strong>s <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entáriosproduzi<strong>do</strong>s – mesmo aqueles sobmuitos aspectos notáveis – estavavinculada ao Instituto Nacional deCinema Educativo (Ince) e, portanto,orientada ideologicamente no senti<strong>do</strong>de promover <strong>um</strong>a imagem favorávele harmoniosa <strong>do</strong> país. Sem falar noscurtas e matérias de cinejornais, estimula<strong>do</strong>snos anos 1930 e 1940 pelaexibição compulsória de complementosnacionais nos cinemas (legislaçãode 1932), mas resultan<strong>do</strong>, de mo<strong>do</strong>geral, em propaganda paga por empresase instituições.


10 Cláudia Mesquita <strong>Outros</strong> retratos – <strong>Ensaian<strong>do</strong></strong> <strong>um</strong> <strong>panorama</strong> <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário independente no Brasil 11“quem é o <strong>do</strong>no <strong>do</strong> discurso?” (Saraiva, 2004). Com base na análise pormenorizada de23 filmes, o autor identificou diferentes mo<strong>do</strong>s de construção cinematográfica <strong>do</strong> “outrode classe” (“o modelo sociológico ou a voz <strong>do</strong> <strong>do</strong>no”, “a voz <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entarista”, “a voz<strong>do</strong> outro” etc.).Para caracterizar o que chamou de “modelo sociológico”, <strong>do</strong>minante nos anos 1960, oautor toma Viramun<strong>do</strong> (1965), de Geral<strong>do</strong> Sarno, como exemplo paradigmático. Nessefilme, já são utilizadas entrevistas, possibilitadas pela emergência técnica de gravação desom direto. Mas esse uso ainda é bastante restrito, limita<strong>do</strong> pelas condições materiais deprodução e pelo paradigma <strong>do</strong>c<strong>um</strong>ental clássico, ainda <strong>do</strong>minante. A “voz <strong>do</strong> povo” já sefaz presente, portanto, mas ela não é o elemento central, sen<strong>do</strong> mobilizada na obtenção deinformações e ilustrações que apóiam o <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entarista na estruturação de <strong>um</strong> arg<strong>um</strong>ento(via de regra elabora<strong>do</strong> de antemão) sobre a situação real focalizada. De maneira geral,os <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entários desse perío<strong>do</strong> estão interessa<strong>do</strong>s em estabelecer diagnósticos sobresituações sociais abrangentes e candentes. Almeja-se a macroanálise: o homem singular,a situação particular e o local específico são transforma<strong>do</strong>s em “categorias”, pelas quaisse tecem significações genéricas, com a pretensão de il<strong>um</strong>inar dinâmicas sociais queconformam a experiência (de mo<strong>do</strong> geral problemática) de muitos brasileiros. A relaçãoobservada nesse “modelo” é clássica, centrada na intransponível “exterioridade” <strong>do</strong> sujeitoque filma em relação aos objetos filma<strong>do</strong>s, como problematizou Omar (1978: 407): “Parahaver <strong>um</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário é preciso <strong>um</strong>a exterioridade <strong>do</strong> sujeito e <strong>do</strong> objeto. Cada qual de<strong>um</strong> la<strong>do</strong> da linha, sem se tocarem. Só se <strong>do</strong>c<strong>um</strong>enta aquilo de que não se participa”.Segun<strong>do</strong> o julgamento implícito em Cineastas e Imagens <strong>do</strong> Povo, esse “modelo” resultariaem representações autoritárias <strong>do</strong> “outro de classe”, reduzi<strong>do</strong> a objeto de <strong>um</strong>a interpretaçãoexterior, erudita, unívoca. Em resposta aos limites desse “modelo”, Bernardet investigou,em curtas <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entais <strong>do</strong>s anos 1970, experimentos que buscavam “promover” osujeito da experiência à posição de sujeito <strong>do</strong> discurso. Uma dessas vias se materializou noímpeto de “dar a voz”, notável em curtas como Tar<strong>um</strong>ã (1975), de Aloysio Raulino, em quese observa certa “magreza estética” ou “estilo pobre”, que reduz sua forma de expressãoao mínimo, para que “o outro de classe ass<strong>um</strong>a o discurso e não seja abafa<strong>do</strong> pela voz <strong>do</strong>cineasta” (1985: 110). Mas, como escreve Bernardet, “o olhar continua sen<strong>do</strong> o <strong>do</strong> cineasta”(p. 110); não se problematiza a contento o gesto de “dar a voz”, a natureza da mediação(ainda obviamente presente) entre o especta<strong>do</strong>r e a experiência <strong>do</strong> “outro”.Como adverte ao leitor, Bernardet finalizou seu livro antes de assistir a Cabra Marca<strong>do</strong>para Morrer. Lança<strong>do</strong> em 1984, o filme de Eduar<strong>do</strong> Coutinho foi sauda<strong>do</strong> como <strong>um</strong>“divisor de águas”. Entre as primeiras filmagens (interrompidas pelo golpe militar de1964) e o lançamento definitivo, 20 anos se passaram. Cresceu a influência da TV, notávelna retomada <strong>do</strong> projeto, quan<strong>do</strong> Coutinho incorpora a experiência da reportagemtelevisiva, treinada no Globo Repórter. Em 1964, tentou-se a ficção de matriz neo-realista,os camponeses como atores de suas histórias, roteirizadas em cenas e diálogos. Em 1984,<strong>do</strong>mina a entrevista como palco <strong>do</strong> encontro/desencontro (sem roteiro prévio) entre“desiguais”: o cineasta, os camponeses. A entrevista aqui não é simples “depoimento”, nãoé “dar a voz”. Ass<strong>um</strong>ida no filme como diálogo, ela é permanente negociação. Marcan<strong>do</strong>sua voz e presença em cena, Coutinho abre caminho para <strong>um</strong>a reflexão mais amadurecidasobre a elaboração de senti<strong>do</strong>s pelo <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário, pon<strong>do</strong> em crise tanto as ilusões deconhecimento objetivo <strong>do</strong> “modelo sociológico” quanto a falsa neutralidade <strong>do</strong> “dar a voz”:tu<strong>do</strong> é negociação, mediação, elaboração de versões, de discursos. Além de realizar <strong>um</strong>aespécie de “balanço crítico” <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> moderno, Cabra sonda o futuro, estabelecen<strong>do</strong>parâmetros de linguagem que se tornariam muito influentes – tanto em termos deestratégias de abordagem e estilística (<strong>do</strong>mínio da entrevista, ass<strong>um</strong>ida como “palco”,desnaturalizada) quanto de temática (a experiência <strong>do</strong>s “homens ordinários” como focoprivilegia<strong>do</strong> de interesse 4 ).Tempos de vídeo (1984-1999): discursos “de dentro”A carreira de Coutinho é emblemática. Depois <strong>do</strong> sucesso de Cabra Marca<strong>do</strong> para Morrer,o cineasta levaria 15 anos para voltar a produzir <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entários longos em formato 35milímetros, destina<strong>do</strong>s às salas de cinema 5 . Nesse perío<strong>do</strong>, produziu quase exclusivamenteem vídeo. Com a crise <strong>do</strong> cinema brasileiro, a penetração progressiva da TV e a popularização<strong>do</strong>s aparelhos de vídeo, desenvolve-se <strong>um</strong>a significativa produção <strong>do</strong>c<strong>um</strong>ental nesseformato no Brasil. Essa produção não chega ao cinema e se limita a circuitos exibi<strong>do</strong>resespecíficos: festivais, associações, TVs comunitárias. Portanto, diferentemente <strong>do</strong> cinemaficcional (notadamente em longa-metragem), o <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário não “suc<strong>um</strong>biu” à virada<strong>do</strong>s anos 1980 para os 1990. Seguiu seu destino de gênero “menor”, aparta<strong>do</strong> <strong>do</strong> merca<strong>do</strong>de salas, situação que parece se modificar razoavelmente a partir da chamada “retomada”<strong>do</strong> cinema brasileiro, como veremos.De <strong>um</strong> la<strong>do</strong>, a produção <strong>do</strong>c<strong>um</strong>ental <strong>do</strong>s “tempos de vídeo” tem fortes relações com osmovimentos sociais, que surgiram ou reconquistaram espaço com a redemocratização.Desde o começo <strong>do</strong>s anos 1980, desenvolve-se a realização de vídeos em que o exercício<strong>do</strong> “processo” de registro e discussão importa tanto quanto os produtos. No chama<strong>do</strong>“movimento <strong>do</strong> vídeo popular”, não vale a escalada da profissionalização em curso nomerca<strong>do</strong> audiovisual brasileiro daquela época, observan<strong>do</strong>-se <strong>um</strong>a notável imbricaçãoentre produtores de vídeo e atores <strong>do</strong>s movimentos sociais. Não tematizarei aqui talprodução, que por suas particularidades mereceria <strong>um</strong> estu<strong>do</strong> à parte. Não poderia,entretanto, deixar de notar a grande influência (temática, estética e de produção) <strong>do</strong> vídeopopular sobre o <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário independente, n<strong>um</strong> perío<strong>do</strong> em que os movimentossociais davam o tom das representações.É muito freqüente, por exemplo, o projeto de elaborar, “de dentro”, as identidades <strong>do</strong>sgrupos sociais retrata<strong>do</strong>s, em oposição ao estigma; de dar-lhes visibilidade de <strong>um</strong>a4 Sobre a noção de “homem ordinário” esua presença no <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário brasileirocontemporâneo, ver o trabalho de CésarGuimarães (2005).5A exceção parcial é O Fio da Memória,longa em 16 milímetros lança<strong>do</strong> – demo<strong>do</strong> restrito – em 1991.


12 Cláudia Mesquita <strong>Outros</strong> retratos – <strong>Ensaian<strong>do</strong></strong> <strong>um</strong> <strong>panorama</strong> <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário independente no Brasil 13perspectiva que se propõe “interna”. Em termos de abordagem, a entrevista é o carrochefe,revelan<strong>do</strong> o ímpeto de “dar a voz”, de abrir o microfone aos sujeitos da experiência,opção que tem como correspondente a ausência progressiva de voz over interpretativaou totaliza<strong>do</strong>ra (n<strong>um</strong>a espécie de continuação <strong>do</strong> cinema anti-retórico da “voz <strong>do</strong> outro”).É o caso de Santa Marta – Duas Semanas no Morro (1987) e Boca de Lixo (1992), de Eduar<strong>do</strong>Coutinho. Embora possam ser considera<strong>do</strong>s trabalhos autorais, eles se vinculam (em termosde produção) a entidades relacionadas ao movimento <strong>do</strong> vídeo popular 6 . Em ambos, aestratégia de abordagem <strong>do</strong>minante é a entrevista, embora ainda estejamos distantes daradicalidade de seu uso na obra recente de Coutinho. Em Santa Marta, sobretu<strong>do</strong>, ainda seobserva <strong>um</strong> esforço “contextualista”: o projeto de associar as experiências <strong>do</strong>s entrevista<strong>do</strong>sàs de <strong>um</strong> grupo maior, <strong>do</strong> qual fariam parte e ao qual dariam expressão (a “comunidade”).Visivelmente está em pauta a reconstrução <strong>do</strong> espaço público no Brasil, após 20 anos deregime autoritário, e os movimentos sociais organiza<strong>do</strong>s (notadamente as associações demora<strong>do</strong>res) são vistos como atores políticos fundamentais. Para além das relações formaisde trabalho, outras formas de vínculo e de pertencimento entram em cena: a populaçãocarcerária, os mora<strong>do</strong>res de favelas e de ruas, as prostitutas, os trabalha<strong>do</strong>res informais.Entram em cena outros “sujeitos” – que “buscam”, na nova conjuntura, sua identidade(Oliveira, 2001: 11). É, portanto, nos anos 1980, na esteira <strong>do</strong> vídeo popular, que se iniciaa elaboração de “auto-representações” ou representações efetivamente “de dentro” – talbusca será <strong>um</strong>a das tônicas a partir <strong>do</strong>s anos 2000, como veremos adiante 7 .histórica dificuldade de acesso à televisão, embora alguns experimentos recentes sugiram,se não mudanças efetivas de rota, novos percursos possíveis 9 .Anomalias e distorções de merca<strong>do</strong> à parte, creio que a “retomada” <strong>do</strong>c<strong>um</strong>ental já merece<strong>um</strong> balanço estético, sen<strong>do</strong> possível levantar características marcantes e recorrentes. Entreelas, destacaria <strong>um</strong>a tendência à particularização <strong>do</strong> enfoque: em vez de almejarem grandessínteses, os <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entários atuais buscam seus temas pelo recorte mínimo, abordan<strong>do</strong>histórias e expressões circunscritas a pequenos grupos 10 . Nesse senti<strong>do</strong>, é freqüente aabordagem de experiências estritamente individuais, a investigação de singularidades. Há<strong>um</strong>a valorização da subjetividade <strong>do</strong> homem com<strong>um</strong>, <strong>um</strong> investimento no que, para alémdas determinações e normatizações sociais, é expressão “autêntica”, singular (Senra, 2004).Relacionada a essa investigação de subjetividades, há <strong>um</strong>a tônica de abordagem empíricadas situações – via experiência, via “encontro” com os personagens, evitan<strong>do</strong> interpretaçõesprévias. As experiências focalizadas são, de mo<strong>do</strong> geral, tratadas como irredutíveis. Nemtipos, nem exemplos, nem casos raros ou comuns, entre outros casos. O valor está no“registro” e no trato respeitoso com elas, expon<strong>do</strong> suas singularidades – e não no “olho”que vê mais longe, relacionan<strong>do</strong> essas experiências à conjuntura ou à estrutura social.Como bem observou Ismail Xavier (2000: 104), “a vontade agora é explorar mais os sujeitosno que têm de singular (…) evitam-se generalizações, a busca <strong>do</strong>s porquês”.6 Santa Marta foi produzi<strong>do</strong> pela ONGcarioca Instituto de Estu<strong>do</strong>s da Religião(Iser); Boca de Lixo teve apoio <strong>do</strong> Centrode Criação de Imagem Popular (Cecip),<strong>um</strong>a das principais entidades responsáveispela produção de vídeos para osmovimentos sociais no Rio a partir demea<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s anos 1980.7 Um <strong>do</strong>s mais interessantes experimentossurgiu nos anos 1980: o Vídeo nasAldeias. Sua proposta inicial era ofereceraos índios instr<strong>um</strong>entos para criaremsuas próprias imagens, usadas para trocade informações entre diferentes povos.Desde 1998, por meio de oficinas, o projetotem forma<strong>do</strong> realiza<strong>do</strong>res indígenas,que assinam seus próprios <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entáriose são hoje “mestres” nos processosde formação.8 Basta dizer que, de to<strong>do</strong> o montantearrecada<strong>do</strong> com filmes nacionais em2003, 92% correspondeu a produções daGlobo Filmes (todas elas ficcionais).O <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário da “retomada” (1999...): subjetividades e auto-representaçõesConvencionou-se falar em “retomada” <strong>do</strong> cinema brasileiro a partir de mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong>sanos 1990. Será essa periodização aplicável à produção de <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entários? Também sefala em boom <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário. Mas boom em que senti<strong>do</strong>? Convém lembrar que o<strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário continuou sen<strong>do</strong> produzi<strong>do</strong> no Brasil nos anos 1980 e 1990, à margem <strong>do</strong>merca<strong>do</strong> de salas. Por outro la<strong>do</strong>, seria exagera<strong>do</strong> afirmar que o gênero conquistou naatual década <strong>um</strong> merca<strong>do</strong> sóli<strong>do</strong> 8 . Mas, mesmo que o público não seja expressivo, há <strong>um</strong>anovidade considerável, como aponta Carlos Augusto Calil: o fato de o <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário ter“supera<strong>do</strong> a barreira da tela grande” <strong>do</strong> cinema, “janela <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> até então interditadaa este gênero” (Calil, 2005: 159). Desde 1992, foram lança<strong>do</strong>s comercialmente mais de 50longas <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entais (o formato tradicional até os anos 1990 eram os curtas e os médiasmetragens,com raras exceções).Essa intensificação da produção de <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entários para o cinema tem razões objetivas.Há maior agilidade e barateamento da produção pela captação com câmeras digitais emontagem com equipamento não-linear. Também há estímulo objetivo à produção pormeio de <strong>um</strong>a legislação de incentivo ancorada em mecanismos de renúncia fiscal, queatrai patrocina<strong>do</strong>res priva<strong>do</strong>s. Mas o incentivo à produção ainda esbarra no problemada distribuição. Muitos longas <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entais são produzi<strong>do</strong>s, poucos são distribuí<strong>do</strong>ssatisfatoriamente. Por outro la<strong>do</strong>, a produção <strong>do</strong>c<strong>um</strong>ental independente mantém aSanto Forte (1999), que marcou a volta de Coutinho à tela grande, estabeleceu parâmetrosde linguagem bastante influentes. O filme compõe-se da montagem de entrevistascom 11 mora<strong>do</strong>res de <strong>um</strong>a favela na Zona Sul <strong>do</strong> Rio, que conversam com o cineastasobre suas experiências religiosas. Optan<strong>do</strong> pela circunscrição espacial, o cineasta evitaa tipicidade na escolha <strong>do</strong>s personagens. Ênfase total é posta na entrevista (ou conversa)como forma de abordar suas subjetividades. Na montagem, há <strong>um</strong>a minimização <strong>do</strong>srecursos narrativos, bastante reduzi<strong>do</strong>s (evita-se narração, música, imagens de coberturaetc.) para não impor (aos sujeitos da experiência) qualquer tipo de comentário externo.Investin<strong>do</strong> em seqüências individuais, o diretor evita tomar os entrevista<strong>do</strong>s como casos“representativos” ou “tipos” porta<strong>do</strong>res de características que poderiam ser estendidas a<strong>um</strong> grupo maior de indivíduos. Por meio da ênfase em expressões verbais, to<strong>do</strong> o poder éda<strong>do</strong> aos sujeitos na elaboração de senti<strong>do</strong>s e interpretações sobre sua própria e singularexperiência.Outro marco é O Prisioneiro da Grade de Ferro (Auto-<strong>Retratos</strong>), de 2003, de Paulo Sacramento,principal longa da tendência de “auto-representações”, muito presente na produçãoaudiovisual brasileira atual (ainda que nem sempre chegue à tela grande) 11 . O Prisioneiroé resulta<strong>do</strong> de iniciativa independente que promoveu oficinas de vídeo com detentos <strong>do</strong>extinto Carandiru. Já por seu desenho de produção, como escreveu Saraiva (2004: 176), ofilme “provoca reflexões cruciais para o cinema, em especial para o <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário”. A buscapela afirmação <strong>do</strong>s sujeitos da experiência (como “<strong>do</strong>nos <strong>do</strong> discurso”) foi possibilitada,nesse caso, pelo uso de pequenas câmeras digitais, de fácil manuseio. Trata-se, portanto, de9 O DOCTV, por exemplo, representa <strong>um</strong>esforço inédito de relacionamento entrea TV aberta e a produção independente.Parceria entre Ministério da Cultura,TV Cultura e Associação Brasileiradas Emissoras Públicas, Educativas eCulturais (Abepec), o programa, basea<strong>do</strong>em concursos estaduais, temviabiliza<strong>do</strong> a produção regional de <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entáriose sua veiculação em redenacional, sem a “obediência” a modelosde conteú<strong>do</strong> ou formatos prévios.10 Karla Holanda (2004) diagnosticou<strong>um</strong>a tendência à particularização <strong>do</strong>enfoque no <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário contemporâneobrasileiro – tendência que elacompara à meto<strong>do</strong>logia da micro-história,em oposição às macroanálises.11 Há <strong>um</strong>a série de experimentos (viaoficinas de formação) que visam à elaboraçãode representações pelos sujeitosda experiência, aparta<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s meios deprodução e difusão de imagens. Citaria,além <strong>do</strong> Vídeo nas Aldeias, as OficinasKinofor<strong>um</strong>, realizadas na periferia deSão Paulo, desde 2001, pelo FestivalInternacional de Curtas.


14 Cláudia Mesquita <strong>Outros</strong> retratos – <strong>Ensaian<strong>do</strong></strong> <strong>um</strong> <strong>panorama</strong> <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário independente no Brasil 15“<strong>um</strong>a formulação criativa das potencialidades trazidas pela nova tecnologia” (Saraiva, 2004:176). Ao final, é notável a desmistificação <strong>do</strong> espaço <strong>do</strong> Carandiru promovida por esses“auto-retratos”. O que aparece é <strong>um</strong> presídio bem menos violento e mais cotidiano <strong>do</strong> quese poderia imaginar: a prisão como <strong>um</strong>a imensa cidade feita e refeita de práticas variadas(artesanato, serviços, comércio), compon<strong>do</strong> “<strong>um</strong> teci<strong>do</strong> social que parece prescindir dainstituição” (Xavier, 2004: 12).Por fim, chamaria a atenção para Estamira (2005), de Marcos Pra<strong>do</strong>, <strong>um</strong> longo retrato <strong>do</strong>personagem de mesmo nome, trabalha<strong>do</strong>ra de <strong>um</strong> lixão na periferia <strong>do</strong> Grande Rio. Ofilme talvez possa ser visto como <strong>um</strong>a síntese entre a busca de formas mais plásticas(n<strong>um</strong>a tendência <strong>do</strong>c<strong>um</strong>ental contemporânea que dialoga com a videoarte 12 ) e a atençãoao encontro praticada por Eduar<strong>do</strong> Coutinho. O resulta<strong>do</strong> é surpreendente. Não apenas<strong>um</strong> trabalho de apreensão e expressão estética <strong>do</strong> ambiente e <strong>do</strong> contexto, mas de longoe denso relacionamento com o personagem, recorridas vezes visita<strong>do</strong> pela equipe degravação. Com seu esforço de contaminação pela subjetividade arrebatada e irredutívelde <strong>um</strong>a mulher socialmente à margem, Estamira diz muito sobre as questões e enfoquesprivilegia<strong>do</strong>s pelo <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário brasileiro atual, em seu renova<strong>do</strong> enfrentamento daalteridade de classe e <strong>do</strong>s abismos sociais.Referências bibliográficas12Como se nota nos trabalhos de MaríliaRocha (Aboio, 2005) e Cao Guimarães(O Fim <strong>do</strong> sem Fim, 2001, com BetoMagalhães e Lucas Bambozzi; A Alma <strong>do</strong>Osso, 2004; e Acidente, 2006, com PabloLobato).BERNARDE, Jean-Claude. Cineastas e imagens <strong>do</strong> povo. São Paulo: Brasiliense, 1985.________. 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16 17A realidade como crítica de cinema – O cinema comocrítica da realidadeJosé Carlos AvellarCrítico de cinema, autor de ensaios sobre cinema brasileiro e latino-americano, entre eles:Glauber Rocha, Madri, Editorial Cátedra, 2002; A Ponte Clandestina, Teorias de Cinema na AméricaLatina, São Paulo, Editora 34, 1996; Deus e o Diabo na Terra <strong>do</strong> Sol, Rio de Janeiro, Rocco, 1995;O Chão da Palavra: Cinema e Literatura no Brasil, Editorial Prêmio, 1994. Foi diretor cultural daEmbrafilme (1985-1987) e diretor-presidente da Riofilme (1994-2000). Atualmente é consultorde cinema <strong>do</strong> Programa Petrobras <strong>Cultural</strong>.1No começo <strong>do</strong> século XIX, quase no mesmo instante em que Nicéphore Niépceinventava a fotografia comportan<strong>do</strong>-se como <strong>um</strong> pintor, deixan<strong>do</strong>-se ficar longo. tempo diante da paisagem (exageremos <strong>um</strong> pouco: a objetiva da câmera ficou abertadurante to<strong>do</strong> <strong>um</strong> dia de sol para que se pudesse gravar a imagem), John Constable pintavacomportan<strong>do</strong>-se como se fosse <strong>um</strong> fotógrafo (exageremos <strong>um</strong> pouco: fazen<strong>do</strong> <strong>um</strong> quadron<strong>um</strong>a fração de segun<strong>do</strong>), registran<strong>do</strong> instantâneos de nuvens. Óleo ou aquarela sobrepapel, madeira ou tela, pouco mais que esboços para as paisagens que iria pintar mais tarde,quase fotos jornalísticas que traziam <strong>um</strong>a espécie de legenda com local, dia, mês, ano, horae condições meteorológicas <strong>do</strong> instante registra<strong>do</strong>; estu<strong>do</strong> de nuvens com horizonte deárvores, meio-dia, depois da chuva, <strong>um</strong> pouco de vento (Cloud study with an horizon of trees:noon, September 27, 1821, after rain, wind). Dez da manhã, olhan<strong>do</strong> para o sudeste, nuvenscinzas corren<strong>do</strong> rápidas sobre o leito de <strong>um</strong> céu tingi<strong>do</strong> de amarelo (5th september, 1821, 10o‘clock, morning, looking south-east, very bright and fresh greys clouds running fast over a yellowbed, about half way in the sky). Constable antecipava assim o que primeiro a fotografia, que iasen<strong>do</strong> inventada então, e depois o cinema, a fotografia em movimento inventada no fim <strong>do</strong>século, iriam fazer adiante: <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário, <strong>um</strong> registro (objetivo subjetivo) <strong>do</strong> que se passano instante em que se passa. O cinema, e em particular o filme <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário, nasceu comoexpressão desse desejo que se formulou primeiro na pintura.Entre a pintura e o cinema existe <strong>um</strong>a relação semelhante à que se encontra entre asnuvens pintadas muito rapidamente por Constable para preparar as paisagens que eleiria produzir mais tarde – a pintura, de certo mo<strong>do</strong>, esboçou o que o cinema iria fazerem seguida. Se examinarmos a questão <strong>do</strong> ponto de vista <strong>do</strong> cinema <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário,interessa<strong>do</strong>s em examinar a relação que se estabeleceu entre o filme <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário e ofilme de ficção, encontraremos na experiência de Constable <strong>um</strong>a antecipação <strong>do</strong> que viriaa ocorrer no cinema brasileiro (não apenas, mas especialmente no cinema brasileiro) no


18 José Carlos Avellar A realidade como crítica de cinema – O cinema como crítica da realidade 19começo da década de 1960: o <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário (como as rápidas anotações ao vivo dasnuvens) como esboço necessário para a ficção (as paisagens pintadas em estúdio).De certo mo<strong>do</strong>, a fotografia e o cinema concretizaram o que já vinha sen<strong>do</strong> esboça<strong>do</strong>pela pintura desde o começo <strong>do</strong> século XIX. Francisco de Goya, por exemplo: a seqüênciafeita entre 1806 e 1807 (no acervo <strong>do</strong> Art Institute de Chicago), El Maragato Amenazacon el Fusil a Fray Pedro de Zaldivia, e as outras cinco telas que complementam a ação daprimeira – frei desvia o fuzil; frei luta para desarmar o Maragato; frei golpeia o Maragatocom o fuzil; frei dispara o fuzil; e frei amarra o Maragato. O que temos aqui é <strong>um</strong> filme<strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário antes <strong>do</strong> cinema, tanto nesses seis quadros como nos <strong>do</strong>is pinta<strong>do</strong>s em1814 (no acervo <strong>do</strong> Museu <strong>do</strong> Pra<strong>do</strong> de Madri): El Dos de Mayo de 1808 en Madrid, la Luchacon los Mamelucos e El Tres de Mayo de 1808 en Madrid: los Fusiliamentos de la Montaña delPríncipe Pío. Doc<strong>um</strong>entário antes <strong>do</strong> cinema são também as gravuras que José GuadalupePosada publicou da Gaceta Callejera <strong>do</strong> México no fim <strong>do</strong> século XIX, como Ballazos enCalle de San Hipolito, ou El Motín de los Estudiantes en Mayo de 1892, ou ainda Fusiliamentodel Capitán Clo<strong>do</strong>miro Cota.Outro exemplo de representação visual que tem algo a ver com o que se concretizaria naprática <strong>do</strong> cinema <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário é o quadro que J. M. W. Turner pintou em 1842 e quesurpreende primeiro pela indicação precisa em seu longo título: Snow Storm – Steamboatoff a Harbour’s Mouth Making Signals in Shallow Water, and Going to the Lead. The Author Wasin this Storm on the Night the Ariel left Harwich. Algo que surpreende ainda mais quan<strong>do</strong>o título se liga à imagem, pois a pintura parece contrariar a promessa de <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entáriocontida no seu meio título, meio legenda. Nenh<strong>um</strong> detalhe da tempestade de neveimobiliza<strong>do</strong> para <strong>um</strong>a observação minuciosa, nenh<strong>um</strong>a forma claramente identificávelcomo o navio Ariel que sinaliza ao tentar deixar o porto. Somente manchas pouco precisasque compõem <strong>um</strong> ritmo nervoso. Talvez <strong>um</strong> traço fino no centro <strong>do</strong> quadro possa sercompreendi<strong>do</strong> como o mastro de <strong>um</strong> navio, mas, de fato, nada <strong>do</strong> registro preciso que sepoderia esperar <strong>do</strong> relato de alguém que esteve lá, na tempestade, amarra<strong>do</strong> no mastro<strong>do</strong> navio, como diz o pintor, que garante ter esta<strong>do</strong> lá: “Pedi aos marinheiros que meamarrassem ao mastro <strong>do</strong> vapor para contemplar a tempestade. Fiquei amarra<strong>do</strong> durantequatro horas, cheguei a achar que não iria sobreviver; mas só pensava em registrar atempestade se porventura saísse vivo dela”.Registrar, <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entar, sim, mas registrar de outro mo<strong>do</strong>, <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entar outra questão. Atempestade de neve em Harwich na noite em que o Ariel deixou o porto foi pintada noexato momento em que os franceses Nicéphore Niépce, Louis Daguèrre e Hippolyte Bayard,o alemão Peter Voitgländer e o inglês William Fox Talbot aperfeiçoavam os processos, asobjetivas e os aparelhos fotográficos. Consciente ou não (pouco importa) <strong>do</strong> registroessencialmente objetivo da aparência das coisas por meio da fotografia, Turner pintamovi<strong>do</strong> por <strong>um</strong>a vontade de <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entar de <strong>um</strong> mo<strong>do</strong> não (ou além <strong>do</strong>) fotográfico: “Nãopintei a tempestade para que ela pudesse ser compreendida, mas porque queria mostraralgo pareci<strong>do</strong> com esse espetáculo. Queria mostrar o que se sente com <strong>um</strong> tal espetáculo” 1 .A questão levantada por Turner na metade <strong>do</strong> século XIX é, a rigor, a mesma que alimentaa discussão em torno da prática <strong>do</strong> cinema <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário desde a metade <strong>do</strong> século XX:como ir além <strong>do</strong> registro puramente (fotográfico? jornalístico?) da superfície, da aparênciavisual primeira das coisas? Como levar o especta<strong>do</strong>r a sentir mais <strong>do</strong> que simplesmentever o que se passa? Como fazer da imagem <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário algo que mostre a realidadenão exatamente como ela é, mas como foi percebida e sentida pelo realiza<strong>do</strong>r?Talvez seja possível dizer que, em Rocha que Voa (2002), Eryk Rocha pinta sua imagemassim como Turner fotografou sua tempestade de neve. E que em Ônibus 174 (2002) JoséPadilha grava <strong>um</strong> incidente trágico da vida <strong>do</strong> Rio de Janeiro tal como Posada fotografoutiroteios, motins e fuzilamentos em sua gazeta de rua <strong>do</strong> fim <strong>do</strong> século XIX. Isto é, essesfilmes não se apoiaram na pintura de Turner ou na gravura de Posada, mas lembrarimagens produzidas mais de <strong>um</strong> século antes permite situar melhor em que tradição derepresentação visual se insere o cinema <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário e reconhecer o que se faz hoje nocinema como a realização de <strong>um</strong> desejo sonha<strong>do</strong> muito antes da invenção <strong>do</strong>s meiostécnicos para realizá-lo; e permite verificar que, de certo mo<strong>do</strong>, o cinema <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário,hoje, parece voltar-se para o instante em que foi sonha<strong>do</strong>.2.Rio de Janeiro, 13 de maio de 1988, 13 horas, avenida 13 de maio: os 13 integrantes daConfraria <strong>do</strong> Garoto comemoram a seu mo<strong>do</strong> o aniversário da confraria e o centenário daabolição – diz o narra<strong>do</strong>r de O Fio da Memória sobre imagens que mostram <strong>um</strong> pequenoe anima<strong>do</strong> grupo que se diverte ao som de Cidade Maravilhosa. Como parte da festa,prossegue o narra<strong>do</strong>r, preparam a coroação da rainha <strong>do</strong> centenário da abolição em frenteà Igreja <strong>do</strong> Rosário e de São Benedito. Surge então <strong>um</strong>a imagem que se move para to<strong>do</strong>sos la<strong>do</strong>s, que pega o especta<strong>do</strong>r de assalto, que não deixa tempo para organizar a visão.Em frente ao quadro, a festa da coroação: Fátima Ju – anos antes escolhida a mulatamais bonita <strong>do</strong> Brasil no programa <strong>do</strong> Chacrinha – recebe a faixa e a coroa de rainha <strong>do</strong>centenário da abolição. Por trás da coroação, outra festa na Igreja <strong>do</strong> Rosário, a da escravaAnastácia, que muita gente diz ser responsável por milagres e que, insiste <strong>um</strong> garotoentrevista<strong>do</strong> em sala de aula, foi quem de verdade libertou os escravos. Ela, porque ela éque brigou mesmo pela libertação, ela, a escrava Anastácia, n<strong>um</strong> 13 de maio, seu dia, e nãoa Princesa Isabel, que apenas assinou a lei que pôs fim ao cativeiro.Uma festa rui<strong>do</strong>sa em frente: alguém coloca nos braços de Fátima Ju <strong>um</strong> menino de poucomais de 1 ano e tenta deslocar a coroa da cabeça dela para a da criança, que protesta echora. Outra festa menos barulhenta lá atrás, na igreja. Tu<strong>do</strong> isso se mistura dentro daimagem, e de quan<strong>do</strong> em quan<strong>do</strong> algo que o enquadramento empurra para <strong>um</strong> cantoou para trás salta para o primeiro plano. É assim que, de repente, perdemos Fátima Ju devista e nos encontramos diante de <strong>um</strong>a mulher negra que protesta com força e chama a1 O relato de Turner nem sempre é aceitocomo autêntico. Ele tinha 67 anos aopintar a tempestade de neve, e não háinformações de <strong>um</strong> navio Ariel deixan<strong>do</strong>o porto de Harwich, nem de <strong>um</strong>a estada<strong>do</strong> pintor naquela região. O quadropode ter si<strong>do</strong> <strong>um</strong>a livre invenção a partirda memória de <strong>um</strong>a tempestade deneve que ele atravessara nos Alpes 30anos antes. Com base nela ele desenhoudiversas notas para “fotografar” rapidamenteno papel o que via e pintou em1812 Snow Storm: Hannibal and his ArmyCrossing the Alps. Esses esboços podemter servi<strong>do</strong> também para outra SnowStorm pintada em 1836 na Suíça. Dequalquer mo<strong>do</strong>, a pintura realizada combase em anotações, em esboços feitosao vivo (como <strong>um</strong>a filmagem?) e depoisorganiza<strong>do</strong>s n<strong>um</strong> quadro (como n<strong>um</strong>amontagem?) que não reproduz objetiva,fiel, fotograficamente o aconteci<strong>do</strong>, masexpressa a sensação sentida durante oacontecimento, aproxima sua pintura decerto mo<strong>do</strong> de fazer cinema <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entáriohoje.


20 José Carlos Avellar A realidade como crítica de cinema – O cinema como crítica da realidade 21atenção de to<strong>do</strong>s: “está prova<strong>do</strong>, a escravidão nunca que acabou!”. Ela fala com voz firme,se movimenta enquanto fala. A mistura indisciplinada – o riso da rainha, o choro <strong>do</strong> garotocom a coroa enfiada na cabeça, a música alegre, o vozeirão zanga<strong>do</strong> da mulher negra, osorriso de ironia de quem passa mais interessa<strong>do</strong> na rainha meio nua <strong>do</strong> que na festa, aseriedade que passa com olhos só para a escrava Anastácia, o riso malandro de quem estásó queren<strong>do</strong> ser filma<strong>do</strong> –, a aparente desordem da imagem segue sua ordem.A mulher negra segue protestan<strong>do</strong>: “o preconceito não vai acabar”; a rainha coroada,“magricela, parece mais homem que mulher”; ela “prova e reprova com toda a confiança<strong>do</strong> fun<strong>do</strong> da alma que o branco não gosta mesmo de preto”; e segue com frases queparam na metade porque <strong>um</strong> homem branco entra na conversa, decidi<strong>do</strong> a mostrar quenão existe preconceito de cor no Brasil. Ele corta a fala da mulher negra, mas também nãoconsegue concluir o que queria dizer. “Cinqüenta e <strong>um</strong> por cento da população brasileira...”,tenta <strong>um</strong>a primeira vez sem conseguir atenção. Tenta de novo, e de novo, e de novo,mas ninguém parece interessa<strong>do</strong> em ouvi-lo. A mulher negra não lhe dá ouvi<strong>do</strong>s, diz quenão está falan<strong>do</strong> com ele, que está falan<strong>do</strong> com o repórter. As pessoas em volta entramna discussão, muita gente fala ao mesmo tempo, ninguém escuta nada. N<strong>um</strong> instante,aproveitan<strong>do</strong> <strong>um</strong>a brecha na gritaria, o homem branco solta a voz e quase completa oque queria dizer: “Cinqüenta e <strong>um</strong> por cento da população brasileira tem a raça negra.Em qualquer companhia, quem tem 51% das ações controla a empresa. Se o negro nãoconsegue controlar o país...” Ao que parece ele ia dizer algo como “é por falta de capacidade”ou “é por falta de organização”, ou <strong>um</strong> qualquer outro “por falta de”. Não consegue. Aí,sim, toda a gente em volta interfere rui<strong>do</strong>samente. Adivinham a conclusão da frase e...exatamente aí, quan<strong>do</strong> a ação começa a esquentar mesmo, a cena se interrompe, o filmemuda de assunto.Esse fragmento é insuficiente para dar <strong>um</strong>a idéia precisa <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário que Eduar<strong>do</strong>Coutinho iniciou às vésperas <strong>do</strong> 13 de maio de 1988 e terminou três anos depois, mas é <strong>um</strong>bom exemplo da narração fragmentada e aberta para to<strong>do</strong>s os la<strong>do</strong>s de O Fio da Memória.Esse mo<strong>do</strong> de narrar aparece como parte da coisa narrada, como <strong>um</strong>a representação <strong>do</strong>mo<strong>do</strong> de viver imposto ao negro.Primeiro sinal da fragmentação: <strong>do</strong>is diferentes narra<strong>do</strong>res. Uma só narração, mas <strong>do</strong>isnarra<strong>do</strong>res. O primeiro – o texto é de Coutinho, a voz é de Ferreira Gullar – dá informaçõesimediatas, introduz as diversas situações, como a festa da Confraria <strong>do</strong> Garoto. Diz, porexemplo, que com a abolição o negro, analfabeto, desacultura<strong>do</strong>, sem cidadania e semfamília, teve de lutar contra a desagregação e reunir os estilhaços de sua identidade. Esseprimeiro narra<strong>do</strong>r volta mais tarde para anunciar a marcha de militantes <strong>do</strong> movimentonegro <strong>do</strong> Rio de Janeiro, no dia 20 de novembro, aniversário da morte de Z<strong>um</strong>bi <strong>do</strong>sPalmares e Dia da Consciência Negra. Volta também, sempre como <strong>um</strong>a voz de poucaspalavras, para apresentar brevemente os entrevista<strong>do</strong>s, entre outros Manuel Deo<strong>do</strong>roMaciel, ex-escravo de 120 anos de idade; a família que criou o Cacique de Ramos, osmenores <strong>do</strong> centro de triagem de meninas aban<strong>do</strong>nadas de Charitas, em Niterói; e, ainda,é ele que nos apresenta o segun<strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r, Gabriel Joaquim <strong>do</strong>s Santos, que viveu nodistrito de Vinhadeiro, município de São Pedro d’Aldeia, quase divisa com Cabo Frio, amenos de 200 quilômetros <strong>do</strong> Rio de Janeiro, nasceu em 13 de maio de 1892 e morreuno começo de 1985, aos 92 anos. O primeiro narra<strong>do</strong>r apresenta e praticamente cede olugar ao segun<strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r. A voz é de Milton Gonçalves, o texto é de <strong>um</strong> depoimentograva<strong>do</strong> no fim <strong>do</strong>s anos 1970 e <strong>do</strong>s cadernos em que Gabriel anotava (como quem faz<strong>um</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário?) alternadamente fatos de seu cotidiano, da história da região e dahistória <strong>do</strong> Brasil.Gabriel conta que, por volta de 1926, depois de entrar para a Igreja Batista, conheceu “<strong>um</strong>menino bem sabi<strong>do</strong>” que ensinou “alg<strong>um</strong>a coisa de leitura” para ele n<strong>um</strong>a “cartilha decriança” e que desde então começou a anotar o que se passava n<strong>um</strong> caderninho. Fala detu<strong>do</strong>, e a informação mais importante não vem propriamente <strong>do</strong>s fatos narra<strong>do</strong>s, mas deseu mo<strong>do</strong> descontínuo de narrar, que salta de <strong>um</strong>a frase para outra e de <strong>um</strong> fato a outropor meio de <strong>um</strong> corte seco. É esse segun<strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r, Gabriel, quem determina o modelode construção <strong>do</strong> filme e o sentimento que o comanda, porque, em alg<strong>um</strong> momento <strong>do</strong>processo de realização, o homem com a câmera viu a vida de Gabriel, seu jeito de falar e defazer as coisas, como <strong>um</strong>a imagem da condição <strong>do</strong> negro brasileiro que constrói seu espaçoà margem <strong>do</strong> país, tal como Gabriel construiu sua Casa da Flor com pedaços de coisasapanhadas no lixo: “Quan<strong>do</strong> acabei a obra da casinha, aí veio <strong>um</strong> pensamento para enfeitaressa casinha. Enfeitar de que maneira?, pensei. A gente não tinha dinheiro para comprarcertas coisas, então imaginei de apanhar aqueles caquinhos de louça <strong>do</strong> lixo. Apanhar cacode vidro, fazer aquelas florzinhas de vidro para pregar na parede da casa para enfeitar. Veioaquela coisa na mente. Só apanhar os cacos, resto das grandes obras da cidade”.A casa se impôs como exemplo da força <strong>do</strong> pobre, diz Gabriel: “Os moços <strong>do</strong> Rio chegamaqui e eu digo a eles: lá no Rio tem tanta coisa linda. Eles: não, aquilo não é lin<strong>do</strong>, nosconformemos com o Rio de Janeiro porque lá é a força da riqueza, é a força da engenharia– tem casa, tem palacete, mas é a coisa bem organizada da riqueza. Eles vêm aqui para vera força da pobreza. Eu quero que eles admirem é a força da pobreza”.Ele conta que começou a trabalhar na salina em 1912 e “saiu de lá no ano 1960, cansa<strong>do</strong>e encosta<strong>do</strong> pelo instituto”. Naquele tempo os operários ganhavam por dia: “no ano de1912, <strong>do</strong>is cruzeiros; 1920, três cruzeiros; 1930, seis cruzeiros; 1940, sete cruzeiros; 1950,chegou a 60 cruzeiros”. Logo em seguida anota: “as leis <strong>do</strong> cativeiro no Brasil começouno tempo da colonização no ano de 1532”. E continua, soman<strong>do</strong> outros fragmentos:“Guilherme me deu <strong>um</strong> vintém feito em 1869. Me deu em 30 de abril de 1955. O preço<strong>do</strong>s gêneros alimentícios em 1963: 1 quilo de carne, 700 cruzeiros; 1 quilo de feijão, 180cruzeiros; 1 quilo de açúcar, 140 cruzeiros; 1 quilo de arroz, 200 cruzeiros; 1 quilo de farinha,70 cruzeiros; <strong>um</strong> pão, 15 cruzeiros. No dia 17 de abril de 1963 começou a greve na salina.O papa de Roma morreu em 3 de julho de 1963”.


22 José Carlos Avellar A realidade como crítica de cinema – O cinema como crítica da realidade 23Lembra, adiante, que “José de França amaziou-se com Almerinda em 12 de fevereiro de1964. Santos D<strong>um</strong>ont fez o primeiro vôo em 1906. A reforma agrária foi assinada no dia 13de março de 1964 pelo presidente da República. João Goulart assinou às quatro da tarde noRio de Janeiro. A ordem é: quem não obedecer vai para a Ilha das Flores. O marechal CasteloBranco tomou posse em presidente da República em início de abril de 1964. Getúlio Vargasenviou as forças brasileiras para a guerra na Europa no dia 13 de novembro de 1943”.O texto de Gabriel tem <strong>um</strong>a construção tão indisciplinada quanto a cena da coroaçãoda rainha <strong>do</strong> centenário da abolição. Filme e texto obedecem a <strong>um</strong> mesmo princípiode composição e levam o especta<strong>do</strong>r a sentir (não afirmam diretamente, não explicam,sugerem, levam o especta<strong>do</strong>r a sentir sem se dar conta disso de forma consciente) quea desagregação imposta ao negro foi transformada por ele n<strong>um</strong> diferente mo<strong>do</strong> de seagregar e se expressar culturalmente. Ao selecionar <strong>um</strong>a fala em que Gabriel conta queé governa<strong>do</strong> pelo sonho, O Fio da Memória abre espaço para se explicar por meio deGabriel. O <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário está, como sempre, interessa<strong>do</strong> em ouvir, mas está ao mesmotempo falan<strong>do</strong>, explican<strong>do</strong> sua dramaturgia: “Eu me deito muito ce<strong>do</strong>. Não para <strong>do</strong>rmir,para pensar. Eu tenho <strong>um</strong> pensamento vivo. Meu pensamento é vivo, e quan<strong>do</strong> chegameia-noite fico a<strong>do</strong>rmeci<strong>do</strong>. Sonho toda noite. Sou governa<strong>do</strong> para fazer essas coisas nopensamento e no sonho. Ninguém me ensinou, é coisa espiritual. A senhora pensa que eutinha inteligência para fazer isso? Eu mesmo faço, eu mesmo me admiro”.Imaginar <strong>um</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário (mo<strong>do</strong> de fazer cinema que em princípio se pretende tãoobjetivo, direto e controla<strong>do</strong> pela razão quanto possível) como forma governada pelosonho define a questão principal de O Fio da Memória: <strong>um</strong> diálogo entre seus <strong>do</strong>isnarra<strong>do</strong>res, o filme está mesmo interessa<strong>do</strong> em conversar: com a câmera, com as pessoasdiante dela no instante da filmagem, com o especta<strong>do</strong>r na sala de projeção depois <strong>do</strong>filme pronto. Estamos to<strong>do</strong>s (a expressão popular é o que melhor traduz o que se passa)jogan<strong>do</strong> conversa fora. Os entrevista<strong>do</strong>s estão à vontade na imagem, mas essa sensação oespecta<strong>do</strong>r só recebe porque a <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entação se organiza com <strong>um</strong> rigor que parece maiscoisa solta, contraditória, indisciplinada, que rigorosa. Assim, o especta<strong>do</strong>r percebe cadadepoimento como <strong>um</strong>a informação dupla, como <strong>um</strong>a representação <strong>do</strong> diálogo entre os<strong>do</strong>is narra<strong>do</strong>res que orienta sua estrutura.De quan<strong>do</strong> em quan<strong>do</strong> a imagem é longa, porque se trata de deixar que o entrevista<strong>do</strong> serevele na conversa: ele não apenas conta determina<strong>do</strong> episódio que viveu ou presenciouno passa<strong>do</strong>: conta sua memória, conta o que ele próprio é, se revela nos gestos, nasexpressões, no mo<strong>do</strong> de falar. De quan<strong>do</strong> em quan<strong>do</strong> a conversa é curta, porque <strong>um</strong>a ouduas frases são o suficiente para levar o homem com a câmera a engolir em seco diantede gente de quem se tirou a possibilidade de se expressar, como as crianças aban<strong>do</strong>nadasem centros de triagem: a menina que nem sabe como veio para o centro responde decabeça baixa que não veio, está ali desde sempre; o menino que com o rosto escondi<strong>do</strong> nasombra diz que já fez “<strong>um</strong>a pá de coisas nessa vida”, já fez de tu<strong>do</strong>, roubou, matou, traficou.Longas ou breves, as conversas são sempre abertas, inconclusivas, <strong>um</strong> primeiro encontro.O entrevista<strong>do</strong> não repete para a câmera <strong>um</strong> depoimento previamente ensaia<strong>do</strong>. Ele nãose encontrara antes com o diretor. Coutinho envia <strong>um</strong> assistente para combinar a conversa,mas só se encontra com a pessoa que vai filmar no instante da filmagem. E começa a filmarlogo que chega, sem combinar previamente sobre o que vai ser a conversa. Entrevista<strong>do</strong>re entrevista<strong>do</strong> se surpreendem ao mesmo tempo <strong>um</strong> com o outro. Alg<strong>um</strong>a coisa nova,única, imprevista, se dá então, alg<strong>um</strong>a coisa aberta como a pequena confusão diante daIgreja <strong>do</strong> Rosário pouco depois das 13 horas <strong>do</strong> dia 13 de maio de 1988.A arquitetura dramática desestruturada, porque inspirada na Casa da Flor e nos textos deGabriel Joaquim <strong>do</strong>s Santos, porque preocupada em ser <strong>um</strong>a imagem viva <strong>do</strong> tema quea inspira, porque solta como <strong>um</strong>a conversa, não é o que primeiro aparece em O Fio daMemória. Enquanto o filme está na tela o que prende mesmo a atenção não é a câmera,mas as pessoas diante dela. O desenho <strong>do</strong> quadro e a forma de organização <strong>do</strong> filme sóse percebem depois de terminada a projeção, quan<strong>do</strong> volta à memória o texto de Gabrielque abre e encerra a narração: “O Brasil já foi manda<strong>do</strong> por Portugal. O Brasil já foi <strong>um</strong>a roçaportuguesa. Aqui já foi tu<strong>do</strong>. Existiu aqui <strong>um</strong> cativeiro muito perigoso, os portugueses acarregar negros da costa da África pra botar aqui pra trabalhar na enxada. E essas coisastu<strong>do</strong> já passou. Aí o português entregou isso. D. Pedro I fez a independência. Botou o Brasilpra cá e Portugal pra lá. E ficou o Brasil por conta de nós próprio”.3.Imaginemos que o cinema <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário se realize n<strong>um</strong> espaço entre a pintura (o desejode reproduzir o movimento se movimentan<strong>do</strong>, Goya, Constable, Turner, por exemplo) e apintura (a proibição de reproduzir, René Magritte e La Reproduction Interdite, por exemplo).N<strong>um</strong>a tela de 1937, Magritte antecipa e res<strong>um</strong>e a questão que os filmes <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entários (osbrasileiros, mas não só) começaram a se propor mais recentemente. A tela La ReproductionInterdite se propõe como <strong>um</strong> retrato de Edward James. Nela, <strong>um</strong> homem diante <strong>do</strong> espelhovê refletida não a imagem de seu rosto, mas aquela mesma figura que o especta<strong>do</strong>r <strong>do</strong>quadro vê: no espelho ele aparece de costas, como se o essencial de sua imagem nãopudesse se refletir no espelho. Magritte pinta quase como quem fotografa, reproduzin<strong>do</strong>tal e qual as costas de <strong>um</strong> homem diante <strong>do</strong> espelho – melhor, de <strong>um</strong>a pessoa em particular,Edward James, com seu pentea<strong>do</strong>, seu porte físico e as <strong>do</strong>bras <strong>do</strong> paletó. Pinta como quemfotografa o livro sobre a bancada de mármore em que se apóia o espelho (e igualmenterefleti<strong>do</strong> no espelho como o vemos, <strong>do</strong> mesmo ângulo de visão). É evidente que Magrittenão pintou La Reproduction Interdite para discutir o <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário (por mais que gostassede cinema; por mais que tivesse, à margem de sua expressão visual, feito experiências comfotografia e cinema). Mas como tu<strong>do</strong> na imagem parece fotografar <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entalmente ohomem que diante <strong>do</strong> espelho vê não o seu rosto, mas as suas costas, o quadro pode ser


24 José Carlos Avellar A realidade como crítica de cinema – O cinema como crítica da realidade 25toma<strong>do</strong> como <strong>um</strong>a representação <strong>do</strong> problema que o cinema <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário enfrentaagora: como revelar no quadro o espaço mais amplo fora de quadro? O assunto, o tema,a questão registrada são somente <strong>um</strong>a forma de compor <strong>um</strong> quadro que durante to<strong>do</strong> otempo joga o olhar para fora dele, para <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entar no que está ali, imediatamente visível,o que não se traduz para o olhar: reproduction interdite.4.No começo de Passaporte Húngaro (2002), Sandra Kogut fala ao telefone. Ela pergunta aoconsula<strong>do</strong> da Hungria se <strong>um</strong>a pessoa com <strong>um</strong> avô húngaro tem direito a <strong>um</strong> passaportedaquele país. Na verdade, são duas conversas, em francês, montadas como <strong>um</strong>a falacontínua, mas feitas em momentos e em telefones diferentes. A voz masculina que atendea <strong>um</strong>a das chamadas acha que não, que <strong>um</strong> neto de húngaro não tem direito a PassaporteHúngaro. A voz feminina que atende à outra chamada pergunta se ela poderia reunir<strong>do</strong>c<strong>um</strong>entos capazes de provar a origem húngara de seus avós.No começo de 33 (2003), Kiko Goifman fala com o especta<strong>do</strong>r. Diz que sempre gostoude contar que é filho a<strong>do</strong>tivo em momentos inespera<strong>do</strong>s e observar como as pessoasse sentem nessas ocasiões. Diz que tem 33 anos, que foi a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong> por Berta, que nasceuem 1933, e que naquele dia, 9 de setembro de 2001, começava a remexer no passa<strong>do</strong>,partin<strong>do</strong> em busca de sua mãe biológica por 33 dias e por “<strong>um</strong> caminho metódico e torto”.Decidira ir ao escritório de detetives para pedir dicas, usar as manhãs e tardes para asinvestigações e as noites para “a procura de imagens, nas poucas luzes e nos vazios“.O que aproxima esses <strong>do</strong>is filmes não é apenas o começo, com imagens diferentes masparecidas entre si: <strong>um</strong> breve discurso para apresentar <strong>um</strong>a busca e definir seus limites. São<strong>do</strong>c<strong>um</strong>entários próximos <strong>um</strong> <strong>do</strong> outro porque neles os realiza<strong>do</strong>res estão no centro dashistórias que contam; porque radicalizam algo presente em to<strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário de formavelada: o pedaço em que o <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário, filme volta<strong>do</strong> para o outro, até certo pontodetermina<strong>do</strong> pelo outro, sem tirar os olhos <strong>do</strong> outro, se refere a si mesmo, fazen<strong>do</strong> <strong>do</strong> retrato<strong>do</strong> outro também <strong>um</strong> auto-retrato, como quem diz “ eu sou o outro”. A imagem aqui é <strong>um</strong>espelho como o de La Reproduction Interdite. Sandra e Kiko, no centro <strong>do</strong> filme desde oprimeiro instante, aparecem como Edward James na pintura de Magritte: rostos invisíveis.Em muitos planos de 33 vemos a câmera na mão de Kiko. Ele não filma a si mesmo n<strong>um</strong>espelho, apenas deixa visível em qualquer superfície lisa capaz de refletir <strong>um</strong>a imagem acâmera com que (se) filma. Conscientemente ou não, define-se como <strong>um</strong> homem com <strong>um</strong>acâmera; reafirma a importância de seu instr<strong>um</strong>ental sensível, o cinema; indica que mantera atenção voltada para a câmera, para o cinema, é aqui tão importante quanto observar asações <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entadas durante a busca de sua mãe biológica. O personagem que está emcena filma a cena. O Kiko diretor e o Kiko personagem em cena são ao mesmo tempo <strong>do</strong>ise <strong>um</strong> só, e reiteram: eu e meu eu/outro, antes de qualquer coisa, fazemos cinema. O Kikodiretor busca (busca talvez mais importante que a da mãe biológica efetuada pelo Kikopersonagem) imagens para dizer o que ele sente e pensa durante a procura.Também em Passaporte Húngaro a pessoa que filma participa da cena com a câmera na mão,age na cena que está filman<strong>do</strong> 2 . Usa <strong>um</strong> pequeno vídeo digital, e as pessoas que estão sen<strong>do</strong>filmadas nem percebem a câmera, ou, se percebem, acham natural que ela esteja ali, objetosemelhante a <strong>um</strong>a caneta, bolsa, livro ou caderneta. Em cena as pessoas filmadas conversamna presença de <strong>um</strong> terceiro olhar, pequenino, discreto, silencioso. Sem esse terceiro olhar, acena seria diferente ou talvez nem viesse a existir. Na verdade, trata-se de <strong>um</strong> jogo em quea intervenção é de mão dupla. Sandra, a realiza<strong>do</strong>ra, age primeiro como <strong>um</strong> personagemde seu filme. Lida com a câmera como se estivesse também sen<strong>do</strong> observada pela objetiva.Vive o instante que filma como personagem da cena, não como quem a dirige. Não <strong>do</strong>minaa cena nem sabe o que vai acontecer com ela. Busca Passaporte Húngaro e <strong>do</strong>c<strong>um</strong>enta oprocesso – que se estendeu por <strong>do</strong>is anos entre idas a consula<strong>do</strong>s e arquivos, além de visitasa familiares, to<strong>do</strong>s filma<strong>do</strong>s. O mesmo ocorre com o projeto de Kiko Goifman: 33, tal comoplaneja<strong>do</strong>, só teria senti<strong>do</strong> se ele mesmo se filmasse 3 . A idéia de procurar e filmar a procurada mãe biológica e a idéia de pedir e <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entar o pedi<strong>do</strong> de Passaporte Húngaro parecemter surgi<strong>do</strong> ao mesmo tempo, em fusão, <strong>um</strong>a dentro da outra. Observan<strong>do</strong> a questão sob<strong>um</strong> ponto de vista exclusivamente cinematográfico, é possível supor, com alg<strong>um</strong> exagero,que o fato de procurar a mãe biológica e o de pedir Passaporte Húngaro tenham surgi<strong>do</strong>primeiro como idéia de filme.A<strong>do</strong>tan<strong>do</strong> a expressão com que Geral<strong>do</strong> Sarno res<strong>um</strong>iu a questão 4 , o que <strong>um</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário<strong>do</strong>c<strong>um</strong>enta com veracidade não é o que está em quadro, e sim o mo<strong>do</strong> de compor oquadro, a maneira de <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entar <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entarista, seu mo<strong>do</strong> de reagir às questõesconcretas que surgem durante a realização <strong>do</strong> filme, aquelas criadas pelo objeto a ser<strong>do</strong>c<strong>um</strong>enta<strong>do</strong> e as provocadas pelo sistema de produção. Nos filmes de Sandra e de Kiko,além disso, mais <strong>do</strong> que se mostrar indiretamente no mo<strong>do</strong> de estruturar o discurso, o<strong>do</strong>c<strong>um</strong>entarista <strong>do</strong>c<strong>um</strong>enta a si mesmo. Filma o seu outro eu. Filma sua família. É o que<strong>do</strong>c<strong>um</strong>enta e o que está sen<strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>enta<strong>do</strong>. Está no centro da história, bem no centro– se aceitarmos a possibilidade de <strong>um</strong> centro excêntrico.Nas imagens iniciais de Passaporte Húngaro vemos <strong>um</strong> telefone e logo <strong>um</strong> outro filma<strong>do</strong>s,ao que tu<strong>do</strong> indica, sob o ponto de vista de quem fala ao telefone. A imagem que se produzentão equivale à que se obtém com o gesto automático de riscar <strong>um</strong>a coisa qualquer nopapel durante <strong>um</strong>a conversa telefônica. O especta<strong>do</strong>r vê o telefone na tela assim comoSandra, no instante da filmagem, viu a imagem: ela foi construída para mostrar a conversa enão o aparelho. Olhamos o telefone e vemos Sandra, que fala aqui, e o homem e a mulherque respondem <strong>do</strong> outro la<strong>do</strong> da linha. O que vemos nesse momento não é o que estáao alcance <strong>do</strong>s olhos, mas o que se constrói pela estrutura de composição – porque n<strong>um</strong>filme cada plano, quadro, fragmento é apreendi<strong>do</strong> pelo especta<strong>do</strong>r não somente como aexpressão <strong>do</strong> que a imagem imediatamente revela, mas como <strong>um</strong> gesto da ordem expressivaque organiza a imagem. Não importa que Sandra não esteja ali; o que o <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário então<strong>do</strong>c<strong>um</strong>enta é Sandra, fora de quadro, refletida n<strong>um</strong> falso espelho como o de Magritte. Kikoestá igualmente fora de quadro no falso espelho de 33. A imagem apenas sugere <strong>um</strong> pouco2Em depoimento feito para o site dePassaporte Húngaro (http://www.repúblicapureza.com.br/passaporte),SandraKogut conta por que não aparece naimagem <strong>do</strong> filme: “Foi <strong>um</strong>a decisão quetomei na hora da edição. Achei que, n<strong>um</strong>filme sobre identidade, seria redutor ter<strong>um</strong>a imagem, <strong>um</strong> corpo... Ao mesmotempo, não é <strong>um</strong> filme autobiográfico,acho mais importante estar presentecom o olhar: o que me interessa é, através<strong>do</strong> meu olhar, mostrar outras pessoas[...] Não existe <strong>um</strong> motivo central. Se euestivesse pedin<strong>do</strong> <strong>um</strong> passaporte porquequeria <strong>um</strong>a cidadania européia, achoque não faria <strong>um</strong> filme. Eu só quis fazer ofilme porque era <strong>um</strong>a coisa complexa,porque não havia <strong>um</strong> único motivo”.3Sobre 33, de Kiko Goifman, ver tambémna internet a página <strong>do</strong> filme: http://www. uol.com.br/33.4 SARNO, Geral<strong>do</strong>. Quatro notas e <strong>um</strong>depoimento sobre o <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário. In:Cinemais, n. 25, set./out. 2000.


26 José Carlos Avellar A realidade como crítica de cinema – O cinema como crítica da realidade 27<strong>do</strong> que está fora de quadro: Kiko aparece n<strong>um</strong>a espécie de fusão conseguida graças aoângulo da câmera diante da janela, meio vidro, meio espelho, que, enquanto deixa ver ola<strong>do</strong> de fora, reflete parte <strong>do</strong> la<strong>do</strong> de dentro, a televisão ligada il<strong>um</strong>inan<strong>do</strong> o rosto de Kiko.Mostrar-se assim, fora <strong>do</strong> campo visual, é <strong>um</strong> mo<strong>do</strong> de levar o especta<strong>do</strong>r a se dar contada composição como elemento essencial <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário, que deixa de ser <strong>um</strong> simplesregistro visual e sonoro <strong>do</strong> fragmento da realidade diante dele. Um <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário nãorepete, não reapresenta a realidade: representa, pensa.5.“Não há como negar, Nelson Freire é feito de lacunas.” João Moreira Salles definiu assimseu trabalho, depois de lembrar o que conseguiu registrar: “Nelson tocan<strong>do</strong> o Segun<strong>do</strong>Concerto de Brahms no Municipal <strong>do</strong> Rio, tocan<strong>do</strong> o mesmo concerto no sul da Françacom a Filarmônica de São Petersburgo, tocan<strong>do</strong> a quatro mãos e <strong>do</strong>is pianos com suagrande amiga Martha Argerich, tocan<strong>do</strong> a Fantasia de Sch<strong>um</strong>ann em pelo menos trêsocasiões diferentes (todas elas de tirar o fôlego), tocan<strong>do</strong> Villa-Lobos dentro de <strong>um</strong>a igrejabarroca com vista para o Mediterrâneo. Porém, não há como negar”, conclui, “Nelson Freire(2003) também é feito de lacunas”. E essa é a primeira informação que se recebe <strong>do</strong> filme.No pedacinho inicial <strong>do</strong> que ainda vai ser a primeira imagem se anuncia com clareza: ofilme se constrói como fragmento, pedaço, parte, estilhaço, intervalo, fora de quadro. Ofragmento primeiro é <strong>um</strong>a unidade mínima de som logo cortada – mal começa, acaba. Umgolpe seco, não se percebe nada além disso. A música acabou, a orquestra parou, a platéiaaplaude. O pianista curva-se para agradecer e, ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong> maestro, caminha na direção dacâmera, que está no fun<strong>do</strong> <strong>do</strong> palco, por trás <strong>do</strong>s músicos, escondida nos basti<strong>do</strong>res. Oquase-som que ouvimos dura pouco e é logo esqueci<strong>do</strong> porque – sem intervalo alg<strong>um</strong>,quase sem silêncio entre <strong>um</strong> e outro – novo som forte cobre a imagem: o aplauso daplatéia. E, ao contrário da batida inicial, o som <strong>do</strong> aplauso se alonga, continua. Continua. Econtinua. Entusiasma<strong>do</strong>, mais forte e presente na imagem que a conversa entre o pianistae o maestro nos basti<strong>do</strong>res. Eles trocam poucas palavras. Comentam que tu<strong>do</strong> correubem. O pianista diz que gostaria de <strong>um</strong> cigarro, mas, insta<strong>do</strong> pelo maestro, volta ao palcopara agradecer. A câmera o acompanha.A longa duração dessa primeira imagem pode, à primeira vista, dar a sensação contrária,de que o filme não é assim como dissemos que ele é. Para fragmento, o plano de aberturaparece grande demais. É <strong>um</strong> longo plano-seqüência. Quanto dura? Dois, três, quatrominutos? Parece mais. Não importa o tempo real, parece mais. Mas igualmente nãoimporta aqui a duração real nem a sensação de que dura mais <strong>do</strong> que o que realmentedura. O plano se estica no tempo, mas estruturalmente é <strong>um</strong> fragmento, mostra só ointervalo entre duas apresentações <strong>do</strong> pianista.Ele volta ao palco e a câmera sai <strong>do</strong>s basti<strong>do</strong>res, avança, esgueiran<strong>do</strong>-se entre os músicos,para ver de perto o agradecimento e o entusiasmo da platéia. Os aplausos seguem, opianista volta aos basti<strong>do</strong>res, e a câmera vem com ele. Bebe <strong>um</strong> pouco d’água, pede <strong>um</strong>cigarrinho, mas o maestro insiste: “cigarrinho, depois”. Antes, <strong>um</strong> extra, <strong>um</strong> brinde, “<strong>um</strong><strong>do</strong>cinho de coco para o público”, para agradecer. Pianista e maestro voltam à cena, curvamsediante <strong>do</strong>s aplausos, que não diminuem. De novo nos basti<strong>do</strong>res, o maestro insiste: <strong>um</strong>extra, <strong>um</strong> brinde. O pianista diz que não dá. Depois desse concerto, não seria possível.Pede ao maestro que o acompanhe ao palco para novo agradecimento – porque a platéiasegue aplaudin<strong>do</strong>. Os <strong>do</strong>is c<strong>um</strong>primentam os músicos. O maestro faz <strong>um</strong> gesto para quetoda a orquestra se levante e volta para os basti<strong>do</strong>res com o pianista. O plano não acaba aí.Renova-se o apelo: <strong>um</strong>a peça pequenina, diz o maestro, <strong>um</strong> <strong>do</strong>cinho de coco. Cigarrinhosó depois. E nova entrada em cena para mais <strong>um</strong> agradecimento.Um plano-seqüência mais intervalo que seqüência. Uma observação detalhada de <strong>um</strong>entreato. O concerto, que não vimos, acabou. Vai começar outra coisa que igualmentenão veremos. Nessa nova entrada em cena o pianista senta-se ao piano para tocar algo,e o plano acaba. Vemos o vazio entre o último pedaço de som <strong>do</strong> concerto e o gestode sentar-se ao piano – o gesto e só: agora nenh<strong>um</strong> som – para o extra. O que acabouimporta pouco. O que vai começar não faz falta. Vemos o vazio entre <strong>um</strong>a coisa e outra e,graças a ele, percebemos melhor e mais acuradamente o que de fato importa.“Doc<strong>um</strong>entaristas têm a estranha mania de achar que tu<strong>do</strong>, ou quase tu<strong>do</strong>, deve serfilma<strong>do</strong>. Não precisa ser necessariamente assim”, diz João Moreira Salles. “Uma boaparte <strong>do</strong> público de música erudita gosta de ver o seu pianista dan<strong>do</strong> golpes debraço à direita e à esquerda, como se o tecla<strong>do</strong> fosse <strong>um</strong> mar, e ele, <strong>um</strong> afoga<strong>do</strong>. Oproblema desse destempero é que quase sempre a música acaba desaparecen<strong>do</strong> portrás da ginástica. Com Nelson isso nunca acontece. O seu piano é <strong>um</strong> mar calmíssimo.Acredito que essa elegância seja <strong>um</strong>a decisão estética; é como se ele dissesse: ‘Prestematenção na música e não se deixem ludibriar pela performance’. E suspeito tambémque se trata de <strong>um</strong>a questão de recato [...] N<strong>um</strong> mun<strong>do</strong> cada vez mais exibi<strong>do</strong>, esserecato é o traço mais belo de Nelson e, na minha opinião, a razão da extraordináriapureza de sua música” 5 .Recato. Lacuna. Intervalo. Bem no instante em que a tecnologia digital apontaconcretamente para a possibilidade de filmar tu<strong>do</strong>, e bem de perto, até invadir e vencertoda e qualquer intimidade, o que começa a aparecer nos filmes como construção maisrefinada – Nelson Freire, 33 e Passaporte Húngaro, por exemplo – pode ser res<strong>um</strong>i<strong>do</strong> naspalavras acima. O <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário, experiência em que o diretor quase se reduz a <strong>um</strong>especta<strong>do</strong>r <strong>do</strong> filme que dirige, começa a ser pensa<strong>do</strong> como <strong>um</strong>a expressão recatada, a seperguntar se, por acaso, em vez de ser o que mostra todas as coisas <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, não seria,de fato, o que mostra só o intervalo entre as coisas.Intervalo, autoria. Quan<strong>do</strong>, em O Prisioneiro da Grade de Ferro (2003), Paulo Sacramentoentregou a câmera a detentos <strong>do</strong> presídio <strong>do</strong> Carandiru para que eles se filmassem, nãoestava renuncian<strong>do</strong> à autoria de seu filme, mas passan<strong>do</strong> a atuar como <strong>um</strong> especta<strong>do</strong>rativo da realidade ou <strong>do</strong> filme que produz para discuti-la. É <strong>um</strong> filme que se realizaestimula<strong>do</strong> por ele mas quase independente dele. Até certo ponto, to<strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário5 Em “O elogio <strong>do</strong> recato”, entrevista aDaniel Schenker Wajnberg, Marcelo Janote Maria Sílvia Camargo publicada naedição de 9 de maio de 2003 da revistacriticos.com.br.


28 José Carlos Avellar A realidade como crítica de cinema – O cinema como crítica da realidade 29é isso mesmo, filme feito por <strong>um</strong> especta<strong>do</strong>r ativo, meio distante ou no centro da cena.Não é a primeira vez que isso ocorre n<strong>um</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário, nem é tão incom<strong>um</strong> assim que<strong>um</strong> realiza<strong>do</strong>r construa seu filme montan<strong>do</strong> imagens que não filmou. Aqui, ou porque ospresos passaram antes por <strong>um</strong>a breve oficina sobre o uso de câmeras digitais, ou porque,como toda a gente hoje, foram “educa<strong>do</strong>s” visualmente pelo contato regular com cinemae televisão, ou ainda porque o manejo das câmeras de vídeo digital é relativamente fácilgraças a controles automáticos, por qualquer <strong>um</strong>a dessas razões separar o que foi filma<strong>do</strong>por eles e o que foi registra<strong>do</strong> pelo realiza<strong>do</strong>r não é tão simples nem colabora para amelhor compreensão <strong>do</strong> projeto. O diretor não estava presente em boa parte da filmagem,mas em nenh<strong>um</strong> instante se ausentou da concepção <strong>do</strong> filme, porque de certo mo<strong>do</strong>procurou se comportar como o outro, ser <strong>um</strong> deles, sentir a prisão como <strong>um</strong>a metáfora<strong>do</strong> mal-estar de nossa sociedade.O Prisioneiro da Grade de Ferro remonta o cotidiano <strong>do</strong> presídio recém-destruí<strong>do</strong> n<strong>um</strong>aimplosão, trabalha no eco <strong>do</strong> massacre de detentos ocorri<strong>do</strong> há pouco mais de dez anos.O que os presos filmam revela a prisão como <strong>um</strong> microcosmo da sociedade <strong>do</strong> la<strong>do</strong> defora. Exageran<strong>do</strong> <strong>um</strong> pouco, corre<strong>do</strong>res e celas <strong>do</strong> presídio não são muito diferentes <strong>do</strong>scorre<strong>do</strong>res e apartamentos conjuga<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Edifício Master, de Eduar<strong>do</strong> Coutinho. Nem ashistórias contadas pelos presos <strong>do</strong> Carandiru são muito diferentes daquelas contadas pelosmora<strong>do</strong>res <strong>do</strong> edifício de Copacabana. Uns e outros são excluí<strong>do</strong>s, não são <strong>um</strong> desvio oudeformação <strong>do</strong>s ideais da sociedade.Brasil, quinta-feira, 28 <strong>do</strong> 10 de 76, primeiro caderno, página 15: Filmagem causa espantoe irrita filha e amigos. Um, <strong>do</strong>is, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez, onze, <strong>do</strong>ze...Corta! Agora dá <strong>um</strong> close na cara dele! Barba por fazer, calça de brim azul-marinho, casacoazul-escuro, camisa esporte quadriculada, sapatos marrons, o cineasta Glauber Rocha estápara<strong>do</strong> ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong> caixão <strong>do</strong> pintor Di Cavalcanti no Museu de Arte Moderna...” .Dominan<strong>do</strong> a imagem com sua voz, entran<strong>do</strong> em cena e acompanhan<strong>do</strong> o enterro, nocentro <strong>do</strong> plano, à frente <strong>do</strong> caixão (e não com o jeito discreto e encolhi<strong>do</strong> com o qualo diretor de <strong>um</strong> filme <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário cost<strong>um</strong>a aparecer na imagem), Glauber filma a simesmo para falar <strong>do</strong> pintor, para falar de cinema. Retomemos a possibilidade de que aidéia de pedir Passaporte Húngaro e buscar a mãe biológica tenha surgi<strong>do</strong> para Sandra epara Kiko primeiro como idéia de filme. Ou seja: mais <strong>do</strong> que o pedaço de realidade que<strong>do</strong>c<strong>um</strong>entam, os filmes de Sandra e de Kiko, como os de Paulo e de Eryk, e antes delesto<strong>do</strong>s os de Coutinho e Glauber, são filmes. Ao mesmo tempo em que nos revelam asbuscas objetivas em que seus realiza<strong>do</strong>res estão empenha<strong>do</strong>s (e sem sair delas, pois elas éque dão corpo à idéia), expressam a busca subjetiva de seus diretores: discutir na realidade(o cinema então como <strong>um</strong> instr<strong>um</strong>ento crítico dela) o cinema (a realidade então comoinstr<strong>um</strong>ento crítico dele), discutir a condição <strong>do</strong> especta<strong>do</strong>r durante a projeção quan<strong>do</strong>(para melhor criticar <strong>um</strong>a coisa e outra) abre mão de sua identidade como passaportenecessário para melhor perceber o filme como expressão vizinha à de Constable, Turner,Goya ou Posada, vizinha, sobretu<strong>do</strong>, ao espelho de Magritte.Não é a primeira vez que o cinema sugere o cárcere como <strong>um</strong>a metáfora da sociedade,nem a primeira vez que a câmera procura pensar o mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> ponto de vista de <strong>um</strong>prisioneiro – efetivamente preso ou em liberdade condicional, como os mora<strong>do</strong>res deconjuga<strong>do</strong>s. O que importa é observar como os diferentes presos conversam entre si,confessan<strong>do</strong> a meia-voz o sonho com<strong>um</strong> a to<strong>do</strong>s os excluí<strong>do</strong>s: mudar de vida.6 Di, Prêmio Especial <strong>do</strong> Júri no Festivalde Cannes de 1977, foi <strong>um</strong> <strong>do</strong>s filmesdebati<strong>do</strong>s por Roberto Rosselini no seminárioaberto que ele, presidente <strong>do</strong>júri, organizou para discutir o cinema deautor e os filmes em concurso naqueleano. Rosselini discutia a perda de potência<strong>do</strong> cinema de autor (“o filme de autorvirou <strong>um</strong>a espécie de gênero, os autoresrenunciam à invenção e se repetem aoinfinito”), e identificou no filme de Glauber<strong>um</strong>a nova atitude autoral, em que oautor se inseria na história que narravacomo parte inseparável dela.6.Os <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entários que fazemos hoje parecem abraçar <strong>um</strong>a construção cinematográficaque parte de idéias esboçadas entre nós na década de 1960: o cinema como busca/afirmação/invenção de <strong>um</strong>a identidade em permanente busca de si mesmo, o impulso<strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário como forma de levar o cinema ao direto enfrentamento <strong>do</strong> presente. Sãofilmes que partem <strong>do</strong> que se esboçou na década de 1960 e que passam pela experiênciade Cabra Marca<strong>do</strong> para Morrer (1984), de Eduar<strong>do</strong> Coutinho, e de Di (1977) 6 , de GlauberRocha. No primeiro, o realiza<strong>do</strong>r se situa no centro da história e fora de quadro (20 anosdepois, no Nordeste, em busca <strong>do</strong>s companheiros de trabalho no filme interrompi<strong>do</strong> pelogolpe militar de 1964). No segun<strong>do</strong>, o realiza<strong>do</strong>r começa gritan<strong>do</strong> a apresentação <strong>do</strong> filme(que não tem letreiros e se anuncia pelo som): “Di Cavalcanti. Título <strong>do</strong> filme: ninguémassistirá ao formidável enterro de sua última quimera, somente a ingratidão, aquela pantera,foi sua companheira inseparável”. Em seguida, voz alta, exaltada, Glauber lê <strong>um</strong>a notíciade jornal sobre a filmagem: “Filmagem causa espanto e irrita família e amigos. Jornal <strong>do</strong>


30 31O<strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário, gênero que nasce com o cinema, procura lançar a câmera paramostrar e desvendar o real. Isso significa conhecer as paisagens, a natureza, aspráticas e os mo<strong>do</strong>s de viver <strong>do</strong>s homens. Significa também interrogar o próprioexercício de <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entar.Sen<strong>do</strong> assim, questionar o <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário é interrogar a forma como se busca e se expressao conhecimento, a empatia ou a rejeição <strong>do</strong> outro, que está diante da câmera. A questãocentral, portanto, é saber como o <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário fez e faz da alteridade o sujeito dasimagens, sobretu<strong>do</strong> no Brasil, <strong>um</strong>a vez que o artista – o cineasta – depara com <strong>um</strong>a relaçãocom o outro, que envolve, em geral, <strong>um</strong>a diferença social marcante. Esta não deixa deinfluir de forma significativa no resulta<strong>do</strong> <strong>do</strong> seu trabalho.Tendências e perspectivas <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário contemporâneo:<strong>um</strong> olhar histórico retrospectivoSheila SchvarzmanHistoria<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> Condephaat, professora <strong>do</strong> curso de audiovisual das Faculdades Senac,professora convidada <strong>do</strong> Departamento de Multimeios da Unicamp. Realizou pós-<strong>do</strong>utora<strong>do</strong>sobre a obra de Octávio Gabus Mendes. É autora de H<strong>um</strong>berto Mauro e as Imagens <strong>do</strong> Brasil,São Paulo, Edunesp, 2004, e “H<strong>um</strong>berto Mauro e o Doc<strong>um</strong>entário”, no livro organiza<strong>do</strong> porFrancisco Elinal<strong>do</strong> Teixeira Doc<strong>um</strong>entário no Brasil – Tradição e Transformação, São Paulo,S<strong>um</strong>mus Editorial, 2004.Em busca de <strong>um</strong> objetoSe iniciarmos nosso questionamento pelo <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário clássico brasileiro, produzi<strong>do</strong>pelo Instituto Nacional de Cinema Educativo (Ince) entre os anos de 1936 e 1945, porexemplo, veremos que o que se enfoca ali são seres e situações edificantes, buscan<strong>do</strong> criarmodelos pedagógicos a ser segui<strong>do</strong>s n<strong>um</strong>a sociedade autoritária.São assim os grandes heróis cultos que o arqueólogo e diretor <strong>do</strong> Ince, Roquette Pinto,associa<strong>do</strong> ao realiza<strong>do</strong>r H<strong>um</strong>berto Mauro, tratou de construir, forjan<strong>do</strong> <strong>um</strong> panteão dehomens exemplares por seus feitos e obras, que deveriam restar como modelos para asnovas gerações: Macha<strong>do</strong> de Assis, Castro Alves, Rui Barbosa, Princesa Isabel ou Barão <strong>do</strong> RioBranco. Eles eram os grandes mortos, heróis românticos em que se deveria inspirar o Brasilextraordinário que aqueles filmes buscavam moldar.Nesse mesmo momento histórico, as reportagens <strong>do</strong> Departamento de Imprensa e


32 Sheila Schvarzman Tendências e perspectivas <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário contemporâneo: <strong>um</strong> olhar histórico retrospectivo 33Propaganda (DIP) traziam para a tela homens vivos excepcionais – começan<strong>do</strong> pelopresidente Getúlio Vargas, artistas como o pintor Pancetti, artesãos e trabalha<strong>do</strong>res deextração simples, que haviam se destaca<strong>do</strong> em suas atividades. Mas o verdadeiro focodesses filmes, o sujeito dessas ações, era antes de tu<strong>do</strong> o Esta<strong>do</strong> que, na figura <strong>do</strong>presidente, resguardava o cidadão, ou dava àqueles profissionais a chance de sobressair.Tanto em <strong>um</strong> como em outro exemplo, era muito clara a separação total entre ospersonagens da tela e os da vida real. Na tela, to<strong>do</strong>s eram parte da mesma ficção construídapelo regime por meio <strong>do</strong> cinema.Nos anos 1950, finda a ditadura, e com novos tempos políticos e culturais, os heróis e asvirtudes pedagógicas construí<strong>do</strong>s pelo Ince se desfizeram. A forma <strong>do</strong>c<strong>um</strong>ental se impôssobre a pedagogia, e H<strong>um</strong>berto Mauro passou a registrar de forma sistemática os mo<strong>do</strong>sde vida tradicionais que o avanço da modernização pareceu ameaçar. São filmes comoFabricação da Rapadura (1958), Pedra Sabão (1957), ou canções populares românticas – asvárias Brasilianas (1945-1958). Entretanto, em todas as obras o homem ainda não aparececomo personagem importante. Ele é parte de <strong>um</strong> sistema no qual está imerso, juntocom o Carro de Bois (1956) ou o engenho (Engenhos e Usinas, 1955); estes, verdadeirossujeitos <strong>do</strong>s filmes que abordavam a cultura brasileira tradicional n<strong>um</strong> momento de fortetransformação, com a industrialização e a urbanização.Em Aruanda, de Linduarte Noronha e Rucker Vieira (1960), o homem já tem consistênciae existência própria, não é mais a entidade abstrata <strong>do</strong>s momentos anteriores. Énele que se edificam os traços <strong>do</strong> homem popular como depositário da verdadeiratradição e <strong>do</strong>s valores brasileiros. A construção romântica se transfere <strong>do</strong> grandehomem para o homem simples. Ainda que pobre, ele é a verdadeira nacionalidade– sua inconsciente salvaguarda.Em 5 Vezes Favela (Carlos Diegues e outros, 1962), a beleza e a poesia não escondem oviés romântico que permeia a abordagem <strong>do</strong>s tipos populares; viés cujo ponto de vistacertamente era motivo de conflito entre os diretores cinema-novistas. Nesse senti<strong>do</strong>,Opinião Pública (1967), de Arnal<strong>do</strong> Jabor, muda o tom e evita o romantismo, ao abordar apopulação de classe média de Copacabana, no Rio.A magnificação <strong>do</strong> homem <strong>do</strong> povo é marcante nos filmes da Caravana Farkas, queprocurou registrar o “verdadeiro homem brasileiro” a partir de mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s anos 1960.Tratava-se, no dizer de Geral<strong>do</strong> Sarno, <strong>um</strong> de seus realiza<strong>do</strong>res, de mostrar a “nobrezaintrínseca <strong>do</strong> ocupa<strong>do</strong> e a sua competência”. Uma obrigação tão nobre que certamentenão oculta, no tratamento da imagem e na eloqüência da narração, a culpa e a máconsciência <strong>do</strong>s realiza<strong>do</strong>res pelos débitos sociais que se explicitam nos filmes. Essafrase demonstra o grau de idealização em relação ao homem das camadas populares:n<strong>um</strong> país de tanta desigualdade, é difícil tratar o outro de forma igualitária sem chamarpara si – cineasta culto e bem alimenta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Sul – a responsabilidade pela mudança.Em filmes como Viramun<strong>do</strong> (Geral<strong>do</strong> Sarno, 1965), apesar de as mudanças técnicas e deconcepção cinematográfica <strong>do</strong> cinema direto terem permiti<strong>do</strong> “dar voz ao povo”, deixan<strong>do</strong>patentes as carências <strong>do</strong>s homens que ali se enfocavam, a “voz sociológica” se sobrepôs àsnovas vozes; falou por elas, falou no seu lugar 1 . Isso certamente falou com mais eloqüênciada visão <strong>do</strong> realiza<strong>do</strong>r <strong>do</strong> que daquele que é alvo da câmera.Esse viés persiste ainda nos anos 1970 e 1980. Mas essa tendência muda, e muito, emmea<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s anos 1980 e 1990.Os anos 1980, fortemente marca<strong>do</strong>s pelo neoliberalismo, sepultaram as utopias socializantesque faziam <strong>do</strong> povo <strong>um</strong> objeto a ser salvo e ampara<strong>do</strong>. Ao ruírem, essas crenças permitirama livre manifestação da persistente linhagem conserva<strong>do</strong>ra de parte <strong>do</strong> pensamentonacional que, desde o final <strong>do</strong> Império, sempre viu o povo de forma negativa.Se, até os anos 1980, o Nordeste era o objeto de interesse e os filmes <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entavam<strong>um</strong> mo<strong>do</strong> de vida ti<strong>do</strong> como arcaico, pobre, miserável – mas respeitosamente tradicional,como se vê em A Bolandeira (Vladimir Carvalho, 1969), por exemplo –, a partir desse momentoo foco muda. O centro das atenções passam a ser os marginaliza<strong>do</strong>s urbanos, queos efeitos deletérios <strong>do</strong> “milagre brasileiro” só fizeram multiplicar. Assim, são <strong>do</strong>c<strong>um</strong>enta<strong>do</strong>sa vida no morro, as favelas, o apego à religião, o tráfico de drogas, a delinqüência e,ao mesmo tempo, seus antí<strong>do</strong>tos ou mecanismos de defesa como o rap etc. A imagemcruenta, ou intensa, como lembra Fernão Ramos, parece ser a forma de “tematizar, no<strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário contemporâneo, a exclusão e a violência social que permeiam a sociedadebrasileira.(...) <strong>um</strong> narcisismo às avessas” 2 .Se mu<strong>do</strong>u a geografia, se o urbano substituiu o rural, se o jovem substituiu os homensmaduros envolvi<strong>do</strong>s em profissões e atitudes tradicionais, é como se a própria h<strong>um</strong>anidadetivesse se transforma<strong>do</strong> na imagem. Depura<strong>do</strong> <strong>do</strong> viés romântico que alimentava no povoa idéia de raiz, de autenticidade, o elemento popular aparece desprovi<strong>do</strong> de qualidades,imensamente carente. Como já observou Ramos, em alguns filmes da época 3 , “o especta<strong>do</strong>r,através de <strong>um</strong>a postura auto-agressiva, aceita e se deleita com a crueldade narrativa,embutida na enunciação, na imagem <strong>do</strong> HORROR (imagens <strong>do</strong> grito, da morte, da miséria,da sordidez, <strong>do</strong> sofrimento, <strong>do</strong> dilaceramento corporal, <strong>do</strong> sangramento, da h<strong>um</strong>ilhação,da sujeira). A favela, os cortiços, a prisão, os lixões, os esgotos, o campo devasta<strong>do</strong> são oscenários privilegia<strong>do</strong>s dessa imagem. É a fratura de classes da sociedade brasileira quepermite a representação desse ‘outro’ que denominamos ‘representação <strong>do</strong> popular’ ” 4 .Por outro la<strong>do</strong>, persiste ainda como característica dessa fase – talvez pela urgênciadessas questões – <strong>um</strong> olhar exterior que continua a permear a relação com o outro. Umolhar exterior e de classe, que denuncia, mas também revela, na maior parte das vezes,a má consciência em relação ao outro pobre. Mesmo nas formas cinematográficas maisdespojadas – como no diálogo entre o cineasta e seu entrevista<strong>do</strong> – , é essa má consciênciaque se mostra quan<strong>do</strong> se revelam os dispositivos de elaboração de <strong>um</strong> filme. É nessas1Bernardet, Jean-Claude. O modelosociológico ou a voz <strong>do</strong> <strong>do</strong>no. In:Cineastas e imagens <strong>do</strong> povo. São Paulo:Companhia das Letras, 2003. p. 15.2Ramos, Fernão Pessoa. Três voltas <strong>do</strong>popular e a tradição escatológica <strong>do</strong> cinemabrasileiro. In: Estu<strong>do</strong>s de cinemaSocine II e III. São Paulo: Annabl<strong>um</strong>e,2004. p. 48.3 Como Notícias de <strong>um</strong>a Guerra Particular(João Salles, 1999), Uma Avenida ChamadaBrasil (Octavio Bezerra, 1989), Boca deLixo (Eduar<strong>do</strong> Coutinho, 1992), Os Carvoeiros(Nigle Noble, 1999), Mamazônia,a Última Floresta (Celso Lucas, BrasíliaMascarenhas, 1996), O Rap <strong>do</strong> PequenoPríncipe contra as Almas Sebosas (PauloCaldas, Marcelo Luna, 2000), O Prisioneiroda Grade de Ferro (Paulo Sacramento,2003), Ônibus 174 (José Padilha, 2001),Falcão, Meninos <strong>do</strong> Tráfico (MV Bill, CelsoAthayde, 2003).4 Ramos, Fernão Pessoa. As três voltas<strong>do</strong> popular e a tradição escatológica <strong>do</strong>cinema brasileiro. Op. cit.


34 Sheila Schvarzman Tendências e perspectivas <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário contemporâneo: <strong>um</strong> olhar histórico retrospectivo 355 Bernardet, Jean-Claude. A entrevista(Casa de Cachorro, À Margem daImagem). In: Cineastas e imagens <strong>do</strong>povo. Op. cit. p. 281.formas cinematográficas, como mostram os últimos planos de À Margem da Imagem(Eval<strong>do</strong> Mocarzel, 2003), que as contradições dessa postura supostamente igualitáriaafloram. A cena final mostra o entrevista<strong>do</strong>, mora<strong>do</strong>r de rua, responden<strong>do</strong> ao cineasta oque achou <strong>do</strong> filme, <strong>do</strong> qual participou e no qual se contam suas histórias. O que ele dizé revela<strong>do</strong>r <strong>do</strong> dispositivo de filmagem e <strong>do</strong> abismo que a diferença social de classe e deeducação põe entre os interlocutores: ele diz que, fora <strong>do</strong> âmbito da filmagem, se batesseà porta <strong>do</strong> diretor, pedin<strong>do</strong> <strong>um</strong> prato de comida, seria tão rejeita<strong>do</strong> quanto sempre foiem to<strong>do</strong>s os outros lugares. Essa fala, excepcionalmente significativa, termina com <strong>um</strong>corte em que o diretor avisa que “valeu!”. Terminou o filme. Terminou, portanto, para odiretor, essa história toda! Jean-Claude Bernardet 5 , em seu artigo sobre a entrevista, cobrade Mocarzel <strong>um</strong>a posição diante <strong>do</strong> interlocutor, algo que não acontece. O entrevista<strong>do</strong> ésagra<strong>do</strong>, resta como <strong>um</strong> objeto de interesse exterior. Tu<strong>do</strong> o que diz vale para o filme, maso interesse, tal como se revela nas imagens, se res<strong>um</strong>e ao filme.O <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário contemporâneo, portanto, incorporan<strong>do</strong> a reflexibilidade que busca deixartransparentes as relações entre quem filma e quem é filma<strong>do</strong>, termina por engendrar outrainterrogação: quem está no centro <strong>do</strong> filme? Quem é o verdadeiro alvo: o entrevista<strong>do</strong> ouo dispositivo emprega<strong>do</strong> pelo diretor para ressaltar seu próprio cuida<strong>do</strong> com o “objeto”?Em se tratan<strong>do</strong> das questões da alteridade no <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário contemporâneo, éobrigatório falar de Eduar<strong>do</strong> Coutinho. Sua obra, desde Cabra Marca<strong>do</strong> para Morrer (1984),restará certamente como <strong>um</strong>a baliza na história <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário que procuramosescrever. Ainda que a reflexibilidade não seja sua invenção, é a partir <strong>do</strong>s seus trabalhosque os vários contratos supostos no <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário se explicitam: o pagamento, ocaráter encena<strong>do</strong> <strong>do</strong> rito da entrevista, a presença da equipe. Essa noção de <strong>um</strong>a obraconjunta que se explicita diante <strong>do</strong> especta<strong>do</strong>r – <strong>do</strong> entrevista<strong>do</strong> e de Coutinho e suaequipe – parece ser <strong>um</strong>a das chaves que explicam a empatia <strong>do</strong> interlocutor, bemcomo o acolhimento que se dá a ele. É assim que esse pode se constituir como sujeitodiante da câmera. Nesse cinema basicamente da palavra, da memória e da fabulação, apersonalidade de Coutinho é o ponto essencial. Ainda que exista aí <strong>um</strong> dispositivo, eleparece basear-se, antes de tu<strong>do</strong>, inteiramente na postura generosa de interlocução <strong>do</strong>diretor. Assim, o objeto de interesse deixa de ser o filme em si mesmo, ou o dispositivo,e o entrevista<strong>do</strong> pode virar sujeito.Mais <strong>do</strong> que a prevalência de <strong>um</strong> dispositivo há em Coutinho a consistência cinematográficade <strong>um</strong>a prática oriunda <strong>do</strong>s anos 1960, e que tem seu traço principal na forma de trataras pessoas, no espaço que lhes é dedica<strong>do</strong>, no desejo de se aproximar delas, de deixarque se mostrem diante da câmera. E isso parece corresponder, antes de tu<strong>do</strong>, a <strong>um</strong>aevolução de Coutinho que está vinculada à idealização <strong>do</strong> povo, com<strong>um</strong> nos anos 1960e nos <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entários da época.Nesse senti<strong>do</strong>, é interessante observar o diálogo que se estabelece entre os recortes <strong>do</strong>morro nas lentes de Eduar<strong>do</strong> Coutinho, por <strong>um</strong> la<strong>do</strong>, e de João Salles, por outro. Deve-seressaltar, contu<strong>do</strong>, que eles partiam de olhares e questões infinitamente diversas. Salles nosfala da urgência de <strong>um</strong>a guerra cotidiana que permeia a sociedade brasileira, na cidade <strong>do</strong>Rio de Janeiro, onde exclusão, criminalidade, repressão, corrupção e impotência destroemo teci<strong>do</strong> social espraian<strong>do</strong>-se por toda a sociedade, configuran<strong>do</strong> a guerra retratada nasimagens de Notícias de <strong>um</strong>a Guerra Particular (1999).Já Santa Marta: Duas Semanas no Morro (1987), de Eduar<strong>do</strong> Coutinho, cujo foco centraltambém é a vida na favela, acaba por tirar <strong>do</strong> interlocutor relatos totalmente distintos. Seno primeiro filme, o de João Salles, o morro é concreto e hostil, e corresponde ao imaginárioque <strong>do</strong> exterior se elabora sobre ele – na mídia, na opinião pública que demoniza a favelacomo lugar da marginalidade –, no de Coutinho ele é lugar de vivências e de imaginação,construí<strong>do</strong> a partir de dentro, por seus mora<strong>do</strong>res. Com Salles, somos intima<strong>do</strong>s a agir,a nos posicionar perante essa guerra da qual também somos parte. No <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entáriode Coutinho, a palavra está com o mora<strong>do</strong>r, que nos esclarece sobre o que é, afinal, essemorro Santa Marta, o lugar que ama e no qual vive.Entretanto, essa forma de abordagem de Coutinho que parece aparentemente fácilinduziu, e tem induzi<strong>do</strong>, o <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário atual a repetir em grande parte esse sistema,sem o mesmo sucesso, levan<strong>do</strong> a forma da entrevista a <strong>um</strong>a crise de saturação devi<strong>do</strong> àsua aparente facilidade, ao baixo custo etc. 6Se a entrevista se torna <strong>um</strong>a das formas mais usadas e desgastadas <strong>do</strong>s filmes recentes,dela decorrem outras posturas. Uma delas é a idéia de dar aos depoentes a câmera, paraque produzam a sua própria imagem.Assim têm agi<strong>do</strong> cineastas, antropólogos e outros especialistas que vêm colaboran<strong>do</strong> nacriação de filmes pelos índios, por exemplo, gênero extremamente fértil desde a obra <strong>do</strong>Major Thomaz Reis. Essa filmografia hoje é extensa, o que se deve, em grande parte, aosaportes de ONGs nacionais e internacionais. Neles, mostram-se temas caros aos índios apartir de seu próprio olhar.Em Prisioneiro da Grade de Ferro (2004), Paulo Sacramento entregou a câmera aos presos<strong>do</strong> Carandiru. Nessas imagens, o sujeito encarcera<strong>do</strong> se ergue e se idealiza. Redime-see se mostra h<strong>um</strong>ano. A exclusão se dissolve n<strong>um</strong>a nova identidade e atesta o princípionortea<strong>do</strong>r <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário de depoimento que estabeleceu, ao longo de sua história, acrença inabalável de que to<strong>do</strong> depoente fala sempre a verdade. Parece – parafrasean<strong>do</strong>André Bazin – que a “ontologia da imagem <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entária no Brasil” é o prima<strong>do</strong> da verdadedaquele que fala.E, se o assunto é o depoimento como sinônimo de verdade, vamos nos voltar para o<strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário mais constante nesse perío<strong>do</strong>, assim como em toda a história <strong>do</strong><strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário brasileiro, aquele que estabelece a ponte com os primórdios da produçãoe sua tradição pedagógica e exemplar: a biografia.6 Bernardet, Jean-Claude. A entrevista(Casa de Cachorro, À Margem da Imagem).In: Cineastas e imagens <strong>do</strong> povo.Op. cit. p. 281.


36 Sheila Schvarzman Tendências e perspectivas <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário contemporâneo: <strong>um</strong> olhar histórico retrospectivo 37Grosso mo<strong>do</strong>, se fossem usa<strong>do</strong>s os termos da historiografia para definir as produções<strong>do</strong>c<strong>um</strong>entais, veríamos que, na primeira fase <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário nacional, filmaram-se osvence<strong>do</strong>res da história e os personagens caros à chamada “alta cultura”. A partir <strong>do</strong>s anos1960, foram filma<strong>do</strong>s os venci<strong>do</strong>s e a cultura popular. Navega-se atualmente por <strong>um</strong>anoção de cultura mais ampla, e os heróis de hoje são os persegui<strong>do</strong>s e os clandestinos deontem. Apesar da mudança de foco, a reverência é a mesma, com outra roupagem, salvoalg<strong>um</strong>as exceções, como em Barra 68, de Vladimir Carvalho (2000), sobre a ocupação daUniversidade de Brasília. Ali, a presença instigante e anti-reverente de Darcy Ribeiro deixano filme não <strong>um</strong> memorialismo celebratório com<strong>um</strong> a tantos outros desse gênero, masantes de tu<strong>do</strong> a lembrança viva da fala, que pode ser partilhada.Bem ao contrário disso, e ainda que em mostras de reflexibilidade ostensivas – a cadeira<strong>do</strong> diretor montada no meio da praça, a interlocução com o “povo” –, Vladimir Herzog écelebra<strong>do</strong>, lembra<strong>do</strong>, mas é antes de tu<strong>do</strong> <strong>um</strong> herói petrifica<strong>do</strong> em Vla<strong>do</strong> 30 Anos Depois,de João Batista de Andrade (2005). Ainda que saibamos toda a sua história, suas lutas,até mesmo sua intimidade, ele segue sen<strong>do</strong> alguém de quem se fala com reverência:<strong>um</strong> mártir cujo sacrifício permitiu mudanças no país, mas cuja identidade se perde nosreitera<strong>do</strong>s elogios <strong>do</strong>s depoentes, na câmera fechada em primeiríssimo plano – comose, ao fim, a distorção nas imagens <strong>do</strong> rabino Sobel, <strong>do</strong> jornalista Fernan<strong>do</strong> Morais ou deRo<strong>do</strong>lfo Konder, de Clarice Herzog e de seu filho fossem a caução de verdade: lágrimasnos olhos nos momentos de emoção...Não preten<strong>do</strong> com isso apontar <strong>um</strong> caminho ou perspectiva para o <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entárionacional. Entretanto, procurei traçar aquilo que interpreto como suas principais tendênciasatuais, religan<strong>do</strong>-as à nossa tradição e enfocan<strong>do</strong> prioritariamente a questão <strong>do</strong> sujeito no<strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário. Assistimos hoje a <strong>um</strong>a multiplicidade de tendências em desenvolvimento,mas em nenh<strong>um</strong>a delas – salvo no <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário em primeira pessoa, de matriz artística– o <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entarista é capaz de falar de sua realidade mais próxima, desprovi<strong>do</strong> de máconsciência, como já se apontou largamente e como mostramos com alguns exemplos.É tempo de falar não apenas de sua individualidade – em primeira pessoa –, mas dasquestões que dizem respeito diretamente aos autores, como tem feito o <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entáriointernacional prioritariamente.Como escrevi no início deste artigo, a postura <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entarista brasileiro é muitopautada por suas questões ideológicas, culturais e de classe. Já é tempo de colocar-secomo objeto.Por outro la<strong>do</strong>, e como já chamou atenção Jean-Claude Bernardet, os diretores poucofalaram de suas condições de vida. Pouco falaram daquilo que lhes é próprio. Como se asituação das classes médias e camadas pensantes e artísticas, de que os cineastas fazemparte, não fosse objeto de interesse <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário. Claro, há filmes sobre artistas, ousobre o próprio meio cinematográfico, mas talvez seja somente no <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário emprimeira pessoa que possamos encontrar esses diretores, com suas questões que semostram não apenas como indagações individuais, mas também h<strong>um</strong>anas, históricas euniversais. É o caso de 33, de Kiko Goiffman, que trata da busca de sua mãe biológica, ede Passaporte Húngaro, de Sandra Kogut. Neste último, através das malhas da burocraciae das mudanças da história, vemos a neta de <strong>um</strong>a senhora judia húngara, fugida de seupaís, reconquistar a cidadania européia, representada pelo direito a Passaporte Húngaro.Há muita história incrustada nesses relatos: o nazismo, o anti-semitismo, a SegundaGuerra, a fuga para cá, o Brasil como terra prometida – agora não o é mais, porque émais importante poder estar na Europa – e, por meio dessa história toda, sem falar deto<strong>do</strong>s os meandros da burocracia, a neta faz com que a avó fugida reate com o passa<strong>do</strong>de que fora banida. Um belo resgate.Faltam-nos histórias e falta o olhar <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entarista sobre aquilo que lhe é próprio,próximo. A sua vida, as suas carências – ou será que, por pu<strong>do</strong>r, o <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entarista de classemédia não poderá falar disso? Como se, de alg<strong>um</strong>a forma, não fosse isso mesmo que, de<strong>um</strong> la<strong>do</strong>, pode nos esclarecer sobre a falta <strong>do</strong> outro.


38 39Oque é o <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário? Essa questão vem sen<strong>do</strong> levantada ao longo da história dasimagens técnicas há pelo menos 80 anos, a princípio no interior <strong>do</strong> cinema e depois,com o advento da televisão, <strong>do</strong> vídeo e da internet, não parou mais de reverberar acada mudança de paradigma técnico, com grandes ressonâncias no que hoje se denominalargamente cultura audiovisual.Doc<strong>um</strong>entário expandi<strong>do</strong> – Reinvenções <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entáriona contemporaneidadeFrancisco Elinal<strong>do</strong> TeixeiraÉ mestre e <strong>do</strong>utor pela FFLCH-USP, pós-<strong>do</strong>utor em comunicação e semiótica pela PUC/SPe professor participante <strong>do</strong> Programa de Pós em Multimeios da Unicamp, com pesquisas emcinema experimental e cinema <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário. Autor <strong>do</strong>s livros: O Terceiro Olho – Ensaios de Cinemae Vídeo (Mário Peixoto, Glauber Rocha e Júlio Bressane), São Paulo, Perspectiva, 2003; e organiza<strong>do</strong>rde Doc<strong>um</strong>entário no Brasil – Tradição e Transformação, São Paulo, S<strong>um</strong>mus Editorial, 2004.Indagação ontológica a respeito <strong>do</strong> ser ou da natureza <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário como <strong>um</strong><strong>do</strong>mínio ou território particular da imagem, originalmente em relação ao campo <strong>do</strong> cinemapara em seguida vetorizar-se de mo<strong>do</strong> transmidiático, sua recorrência em momentosdistintos revestiu-se de propósitos também diversos. Nos anos 1920, quan<strong>do</strong> o termo<strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário foi estabeleci<strong>do</strong>, a resposta sobre o que ele era decorria de <strong>um</strong>a necessidadede diferenciação em relação à reportagem cinematográfica (“atualidades”) e ao cinema deficção, reclaman<strong>do</strong> para si as prerrogativas da realidade. Nos anos 1960, da segunda vagaou <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário moderno, com a transformação de sua base técnica (miniaturização <strong>do</strong>sequipamentos, maior sensibilidade da película fotoquímica, sincronização da imagem e<strong>do</strong> som), aliada às novas modalidades narrativas (irrupção da narrativa subjetiva indiretalivre), introduziu-se <strong>um</strong> primeiro grande estranhamento a respeito de sua naturezamimética em relação a seu material de base, a realidade, quan<strong>do</strong> então surgiram diversasdenominações substitutivas (cinema-verdade, cinema direto, cinema <strong>do</strong> vivi<strong>do</strong>, cinemaespontâneo, cinema <strong>do</strong> comportamento etc.). Das três últimas décadas para cá, desdequan<strong>do</strong> as tecnologias e estéticas videográficas irromperam no horizonte nos anos 1970,com a alternativa <strong>do</strong> suporte eletrônico analógico e digital em relação à longa duração<strong>do</strong> suporte fotoquímico da fotografia e <strong>do</strong> cinema, produziu-se <strong>um</strong>a espécie de voragemintra, inter e multimeios que parecia tender para <strong>um</strong>a total pulverização <strong>do</strong> território <strong>do</strong><strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário. Mas não foi isso que aconteceu, embora a questão sobre sua naturezatenha se torna<strong>do</strong> muito mais escorregadia, de difícil formulação e mais ainda de resposta,e por isso mesmo muito mais crucial na atualidade.


40 Francisco Elinal<strong>do</strong> Teixeira Doc<strong>um</strong>entário expandi<strong>do</strong> – Reinvenções <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário na contemporaneidade 41Uma nova denominação surgiu nesse meio-tempo, a de cinema de não-ficção.Ambivalente, se por <strong>um</strong> la<strong>do</strong> ela nos lança de volta aos debates <strong>do</strong>s anos 1920, queopunham o cinema de realidade ou <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário nascente ao cinema de ficçãoestabeleci<strong>do</strong>, oposição hoje (e desde sempre) no mínimo problemática diante dastrocas intensas entre ambos, por outro la<strong>do</strong> ela também inscreve dificuldades existentesno âmbito das definições, deixan<strong>do</strong>-as em aberto pela negativa, pelo vácuo de <strong>um</strong>anão-definição que abre, o que não deixa de ser <strong>um</strong> mo<strong>do</strong> de expor algo da consistênciametamórfica, heteróclita, camaleônica, hetero<strong>do</strong>xa de que se reveste o <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entáriocontemporâneo. Consistência essa que se põe em foco também em denominações comoas de anti<strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário, contra<strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário, para<strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário ou pós-<strong>do</strong>c<strong>um</strong>entárioque, em vez de remeterem ao paradigma ficcional, detêm-se ludicamente no própriosubstantivo ao lhe acrescentar prefixos que certamente inscrevem e ampliam muito desua feição polifônica.De todas essas terminologias que vieram des<strong>do</strong>brar a questão ontológica de base – o queé o <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário? –, a mais recente é essa que sugere <strong>um</strong> patamar pós-<strong>do</strong>c<strong>um</strong>ental para omomento em que nos situamos. O que seria a nossa época como <strong>um</strong>a era pós-<strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário?Significaria que to<strong>do</strong> o burburinho em torno <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário nas últimas três décadas,toda essa rui<strong>do</strong>sa produção de textos, de filmes, de vídeos, de peças audiovisuais as maisdiversas que a ele remetem como <strong>um</strong> referente espesso e multifaceta<strong>do</strong>, teria a ressonânciade <strong>um</strong> canto de coruja de Minerva ao cair da tarde? Pura tagarelice em torno de algo quejá passou, teve sua época áurea e agora se recolhe e se esf<strong>um</strong>aça sob a “luz polar” de nossaera informacional? Questão difícil, já que os fatos e artefatos culturais nos habituaram a <strong>um</strong>desenho com esse tipo de trajetória. Por outro la<strong>do</strong>, já tivemos toda <strong>um</strong>a seqüência de póse pós-pós também nas últimas décadas, ten<strong>do</strong> atingi<strong>do</strong> o risível e irônico limiar daquilo queo poeta concreto chamou de “pós-tu<strong>do</strong>” ou “postu<strong>do</strong>”, quan<strong>do</strong> parecíamos querer deixar deser contemporâneos de nós mesmos e mergulhar na eternidade.A noção de pós-<strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário pode ter outra envergadura. Em vez de <strong>um</strong> fim ouesgotamento, ela aponta para novos começos, para formas expandidas <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entárioobserváveis em larga escala nos diversos contextos audiovisuais da atualidade.Transmutemos-na, portanto, na noção de “<strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário expandi<strong>do</strong>”. Trata-se de <strong>um</strong>asérie de operações postas em curso no <strong>do</strong>mínio <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário que visam à ampliaçãode suas fronteiras e que desmontam o senso com<strong>um</strong>, as idéias herdadas que dele setinham até recentemente. Essa expansão de limites se dá, basicamente, em relação aostrês grandes <strong>do</strong>mínios da ficção, <strong>do</strong> experimental e <strong>do</strong> próprio <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário em suasfeições clássica e moderna. Ou seja, ao mesmo tempo em que transforma sua própriatradição, a expansão <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário desenha novas relações com os <strong>do</strong>mínios ficcionale experimental. Circunstanciemos esses três deslocamentos.Se tivéssemos de contornar e admitir que houve <strong>um</strong>a “essência” <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário,sobretu<strong>do</strong> no perío<strong>do</strong> clássico, qual seria ela? Imediatamente nos ocorreria o grander<strong>um</strong>or em torno <strong>do</strong> senti<strong>do</strong> de realidade que lá se produziu e que reivindicou <strong>um</strong>aalteridade radical para o <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário em termos de <strong>um</strong> “estar ali”, operan<strong>do</strong> com<strong>um</strong> registro <strong>do</strong> “tempo presente” n<strong>um</strong>a dada situação da realidade, <strong>do</strong> concreto, <strong>do</strong>historicamente da<strong>do</strong>. Ou seja, estamos diante de <strong>um</strong>a “metafísica da presença” que desdea invenção da fotografia não parou mais de reivindicar o privilégio de <strong>um</strong> “eu estive lá,eis aqui a prova”, des<strong>do</strong>bran<strong>do</strong>-se no <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário no familiar reclamo “eis a vida comoela é”. O <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário adquiria, assim, em relação aos outros gêneros ou <strong>do</strong>mínios <strong>do</strong>cinema, <strong>um</strong> charme peculiar análogo àquele da palavra oral concernente à escritura:diferentemente da mediação que a palavra escrita opera em relação ao pensamento, apalavra falada seria o suporte de <strong>um</strong> pensamento vivo, direto, sem mediação, portanto,porta<strong>do</strong>r das prerrogativas de autenticidade, verdade e objetividade <strong>do</strong> ser em suaimediata transparência.Essa matriz da presença na/da realidade como aquilo que fundava o mo<strong>do</strong> de ser <strong>do</strong><strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário, que por décadas o evocou e para muitos ainda hoje o evoca, foi <strong>um</strong><strong>do</strong>s seus primeiros aspectos a ser desconstruí<strong>do</strong>, já com o advento <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entáriomoderno. Não no âmbito <strong>do</strong> cinema direto, cuja atitude tendencialmente contemplativadava a ver <strong>um</strong>a realidade que parecia escorrer sem cessar n<strong>um</strong> eterno presente, masno <strong>do</strong> cinema-verdade, que a pressionava de tal mo<strong>do</strong> que a fazia se <strong>do</strong>brar n<strong>um</strong>amultiplicidade de aspectos que acabavam por transformá-la entre o que ela era antes eo que será depois <strong>do</strong> filme completo.Com essa mística da realidade em presença se propon<strong>do</strong> a imprimir suas marcas no<strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário, os códigos ou as regras que o estruturavam se cercaram de to<strong>do</strong> <strong>um</strong>discurso de sobriedade que por décadas funcionou como <strong>um</strong>a espécie de “abre-te,sésamo!”. O <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário, por essa via, requeria-se como <strong>um</strong>a peça minimalista marcadapelo despojamento de materiais, pela austeridade construtiva, pela depuração de formas,pela ausência de ornamentos, ou seja, to<strong>do</strong> <strong>um</strong> requisitório para contornar ou deixar dela<strong>do</strong> o que fosse da ordem da expressividade ou da subjetividade, da reflexividade ouda auto-reflexividade, tu<strong>do</strong> que pudesse abalar ou comprometer seus investimentosnos poderes de <strong>um</strong>a realidade que se queria comunicativa, para<strong>do</strong>xalmente, quase semnenh<strong>um</strong>a mediação. Não é preciso dizer quanto essa ordem comunicacional cedeuquase ponto por ponto os seus termos, n<strong>um</strong> novo contexto de entropia da significaçãoque veio transformar o aproveitamento <strong>do</strong> ruí<strong>do</strong> na ponta-de-lança por excelência dacriação de novos senti<strong>do</strong>s para o <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário.Um segun<strong>do</strong> deslocamento deu-se em relação à ficção e aos seus códigos, objetos derecusa desde as fundações <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário. Mas se n<strong>um</strong> primeiro momento tal recusa,de princípios mais que de fatos, pois <strong>um</strong>a mínima ficção continuou irresistível, pôde seapoiar na reivindicação da realidade ou da naturalidade contra o sistema artificial deprodução em estúdio e toda sua parafernália técnica, foi igualmente a partir <strong>do</strong>s anos1960 que essas petições de princípios se viram totalmente abaladas. Primeiro, em função<strong>do</strong> lugar estratégico que a nova base técnica passou a ocupar, quase como <strong>um</strong> fetiche,quan<strong>do</strong> então fazer <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entários tornou-se sinônimo de ter equipamentos leves, som


42 Francisco Elinal<strong>do</strong> Teixeira Doc<strong>um</strong>entário expandi<strong>do</strong> – Reinvenções <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário na contemporaneidade 43e imagem sincroniza<strong>do</strong>s, roteiro mínimo ou construí<strong>do</strong> em campo com os personagensreais, to<strong>do</strong>s esses elementos que foram sen<strong>do</strong> apropria<strong>do</strong>s pelo cinema ficcional maiscriativo <strong>do</strong> pós-guerra, <strong>do</strong> neo-realismo à nouvelle vague e cinemas novos. Segun<strong>do</strong>, comas mudanças operadas na estrutura narrativa, na construção <strong>do</strong>s relatos, quan<strong>do</strong> o real eo ficcional se contaminaram n<strong>um</strong>a tal escala de mo<strong>do</strong> que impugnou o discurso anteriorde demarcação de fronteiras. Essa instabilidade já tivera início com os primeiros filmesneo-realistas, que haviam lança<strong>do</strong> para fora <strong>do</strong>s estúdios suas equipes e as posiciona<strong>do</strong>diante de cenários em ruínas, portanto, frente aos da<strong>do</strong>s de <strong>um</strong>a realidade que de tãoextraordinária parecia exceder toda faculdade de imaginação que alimentara o cinemaficcional. Curiosamente, <strong>um</strong>a das sugestões de nomeação <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário nascente nosanos 1920 havia si<strong>do</strong> a de cinema neo-realista!De mo<strong>do</strong> que as trocas entre os <strong>do</strong>mínios da ficção e <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário aí processadasvarreram de vez a noção de realismo no cinema ou da imagem como <strong>um</strong> mero naturalismo.Doravante, qualquer realismo <strong>do</strong>c<strong>um</strong>ental passava por <strong>um</strong> crivo construtivista mínimoou total, ou seja, pela idéia de que o realismo era <strong>um</strong>a construção estética como outraqualquer e não a operação direta de <strong>um</strong>a realidade que se expunha em sua integridadeou autenticidade. Esse desbloqueio veio repor <strong>um</strong> da<strong>do</strong> aparentemente banal, mas degrandes conseqüências: o de que, por mais que caminhasse tecnicamente na direçãode <strong>um</strong>a mimese cada vez mais aperfeiçoada em relação à realidade (com a imagemem movimento, o som, a cor, a profundidade de campo etc.), o cinema continuavainscrito no paradigma perspectivista clássico, ou seja, continuava sen<strong>do</strong> <strong>um</strong>a simulação<strong>do</strong> olho h<strong>um</strong>ano diante <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, a simulação de <strong>um</strong> ponto de vista lança<strong>do</strong> sobreas coisas, <strong>um</strong>a máquina de visão com to<strong>do</strong>s os seus defeitos ou anomalias (imagemplana, estática, bidimensional etc.), e não o mun<strong>do</strong>, as coisas, a realidade em si mesmos.Essa desnaturalização, desfamiliarização ou estranhamento <strong>do</strong> dispositivo imagéticoencontra-se no cerne das renovações que a imagem videográfica, depois <strong>do</strong> cinema, vemimprimin<strong>do</strong> no <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário desde os anos 1970.E aqui chegamos ao nosso terceiro deslocamento, o das relações <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário como <strong>do</strong>mínio <strong>do</strong> experimental. Talvez aqui se encontre <strong>um</strong> locus por excelência da expansãoe renovação das formas <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entárias na contemporaneidade. A vertente realista <strong>do</strong>cinema <strong>do</strong>c<strong>um</strong>ental <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> entre a Primeira e a Segunda Guerras (<strong>do</strong>c<strong>um</strong>entáriogriersoniano e quejan<strong>do</strong>s) defrontou-se desde o início com <strong>um</strong>a vertente “formativista”,de vanguarda ou experimental, atenta às preocupações formais, estilísticas, expressivas,poéticas <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário, que nos legou peças como Rien que les Heures (AlbertoCavalcanti, 1926), Berlim, Sinfonia de <strong>um</strong>a Grande Cidade (Walter Ruttman, 1927), OHomem da Câmera (Dziga Vertov, 1929), Chuva (Joris Ivens, 1929), A Propósito de Nice(Jean Vigo, 1929) etc. Essa vertente, embora retomada sob vários aspectos desde osanos 1950 e 1960, empalideceu diante da maior exposição da tendência realistahegemônica, <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário oficial ou espetacular, permanecen<strong>do</strong> em circulaçãopor <strong>um</strong>a via subterrânea que, no entanto, não parou de alimentá-lo e realimentá-lo dediversas maneiras e em diversos momentos.Como esbocei anteriormente, o problema <strong>do</strong> cinema de vanguarda para o<strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário era sua feição antiilusionista que, em vez de mergulhar no canto de cisne<strong>do</strong>s aprimoramentos técnicos como suplementos de mais realidade na imagem, tiravaproveito justamente da precariedade <strong>do</strong> dispositivo, de seu artificialismo, fazen<strong>do</strong> disso<strong>um</strong>a base de lançamento de <strong>um</strong>a nova era de criação artística. Essa veia experimental<strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário, com grande relevo hoje para as concepções vertovianas de <strong>um</strong> “cineolho”que contorna e ultrapassa a mera percepção e o alcance <strong>do</strong> sistema perceptivo edas máquinas sensórias que lhe servem de suporte, tornou-se crucial e estratégica parasua renovação quan<strong>do</strong> <strong>do</strong> surgimento de novas máquinas além da <strong>do</strong> cinema e seusdes<strong>do</strong>bramentos internos. Com a irrupção da imagem-vídeo na cultura audiovisual, asensação que se tem é a de <strong>um</strong> completo desbloqueio da construção imagética quenos lança n<strong>um</strong> novo tempo de investigação e experimentação, que não deixa dereverberar aquele das primeiras décadas <strong>do</strong> século XX com a efervescência de suasvanguardas artísticas, dispostas a lançar por terra tu<strong>do</strong> que fosse da ordem de <strong>um</strong>a “arteretiniana” que por séculos havia erigi<strong>do</strong> a postura vertical h<strong>um</strong>ana como condicionantede nosso universo óptico e a imagem especular, primeiro pictórica, depois fotográfica ecinematográfica, como “janela aberta para o mun<strong>do</strong>”.Esses três vetores de deslocamento <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário – em relação a si, à ficção e aoexperimental – constituem <strong>um</strong>a expansão de seus limites a princípio rígi<strong>do</strong>s, mas que já hácerto tempo se abriram à contaminação e à hibridização (conforme expressão hipertrofiadaposta em circulação pelo espírito da época) de múltiplas maneiras, configuran<strong>do</strong>-se ele, naatualidade, em geral segun<strong>do</strong> modalidades eminentemente ensaísticas.A noção de ensaio é de enorme pertinência para situar essa turbulência metamórfica,transformacional, posta em curso nos últimos tempos. Não se trata de <strong>um</strong> formatoespecífico de <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário, mas de tendências de estruturação dele, mesmo os maissisu<strong>do</strong>s e reticentes quanto à investigação formal e estilística, que operam com elementoscomo a diversidade de materiais, a fragmentação, a falta de univocidade e totalização, asubjetividade e a expressividade, as elipses, os deslocamentos e condensações, sem falar<strong>do</strong>s inúmeros traços de auto-reflexividade que têm marca<strong>do</strong> a produção em larga escala.Mas, sobretu<strong>do</strong>, de reflexividade no senti<strong>do</strong> de <strong>um</strong> trabalho de pensamento que se debruçasobre suas matérias para moldá-las e manipulá-las conforme propósitos que não estãoda<strong>do</strong>s nelas, que não são evidentes, que nascem da relação mesma <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entaristacom os entornos que sua vista ou imaginação alcançam, com seus objetos, agentes oupersonagens implica<strong>do</strong>s, suas derivas, oscilações, dúvidas em relação ao processo decriação, que raramente se esgotam n<strong>um</strong> resulta<strong>do</strong> pronto e acaba<strong>do</strong>.Enfim, na distância que percorreu em relação aos primeiros tempos, o <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário sereinventa na contemporaneidade como <strong>um</strong>a forma de “escritura” que tem no ensaio suasorientações e estratégias mais criativas.


44 45O filme-dispositivo no <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário brasileiro contemporâneoConsuelo LinsDoc<strong>um</strong>entarista e professora da Universidade Federal <strong>do</strong> Rio de Janeiro. Doutorou-se pela Universidadede Paris 3 (Sorbonne Nouvelle) com tese sobre <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário centrada na obra <strong>do</strong> cineasta americanoRobert Kramer. Realizou, em 1999, Chapéu Mangueira e Babilônia: Histórias <strong>do</strong> Morro e, em 2001, JulliusBar. Atuou como pesquisa<strong>do</strong>ra e diretora de <strong>um</strong>a das equipes de filmagem <strong>do</strong>s <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entáriosBabilônia 2000 e Edifício Master, de Eduar<strong>do</strong> Coutinho. Dirigiu Lectures em 2005, curta-metragemrealiza<strong>do</strong> em Paris com <strong>um</strong> telefone portátil, seleciona<strong>do</strong> para vários festivais e premia<strong>do</strong> como melhorcurta-metragem brasileiro no Festival de Curtas de Belo Horizonte (2006). Fez pós-<strong>do</strong>utora<strong>do</strong> naUniversidade de Paris 3 (2005) sobre a produção <strong>do</strong>c<strong>um</strong>ental mais marcadamente subjetiva. Escreveregularmente artigos sobre a criação audiovisual contemporânea e publicou em 2004 O Doc<strong>um</strong>entáriode Eduar<strong>do</strong> Coutinho: Televisão, Cinema e Vídeo (Jorge Zahar).Os filmes de Eduar<strong>do</strong> Coutinho, Cao Guimarães, João Salles, Sandra Kogut e KikoGoifman são distintos entre si e expressam diferentes concepções de cinema,maneiras singulares de filmar, específicas relações com o mun<strong>do</strong> e os personagens.No entanto, apesar das divergências, é possível identificar nos processos de trabalho dessescineastas ao menos <strong>um</strong>a prática em com<strong>um</strong>: eles fazem filmes que prescindem da feiturade <strong>um</strong> roteiro em favor de certas estratégias de filmagem que não têm mais por funçãorefletir <strong>um</strong>a realidade preexistente, nem obedecer a <strong>um</strong> arg<strong>um</strong>ento construí<strong>do</strong> antesda filmagem. Para esses diretores, o mun<strong>do</strong> não está pronto para ser filma<strong>do</strong>, mas emconstante transformação; e a filmagem não apenas intensifica essa mudança, mas podeaté mesmo provocar acontecimentos para serem especialmente captura<strong>do</strong>s pela câmera.Para isso, eles constroem procedimentos de filmagem para filmar o mun<strong>do</strong>, o outro, a sipróprios, assinalan<strong>do</strong> ao especta<strong>do</strong>r, nesse mesmo movimento, as circunstâncias em queos filmes foram construí<strong>do</strong>s. São cineastas que filmam com base em “dispositivos” – o quenão garante a realização <strong>do</strong>s <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entários, nem a qualidade deles. Mas é <strong>um</strong> caminho.O que é <strong>um</strong> dispositivo?Precisemos <strong>um</strong> pouco mais essa noção cada vez mais recorrente no <strong>do</strong>mínio <strong>do</strong><strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário e que se tornou central na crítica das artes audiovisuais contemporâneas.Deixemos claro, de imediato, que não nos referimos aqui à concepção <strong>do</strong> cinema comodispositivo segun<strong>do</strong> a formulação de parte da crítica francesa <strong>do</strong>s anos 1970. Estruturalismoe psicanálise são convoca<strong>do</strong>s por essa crítica totalizante que inclui tanto o dispositivocentral de captação de imagens quanto o dispositivo de exibição. Trata-se, por <strong>um</strong> la<strong>do</strong>, deassociar o cinema a <strong>um</strong> projeto ideológico: a câmera não é neutra e reproduz os códigosque definem a objetividade visual desde o Renascimento, estan<strong>do</strong> assim impregnada dacultura <strong>do</strong>minante. Por outro, trata-se de explicitar as condições psíquicas de recepçãoinerentes ao dispositivo da sala escura, que imobiliza o especta<strong>do</strong>r entre a imagem e o


46 Consuelo Lins O filme-dispositivo no <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário brasileiro contemporâneo 471 Retomo, aqui, de forma muitíssimo breve,alguns arg<strong>um</strong>entos da oportuna síntesee atualização <strong>do</strong> debate feita por IsmailXavier em “As aventuras <strong>do</strong> dispositivo(1978-2004)”. Aconselho vivamente a leituradesse capítulo acrescenta<strong>do</strong> à novaedição <strong>do</strong> livro O Discurso Cinematográfico:A Opacidade e a Transparência. São Paulo:Paz e Terra, 2005. p. 175.2 Dispositifs, in Déjouer l’image. Nîmes:Critiques d’Art, Editions JacquelineChambon, 2002. p. 21.3 Sob o risco <strong>do</strong> real, in Catálogo <strong>do</strong>5º Festival <strong>do</strong> Filme Doc<strong>um</strong>entário eEtnográfico. Belo Horizonte, nov. 2001.p. 99, 111. Ver também Voir et Pouvoir.L’innocence Perdue: Cinema, Telévision,Fiction, Doc<strong>um</strong>entaire. Verdier, 2004.projetor, favorecen<strong>do</strong> a identificação dele com os heróis na tela e com o que produz oespetáculo, a própria câmera 1 .O especta<strong>do</strong>r, produto desse dispositivo, é <strong>um</strong> ser necessariamente aliena<strong>do</strong>: naturalizao que é artifício, negan<strong>do</strong> a representação como representação; vive a ilusão de queé o centro <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> e que dele emana o senti<strong>do</strong> das imagens, o que em tempos dedesconstrução e de crítica às noções de sujeito e autoria é <strong>um</strong> ultraje. E o pior, para essacrítica, é que essa experiência alienante se repete a cada filme, por mais diferentes quesejam as histórias narradas, pois é de forma estrutural que o dispositivo cinematográficodefine as condições e a natureza da experiência <strong>do</strong> especta<strong>do</strong>r.Tampouco nos deteremos, nos limites deste artigo, em instalações que utilizam vídeo,computa<strong>do</strong>r ou cinema em galerias ou museus, embora várias características dessesdispositivos se assemelhem ao uso que fazemos deles aqui. Nesses dispositivos de criaçãoe/ou exibição das obras, o especta<strong>do</strong>r experimenta sensações físicas e mentais pormeio da disposição de elementos (telas múltiplas, câmeras etc.) em <strong>um</strong>a determinadaorganização espacial. Imagens podem ser produzidas antes e/ou durante a exploraçãoque o especta<strong>do</strong>r faz da obra; em alguns casos, são imagens em circuito fecha<strong>do</strong>, nasquais o que está em questão é o deslocamento perceptivo <strong>do</strong> especta<strong>do</strong>r.Contu<strong>do</strong>, a produção dessas imagens difere da das imagens criadas pelos dispositivosde filmagem de certos <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entários, que são necessariamente anteriores ao momentode exibição <strong>do</strong>s filmes. De toda maneira, “dispositivo” é, nesses <strong>do</strong>is contextos, <strong>um</strong>procedimento produtor, ativo, cria<strong>do</strong>r – de realidades, imagens, mun<strong>do</strong>s, sensações,percepções que não preexistiam a ele. Como enfatiza Anne-Marie Duguet, “to<strong>do</strong> dispositivovisa produzir efeitos específicos” 2 . O que acontece mesmo na teoria <strong>do</strong> cinema comodispositivo: a dimensão produtora está presente, só que o dispositivo cinematográficoproduz, segun<strong>do</strong> seus críticos <strong>do</strong>s anos 1970, apenas <strong>um</strong> tipo de experiência. No caso<strong>do</strong>s dispositivos artísticos, trata-se de sistemas diferencia<strong>do</strong>s que estruturam experiênciassensíveis, a cada vez de mo<strong>do</strong> específico.É também de mo<strong>do</strong> específico que os dispositivos <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entais funcionam. Não é, emabsoluto, algo que se dá em to<strong>do</strong> filme de forma semelhante, estrutural, no cinemacomo <strong>um</strong> to<strong>do</strong>, mas cria<strong>do</strong> a cada obra, imanente, contingente às circunstâncias defilmagem, e submeti<strong>do</strong> às pressões <strong>do</strong> real. Trata-se de <strong>um</strong> uso da noção de dispositivoque tem no crítico e cineasta Jean-Louis Comolli seu defensor mais inspira<strong>do</strong>. Para ele,diante da “crescente roteirização das relações sociais e intersubjetivas”, <strong>do</strong>s “roteirosque se instalam em to<strong>do</strong> lugar para agir (e pensar) em nosso lugar”, parte da produção<strong>do</strong>c<strong>um</strong>ental tem a possibilidade de se ocupar <strong>do</strong> que resta, <strong>do</strong> que sobra, <strong>do</strong> que nãointeressa às versões fechadas <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> que a mídia nos oferece. Ao contrário <strong>do</strong>sroteiros que temem o que neles provoca fissuras e afastam o que é acidental e aleatório,os dispositivos <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entais extraem da precariedade, da incerteza e <strong>do</strong> risco de não serealizar sua vitalidade e condição de invenção 3 .Em Eduar<strong>do</strong> Coutinho (Santo Forte, Babilônia 2000, Edifício Master, O Fim e o Princípio), odispositivo é, antes de qualquer coisa, relacional, <strong>um</strong>a máquina que provoca e permite filmarencontros. Relações que acontecem dentro de linhas espaciais, temporais, tecnológicas,acionadas por ele cada vez que se aproxima de <strong>um</strong> universo social. A dimensão espacialdesse dispositivo – as filmagens em locações únicas – é a mais importante. Para Coutinho,pouco importa <strong>um</strong> tema ou <strong>um</strong>a idéia se não estiverem atravessa<strong>do</strong>s por <strong>um</strong> dispositivo,que não é a “forma” de <strong>um</strong> filme, tampouco sua estética, mas impõe determinadas linhasà captação <strong>do</strong> material. Em João Salles (Futebol, Santa Cruz, Entreatos), há <strong>um</strong>a opção porfilmagens longas, mais observa<strong>do</strong>ras <strong>do</strong> que interativas, inspiradas nas técnicas <strong>do</strong> cinemadireto. É <strong>um</strong> dispositivo em que a dimensão temporal é crucial e produz efeitos no filme,diferente das intervenções curtas de Coutinho, em que o tempo de filmagem não contaespecialmente para a narrativa 4 .O tempo também é a principal linha <strong>do</strong> dispositivo de Passaporte Húngaro, de SandraKogut, mas não se trata de <strong>um</strong> filme de observação, pois a ação que integra seu dispositivo– tirar <strong>um</strong> passaporte – obriga a diretora a muita conversa e negociação. É <strong>um</strong> filme emque o autor é ator, em que a escrita fílmica está ligada à noção de agir: o diretor age paracriar suas histórias. O mesmo acontece com 33, de Kiko Goifman 5 , que também é resulta<strong>do</strong>de <strong>um</strong> dispositivo fortemente temporal, mas com limitações no tempo de filmagem queinexistem nos <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entários anteriores. Seus 33 anos de idade lhe deram o número dedias que ele tinha para encontrar sua mãe biológica.Essa regra orto<strong>do</strong>xa imprime ao filme <strong>um</strong>a tensão: ou ele consegue material suficientenesses 33 dias de filmagem e investigação, ou não há filme.“33 dias porque tenho 33 anos”: por mais arbitrário que o dispositivo de Kiko Goifmanpossa parecer, ele apenas revela, sem meias palavras, a arbitrariedade presente em to<strong>do</strong>e qualquer filme-dispositivo, com mais ou menos força, com mais ou menos sutileza.Não há qualquer fundamento “lógico” para esse número de dias. Da mesma maneira,não é nada “natural” que <strong>um</strong>a brasileira tire Passaporte Húngaro em Paris, já que noBrasil seria muito mais fácil, e provavelmente não daria filme. É também da ordem<strong>do</strong> artifício produzir encontros para ser filma<strong>do</strong>s ou seguir personagens durante <strong>do</strong>isanos, e é bom que seja assim. Por que não seis meses? Por que esses personagens enão outros? Ora, porque <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entários não brotam <strong>do</strong> coração <strong>do</strong> real, espontâneos,naturais, rechea<strong>do</strong>s de pessoas e situações autênticas, prontas para ser capturadas porseres sensíveis, cheios de idéias na cabeça e câmeras na mão; são, sim, gera<strong>do</strong>s pelomais “puro” artifício, na acepção literal da palavra: “processo ou meio através <strong>do</strong> qual seobtém <strong>um</strong> artefato ou <strong>um</strong> objeto artístico” (Dicionário Aurélio). Muitos deles, e talvezos melhores, são frutos de <strong>um</strong>a “maquinação”, de <strong>um</strong>a lógica, de <strong>um</strong> pensamento, queinstitui condições, regras, limites para que o filme aconteça; e de <strong>um</strong>a “maquinaria” 6 queproduz concretamente a obra.4 Evidentemente não me refiro a CabraMarca<strong>do</strong> para Morrer (1964-1984), masaos filmes posteriores <strong>do</strong> diretor.5Jean-Claude Bernardet identifica nomovimento <strong>do</strong>s filmes de Kogut eGoifman – em que “a <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entação tendea se tornar o registro da busca” – <strong>um</strong><strong>do</strong>s mais estimulantes <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entáriorecente. “Novos r<strong>um</strong>os <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entáriobrasileiro?”, in Catálogo <strong>do</strong> 7º Festival <strong>do</strong>Filme Doc<strong>um</strong>entário e Etnográfico. BeloHorizonte, nov./dez. 2003.6Retomamos essas noções de PhilippeDubois, que as utiliza mais especificamentepara falar de filmes com dimensõesautobiográficas e relaciona<strong>do</strong>s àmemória, mas que nos parecem férteispara pensar os filmes-dispositivos de<strong>um</strong>a forma mais ampla. “A foto-autobiografia”, in Revista Imagens. Campinas: Ed.Unicamp. p. 64-76. Dubois amplia o usodessas noções em Cinema, Vídeo, Godard.São Paulo: Cosac & Naif, 2004.


48 Consuelo Lins O filme-dispositivo no <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário brasileiro contemporâneo 49Dispositivo e jogoAnalisemos mais detidamente <strong>do</strong>is filmes <strong>do</strong> mineiro Cao Guimarães: Rua de MãoDupla, concebi<strong>do</strong> inicialmente como videoinstalação para a 25ª Bienal Internacionalde São Paulo, em 2002, e Acidente (2005), realiza<strong>do</strong> em parceria com Pablo Lobato. Écomo se nesses <strong>do</strong>is filmes a idéia de dispositivo se lapidasse, ganhasse em limpideze incluísse <strong>um</strong>a dimensão lúdica, de jogo, de brincadeira com o real. Em Rua de MãoDupla, Cao Guimarães convi<strong>do</strong>u seis pessoas pertencentes às camadas médias dapopulação de Belo Horizonte para participar de <strong>um</strong>a experiência inusitada: divididasem duplas, elas trocariam de casa por 24 horas e, munidas de <strong>um</strong>a pequena câmeradigital, filmariam o que bem lhes aprouvesse na casa alheia, tentan<strong>do</strong> “elaborar <strong>um</strong>a‘imagem mental’ <strong>do</strong> outro(a) através da convivência com seus objetos pessoais e seuuniverso <strong>do</strong>miciliar” 7 . Ao final, dariam <strong>um</strong> depoimento para a câmera, contan<strong>do</strong> comoimaginaram esse ”outro”. Portanto, o diretor não filma nem dirige, mas concebe <strong>um</strong>jogo, distribui cartas, determina regras, escolhe joga<strong>do</strong>res, fornece câmeras, transporte,comida. Provê o necessário e sai de campo. Trata-se de <strong>um</strong>a maquinação que implica aausência de controle <strong>do</strong> diretor sobre o material filma<strong>do</strong>, propician<strong>do</strong> <strong>um</strong>a espécie de“retirada estética” não propriamente <strong>do</strong> filme – afinal, o dispositivo é dele, assim como amontagem <strong>do</strong> filme –, mas das imagens e <strong>do</strong>s sons que seu filme vai conter, atribuin<strong>do</strong>a seis outros indivíduos a tarefa de filmar e se autodirigir 8 .O dispositivo que “dispara” a filmagem de Acidente é, de certa maneira, o mais conceitualde to<strong>do</strong>s os que vimos até aqui. Não há inicialmente nenh<strong>um</strong> interesse particular<strong>do</strong>s cineastas por <strong>um</strong> aspecto concreto da realidade. É como se houvesse, antes detu<strong>do</strong>, pairan<strong>do</strong> no ar, <strong>um</strong>a questão imensa, questão de vida, em que os cineastas seperguntassem como se relacionar com o mun<strong>do</strong> diante de tantas possibilidades, detantos filmes já feitos, de tantas imagens prontas, sem suc<strong>um</strong>bir nem ao caos nem aosclichês. Ou, como diria J. L. Comolli, “como fazer para que haja filme” 9 ? Cao Guimarãese Pablo Lobato decidem se apegar às palavras: criam <strong>um</strong> dispositivo-poema e deposse dele começam a filmar. Mas não são palavras quaisquer retiradas <strong>do</strong> dicionário– poderiam ser, mas gerariam outro filme.filmar; retira deles o direito de recusar <strong>um</strong>a cidade caso não gostem dela, porque nessecaso o poema deixaria de funcionar. Reduz o excesso de intencionalidade. É <strong>um</strong> jogo quetem suas regras, às quais eles devem se submeter. Não se trata em absoluto de adaptarpalavras às coisas, nomes às cidades, mas de construir <strong>um</strong>a forma de se confrontar como caos <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> sem submergir, de imprimir <strong>um</strong>a direção inicial, abrin<strong>do</strong> ao mesmotempo o filme aos acasos, imprevistos e imponderáveis <strong>do</strong> real.Mas os dispositivos, como já destacamos, não garantem filmes e podem ser abala<strong>do</strong>sno confronto com o real. “O movimento <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> não se interrompe para permitir ao<strong>do</strong>c<strong>um</strong>entarista polir seu sistema de escritura.” 10 A segunda regra <strong>do</strong> jogo era buscar aorigem <strong>do</strong>s nomes das cidades escolhidas, o que se verificou improdutivo já no inícioda filmagem. Se, para chegar a essas cidades anônimas, distantes da imagem de cartãopostaldas cidades históricas mineiras, o poema foi fundamental – e respeita<strong>do</strong> até ofim –, a conexão para essa segunda etapa foi aban<strong>do</strong>nada sem pena. Talvez porquefosse <strong>um</strong> caminho conheci<strong>do</strong>, cujo resulta<strong>do</strong> colocaria o filme próximo <strong>do</strong> pitoresco,<strong>do</strong> que é curioso, <strong>do</strong> que pode ser turístico no interior mineiro – de tu<strong>do</strong> aquilo <strong>do</strong> qualos diretores queriam distância. O poema implicava <strong>um</strong>a abertura na relação com ascidades que essa temática da origem destruía. “Excluiu-se, portanto, o assunto, e o filmeficou sobre assunto nenh<strong>um</strong>”, diz Cao Guimarães.Os <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entários que resultaram desses dispositivos são profundamente distintosentre si: Acidente é <strong>um</strong> filme que reinventa a imagem-tempo em esplêndi<strong>do</strong>s planosseqüência,a maioria deles fixa ou com sutis movimentos de câmera, que capturam aduração, o tempo que passa, em várias camadas, nas pequenas cidades mineiras. OndeAcidente mais parece se aproximar da fotografia – em razão <strong>do</strong>s belíssimos recortes <strong>do</strong>mun<strong>do</strong> realiza<strong>do</strong>s pela câmera de vídeo ou em película super-8 – é justamente ondeo filme mais se distancia da imagem estática, em razão da duração. Na cidade de EntreFolhas, por exemplo, vemos o cair da tarde <strong>do</strong> balcão de <strong>um</strong> bar onde praticamentenada acontece, a não ser os movimentos infra-ordinários de seu proprietário ou a raracirculação de carros e pessoas <strong>do</strong> la<strong>do</strong> de fora. Na cidade de Palma, o filme se atém a<strong>um</strong>a ladeira em que os tempos mortos se alternam com microacontecimentos.7Cao Guimarães, no texto da contracapa<strong>do</strong> vídeo Rua de Mão Dupla.8Esse filme é analisa<strong>do</strong> por mim maislongamente no artigo “Rua de MãoDupla: <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário e arte contemporânea”,in Kátia Maciel. Transcinemas. Riode Janeiro: Contracapa, 2006.9Idem, p. 99.São nomes de cidades mineiras cuja lista eles pesquisaram no site <strong>do</strong> IBGE. Selecionaram100 e as imprimiram. Espalharam os papéis sobre a mesa e começaram a brincar com aspalavras. Sonoridades, senti<strong>do</strong>s, materialidades, ressonâncias: foi isso que contou para oscineastas, e não <strong>um</strong> conhecimento prévio da realidade das cidades, das quais, aliás, elesignoravam tu<strong>do</strong>. Chegaram a <strong>um</strong> poema com 20 nomes que evoca <strong>um</strong>a fábula de amore <strong>do</strong>r: “Helio<strong>do</strong>ra, Virgem da Lapa, Espera Feliz, Jacinto Olhos d’Água, Entre Folhas, Ferros,Palma, Caldas, Vazante, Passos, Pai Pedro Abre Campo, Ferve<strong>do</strong>uro Descoberto, Tiros,Tombos, Planura, Águas Vermelhas, Dores de Campos”.O dispositivo-poema torna-se, portanto, <strong>um</strong>a máquina de produzir imagem e adquire,como to<strong>do</strong>s os dispositivos, certo poder sobre os cineastas. Decide por eles onde vãoSão blocos de espaço-tempo que nos fazem ver e sentir “<strong>um</strong> pouco de tempo em esta<strong>do</strong>puro”, à maneira de Ozu 11 . O filme inteiro é captura<strong>do</strong> por <strong>um</strong>a espécie de inação, quecontamina personagens e cineastas, favorecen<strong>do</strong> <strong>um</strong>a atenção inédita e concentradanas pequenas coisas <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, nos seres, nos movimentos, nos gestos, nos ruí<strong>do</strong>s,nas conversas. O especta<strong>do</strong>r também é envolvi<strong>do</strong> nesse circuito em que as conexõesentre palavras e coisas, nomes e cidades, acontecimentos e personagens são tênues,frágeis e, finalmente, de pouca importância. Trata-se de <strong>um</strong> filme em que a dimensãopropositiva <strong>do</strong> dispositivo se mistura a <strong>um</strong>a dimensão mais plástica, contemplativa eformal, mesclan<strong>do</strong> em <strong>um</strong> só tempo <strong>do</strong>is movimentos que Cao Guimarães identifica emsua trajetória, em trabalhos diferentes.10Idem, p. 106.11 Expressão de Gilles Deleuze, referin<strong>do</strong>seao cineasta japonês, em A Imagem-Tempo. São Paulo: Brasiliense, 2006.


50 Consuelo Lins O filme-dispositivo no <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário brasileiro contemporâneo 51Quanto a Rua de Mão Dupla, a grande invenção <strong>do</strong> filme, responsável pela solidez daproposta, é a solicitação <strong>do</strong> diretor de que os “outros” em questão, os participantes<strong>do</strong> filme, se interessem por outros e não por eles mesmos, atitude que redireciona odesejo da “besta da confissão” (Michel Foucault) em que nos transformamos a partir<strong>do</strong> momento em que <strong>um</strong>a câmera é postada diante de nós. Cao Guimarães não querque eles se voltem para si, que falem de sua vida, que se revelem para a câmera;pede, antes, que falem de pessoas desconhecidas e filmem casas alheias. A mudançade foco <strong>do</strong> “eu” para o “outro” faz com que os personagens fiquem menos atentos aautocontroles, censuras e filtros que normalmente acionamos para oferecer a imagemque desejamos de nós mesmos. A maneira como se relacionam com o espaço alheio, oque escolhem filmar, o que dizem, como falam, as palavras, as sintaxes e as entonaçõesque colocam em cena, tu<strong>do</strong> isso revela muito mais deles mesmos <strong>do</strong> que poderíamosesperar. São imagens <strong>do</strong> outro fortemente embebidas da visão de mun<strong>do</strong> e <strong>do</strong>s afetosdaquele que filma.O que o filme mostra de mo<strong>do</strong> cristalino é quão encharca<strong>do</strong> de memórias e afecçõescorporais é nosso olhar sobre o mun<strong>do</strong>, quão arraiga<strong>do</strong>s somos a determinadas maneirasde ver e sentir, o tanto que ignoramos nossos preconceitos, o tanto de impossibilidade denos colocarmos no lugar <strong>do</strong> outro, de aceitá-lo em sua diferença e singularidade. Em s<strong>um</strong>a,nos mostra que “estamos” onde menos esperamos, não especialmente no “conteú<strong>do</strong>” <strong>do</strong>que dizemos ou pensamos de forma consciente, tampouco em <strong>um</strong>a “interioridade” prévia,já dada, mas em “toneladas de subjetividades” 12 que se constituem e se expressam nanossa relação com o mun<strong>do</strong> e com o outro.Por meio de <strong>um</strong> gesto à primeira vista pequeno – alterar a direção <strong>do</strong> que se solicitaaos personagens em grande parte <strong>do</strong>s <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entários basea<strong>do</strong>s em conversas –, CaoGuimarães imprime <strong>um</strong> estron<strong>do</strong>so deslocamento em relação a todas as querelas emtorno da “voz <strong>do</strong> outro” que atravessam a história <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário. Se a “eficácia” artísticae política <strong>do</strong>s dispositivos artísticos é medida pelo potencial produtor e transforma<strong>do</strong>r<strong>do</strong> que é proposto, os filmes de Cao Guimarães respondem com vigor à possibilidade dedeslocar visões estabelecidas, criar novas maneiras de ver, experimentar outras sensações,narrativas, espaços e temporalidades.12 Expressão de Peter Pál Pelbart, in VidaCapital: Ensaios de Biopolítica. São Paulo:Il<strong>um</strong>inuras, 2003. p. 20.


52 53Os filmes modernos, também chama<strong>do</strong>s de filmes de tese ou expositivos, sãomais evidentes nas décadas de 1960 e 1970. Neles encontramos característicascomo a presença de <strong>um</strong> narra<strong>do</strong>r que tem o poder de “deus” como idéia deonisciência, em que a imagem está a serviço <strong>do</strong> arg<strong>um</strong>ento <strong>do</strong> realiza<strong>do</strong>r/narração, emque o “cineasta/intelectual se julga no papel de interpretar e resolver os problemas <strong>do</strong>povo” e no qual o realiza<strong>do</strong>r pretende dar conta de <strong>um</strong> tema com “T” maiúsculo.Tendências <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário contemporâneoLiliana SulzbachJornalista e mestre em ciência política pela UFRGS. Estu<strong>do</strong>u ciências da comunicação na Freie UniversitätBerlin. Coordena<strong>do</strong>ra de produção e <strong>do</strong> núcleo de Cinema e Televisão da Zeppelin Filmes desde 1996.Coordena<strong>do</strong>ra nacional da International Public Television Conference (Input) de 2002 a 2004. Trabalhoucomo produtora independente para Hamburger Kino Kompanie/Hamburgo, M. Schmiedt Produções,Spiegel TV Alemanha, onde realizou diversos <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entários. Como diretora, seus trabalhos mais recentessão O Continente de Erico (2005), O Cárcere e a Rua (2004), A Invenção da Infância e O Branco (2000).Já o cinema contemporâneo, que se consolida a partir da década de 1990, em vez dealmejar grandes sínteses, análises ou interpretações de situações sociais, busca seus temas“através <strong>do</strong> recorte mínimo, abordan<strong>do</strong> histórias de indivíduos e a verdade de cada <strong>um</strong>”(Mesquita, 2006). “Geralmente trabalha com fragmentos de <strong>um</strong>a realidade, buscan<strong>do</strong> areflexão e a compreensão aprofundada da questão abordada, deixan<strong>do</strong> para o especta<strong>do</strong>ro papel de relacioná-la com seu contexto histórico, econômico, político, social e cultural”(Altafini, 1999).Essa distinção, no entanto, não pressupõe <strong>um</strong>a preferência ou <strong>um</strong> juízo de valor sobre <strong>um</strong>aou outra tendência, ou sobre os filmes que se encaixariam nesta ou naquela abordagem.Nem o fato de verificarmos <strong>um</strong>a nova tendência a partir da década de 1990 significaafirmar que as produções anteriores estariam ultrapassadas ou seriam filmes menores.Talvez, olhan<strong>do</strong> com distanciamento os filmes chama<strong>do</strong>s modernos, notemos <strong>um</strong>a certa“arrogância” nessa tentativa de realizar <strong>um</strong>a macroanálise. Como se fosse possível aocineasta/realiza<strong>do</strong>r não só dar conta de temas complexos, mas apontar soluções e, alémdisso, falar em nome <strong>do</strong> povo ou <strong>do</strong> sujeito representa<strong>do</strong>.Essas tendências, no entanto, espelham e estão diretamente ligadas ao desenvolvimentodas distintas manifestações da sociedade de cada perío<strong>do</strong>, à forma como a sociedadepensava e se expressava como <strong>um</strong> to<strong>do</strong>, não somente no cinema e no <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário.


54 Liliana Sulzbach Tendências <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário contemporâneo 55Esses seriam, na melhor das hipóteses, os precursores e, na maioria <strong>do</strong>s casos, os porta-vozesdessa forma de interpretar a sociedade. Assim, apontar tendências não significa preferir <strong>um</strong>aà outra, mas detectar e realizar <strong>um</strong> retrato valioso da forma como as pessoas se expressam emdetermina<strong>do</strong> perío<strong>do</strong>, por razões que muitas vezes fogem às análises da obra cinematográficapropriamente dita. Eu diria que em ambas as tendências podemos encontrar filmes bons eruins, realizações preciosas e outras medíocres. Essas tendências também não são estanques.Exemplos de filmes bem-sucedi<strong>do</strong>s com características modernas foram realiza<strong>do</strong>s após osanos 1960 e 1970 e não são necessariamente considera<strong>do</strong>s ultrapassa<strong>do</strong>s.No que tange ao conteú<strong>do</strong>/tema eleito pelos filmes de produção nacional, tanto os filmesconsidera<strong>do</strong>s modernos como os considera<strong>do</strong>s contemporâneos concentram-se emtemas que representam o Brasil em seu aspecto cultural e simbólico (folclore, religião,linguagem, cost<strong>um</strong>es etc.), socioeconômico (trabalha<strong>do</strong>res desfavoreci<strong>do</strong>s, disputa declasses, miséria), mas pouco se ocupam <strong>do</strong> aspecto político. Certamente temos produçõesde <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entários políticos, como o clássico de Eduar<strong>do</strong> Coutinho Cabra Marca<strong>do</strong> paraMorrer (1984); os filmes de Silvio Tendler, entre eles Os Anos JK, <strong>um</strong>a Trajetória (1980), Jango(1984), Doutor Getúlio, Últimos Momentos (2002) e Marighella (2002); Jânio a 24 Quadros(1981), de Luis Alberto Pereira; Jânio, 20 Anos Depois (1981) e Revolução de 30 (1980), deSilvio Back; Em Nome da Segurança Nacional (1978), de Renato Tapajós; Barra 68 (2001) eConterrâneos Velhos de Guerra (1992), de Vladimir Carvalho; e mais recentemente No Olho<strong>do</strong> Furacão (2003), de Renato Tapajós e Toni Venturi; Tempo de Resistência (2004), de AndréRist<strong>um</strong>; e Entreatos (2004), de João Salles. Mas, curiosamente, e com alg<strong>um</strong>as exceções,os filmes são mais biografias <strong>do</strong> que <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entários sobre <strong>um</strong> determina<strong>do</strong> momentopolítico, mais sobre políticos ou personagens <strong>do</strong> que sobre política.É claro que, se tomamos o termo “político” n<strong>um</strong> senti<strong>do</strong> mais amplo, podemos incluir váriosfilmes de cunho socioeconômico na esteira de filmes políticos. É impossível pensar o la<strong>do</strong>social sem esbarrar no político. Mas o que interessa aqui definir como político são os filmesque desvendam aspectos políticos presentes na agenda de determina<strong>do</strong> momento <strong>do</strong>Esta<strong>do</strong>-nação ou mesmo a sua relação política com os demais países. Sem procurar valoraro aspecto formal, temos fartos exemplos em outros países, como Farenheit 9/11 (2004), noqual Michael Moore investiga como os Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s se tornaram alvo de terroristas combase nos eventos ocorri<strong>do</strong>s no atenta<strong>do</strong> de 11 de setembro de 2001. Os filmes produzi<strong>do</strong>se/ou dirigi<strong>do</strong>s por Robert Greenwald, como Unprecedent: The 2000 Presidential Election(2002), e por Richard Pérez e Joan Sekler, como Iraq for Sale, quem Lucra com a Guerra(2006) e Outfoxed – A Guerra ao Jornalismo de Rupert Mur<strong>do</strong>ch (2004), são exemplos clarosde filmes políticos contrários à era George Bush. Também podem-se destacar Sob a Névoada Guerra (2003), de Errol Morris, que narra a história militar recente <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s<strong>do</strong> ponto de vista <strong>do</strong> controverti<strong>do</strong> político norte-americano Robert S. McNamara, exsecretáriode Defesa nos governos Kennedy e Johnson; Why We Fight [Por que Lutamos?](2005), de Eugene Jarecki, <strong>um</strong> olhar crítico sobre a tendência <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s de seenvolver em conflitos arma<strong>do</strong>s; Black Box Germany (2001), de Andres Veil, que recorre aopassa<strong>do</strong> recente da República Federativa da Alemanha nos anos 1970 e 1980 para retratara polarização <strong>do</strong> país entre a força <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> e a força <strong>do</strong> Exército Vermelho, geran<strong>do</strong> <strong>um</strong>asérie de conflitos que beiram a guerra civil. Na América Latina, Memórias Del Saqueo (2004),<strong>do</strong> argentino Fernan<strong>do</strong> Solanas, investiga os fatos que levaram à fragilização econômica eà degradação da Argentina. Solanas também é realiza<strong>do</strong>r de La Hora de los Hornos (1968).Allende (2004), <strong>do</strong> chileno Patrício Guzmán, desvenda Salva<strong>do</strong>r Allende, ao mesmo tempoem que defende seu lega<strong>do</strong> para o Chile <strong>do</strong> século XXI. É também o diretor da estupendasérie A Batalha <strong>do</strong> Chile (1975-1979). Nesses filmes, além <strong>do</strong> conteú<strong>do</strong> claramente político,nota-se <strong>um</strong>a tendência a apresentar os fatos de forma investigativa, mostran<strong>do</strong> situaçõese reflexões novas sobre assuntos presentes na mídia e no jornalismo cotidiano.Justamente essa tendência investigativa que busca trazer fatos novos a assuntos jápauta<strong>do</strong>s, ou que procura esclarecer questões no calor <strong>do</strong>s acontecimentos, é poucotrabalhada pelos <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entaristas nacionais. Podemos citar ainda Who Betrayed CheGuevara [Quem Traiu Che Guevara] (2001), em que <strong>do</strong>is jovens realiza<strong>do</strong>res, Erik Gandini eTarik Saleh, vão desvendar, décadas depois, os fatos que levaram o argentino Ciro Bustosa ser injustamente acusa<strong>do</strong> de trair Che, enquanto outro companheiro, Regis Debray,gozava na França de prestígio como grande amigo <strong>do</strong> líder revolucionário. Em Na Captura<strong>do</strong>s Friedmans (2003), de Andrew Jarecki, o professor Friedman e seu filho caçula sãoacusa<strong>do</strong>s e presos por molestar a<strong>do</strong>lescentes. A família começa a entrar em colapso e o<strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário não só registra, mas tenta agregar novos fatos ao assunto.Quanto à forma, podemos perceber alg<strong>um</strong>as tendências mundiais também presentesem <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entários brasileiros. Uma delas seria o que Jean-Claude Bernardet chama de“<strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário de busca”. Nesse senti<strong>do</strong>, podemos falar de Offspring, <strong>do</strong> canadense BarryStevens, no qual <strong>um</strong> homem, que é o próprio diretor, foi fruto de <strong>um</strong>a inseminação artificial.O filme é <strong>um</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário de busca <strong>do</strong> realiza<strong>do</strong>r, que pesquisa bancos de esperma <strong>do</strong>mun<strong>do</strong> atrás <strong>do</strong> esperma original, para descobrir quem é seu pai e encontrar possíveisirmãos espalha<strong>do</strong>s pelo mun<strong>do</strong>. No Brasil, alguns exemplos poderiam ser defini<strong>do</strong>s como<strong>do</strong>c<strong>um</strong>entários de busca, como 33, de Kiko Goifman, e Passaporte Húngaro, de Sandra Kogut.“Os filmes partem de <strong>um</strong> projeto pessoal de seus realiza<strong>do</strong>res. No caso de Kiko Goifman, é ofilho a<strong>do</strong>tivo que se propõe a encontrar a mãe biológica e, no caso de Sandra Kogut, (...) seuprojeto é obter a nacionalidade e o passaporte húngaro” (Bernardet, 2005). Nesses casos,como bem coloca Bernardet, “a filmagem tende a se tornar a <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entação <strong>do</strong> processo.Não há <strong>um</strong>a preparação <strong>do</strong> filme (a preparação é a própria filmagem), não há <strong>um</strong>a pesquisaprévia; a pesquisa, que freqüentemente no <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário é anterior à filmagem, é a própriafilmagem” (Bernardet, 2005).Não preten<strong>do</strong> fazer <strong>um</strong>a análise mais profunda desses filmes, já muito bem realizada porJean-Claude Bernardet, mas gostaria de salientar <strong>do</strong>is aspectos que envolvem ambosos filmes e que acho importante destacar porque nos conduzem e apresentam <strong>um</strong>aproposta de <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário que eu arriscaria chamar de <strong>um</strong>a tentativa de conferir plot ao<strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário. Seriam os seguintes aspectos:1) Nesses filmes, mesmo não existin<strong>do</strong> <strong>um</strong> roteiro como base, já é possível “prever” a própria


60 61Pavlovskoie, <strong>um</strong>a aldeia próxima a Moscou. Uma sessão de cinema. A pequena sala estárepleta de camponeses, de camponesas e de operários de <strong>um</strong>a fábrica vizinha. O filme KinoPravda se projeta na tela sem acompanhamento musical. Ouve-se o ruí<strong>do</strong> <strong>do</strong> projetor. Umtrem aparece na tela. E depois <strong>um</strong>a menina que caminha até a câmera. De repente, na sala,soa <strong>um</strong> grito. Uma mulher corre até a tela, até a menina. Chora. Estende seus braços. Chama amenina pelo nome. Mas, esta desaparece. E o trem desfila novamente na tela. “O que ocorreu?”,pergunta o co-responsável operário. Um <strong>do</strong>s especta<strong>do</strong>res: “É o Cine-Olho. Filmaram a meninaquan<strong>do</strong> estava viva. Há pouco a<strong>do</strong>eceu e morreu. A mulher que se lançou até a tela é sua mãe.”Dziga VertovA expressão cinematográfica no território <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entalLuiz Eduar<strong>do</strong> JorgeCineasta (diretor e roteirista), historia<strong>do</strong>r e antropólogo. Doutor em artes/cinema pela ECA/USP em1995. Professor titular da Universidade Católica de Goiás, atuan<strong>do</strong> na graduação e na pós-graduação.Dirigiu 15 filmes, entre eles Bubula, o Cara Vermelha (1999), Passageiros da Segunda Classe (2001) e olonga-metragem Ventos da História (2006). Nos últimos cinco anos, recebeu cerca de 30 prêmios emfestivais nacionais e internacionais.Como cineasta posso inferir que o cinema <strong>do</strong>c<strong>um</strong>ental, por sua vasta possibilidade depercorrer as essências <strong>do</strong> espírito h<strong>um</strong>ano, faz nascer, pelo seu caráter h<strong>um</strong>anizantee por sua transversalidade, múltiplas e distintas formas de apresentar a realidade.Significa dizer, entretanto, que esse gênero cinematográfico seguiu sua históriadesenvolven<strong>do</strong> formas estéticas de olhares compartilha<strong>do</strong>s nas idéias, no fazer enas experiências específicas de inúmeros autores que investigaram, e continuaminvestigan<strong>do</strong>, a vida h<strong>um</strong>ana nos mais diversos continentes da terra e nos mais diferentesterritórios culturais pelo viés <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> mítico, psicológico, histórico e antropológico.Uma busca incessante, direcionada à interiorização <strong>do</strong> espírito h<strong>um</strong>ano, da almah<strong>um</strong>ana e de sua expressão artística, para ver como os seres h<strong>um</strong>anos são e estão navida real marca<strong>do</strong>s pelas diferenças étnicas e sociais, sem, contu<strong>do</strong>, ficcionar, exotizarou reinventar o mun<strong>do</strong> cotidiano e ritualístico. Enfim, como a textura <strong>do</strong> filme mostra arealidade por meio da forma estética <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>ental.O cinema <strong>do</strong>c<strong>um</strong>ental, desde sua origem, deslocou-se em direção ao outro, em busca <strong>do</strong>inusita<strong>do</strong>, <strong>do</strong> diferente. Uma ferramenta que serviu, e serve ainda, para revelar as diferentes


62 Luiz Eduar<strong>do</strong> Jorge A expressão cinematográfica no território <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>ental 63culturas h<strong>um</strong>anas e suas formas de organização social, política, econômica e religiosa. Umanecessidade de ir ao encontro da h<strong>um</strong>anidade <strong>do</strong> homem para saber como ele percebe,pensa, representa e sente a realidade. Porque, assim proceden<strong>do</strong>, se pretende buscarexpressões em nosso próprio ser, isto é, em nós mesmos, a fim de desvelar o senti<strong>do</strong> <strong>do</strong>nosso próprio mun<strong>do</strong>.Na epígrafe deste texto, a descrição de <strong>um</strong> trecho <strong>do</strong> Cine-Olho <strong>do</strong> diretor russo DzigaVertov é <strong>um</strong>a sinalização da importância <strong>do</strong> cinema <strong>do</strong>c<strong>um</strong>ental como expressãoda vida social. O referi<strong>do</strong> realiza<strong>do</strong>r tornou-se <strong>um</strong>a referência clássica e, ao mesmotempo, moderna no mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> cinema como <strong>um</strong>a escola <strong>do</strong>c<strong>um</strong>ental em razão decolocar em prática e teorizar sobre os princípios gramaticais <strong>do</strong> cinema-verdade.Por meio dessa expressão, Vertov desenvolveu suas idéias sobre a função <strong>do</strong> cinema<strong>do</strong>c<strong>um</strong>ental influencian<strong>do</strong> <strong>um</strong>a geração de jovens cineastas <strong>do</strong> pós-guerra que, maistarde, se tornaram também referências <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>ental em seus países: “na França comJean Rouch (Moi un Noir, La Pyramide H<strong>um</strong>aine, Chronique d’un Étè), Mario Ruspoli (LêsInconunus de la Terre, Regards sur la Folie), na Itália (especialmente com Baldi), na Grã-Bretanha com o Free Cinema, nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s com Rechard Leacock (Primary, YanquiNo), com Lionel Rogosin (On the Bowery, Come Back África) e diversos segui<strong>do</strong>res daEscola de Nova York” (Sa<strong>do</strong>ul, 1971) Esse recenseamento realiza<strong>do</strong> por Sa<strong>do</strong>ul limita-se,como ele mesmo afirma, a citar alguns filmes apresenta<strong>do</strong>s em Paris ou em festivaisinternacionais nos anos 1960.Ao chamar atenção para o cine-olho, Dziga Vertov defendia a tese de <strong>um</strong> cinema-verdadecomo forma de expressão não-ficcional, para, com base em <strong>um</strong> plano de trabalho, alcançara realidade e apresentá-la no processo de montagem. A montagem, para Vertov, é <strong>um</strong>conceito, isto é, <strong>um</strong> exercício subjetivo de concatenação <strong>do</strong> fluxo <strong>do</strong>s acontecimentospor meio da razão. Para ele, entretanto, o conceito é <strong>um</strong>a relação entre teoria e prática: opensar, o elaborar e o fazer.O méto<strong>do</strong> de Vertov está basea<strong>do</strong> na sincronização <strong>do</strong> som e da imagem que eledenominou câmera-olho e rádio-orelha para filmar A Vida ao Improviso. A realidadeda forma cinematográfica é <strong>um</strong>a representação <strong>do</strong> improviso in<strong>do</strong> ao encontro <strong>do</strong>sacontecimentos <strong>do</strong> cotidiano para apreendê-los, a fim de compô-los dentro de <strong>um</strong>alógica dialética da montagem para serem afirma<strong>do</strong>s ou nega<strong>do</strong>s. A vida representa-sepor si mesma no cinema.El méto<strong>do</strong> del cine-ojo el méto<strong>do</strong> de estúdio científico-experimental delmun<strong>do</strong> visible: a) basa<strong>do</strong> en una fijación planificada de los hechos de la vidasobre la película; b) basa<strong>do</strong> en una organización planificada de los cinemateriales<strong>do</strong>c<strong>um</strong>entales fija<strong>do</strong>s sobre la película. (Vertov, 1927).Ao utilizar o material de arquivo <strong>do</strong> Kino-Pravda, Vertov realiza, em 1928, com seuirmão Mikail Kaufman, o longa-metragem intitula<strong>do</strong> O Homem da Câmera, metafilmecientífico-experimental no qual emprega o méto<strong>do</strong> aludi<strong>do</strong> por meio de <strong>um</strong> ensaiodialético-pedagógico mostran<strong>do</strong> a vida cotidiana de <strong>um</strong>a grande cidade <strong>do</strong> amanhecerao anoitecer. Fazen<strong>do</strong> uso de inúmeras técnicas de montagem, consagradas até osdias atuais, elabora o cinema <strong>do</strong>c<strong>um</strong>ental como <strong>um</strong> cinema de idéias. E idéias quecontinuam revolucionárias.O Homem da Câmera, <strong>um</strong> filme dentro <strong>do</strong> filme, que demonstra to<strong>do</strong> o processo deconfecção <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>ental, in<strong>do</strong> da idéia ao produto final, coloca em cena o trabalho daequipe técnica – filmagem e montagem – como se fossem personagens que participam<strong>do</strong> filme no contexto <strong>do</strong> cenário e <strong>do</strong>s atores sociais <strong>do</strong>c<strong>um</strong>enta<strong>do</strong>s.Vertov pesquisou as possibilidades estéticas e científicas <strong>do</strong> cinema <strong>do</strong>c<strong>um</strong>ental a pontode experimentar inúmeros conceitos e comportamentos de câmera, de montagem e deinserção da equipe de filmagem no processo de construção da peça cinematográfica.Além disso, teorizou, nos anos 1920, sobre preocupações ainda atuais correlatas aocinema-verdade e ao cinema direto, às dicotomias verdade x falsidade, subjetividade xobjetividade, objeto x sujeito e realidade x ficção, colocadas, ainda hoje, como temas <strong>do</strong>sdebates sobre cinema <strong>do</strong>c<strong>um</strong>ental e cinema ficcional.Declara Vertov:El campo visual es la vida;la materia de construcción para el montaje es la vida;los decora<strong>do</strong>s es la vida;los artistas es la vida.” (Vertov, 1927)Partin<strong>do</strong> <strong>do</strong>s princípios técnicos e heurísticos de Vertov, Jean Rouch, em parceria comEdgar Morin, realizou, teorizou e desenvolveu estu<strong>do</strong>s e produções cinematográficascom base em <strong>um</strong>a nova concepção <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>ental. Tomou para si a expressão cine-olho,transforman<strong>do</strong> o cinema-verdade em <strong>um</strong> des<strong>do</strong>bramento de méto<strong>do</strong>s e técnicas alia<strong>do</strong>sa <strong>um</strong>a nova prática <strong>do</strong> cinema <strong>do</strong>c<strong>um</strong>ental, baliza<strong>do</strong> com o campo da antropologia.Não é por acaso que Vertov se tornou <strong>um</strong>a matriz fundamental para Jean Rouch. Esseetnólogo-cineasta passou a praticar e a teorizar o cinema-verdade com vistas à produçãode filmes antropológicos, n<strong>um</strong>a combinação <strong>do</strong> méto<strong>do</strong> vertoviano e <strong>do</strong>s princípiosda pesquisa etnográfica. Aliou, também, em muitos de seus filmes sobre o processomigratório <strong>do</strong>s camponeses nigerianos para a cidade, o méto<strong>do</strong> de observação fílmicade A Vida ao Improviso à “mise-en-scène <strong>do</strong>c<strong>um</strong>ental” <strong>do</strong> irlandês Robert J. Flaherty. Desteúltimo, tomou como ponto de partida a gramática <strong>do</strong> clássico Nanook of the North (1922)e também <strong>do</strong>s filmes de atores naturais como Moana (1926), Tabu (1931), realiza<strong>do</strong> comMurnau, O Homem de Aran (1936). Histórias reais interpretadas por atores da cultura localdirigi<strong>do</strong>s pelo diretor com base em <strong>um</strong> roteiro pré-elabora<strong>do</strong>. A respeito desse modelo de<strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário etnoficcional de Rouch, pronunciou-se Sa<strong>do</strong>ul:


64 Luiz Eduar<strong>do</strong> Jorge A expressão cinematográfica no território <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>ental 65Rouch foi, pois, toca<strong>do</strong> pela autenticidade que atingiu suas pesquisasquan<strong>do</strong> ele ‘deixou falar livremente o ator diante da imagem.’ Ao refletirsobre este sucesso, disse ainda, disse a mim mesmo que se poderia irmais longe ainda na verdade, se ao lugar de tomar atores e de lhes fazerinterpretar <strong>um</strong> papel, se pedisse a homens para representar suas própriasvidas. E este foi Eu <strong>um</strong> Negro.” (Sa<strong>do</strong>ul, 1971)Proceden<strong>do</strong> assim, Rouch elaborou <strong>um</strong> novo méto<strong>do</strong> <strong>do</strong> cinema-verdade e <strong>um</strong>novo conceito <strong>do</strong>s vetores essenciais <strong>do</strong> movimento para o cinema etnográfico narealização de filmes que tratam <strong>do</strong>s rituais mágico-religiosos <strong>do</strong> Níger, estabelecen<strong>do</strong><strong>um</strong> comportamento da observação fílmica em plano-seqüência a fim de <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entar,na íntegra, os movimentos <strong>do</strong> corpo das pessoas em transe. Denominou esse cinema<strong>do</strong>c<strong>um</strong>ental de cine-transe. E, ao filmar a passagem da natureza à cultura e o universo derepresentação das etnias tradicionais <strong>do</strong> Níger, tornou-se o principal propulsor da escola<strong>do</strong> cinema etnográfico francês, influencian<strong>do</strong>, assim, gerações de novos realiza<strong>do</strong>res dediversas referências culturais e países <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>.O cinema <strong>do</strong>c<strong>um</strong>ental, o etnográfico em especial, sempre foi em busca da realidade <strong>do</strong>“outro” a fim de tornar visíveis as diferenças sociais e etno-históricas, pela compreensãoda complexidade da cultura. São seus símbolos e seus signos culturais os fenômenos queestão à frente das lentes <strong>do</strong> cine-olho para o desenvolvimento de <strong>um</strong>a gramática <strong>do</strong> real.As particularidades <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>ental e suas imensas possibilidades de expressãocontribuíram para que cineastas clássicos da geração de Flaherty e Vertov desenvolvessemsuas teorias, com base em suas próprias produções <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entais, acerca de sua funçãoeducativa, estética, política, sociológica e antropológica. Entre eles, estão John Grierson,na Inglaterra, diretor <strong>do</strong> filme Drifters (1929); Jean Vigo, na França, com À Propos de Nice(1929); Aleksandr Ivanovithc Medvedkin, na Rússia, com O Trem Cinematográfico ou 294Dias sobre Rodas (1932); Alberto Cavalcanti, realiza<strong>do</strong>r brasileiro com filmes produzi<strong>do</strong>sna Inglaterra por Grierson e autor <strong>do</strong> livro Filme e Realidade (1957).Os estu<strong>do</strong>s e as pesquisas científicas realiza<strong>do</strong>s no território <strong>do</strong> outro, para a produção<strong>do</strong>c<strong>um</strong>ental acerca da diversidade cultural, demonstraram a importância <strong>do</strong> cinema<strong>do</strong>c<strong>um</strong>ental para o desvelamento <strong>do</strong> território <strong>do</strong> outro na relação com o eu. O cinema<strong>do</strong>c<strong>um</strong>ental passa, então, a direcionar o seu olhar à complexidade das questões sociaisrelacionadas aos grupos h<strong>um</strong>anos <strong>do</strong> campo e da cidade, seguin<strong>do</strong>, assim, o percurso daspreocupações específicas e universais das ciências h<strong>um</strong>anas e sociais. O outro passa a serredescoberto no eu.Com base nessa postura cinematográfica, há <strong>um</strong>a arg<strong>um</strong>entação <strong>do</strong> olhar <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entalcompartilha<strong>do</strong> no fazer e nas experiências <strong>do</strong>s autores que investigam a vida h<strong>um</strong>anapelo viés <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> social, psicológico, mítico e antropológico. Uma busca incessante deinteriorização <strong>do</strong> espírito h<strong>um</strong>ano, da alma h<strong>um</strong>ana, na expressão poética da imagem.O fundamento <strong>do</strong> cinema <strong>do</strong>c<strong>um</strong>ental está localiza<strong>do</strong> na forma de apresentar arealidade social e cultural na perspectiva imanente de suas experiências históricas como<strong>um</strong> fenômeno dialético que se manifesta em sua mais profunda essência, revelan<strong>do</strong>-a.Desde sua origem, o cinema <strong>do</strong>c<strong>um</strong>ental, com suas referências empíricas espelhadas nosformatos fotográficos, escreve sob a ação da luz associada a suportes físicos, químicose ópticos pesquisa<strong>do</strong>s por meio de méto<strong>do</strong>s de pesquisa e técnicas instr<strong>um</strong>entaiselaboradas como indica<strong>do</strong>res das novas experiências científicas. A ciência de Muybridge,Marey e Démeny, associada à construção <strong>do</strong> cinetoscópio Edison e <strong>do</strong> cinematógrafoL<strong>um</strong>ière, criou <strong>um</strong>a nova forma e <strong>um</strong> novo méto<strong>do</strong> para o homem olhar para o mun<strong>do</strong>e para si mesmo.Por essa razão, o cinema nasce tecnicamente científico 1 e <strong>do</strong>c<strong>um</strong>ental. Nasce tambémsob as idéias disseminadas na forma poética de compor a perspectiva para falar <strong>do</strong>movimento <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, <strong>do</strong>s seres e das coisas por meio <strong>do</strong> registro <strong>do</strong> real. A realidadematerial e psicológica é apresentada no fenômeno <strong>do</strong> processo projetivo: imagensdadas aos senti<strong>do</strong>s da psique h<strong>um</strong>ana.No tempo presente, o cinema é remissivo ao tempo passa<strong>do</strong>, às suas origens, aos seusprocessos e procedimentos meto<strong>do</strong>lógicos, estéticos e filosóficos, antropológicos ehistóricos, caben<strong>do</strong>, sempre, pensá-lo em sua dimensão subjetiva porque eleita pelopensamento e pelo olhar lança<strong>do</strong> sobre o mun<strong>do</strong> observa<strong>do</strong>.Salvo raras exceções, notadamente Rituais e Festas Bororo (1917), de Luis Thomas Reis,a aurora <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>ental é marcada pelo registro puro e simples nos <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entáriosde viagens, enfatizan<strong>do</strong> o outro. Mais tarde, sob influência das reflexões estéticas,sociológicas e antropológicas, fundamenta-se em posturas críticas e arranjosnarrativos combina<strong>do</strong>s nos processos de construção de peças fortemente marcadaspor tons poéticos e ideológicos questiona<strong>do</strong>res, sobretu<strong>do</strong> por meio <strong>do</strong> cinemapolítico e militante. Atualmente, o acesso aos novos recursos tecnológicos permite<strong>um</strong>a dilacerada “reinvenção” da forma de expressão e da gramática audiovisual combase em experiências individuais, que tornam o audiovisual <strong>um</strong>a prática educativaem razão das possibilidades que pode criar no exercício <strong>do</strong> aprofundamento<strong>do</strong> conhecimento específico e universal, especialmente no campo das ciênciash<strong>um</strong>anas e sociais.Falo da produção audiovisual de caráter educativo, consideran<strong>do</strong> somente filmesque abordam temas e questões de interesse educativo, fundamenta<strong>do</strong>s em pesquisae produção <strong>do</strong> conhecimento científico e/ou estético. Obviamente que produçõesque inventam a realidade no extraordinário, no fantástico e no sensacionalismo nãodecorrem de tais propósitos e não decorrem de <strong>um</strong>a reflexão crítica, pois, como venhoafirman<strong>do</strong>, a subjetividade e as idéias cinematográficas são formas artísticas de tratar averdade por meio da expressão <strong>do</strong>c<strong>um</strong>ental.1Em Palo Alto, Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, 1872, em<strong>um</strong> cenário prepara<strong>do</strong> para diversos testesenvolven<strong>do</strong> estu<strong>do</strong>s <strong>do</strong> movimentode <strong>um</strong> cavalo fotografa<strong>do</strong> em alta velocidade,por meio de <strong>um</strong> dispositivo quepermitiu inicialmente a interface de 12e, posteriormente, de 24 câmeras ligadasem <strong>um</strong>a mesma bateria, Muybridgepermitiu constatar que, no compasso<strong>do</strong> galope, o animal realmente fica comas quatro patas no ar. Com base nessasíntese fotográfica, o fotógrafo evidenciou<strong>um</strong> movimento impossível de serpercebi<strong>do</strong> a simples vista. Essa síntesefotográfica possibilitou a Marey criaro fusil photographique e comprovar atese <strong>do</strong> movimento pela obtenção deimagens a 24 quadros por segun<strong>do</strong>, de<strong>um</strong> pássaro filma<strong>do</strong> em pleno vôo (Mitry,1967, p. 41).


66 Luiz Eduar<strong>do</strong> Jorge A expressão cinematográfica no território <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>ental 67Assim, essa atitude evidenciada no percurso histórico da produção desse gênerocinematográfico é defini<strong>do</strong>ra de estilos e abordagens segun<strong>do</strong> posturas estéticas,políticas, científicas e ideológicas <strong>do</strong>s seus autores. A reflexão teórica em torno <strong>do</strong>sfenômenos escolhi<strong>do</strong>s, pesquisa<strong>do</strong>s e seleciona<strong>do</strong>s para a realização <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entalconsolida as escolas e as correntes teóricas <strong>do</strong> pensamento <strong>do</strong>c<strong>um</strong>ental e as atuaisformas artísticas de criação.Portanto, posso concluir que o cinema é escola.Essas minhas palavras sobre cinema <strong>do</strong>c<strong>um</strong>ental deixam-me à vontade para nãoestabelecer linhas divisórias muito rígidas entre o exercício <strong>do</strong> pensamento científico eo <strong>do</strong> pensamento estético, até porque a escrita tende a interpretar e a imagem tende arepresentar. Pensan<strong>do</strong> assim, sempre compreendi que ciência e arte na construção <strong>do</strong><strong>do</strong>c<strong>um</strong>ental se entrelaçam. Dessa forma, não sinto aqui aquela necessidade de formularproblemas para realimentar e sistematizar as idéias guardadas nas gavetas a fim decomprová-las ou refutá-las, porque, assim proceden<strong>do</strong>, posso também correr o risco depensar que o objeto não tem vida, que o objeto é <strong>do</strong> sujeito, isto é, o objeto pertence aosujeito, é pensa<strong>do</strong> pelo sujeito que o observa e dele tira conclusões, formulações teóricas,subjetivações, afirmações e julgamentos manti<strong>do</strong>s sob a mão única da ciência ou daarte. Não pretendi obedecer a <strong>um</strong> modelo, seja científico, seja estético, para apresentara realidade como essência da forma <strong>do</strong> cinema <strong>do</strong>c<strong>um</strong>ental, até porque ela pode sertão variada e diversa quanto o número de filmes realiza<strong>do</strong>s. A realização de <strong>um</strong> filme<strong>do</strong>c<strong>um</strong>ental obedece, assim, a critérios estéticos, científicos e h<strong>um</strong>anos segun<strong>do</strong> a suanatureza histórica e antropológica. Um filme não é produzi<strong>do</strong>, realiza<strong>do</strong> e “feito” n<strong>um</strong>afôrma, e, sim, n<strong>um</strong>a forma.olhar nos conceitos e teorias advin<strong>do</strong>s de suas próprias reflexões, ora confirman<strong>do</strong>-os pormeio das idéias experimentadas em suas produções propriamente ditas.Vertov e Flaherty desenvolveram idéias genuínas e diferentes sobre o cinema <strong>do</strong>c<strong>um</strong>ental.O primeiro experimentou o cinema-verdade basea<strong>do</strong> no improviso como forma de nãointerferênciano mun<strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>enta<strong>do</strong> para evitar ficcionar e/ou alterar a realidade. Osegun<strong>do</strong> “interfere” na realidade para propor a mise-em-scène <strong>do</strong>c<strong>um</strong>ental visan<strong>do</strong> a <strong>um</strong>tratamento mais fiel da realidade no cinema. Dessa forma, nota-se, finalmente, que essasidéias, após 80 anos, estão em pleno exercício, tanto no campo <strong>do</strong> cinema <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entalquanto no campo <strong>do</strong> cinema ficcional, ora tratan<strong>do</strong> <strong>do</strong> cinema <strong>do</strong>c<strong>um</strong>ental utilizan<strong>do</strong>atores naturais, como é o caso da recente produção brasileira intitulada Cidade de Deus,de Fernan<strong>do</strong> Meirelles, ora tratan<strong>do</strong> <strong>do</strong> cinema verdade à la Vertov, como faz Eduar<strong>do</strong>Coutinho nos <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entários Santo Forte e Edifício Master.No cinema <strong>do</strong>c<strong>um</strong>ental ao qual me refiro, o objeto – <strong>do</strong> latim obicere = algo lança<strong>do</strong>,algo posto adiante – não é pensa<strong>do</strong> e constituí<strong>do</strong> pelo olhar impregnante <strong>do</strong> sujeito daobservação, e sim <strong>do</strong> realiza<strong>do</strong>r cinematográfico que, longe de apossar-se <strong>do</strong> objeto, procuraexpressar por meio da forma cinematográfica a relação h<strong>um</strong>ana que se coloca entre ele, omun<strong>do</strong> circundante e os seres h<strong>um</strong>anos <strong>do</strong>c<strong>um</strong>enta<strong>do</strong>s. Vejo e enten<strong>do</strong> o objeto comocorpus <strong>do</strong> universo social, cultural e h<strong>um</strong>ano pensa<strong>do</strong> nos recortes narrativos específicose gerais articula<strong>do</strong>s no pensamento <strong>do</strong>c<strong>um</strong>ental. O objeto, pensa<strong>do</strong> n<strong>um</strong>a perspectivasubjetiva e em permanente movimento, portanto, dinâmico e não molda<strong>do</strong>, não acaba<strong>do</strong>.O cinema <strong>do</strong>c<strong>um</strong>ental confunde-se com a idéia de originalidade, de identidade com adiversidade cultural em permanente construção. Culturas reinventan<strong>do</strong> a cultura com baseem novos códigos recoloca<strong>do</strong>s permanentemente por novas experiências interétnicas,também, temporariamente redefini<strong>do</strong>ras de <strong>um</strong> novo ethos.Este artigo apresenta alg<strong>um</strong>as indagações tecidas na seara das idéias semeadas no território<strong>do</strong> cinema <strong>do</strong>c<strong>um</strong>ental, rondan<strong>do</strong> duas matrizes cinematográficas já consagradas – Vertove Flaherty, que impulsionaram a vasta produção de <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entários, ora repousan<strong>do</strong> oReferências bibliográficasMITRY, Jean. Histoire du Cinema (1895-1915). Paris: Éditions Universitaires, 1967.SADOUL, Georges. Dziga Vertov. Paris: Éditions Champ Libre, 1971.VERTOV, Dziga. Del cine-ojo al radio-ojo (La importancia del cine sin actores). 1927. In: ROMAGUERA,Joaquim e THEVENET, Homero Alsina. Fuentes y <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entos del cine. Barcelona: Editorial Fontamara, 1980.


68 691“Não é o escultor que esculpe a escultura, é a escultura que esculpe o escultor!”Existe nessa frase de Merleau-Ponty algo que fica no meio, como <strong>um</strong> canteiro. entre duas avenidas. Chacoalha-se <strong>um</strong>a frase como chacoalha-se <strong>um</strong>a vida.Uma inversão entre sujeito e predica<strong>do</strong>, entre sujeito e objeto que pode nos ajudar aentender <strong>um</strong> pouco a relação entre arte e vida, realidade e percepção, olhar e deixar-seolhar, entregar e receber.Poderíamos, da mesma forma, dizer: não é o cineasta que faz o filme, mas o filme que fazo cineasta. Ao fazer <strong>um</strong> filme, algo está nos fazen<strong>do</strong> e algo está se fazen<strong>do</strong> para além denosso fazer. O filme se faz e com ele me faço.Doc<strong>um</strong>entário e subjetividade – Uma rua de mão duplaCao GuimarãesTrabalha com cinema e artes plásticas. Desde fins <strong>do</strong>s anos 1980 vem mostran<strong>do</strong> seus trabalhos emdiferentes museus e galerias, como o Guggenhein Muse<strong>um</strong> de Nova York (seu filme Sopro faz parte dacoleção <strong>do</strong> museu); Mori Muse<strong>um</strong>, em Tóquio; Galeria La Caja Negra, em Madri; e em bienais como aXXV Bienal Internacional de São Paulo, Insite Biennial 2005 (San Diego/Tijuana), entre outras. No fim dadécada de 1990 começou a fazer filmes, principalmente <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entários experimentais, entre eles Ruade Mão Dupla, A Alma <strong>do</strong> Osso, O Fim <strong>do</strong> sem Fim, Da Janela <strong>do</strong> Meu Quarto e Andarilho.Se o meu assunto é a realidade, não estou isento dela e nem ela está isenta de mim. Nesseexercício da reciprocidade, da generosidade da entrega, vários graus de subjetividade estãointeragin<strong>do</strong> entre si. A questão não é objetivar o olhar diante da realidade, mas mesclarsua subjetividade com a subjetividade <strong>do</strong> outro. Às vezes esvazian<strong>do</strong>-se no senti<strong>do</strong> zenbudista<strong>do</strong> termo, às vezes potencializan<strong>do</strong> o seu “eu” até o total transbordamento. Nãoexistem regras definitivas, tu<strong>do</strong> funciona como <strong>um</strong>a espécie de pacto fundamenta<strong>do</strong> nac<strong>um</strong>plicidade recíproca.A percepção <strong>do</strong>s acontecimentos reais sempre estará intimamente relacionada aoimaginário. Nenh<strong>um</strong> olhar é isento de si ao olhar para fora. Vejo e, ao ver, também mevejo. Ven<strong>do</strong>-me inseri<strong>do</strong> nisso ou naquilo, aquilo inseri<strong>do</strong> em mim, a coisa se forma, <strong>um</strong>algo mais, o inespera<strong>do</strong>. Imagino, ajo na direção <strong>do</strong> que imagino, depois salto para o la<strong>do</strong>de lá, para o lugar <strong>do</strong> desconheci<strong>do</strong>, que é muitas vezes mais forte e intenso <strong>do</strong> que oque antes eu imaginava. O cinema <strong>do</strong> real é a arte desse encontro, <strong>um</strong> encontro com oque você imagina e no entanto revela-se de outra forma. Nessa revelação, nesse susto,somos convoca<strong>do</strong>s diante de <strong>um</strong> espelho que mostra outro rosto. Qualquer realidade é a


70 Cao Guimarães Doc<strong>um</strong>entário e subjetividade – Uma rua de mão dupla 71extensão de você mesmo; e você, a extensão da realidade.Olhar o mun<strong>do</strong> através de <strong>um</strong> aparelho óptico, enquadrar a realidade, já possui em si <strong>um</strong>adimensão subjetiva muito forte. É impossível destituir o <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário da subjetividade. Éontologicamente impossível.Ao planejar <strong>um</strong> filme, ao escolher <strong>um</strong> assunto, você de certa forma começa <strong>um</strong> processode múltiplos recortes, <strong>do</strong> macro ao micro, <strong>do</strong> to<strong>do</strong> às partes. Você objetiviza <strong>um</strong> espaçoreal, prepara a cama onde seu olhar vai poder se deitar. Encontra <strong>um</strong> lugar para se permitirestar perdi<strong>do</strong>. Potencializa <strong>um</strong> descontrole necessário. Esse movimento dialético entre oque vem de dentro e o que vem de fora gera <strong>um</strong> espaço, onde o filme habita. O importanteé não perder esse lugar de vista; lugar que é na verdade <strong>um</strong> fluxo no qual as coisas seembaralham, esvaziam-se de si e revelam-se outras por alg<strong>um</strong> momento. Esse lugar é olugar da câmera ligada diante de alguém ou de alg<strong>um</strong>a coisa. Esse lugar é <strong>um</strong> momento,<strong>um</strong> <strong>do</strong>s muitos momentos mágicos <strong>do</strong> processo cinematográfico.“Antes de estudar zen, <strong>um</strong> homem é <strong>um</strong> homem, <strong>um</strong>a montanha é <strong>um</strong>a montanha. Aoestudar zen, <strong>um</strong> homem é <strong>um</strong>a montanha e <strong>um</strong>a montanha é <strong>um</strong> homem. Depois deestudar zen, <strong>um</strong> homem é <strong>um</strong> homem, <strong>um</strong>a montanha é <strong>um</strong>a montanha. Só que vocêestá com os pés <strong>um</strong> pouco fora <strong>do</strong> chão.”Esse pensamento <strong>do</strong> <strong>do</strong>utor Suzuki, via John Cage, retrata bem o processo da feitura de<strong>um</strong> filme que lida com o real. Ao pensar no objeto de <strong>um</strong> filme, ao imaginar o universo de<strong>um</strong> determina<strong>do</strong> assunto, falsas certezas pululam em seu imaginário, você se sente <strong>um</strong>Deus crian<strong>do</strong> <strong>um</strong> determina<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>.Ao ir de encontro ao objeto de seu filme, ao acionar o botão <strong>do</strong> descontrole, todas ascoisas se transformam, suas certezas desvanecem, você troca o lugar deifica<strong>do</strong> de <strong>um</strong>mun<strong>do</strong> imaginário pela crueza da realidade diante de seus olhos.Você volta a brincar de Deus associan<strong>do</strong> imagens e sons uns com os outros e esculpin<strong>do</strong>o tempo e o ritmo de seu filme na edição. Fundamental lugar <strong>do</strong> reencontro, onde ohomem volta a ser homem, e a montanha, montanha. Olhar as coisas pela segunda vez,realinhar o caos, reinventar o mun<strong>do</strong> por meio da imagem e não apenas <strong>do</strong> imaginário.Finalmente, na sala de cinema, to<strong>do</strong>s flutuam com os pés <strong>um</strong> pouco acima <strong>do</strong> chão.A realidade é <strong>um</strong>a coisa híbrida, multifacetada pela incidência de olhares diversos, espelhosem fun<strong>do</strong> de <strong>um</strong> homem, <strong>um</strong>a cultura, <strong>um</strong> país. Se a pensarmos como <strong>um</strong>a lâminareflexiva, que nos reflete e nos faz pensar, se a compararmos à superfície de <strong>um</strong> lago,poderemos nos relacionar com ela de pelo menos três maneiras:– Poderemos ficar senta<strong>do</strong>s no barranco contemplan<strong>do</strong> sua superfície (e acho que a peledas coisas é <strong>um</strong> universo imenso que revela muito <strong>do</strong> que no fun<strong>do</strong> se esconde). Existe aí apossibilidade de <strong>um</strong> distanciamento, <strong>um</strong>a relação filtrada por <strong>um</strong> olhar distante, <strong>um</strong> olharpassante, algo que incide e elege, no momento mesmo <strong>do</strong> encontro entre a imagem queé dada e os olhos que a percebem. Uma atitude, <strong>um</strong>a opção de posicionamento, comon<strong>um</strong> campo de batalha, como a posição <strong>do</strong>s rifles em <strong>um</strong>a emboscada n<strong>um</strong> faroesteamericano, como as cenas iniciais de F for Fake, de Orson Welles – a câmera distanteacompanha <strong>um</strong>a bela mulher que caminha pela rua sen<strong>do</strong> devorada pelos olharesdesavergonha<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s homens pelos quais passa.– Poderemos, ainda senta<strong>do</strong>s no barranco ou em pé na margem <strong>do</strong> lago, lançar <strong>um</strong>apedra na água para vê-la reverberar, gerar <strong>um</strong> movimento tectônico em sua superfície,embaralhar seus elementos, desorganizar o aparentemente organiza<strong>do</strong>. Essa pedra como<strong>um</strong> conceito, <strong>um</strong> dispositivo, <strong>um</strong>a proposição. Os trabalhos oriun<strong>do</strong>s desse méto<strong>do</strong>são fundamenta<strong>do</strong>s no princípio de ação e reação. Uma proposição qualquer aciona<strong>um</strong> movimento que produz <strong>um</strong>a reação. São trabalhos que jogam com a noção <strong>do</strong>esvaziamento da autoria ou, pelo menos, nutrem o desejo <strong>do</strong> compartilhamento desta.Um jogo não se joga sozinho, jogos são também fundamenta<strong>do</strong>s em <strong>um</strong>a ação queespera <strong>um</strong>a reação.– E, finalmente, poderemos nos lançar a nós mesmos nesse lago. Afundarmo-nos inteirosnessas misteriosas águas e, de dentro, abrir os olhos e ver o que acontece. Essa atitudeimersiva reflete <strong>um</strong> desejo de entrega e investigação, <strong>um</strong>a propensão ao embate, à mescla,a vivenciar <strong>um</strong> pouco mais de perto o que se esconde dentro <strong>do</strong> espelho, no fun<strong>do</strong> daságuas, encarar o peixe nos olhos, deixar-se levar pela correnteza ou hipnotizar-se com acalmaria <strong>do</strong> lago.Portanto, existe o lago e existe você. E no meio disso, na margem disso, ronronares desapos dissonantes, balé da vegetação ao vento, metamorfoses de peixes em luz, bolhas dear atravessan<strong>do</strong> a água. Tu<strong>do</strong> participa dessa experiência e a autoriza. Tu<strong>do</strong> estimula, seduz,desorganiza, afeta sua percepção. Pois no espaço real <strong>um</strong>a folha que cai é tão expressivaquanto o vesti<strong>do</strong> de Marilyn Monroe que voa e a sonoridade de <strong>um</strong> deserto tão intensaquanto <strong>um</strong>a cantora lírica no palco.2.Um helicóptero sobrevoa <strong>um</strong>a favela lançan<strong>do</strong> <strong>um</strong> facho de luz sobre seus casebres. Dapracinha <strong>um</strong> homem observa o belo movimento circular <strong>do</strong> helicóptero e o facho de luzcortan<strong>do</strong> a noite escura. Eu observo o homem da pracinha observan<strong>do</strong> o helicóptero.Alguém com <strong>um</strong> binóculo pode estar me observan<strong>do</strong> observar o homem da pracinhaobservan<strong>do</strong> o helicóptero. Enquanto observo o homem da pracinha observan<strong>do</strong> ohelicóptero imagino o que ele está ven<strong>do</strong> e imagino também o que o piloto ou o foquistada luz estão ven<strong>do</strong> lá de cima. De repente alguém grita no meio da favela. Movo meus olhosna direção <strong>do</strong> grito, por instinto, por curiosidade. Vejo apenas o facho de luz percorren<strong>do</strong>os casebres apaga<strong>do</strong>s. O grito se cala, o helicóptero se vai, o homem da pracinha deitana grama e fecha os olhos. Uma rede de imagens se constrói em minha memória. O querealmente vi e o que imaginei ter visto? O que realmente aconteceu e o que imaginei ter


72 Cao Guimarães Doc<strong>um</strong>entário e subjetividade – Uma rua de mão dupla 73aconteci<strong>do</strong>? Nessa dúvida alg<strong>um</strong>a coisa existe. O homem da pracinha faz seu filme emsua memória, eu faço o meu, da mesma forma o piloto, o foquista e a pessoa <strong>do</strong> binóculo.Existem diferentes filmes em cada <strong>um</strong> de nós para <strong>um</strong>a mesma realidade. Nisso consiste abeleza e a magia de lidar com a realidade. Ela nos faz pairar para além de nossas certezas enos reinventarmos sempre diante das inúmeras possibilidades que se apresentam.Somos to<strong>do</strong>s especta<strong>do</strong>res privilegia<strong>do</strong>s de inúmeros filmes que a realidade nos oferece.E felizmente nunca vemos a mesma coisa <strong>do</strong> mesmo jeito. Da mesma forma nunca saímosde <strong>um</strong>a sala de cinema com a mesma impressão de <strong>um</strong> filme que a pessoa ao la<strong>do</strong>. Poisarte não é ciência e os DNAs e os vetores de <strong>um</strong>a obra de arte são fundamenta<strong>do</strong>s naimprevisibilidade. A centopéia que habita sua cabeça ao sair de <strong>um</strong>a sala de cinema nãotem necessariamente 100 patinhas. Tampouco será a mesma centopéia que existiu <strong>um</strong>dia na cabeça <strong>do</strong> diretor quan<strong>do</strong> imaginou o filme. Ter a coragem de se entregar, saltar<strong>do</strong> plano deifica<strong>do</strong> da imaginação para o plano real da imagem em ação, recodificar otranse e perceber o milagre da multiplicação <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s no que se encontra para alémde sua pessoa.É necessário, de quan<strong>do</strong> em vez, assassinar o sujeito para que a subjetividade exista. Poisé no lo<strong>do</strong> abissal de nossa existência que o sujeito real se move. Esse ser inominável queestá dentro de nós, <strong>do</strong> qual sabemos tão pouco – é esse o outro rosto que se revela <strong>do</strong>outro la<strong>do</strong> <strong>do</strong> espelho quan<strong>do</strong> nos propomos a encarar a realidade.


74 75Como é possível que o sofrimento que não é meu, nem de meu interesse, possa afetar-meimediatamente como se fosse meu, e com tamanha força que me impele à ação?…Sobre o Fundamento da Moral, Arthur SchopenhauerO <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário como experiênciaÉrika BauerFormada na Escola de Cinema e Televisão de Munique, Alemanha, realizou pesquisas e dirigiu curtasentre 1987 e 1993. Realizou seu primeiro longa-metragem, Dom Helder Câmara, o Santo Rebelde, queganhou, entre outros prêmios, o de melhor roteiro e montagem no Festival <strong>do</strong> Ceará, em 2004, e oMargarida de Prata, em 2005. É professora de cinema da Faculdade de Comunicação da UnB.Diante das inúmeras possibilidades que as mídias hoje oferecem, colocan<strong>do</strong> àdisposição <strong>do</strong> homem <strong>um</strong> leque de serviços audiovisuais pelos quais possamanifestar suas opiniões e sintomas no mun<strong>do</strong> globaliza<strong>do</strong>, me pergunto:como se dá a construção de nossa identidade/verdade nos inúmeros diálogos quesurgem espontaneamente através <strong>do</strong>s blogs, <strong>do</strong> Orkut, <strong>do</strong>s sites de relacionamento,<strong>do</strong>s messengers? É <strong>um</strong>a tentativa de construir a própria história, ou de desconstruí-la?Na internet, anônimos e não-anônimos criam diários e conversas a cada segun<strong>do</strong>, como<strong>um</strong> grito nesse imenso espaço virtual, n<strong>um</strong>a tentativa de criar novas identidades. Tenho aimpressão de que o importante nesses diálogos não é a permanência <strong>do</strong> que se diz, maso esvaziamento <strong>do</strong>s sentimentos, da vida corrida, como as marcas deixadas por <strong>um</strong> meioque se acende e apaga, como passos na areia. Percebo <strong>um</strong>a necessidade de diferenciaçãomisturada a <strong>um</strong> mergulho na massa globalizada, <strong>um</strong> me<strong>do</strong> de não se manter atualiza<strong>do</strong>.Como a não-experiência com base nas imagens que nos chegam a to<strong>do</strong> instante pela TV,mas sem que as experimentemos, pois já chegam banalizadas e amortecidas pelo texto.Sinto as notícias e as imagens <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> amortizadas para que não as sintamos mais, para quenão tenhamos atitudes de rebeldia. Mesmo que esteja tu<strong>do</strong> fora <strong>do</strong> lugar, está tu<strong>do</strong> “normal”.Fazer <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário é <strong>um</strong> ato político, <strong>um</strong> posicionamento diante daquilo que se vê esente. Um diálogo com o meio em que se vive. Uma demonstração de vigor diante davida, <strong>um</strong>a manifestação <strong>do</strong> sentimento de estar vivo.


76 Érika Bauer O <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário como experiência 77É importante também dizer que é <strong>um</strong> ato de extrema coragem se expor edesmistificar o conheci<strong>do</strong>, ass<strong>um</strong>ir diferenças e indiferenças. Lançar-se ao mun<strong>do</strong>para se diferenciar, mesmo sem buscar nada de novo na forma, se o conteú<strong>do</strong> assimo exigir. Ser ou não ser.É <strong>um</strong>a maneira, também, de juntar os pedaços, aqueles milhares de fragmentosdispersos e mal conta<strong>do</strong>s de nossa história coletiva, e nisso redescobrir algo de nossahistória pessoal. Reunir episódios, desvelar a história oficial e reconstruir a “crônica <strong>do</strong>svence<strong>do</strong>res”. As imagens de arquivo no Brasil são, em sua maioria, sobre aqueles que“deram certo”.O <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário quer ser linguagem, quer se comunicar. E com tal força que influenciaos filmes de ficção brasileiros. Assistin<strong>do</strong> ao maravilhoso Cinema, Aspirinas e Urubus, deMarcelo Gomes, me lembrei <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário de Wladimir Carvalho O País de São Saruê. Avisceralidade das imagens, o sol <strong>do</strong> sertão convocan<strong>do</strong> o especta<strong>do</strong>r ao calor <strong>do</strong>s relatos<strong>do</strong>s sobreviventes. O preto no branco. Os galhos secos rasgan<strong>do</strong> a tela. A verdade dequem desconhece banalidades.A realidade chama, chacoalha, estremece. Precipita novos realiza<strong>do</strong>res, e não tão novos, aresponder àquilo que incomoda e/ou emociona. Faz-nos nos mover e entrar em choquecom novos dilemas éticos, políticos e estéticos. A história não fala por si só. É preciso quea façamos falar!Existe <strong>um</strong>a procura muito grande, por parte <strong>do</strong>s realiza<strong>do</strong>res, por projetos de filmes<strong>do</strong>c<strong>um</strong>entários. Isso é gera<strong>do</strong> não só pelas facilidades <strong>do</strong>s meios, hoje mais acessíveis,mas também pelas políticas públicas de regionalização e por <strong>um</strong>a sempre presentenecessidade de melhor compreender e apreender o mun<strong>do</strong> à sua volta.Muitos universitários me procuram para apresentar temas como o primeiro bairro emBrasília, a colonização finlandesa em Pene<strong>do</strong>, a terceira idade nas cidades-satélites, aviolência juvenil em Brasília, o rap em Ceilândia... Porém, mostrar não é mais preciso; <strong>um</strong>telejornal, qualquer dia, o fará. O que importa, para mim, é aproximar a lente, levantarnovas questões, conviver com o seu objeto e se perguntar por quê.Entender-se nesse processo de busca, buscar dialogar com seu tema, trabalhar o impactosocial, ir ao fun<strong>do</strong> <strong>do</strong> poço das questões que serão levantadas n<strong>um</strong>a pesquisa sobre otema, tu<strong>do</strong> isso é que vai dar o verdadeiro senti<strong>do</strong> para o filme. Tu<strong>do</strong> isso, claro, alia<strong>do</strong> aotempo, que amadurece tu<strong>do</strong>. Tanto o tema quanto o realiza<strong>do</strong>r, para entender realmentepara onde será preciso ir.O tempo dá e constrói, no amadurecimento desse diálogo, a dimensão h<strong>um</strong>ana aos filmes<strong>do</strong>c<strong>um</strong>entários. Como <strong>um</strong> embrião que vai crescen<strong>do</strong> até virar filme, lançan<strong>do</strong> luz na história<strong>do</strong> ser h<strong>um</strong>ano, buscan<strong>do</strong> lacunas e construin<strong>do</strong> outra história, não-oficial. E não-oficialpoderá ser o processo investigativo, conduzi<strong>do</strong> de maneira independente, à luz de <strong>um</strong>apesquisa insistente e impertinente. E muitos serão os obstáculos encontra<strong>do</strong>s nessa busca.Não existe <strong>um</strong> modelo, e por isso a diversidade deve ser preservada, sem o dever de levarrespostas e de ser utilitária.Essa necessidade h<strong>um</strong>ana de se comunicar está profundamente associada ànecessidade de conhecer, de se perguntar e participar. É o que nos move para novosolhares e para <strong>um</strong>a compreensão <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, nossa maneira de encontrar <strong>um</strong> lugarno mun<strong>do</strong>.Antes das câmeras, microfones e tantos outros equipamentos, existiam as imagenspintadas, o teatro de sombras, a palavra falada e também a dança e o ritual. Tínhamosmeios de expressão, da mesma forma que fazemos hoje com nossos filmes.O <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário faz uso das mesmas possibilidades de que o filme de ficção dispõepara compor <strong>um</strong>a cena: plano aberto, plano fecha<strong>do</strong>, travelling, panorâmica,flashback, sem falar daquilo que a montagem pode oferecer para <strong>um</strong> melhor arranjoentre as imagens. Mas existe <strong>um</strong> elemento básico que diferencia <strong>um</strong> <strong>do</strong> outro, queé a abordagem <strong>do</strong> tema, a maneira como <strong>um</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entarista se aproxima de seuobjeto, mais sujeito a surpresas, levan<strong>do</strong> a <strong>um</strong> desnudamento, forçan<strong>do</strong> aberturaspara o indetermina<strong>do</strong>, e conseqüentemente à abundância inata daquilo que arealidade nos oferece.Segun<strong>do</strong> Bill Nichols, professor da Universidade de Rochester, os <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entários podemser expositivos, observacionais, interativos e/ou reflexivos. O formato varia de acor<strong>do</strong> como tema e a abordagem que se queira dar a ele.Como no filme Estamira, cujo diretor, depois de intensa pesquisa, optou por <strong>um</strong>alinguagem mais experimental, ao utilizar os recursos visuais <strong>do</strong> filme para interagircom o personagem e sua loucura. O filme traz imagens quase bíblicas, quan<strong>do</strong> atempestade chega e entra o off de Estamira naquele lixão sob <strong>um</strong> forte vento. Fascina<strong>do</strong>pelas imagens e pelo carisma <strong>do</strong> personagem, <strong>um</strong> deslize: ao encontrar <strong>um</strong> vidro compalmitos (provavelmente estraga<strong>do</strong>s), Estamira fala <strong>do</strong>s almoços que faz, <strong>do</strong> macarrão, decomo fica bom etc. No cinema, especta<strong>do</strong>res fazem cara de nojo. Em seguida, vemos osfamiliares na casa de Estamira comen<strong>do</strong> justamente o macarrão que ela comentara emcena poucos minutos atrás... Um pequeno rasgo na ética <strong>do</strong> filme. E, claro, provavelmenteo palmito não estava lá, <strong>um</strong>a mentira.Como <strong>um</strong>a criança diante de diferentes brinque<strong>do</strong>s, assim se inicia a jornada <strong>do</strong><strong>do</strong>c<strong>um</strong>entarista – aberto, sem idéias fixas e com olhares ainda dispersos. Assim tambémpoderia ser o seu amadurecimento, o seu processo de autoconhecimento na fase finalda montagem – aberto às inúmeras possibilidades de interpretação <strong>do</strong> mesmo fato. E aívem a questão fundamental: a ética.


78 Érika Bauer O <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário como experiência 79Chegar próximo da verdade de fato seria o mesmo que falar de conhecer a si mesmo.Somos tantos, somos tão diferentes em diferentes momentos, fazen<strong>do</strong> leituras diferentesdas experiências que vivemos, que não existe a possibilidade de chegar a <strong>um</strong>a verdadefinal. Ela possui diferentes matizes, dependen<strong>do</strong> da luz em que for vista.Personagens escolhi<strong>do</strong>s por nós podem sugerir sentimentos diferentes daquelesque nos levaram a escolhê-los. Não existe unanimidade, e é isso que torna o trabalho<strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entarista interessante e fundamental. Quan<strong>do</strong> tentamos h<strong>um</strong>anizar <strong>um</strong>í<strong>do</strong>lo, <strong>um</strong> ícone da sociedade, fazen<strong>do</strong> <strong>um</strong> plano de 360º sobre ele, nos aproximamosmuito mais <strong>do</strong> que o enaltecen<strong>do</strong> ou contan<strong>do</strong> fatos relevantes da história que eleaju<strong>do</strong>u a construir.Poderia falar de minha experiência com o personagem de Dom Helder e minhapesquisa para o <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário O Santo Rebelde. A pesquisa teve várias etapas. Iniciousecom a descoberta <strong>do</strong> tema, ou “o tema me descobriu”, depois de <strong>um</strong>a série de“coincidências”. Vi <strong>do</strong>m Helder n<strong>um</strong>a entrevista sobre Josué de Castro, fiquei curiosa eem seguida deparei com <strong>um</strong>a biografia recém-lançada. Curiosidade e enamoramentopelo personagem. Quan<strong>do</strong> procurei me afastar da biografia escrita para iniciar minhaprópria jornada, enfrentei <strong>um</strong>a nova crise: falta de material de arquivo no Brasil. Fui atrásde outras fontes, como coleções particulares, entrevistas com colegas, pessoas ligadas àTeologia da Libertação, movimentos inicia<strong>do</strong>s por <strong>do</strong>m Helder. Também ouvi fontes <strong>do</strong>outro la<strong>do</strong>, críticos de seu trabalho etc. Seus críticos, no entanto, eram fracos, não valiaa pena ass<strong>um</strong>i-los dentro <strong>do</strong> filme, porque exporiam a fragilidade <strong>do</strong> próprio discurso.Fui perceben<strong>do</strong> a amplitude que o trabalho de <strong>do</strong>m Helder teve no mun<strong>do</strong> e parti paraa busca de imagens e depoimentos fora <strong>do</strong> Brasil. Foi a fase mais importante, pois medeu a segurança e <strong>um</strong>a melhor percepção da dimensão <strong>do</strong> personagem. A partir daí,o filme cresceu, e pude pensar realmente que o <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário não seria apenas sobre<strong>um</strong> homem da Igreja, mas sobre <strong>um</strong> homem de seu tempo no Brasil e no mun<strong>do</strong>. E porque não dizer que me apaixonei por ele e que me exporia dessa forma na colocaçãodas idéias <strong>do</strong> filme. Apaixonei-me por suas idéias, sua força, sua feiúra e sua beleza,seu h<strong>um</strong>or e sua inteligência, e – por que não dizer? – suas contradições, como suafamiliaridade com o poder.Ao perceber, no processo da montagem, o personagem que construímos, vamosentenden<strong>do</strong> o tempo como alia<strong>do</strong>. Como o trabalho amadurece, e como criamos nossasubjetividade em relação ao personagem. E as descobertas profundas são inevitáveis.Jung escreveu:Experimentar o eu significa estar sempre consciente da própria identidade.Então você fica saben<strong>do</strong> que nunca poderá ser outra coisa senão vocêmesmo, que nunca poderá perder-se e que nunca se alienará de si. Isto éassim porque você sabe que o eu é indestrutível, que é sempre <strong>um</strong> e o mesmo,que não pode ser dissolvi<strong>do</strong> nem troca<strong>do</strong> por nenh<strong>um</strong>a outra coisa. O eulhe permite permanecer o mesmo em todas as condições de vida. Ass<strong>um</strong>iro lugar no mun<strong>do</strong>, buscar idéias que formarão opiniões, analisar pontos devista, composição de quadro, encontrar maneiras de expor <strong>um</strong> drama.Diria, então, que o <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário é <strong>um</strong>a sujeição ao tempo. O <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entarista precisaestar conecta<strong>do</strong> com seu tempo, ass<strong>um</strong>in<strong>do</strong> e crian<strong>do</strong> necessidades que vão gerar novasinvenções formais. Encontrar seu objeto, seu tema, é manter-se liga<strong>do</strong> aos acontecimentos<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> e a suas conexões com o mun<strong>do</strong> interno. Colocar perguntas que vão desde amotivação <strong>do</strong> tema até as possibilidades de pesquisa, conflitos a ser levanta<strong>do</strong>s, conexõescom a política, leituras diversas etc.É importante perceber a complexidade <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> hoje e as inúmeras possibilidades que <strong>um</strong>tema pode oferecer. E, fundamental, não se sujeitar à força <strong>do</strong> merca<strong>do</strong>, <strong>do</strong> neo-liberalismoou da globalização, ou seja, tu<strong>do</strong> aquilo que limita, que esvazia conteú<strong>do</strong>s ou nos tornameros especta<strong>do</strong>res de algo maior <strong>do</strong> que nós. Não se deixar anestesiar diante da realidade.Temos de reagir, ir em busca de novas idéias, novos formatos, abraçar nossa subjetividade.Pessoalmente, sinto-me como <strong>um</strong> Dom Quixote, e são personagens assim que me inspiram!Vargas Llosa escreveu:El gran tema de Don Quijote de la Mancha es la ficción, su razón de ser, y lamanera como ella, al infiltrarse en la vida, la va modelan<strong>do</strong>, transforman<strong>do</strong>...Al mismo tiempo que una novela sobre la ficción, el Quijote es un canto a lalibertad. Conviene detenerse un momento a reflexionar sobre la famosísimafrase de <strong>do</strong>n Quijote a Sancho Panza:“La Libertad, Sancho, es uno de los más preciosos <strong>do</strong>nes que a los hombresdieron los cielos; con ella no pueden igualarse los tesoros que encierra la tierrani el mar encubre; por la libertad así como por la honra se puede y debeaventurar la vida, y, por el contrario, el cautiverio es el mayor mal que puedevenir a los hombres” (Dom Quixote de La Mancha, Edición del IV Centenario,Alfaguara, II, 58, p. 984-985).Como <strong>um</strong>a manifestação das novas necessidades <strong>do</strong>s <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entaristas no mun<strong>do</strong> hoje,diante das novas tecnologias e da invasão constante das imagens, os filmes adquiremformas mais complexas. Doc<strong>um</strong>entários reflexivos misturam passagens observacionaiscom entrevistas, a voz sobreposta <strong>do</strong> diretor com intertítulos, deixan<strong>do</strong> bem claro o quejá era <strong>um</strong> pressuposto: “o <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário sempre foi <strong>um</strong>a forma de representação, e nunca<strong>um</strong>a janela aberta para a ‘realidade’ “ (Bill Nichols).Assim, o cineasta se torna testemunha participante, crian<strong>do</strong> e modifican<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong>enquadra<strong>do</strong>, desenquadran<strong>do</strong> preconceitos e inquietan<strong>do</strong> com novas maneiras depercepção, para melhor compreensão das inúmeras faces e possibilidades que a realidadepode oferecer. E é interessante observar a inversão <strong>do</strong> político para o pessoal, que fabrica


80 Érika Bauer O <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário como experiência 81seu próprio discurso, efeitos, impressões e pontos de vista. É a voz <strong>do</strong> texto que ouvimos,que conduz to<strong>do</strong> o filme, mesmo quan<strong>do</strong> essa voz tenta se apagar. Na vida fazemos usode encenações; por que não as utilizar no filme <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário? Por exemplo, quan<strong>do</strong>fazemos uso de entrevistas. A representação é parte <strong>do</strong> processo, não perguntamos oque não nos interessa, de certa forma conduzimos nossos personagens para o local <strong>do</strong>filme, daquilo que nos é importante. Interessante também é destacar o presente <strong>do</strong>spersonagens. O que fazem, além de falar aquilo que o diretor pergunta, ou o que fariam,caso não estivéssemos lá.A construção de <strong>um</strong>a estrutura de mosaicos, revelan<strong>do</strong> a incompletude de <strong>um</strong>a verdade!A intensidade da vida no mun<strong>do</strong> – lembran<strong>do</strong> que vivemos n<strong>um</strong> continente coloniza<strong>do</strong>,com mentes colonizadas, com fortes raízes na injustiça, controla<strong>do</strong> por organizaçõespolíticas ainda confusas, tão próximos à nação mais rica <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>.Somos caóticos e a história que conhecemos – sempre a <strong>do</strong>s vence<strong>do</strong>res – foi contadacom base em escolhas. Nossos olhares, no entanto, guardam o potencial de liberdade queLlosa apontou em Dom Quixote. Como a câmera-olho de Vertov, precisam ir onde aindanão enxergamos, reconstruin<strong>do</strong> a realidade, expon<strong>do</strong> outros paradigmas que suavizemvelhas certezas, desvelan<strong>do</strong> a ordem – freqüentemente estranha – por trás <strong>do</strong> caos. Quemsabe, como pessoas e nações, não nos reencontremos menos enquadra<strong>do</strong>s?


82 83Quan<strong>do</strong> comecei a fazer <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entários, no começo <strong>do</strong>s anos 1990, o <strong>panorama</strong>das expressões artísticas de áudio e/ou vídeo brasileiras que se seguiu ao porretecollori<strong>do</strong> vivia <strong>um</strong> perío<strong>do</strong> preto-e-branco de apartheid. Cinema era cinema.Artes plásticas eram artes plásticas. Música era música. E o que escapava desses grandesconceitos, alguns subgêneros como o <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário ou a videoarte, era exatamenteaquilo que o nome indicava: subgêneros. Eram manifestações “menores”, relativamenteesquecidas em alg<strong>um</strong> limbo perdi<strong>do</strong> entre as grandes correntes de expressão, sobretu<strong>do</strong>quan<strong>do</strong> realizadas sobre suportes à época considera<strong>do</strong>s menos nobres, como a imagemeletrônica. Havia <strong>um</strong>a espécie de cânon implícito, mas geralmente aceito, que não sóseparava as manifestações culturais, como também as hierarquizava.Filme livreCarlos NaderEntretecen<strong>do</strong> linguagens que vão <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário clássico à videoarte, Carlos Nader teveseus vídeos exibi<strong>do</strong>s em centros culturais de mais de 20 países (como o MoMA, de Nova York,em 1999, e o Tate Modern, de Londres, em 2007) e veicula<strong>do</strong>s em mais de <strong>um</strong>a dezena <strong>do</strong>sprincipais canais de TV <strong>do</strong> planeta (como o inglês Channel 4 e o franco-alemão Arte). Entreos prêmios que recebeu estão o Mondial de la Vídeo de Bruxelles (1993), o InternationalerVideokunstpreis da ZKM, na Alemanha, e o Grande Prêmio de Cinema Brasil (2000).O espaço daquele tempo ainda se definia por <strong>um</strong> apego a fronteiras bastante estritas.E em nome delas foram travadas grandes discussões que, ainda que depois tenham serevela<strong>do</strong> quase sempre putativas, mobilizavam ímpetos passionais. Lembro-me, porexemplo, <strong>do</strong> longo debate que se travou entre os defensores <strong>do</strong> vídeo e os advoga<strong>do</strong>s dapelícula. Durante anos, questionou-se (e alguns poucos retardatários ainda questionam)a legitimidade da imagem eletrônica como suporte de <strong>um</strong>a obra de arte audiovisual.Felizmente, com o passar da própria matéria-prima central da obra audiovisual – ouseja, o tempo –, ficou claro que tal questionamento existia sobretu<strong>do</strong> para defender <strong>um</strong>corporativismo mal escondi<strong>do</strong>. Tratava-se acima de tu<strong>do</strong> de <strong>um</strong>a tentativa institucional deproteger <strong>um</strong> meio estabeleci<strong>do</strong>, o cinemão tradicional, da competição mais ágil e perigosade <strong>um</strong>a nova tecnologia.Essa competição, que se fosse exclusivamente estética poderia ter gera<strong>do</strong> <strong>um</strong> debatemuito frutífero, escondia, assim, em seu bojo, outra competição, meramente financeira. Eera provavelmente ela o principal combustível a motivar tanta cele<strong>um</strong>a, já que no universo


84 Carlos Nader Filme livre 85cultural é, via de regra, <strong>do</strong> consenso estético entre grupos de influência que decorrem asdecisões de alocação de verba, inclusão em leis de incentivo e julgamento de premiações.Em decorrência da reação corporativista <strong>do</strong> establishment cinematográfico, o cinemafeito em vídeo, por exemplo, viveu durante alg<strong>um</strong> tempo <strong>um</strong>a versão às avessas <strong>do</strong>célebre para<strong>do</strong>xo de Tostines (aquele <strong>do</strong> “vende mais porque é fresquinho ou é fresquinhoporque vende mais?”). Assim, o biscoito fino <strong>do</strong> audiovisual eletrônico passou <strong>um</strong> perío<strong>do</strong>considerável excluí<strong>do</strong> <strong>do</strong>s critérios da Lei <strong>do</strong> Audiovisual, por ser eletrônico, e igualmenteexcluí<strong>do</strong> <strong>do</strong>s mecanismos práticos de aprovação na Lei Rouanet, por ser audiovisual esupostamente já ter <strong>um</strong>a lei própria, a Lei <strong>do</strong> Audiovisual, que na verdade tambémo excluía. Felizmente, essas distorções foram corrigidas a tempo em ambas as pontas,e a imagem eletrônica foi paulatinamente sen<strong>do</strong> resgatada de seu limbo financeiro aomesmo tempo em que era retirada <strong>do</strong> limbo estético.No território de museus e galerias de arte, deu-se <strong>um</strong> processo semelhante ao ocorri<strong>do</strong>nas salas de projeção. É verdade que no princípio de tu<strong>do</strong> o vídeo foi usa<strong>do</strong> por artistasmainstream, no melhor senti<strong>do</strong> da palavra, como Anna Bella Geiger no Brasil ou Nam JunePaik na cena internacional. Mas <strong>um</strong> desvio de rota, inicia<strong>do</strong> nos anos 1980 e ainda nãototalmente explica<strong>do</strong>, fez com que no começo <strong>do</strong>s anos 1990 a arte <strong>do</strong> vídeo acabassepor se encontrar bastante insulada. Nessa época, a chamada videoarte, apesar de já propor<strong>um</strong>a fusão efervescente entre cinema, música, mídia e outras artes plásticas ou temporais,tinha para<strong>do</strong>xalmente <strong>um</strong> sistema de criação e exibição exclusivo, aparta<strong>do</strong> e a princípionegligencia<strong>do</strong> pelos circuitos tradicionais das artes. Mas antes ainda que as salas de cinemaaceitassem o vídeo em suas exibições, as galerias, os museus e os próprios artistas plásticosforam gradualmente abraçan<strong>do</strong> o meio eletrônico. Foi <strong>um</strong> processo relativamente rápi<strong>do</strong>,mas essa aceitação não aconteceu sem passar por alg<strong>um</strong>as situações intermediáriasesdrúxulas, como a da Bienal de São Paulo de 1994, em que todas as instalações devideoarte foram sintomaticamente colocadas sob <strong>um</strong>a construção efêmera de lona, <strong>um</strong>atenda anexa ao prédio central. A tenda era <strong>um</strong>a espécie de apêndice inflável da exposição,alegoria involuntária que expressava muito bem a dificuldade que os cardeais da artedaquela época tinham em aceitar definitivamente <strong>um</strong> novo meio em seu panteão.O esta<strong>do</strong> das coisas hoje é bem outro. A incorporação <strong>do</strong>s meio eletrônicos por aquela artechamada apenas de “arte” seguiu com rapidez as três etapas que Schopenhauer enxergano surgimento de toda nova verdade. Primeiro, ela foi combatida. Depois, foi ridicularizada.E, por fim, foi aceita como se sempre tivesse si<strong>do</strong> a coisa mais óbvia <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Em poucosanos, a eletrônica passou de penetra a vedete – tanto no circuito das artes internacionaisquanto na palheta <strong>do</strong>s artistas contemporâneos. Mesmo que com a abertura definitivada porteira <strong>do</strong> museu para a boiada <strong>do</strong> vídeo possa ter havi<strong>do</strong> alg<strong>um</strong> vale-tu<strong>do</strong> autoindulgente,a quebra de qualquer barreira limitante, de qualquer reserva de merca<strong>do</strong>, ésempre muito salutar. E, hoje, com exceção daqueles poucos retardatários que mencionei,sempre literalmente de plantão, quase mais ninguém discute se o vídeo em particular ouqualquer outra tecnologia moderna em geral pode ou não carregar arte. O tempo, sempreele, se encarregou de despertar definitivamente toda a exuberante irrelevância dessadiscussão. Irrelevância esta que já era latente no início <strong>do</strong>s anos 1990, perío<strong>do</strong> ao qual,aliás, eu terei brevemente de voltar para colocar outra discussão, correlata e igualmenteirrelevante, mas central para mim e, acredito, para esta publicação: “E o <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário,especificamente, pode ou não ser considera<strong>do</strong> arte?”.Foi no começo de 1992 que essa questão me apareceu pela primeira vez. Para ela, recebibasicamente duas respostas. Uma curta e <strong>um</strong>a longa. A curta foi: “Não”. E a longa foi: “Oseu <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário não”. O meu primeiro trabalho não foi, a princípio, considera<strong>do</strong> “arte”.Eu havia acaba<strong>do</strong> de terminá-lo. Era realmente <strong>um</strong> vídeo sem grandes efeitos, a não sero de misturar verdades e mentiras sobre <strong>um</strong> personagem, José Alves de Moura, tambémconheci<strong>do</strong> como Beijoqueiro, que para mim era <strong>um</strong>a alegoria ambulante <strong>do</strong> Brasil daquelaépoca, maníaco-depressivo entre a violência e o afeto. Durante os <strong>do</strong>is meses de filmagens,em que dividi o mesmo teto com meu personagem, a questão “<strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário é arte” nãoteve tempo para me ocorrer. Mas logo depois, com o vídeo já pronto debaixo <strong>do</strong> braço,pude notar que a maioria <strong>do</strong>s responsáveis pelas principais instituições que exibiamvídeos na época acreditava que <strong>um</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário de formato relativamente televisivosobre <strong>um</strong> homem que saía beijan<strong>do</strong> pela rua não era exatamente arte. Por causa disso,o vídeo ficou <strong>um</strong> ano engaveta<strong>do</strong>, sem espaço para lançamento. Em 1993, O Beijoqueiroteve sua première no World Wide Video Festival, <strong>do</strong> cura<strong>do</strong>r holandês Tom van Vliet, <strong>um</strong>aimportante plataforma de lançamento da “arte <strong>do</strong> vídeo” da época. A partir dela, o filmecorreu não só boa parte daquele circuito internacional de videoarte que mencionei acima,mas também parte <strong>do</strong> circuito de festivais e canais de TV que exibiam <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entários “dequalidade”. Durante essas exibições, notei que, mesmo que alguns especta<strong>do</strong>res vissemno vídeo apenas o coté <strong>do</strong> Brasil exotique et bizarre que o Primeiro Mun<strong>do</strong> cultua, muitosoutros enxergavam nele <strong>um</strong>a experiência de contato legítima e profunda entre <strong>um</strong> autorgenuinamente envolvi<strong>do</strong> e <strong>um</strong> personagem excepcional. Ou seja, arte.Meus quatro <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entários seguintes – Trovada, de 1995; O Fim da Viagem, de 1996;Carlos Nader, de 1998; e Concepção, de 2001 – iniciaram trajetórias que pareciam, aprincípio, menos esquizofrênicas. Eles de cara foram aceitos e mesmo premia<strong>do</strong>s porinstituições culturais importantes, como o Videobrasil por aqui e a ZKM na Europa. Assim,foram logo reconheci<strong>do</strong>s como “arte”. O que aconteceu, estranhamente, é que elesnão foram reconheci<strong>do</strong>s como “<strong>do</strong>c<strong>um</strong>entários”. Não foram seleciona<strong>do</strong>s para nenh<strong>um</strong>festival <strong>do</strong> gênero, nem foram exibi<strong>do</strong>s em nenh<strong>um</strong>a programação <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entária deTV. De certo mo<strong>do</strong>, era compreensível. Se, por <strong>um</strong> la<strong>do</strong>, eles têm várias característicasóbvias de <strong>um</strong>a linguagem “artística” e “experimental”, por outro, Trovoada, Carlos Nadere Concepção não têm algo que caracteriza a maioria <strong>do</strong>s <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entários: <strong>um</strong>a estruturaconcêntrica ao seu tema, seja esse tema <strong>um</strong> cantor, seja <strong>um</strong>a <strong>do</strong>ença. Esses meus ensaiosvisuais são o que chamei de “<strong>do</strong>c<strong>um</strong>entários sobre <strong>um</strong>a sensação pessoal”, com <strong>um</strong>aestrutura associativa, como a <strong>do</strong> pensamento livre. Já O Fim da Viagem fugia <strong>um</strong> poucoà regra. O vídeo é <strong>um</strong>a mistura estranha de cinema direto e proto-reality show, em quea câmera e eu acompanhamos, falsamente ausentes, <strong>um</strong>a fatia da vida com<strong>um</strong> de <strong>um</strong>homem com<strong>um</strong>. Mesmo que a princípio esses pequenos filmes tenham causa<strong>do</strong> alg<strong>um</strong>


86 Carlos Nader Filme livre 87estranhamento, talvez pela subjetividade excessiva de sua proposta, a aceitação <strong>do</strong>caráter <strong>do</strong>c<strong>um</strong>ental deles também acabou vin<strong>do</strong> a tempo. Nesse senti<strong>do</strong>, <strong>do</strong>is eventos“oficializaram”, pelo menos para mim, esse processo. Em 2000, O Fim da Viagem foi <strong>um</strong><strong>do</strong>s 25 trabalhos escolhi<strong>do</strong>s para compor a New Doc<strong>um</strong>entary, <strong>um</strong>a mostra <strong>do</strong> MoMA deNova York que apontava novas linguagens <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entais para o milênio que se iniciava.E, em 2003, a Conferência Internacional de Doc<strong>um</strong>entários, vinculada ao festival É Tu<strong>do</strong>Verdade, apresentou, justamente com destaque positivo para a subjetividade no gênero<strong>do</strong>c<strong>um</strong>ental, vídeos como Carlos Nader, Trovoada e Concepção.Obviamente não fui o único realiza<strong>do</strong>r a participar da Conferência ou a viver essas questões.Artistas audiovisuais brasileiros tão diferentes como Arthur Omar, Cao Guimarães, CarlosAdriano, Eder Santos, Eduar<strong>do</strong> Coutinho, Fernan<strong>do</strong> Meirelles, Francisco César Filho, InêsCar<strong>do</strong>so, João Moreira Salles, Joel Pizzini, Karim Aïnouz, Kiko Goifman, Lucas Bambozzi,Lucila Meirelles, Luis Duva, Marcello Dantas, Marcelo Macha<strong>do</strong>, Marcelo Gomes, Marcelo Tas,Piche Martirani, Roberto Moreira, Sandra Kogut, Tadeu Jungle, Tata Amaral, Walter Silveira,entre outros, também teriam histórias parecidas para contar. N<strong>um</strong> determina<strong>do</strong> momentohistórico da criação audiovisual, inseri<strong>do</strong> entre aquele fim <strong>do</strong>s anos 1980 e começo <strong>do</strong>s1990, eles pegaram o bastão <strong>do</strong>s pioneiros <strong>do</strong> vídeo e transitaram deliberadamentepelos <strong>do</strong>is la<strong>do</strong>s de <strong>um</strong>a fronteira arbitrária e caduca, contribuin<strong>do</strong> para apagá-la. Assim,ajudaram a transformar o que era <strong>um</strong> critério de exclusão n<strong>um</strong> parâmetro de inclusão. Se,no meio das artes plásticas, a eletrônica é hoje <strong>um</strong> suporte deseja<strong>do</strong>, no meio <strong>do</strong> cinema<strong>do</strong>c<strong>um</strong>ental, aquilo a que se dá o nome ora de “subjetividade”, ora de “experimentalidade”é algo hoje recorrentemente incentiva<strong>do</strong> na prática. Se nos debruçarmos sobre os últimoscinco ou seis anos <strong>do</strong> mais importante e tradicional festival de <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entários brasileiros,o É Tu<strong>do</strong> Verdade, observaremos que os principais premia<strong>do</strong>s são belos filmes que seencaixariam com facilidade nos rótulos de “experimental” ou “subjetivo”. É certamente ocaso de Rocha que Voa (2002), O Prisioneiro da Grade de Ferro (2003), A Alma <strong>do</strong> Osso (2004) eAboio (2005). Vale ressaltar, também, que critérios semelhantes parecem pautar a escolhade boa parte <strong>do</strong>s editais públicos de premiação e fomento à produção. Houve, no espaçode dez anos, <strong>um</strong>a efetiva e libera<strong>do</strong>ra mudança de paradigmas. O tipo de experimentalismoaudiovisual, pelo qual alegremente nos batemos no começo da década passada, tem hoje<strong>um</strong> grau de reconhecimento inédito pelas correntes culturais mais centrais.Eu gostaria de estar aqui apenas festejan<strong>do</strong> esse reconhecimento. Eu o festejo, claro, emuito, mas começo a enxergar na institucionalização dele alguns perigos. Para tentarexplicá-los, terei de lançar mão, mais <strong>um</strong>a vez, de <strong>um</strong>a história pessoal. Afinal, não é desubjetividade que estamos tratan<strong>do</strong> aqui? Passei quatro anos, de 2000 a 2004, envolvi<strong>do</strong>n<strong>um</strong> projeto sobre a questão racial brasileira. Foi <strong>um</strong> perío<strong>do</strong> de dedicação intensa emque intercalei leituras sobre o assunto, conversas com especialistas e acompanhamentode personagens que literalmente vivem a questão da raça na pele. O resulta<strong>do</strong> dessemergulho, <strong>um</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário de longa-metragem chama<strong>do</strong> Preto e Branco, foi exibi<strong>do</strong> pelaprimeira vez no É Tu<strong>do</strong> Verdade de 2004 e chegou a entrar em cartaz em <strong>um</strong> pequenocinema comercial de São Paulo. A reação ao filme me surpreendeu, novamente pelaesquizofrenia com que se deu. Se o (pequeno) público em geral e a crítica de jornal viram nofilme sobretu<strong>do</strong> qualidades, <strong>um</strong> determina<strong>do</strong> setor <strong>do</strong> meio cinematográfico – <strong>um</strong> gruporelativamente pequeno também, mas inteligente e influente – pareceu incomoda<strong>do</strong>. Essefato me surpreendeu especialmente por tratar-se de <strong>um</strong> grupo basicamente forma<strong>do</strong> porpessoas que têm como bandeira, justamente, <strong>um</strong> cinema experimental, de que muitasvezes gosto e que sempre respeito. Ao perguntar a alg<strong>um</strong>as dessas pessoas quais eram asrestrições ao filme, recebi respostas muito parecidas às criticas feitas a O Beijoqueiro, maisde dez anos antes. Entre outros peca<strong>do</strong>s, Preto e Branco fazia uso exagera<strong>do</strong> da música,usava <strong>um</strong>a linguagem parecida demais com a da TV ou a <strong>do</strong> cinema tradicionais e nãocolocava <strong>um</strong>a determinada “postura de autor” como protagonista ululante. E, ainda piorque O Beijoqueiro, Preto e Branco misturava histórias diferentes, não ia “fun<strong>do</strong>” em nenh<strong>um</strong>adelas, entrevistava “especialistas”, evitava cenas catárticas e não parecia contar comnenh<strong>um</strong> dispositivo ou personagem excepcional para abordar a questão.Diante das críticas, eu tentei afirmar que tinha si<strong>do</strong> sempre absolutamente deliberadaa decisão de que tanto a maioria das técnicas narrativas quanto a maioria das situaçõescênicas de P&B não se caracterizassem pela excepcionalidade. Em vários momentos daedição final, as emoções espetaculares que as câmeras cost<strong>um</strong>am extrair de quem está àfrente delas foram cortadas. Tu<strong>do</strong> que fosse “gestual” demais, de minha parte ou da parte<strong>do</strong>s personagens, acabou me parecen<strong>do</strong> sempre fora de lugar nesse filme. Por isso, além debuscar <strong>um</strong>a sobriedade técnica, não quis ver nele mendigos proféticos, nem presidentesda República, nem rappers raivosos, nem presidiários carismáticos, nem beijoqueiros.Não só porque esse tipo de personagem não garante experimentalidade nenh<strong>um</strong>a, nemporque a “<strong>do</strong>c<strong>um</strong>entografia” nacional recente já está bem servida deles. Minha decisãodeu-se sobretu<strong>do</strong> em razão de <strong>um</strong>a fidelidade narrativa a meu tema, o racismo brasileiro,cujo mo<strong>do</strong> de operação se caracteriza por <strong>um</strong> tom bem diverso: a conversa “pequena”entre personagens “pequenos”. E antes que alg<strong>um</strong> defensor da moral <strong>do</strong>c<strong>um</strong>ental seaflija, digo aqui apressadamente que eu também acredito que de perto nenh<strong>um</strong>apessoa real é pequena. Mas digo ainda que essa minha opção por excluir personagens,técnicas ou gestos “grandiosos” se deu exatamente por <strong>um</strong>a motivação não moral, masética. Simplesmente a de tentar discutir <strong>um</strong> tema, se não com justiça, pelo menos comjusteza. Por essa mesma razão, incluí no corte final as entrevistas com “especialistas”, afinalo embate teórico interminável é <strong>um</strong> protagonista histórico da questão racial brasileira,vivi<strong>do</strong> de forma muito prática na criação de leis ou na formação de opiniões. Fato é que,apesar de não acreditar na existência de <strong>um</strong>a balança que necessariamente contraponhaética e estética, creio que minhas decisões em Preto e Branco se pautaram mais por <strong>um</strong>atentativa objetiva de comunicabilidade e justeza em relação ao tema <strong>do</strong> que pelo desejode expressão de <strong>um</strong>a subjetividade autoral. Não é o que eu proponho ou defen<strong>do</strong> parato<strong>do</strong>s os <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entários; mas é o que eu acredito que esse <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário específico, aolongo de seu processo de realização, tenha me pedi<strong>do</strong>.Não me passa pela cabeça, é claro, que Preto e Branco seja <strong>um</strong> filme livre de defeitos, tantoestéticos (<strong>do</strong>losos) quanto éticos (culposos). E nem é isso que coloco em questão aqui.


88 Carlos Nader Filme livre 89O que me preocupa de fato é que, ao reunir na cabeça a maioria das críticas, específicas,feitas ao filme, ocorreu-me a possibilidade de que no subsolo desta época mais libertaestivesse germinan<strong>do</strong>, geral, <strong>um</strong>a espécie de catálogo implícito de regras e parâmetroscom os quais seria possível aferir se determina<strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário é ou não experimental.Uma espécie de cânon <strong>do</strong> experimentalismo. Cheguei a essa consideração porque ascríticas, tão uniformes, não questionavam a legitimidade com que tratei o tema racial, masse referiam sobretu<strong>do</strong> às técnicas fílmicas que utilizei. Todas elas pelo visto tradicionaisdemais e experimentais de menos. Assim, a princípio fiquei confuso. Mas, se por <strong>um</strong> la<strong>do</strong> oconceito <strong>do</strong> que é <strong>um</strong> trabalho experimental para esses críticos me pareceu vago (apenassinônimo de “artístico” ou mesmo de “bom”?), por outro, aquilo que faria de <strong>um</strong> trabalho algoexperimental era bastante específico, que parecia seguir alg<strong>um</strong>a cartilha preestabelecida.Como se o experimentalismo pudesse realmente estar conti<strong>do</strong> n<strong>um</strong> conjunto de ditamesconsensuais que devem ser segui<strong>do</strong>s a priori. E como se, de acor<strong>do</strong> com tais ditames, <strong>um</strong><strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário experimental, para ser experimental, devesse necessariamente lançar mãode técnicas bem particulares como, por exemplo, dispositivos de linguagem marcantes e/ou efeitos que realçassem <strong>um</strong>a subjetividade autoral ostensiva. Além disso, outro sintomade que realmente se tratava de <strong>um</strong> cânon é que ele parecia ser ainda mais específico emrelação aos seus tabus, ou seja, às técnicas que <strong>um</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário experimental não devee/ou não pode usar, como, por exemplo, a realização de entrevistas em plano americanocom especialistas e/ou a colocação de música que não faça referência explícita ao universo<strong>do</strong>s personagens.Ao mesmo tempo em que eu percebia que Preto e Branco não c<strong>um</strong>pria as exigências<strong>do</strong>s defensores <strong>do</strong> Cânon <strong>do</strong> Experimentalismo, eu o via como <strong>um</strong> trabalhoprofundamente experimental. E experimental, no meu próprio canonzinho de <strong>um</strong>aregra só, é simplesmente to<strong>do</strong> trabalho que decorre de <strong>um</strong>a experiência legítima. Emsen<strong>do</strong> algo que decorre, a experimentalidade é necessariamente <strong>um</strong>a qualidade quese dá a posteriori, ou seja, depois da experiência, e não em função da escolha a prioride <strong>um</strong> conjunto de técnicas. Assim, a experimentalidade legítima, para mim, não sónão é <strong>um</strong> conjunto de pressupostos que norteie a experiência relativa a <strong>um</strong>a obra,como também é seu oposto. A própria legitimidade a que me refiro está intimamenteassociada à liberdade, à abertura, à ausência de regras restritivas com que o ato deexperimentar é encara<strong>do</strong>. É nesse senti<strong>do</strong> que eu via e vejo Preto e Branco como <strong>um</strong>trabalho experimental. Ele decorreu de quatro anos de imersão profunda e aberta naquestão racial, <strong>um</strong>a experiência transforma<strong>do</strong>ra para mim, que acredito ter resulta<strong>do</strong>,por meio <strong>do</strong> filme, n<strong>um</strong>a experiência também relativamente transforma<strong>do</strong>ra para boaparte <strong>do</strong>s especta<strong>do</strong>res. Sobretu<strong>do</strong> aqueles para os quais as discussões sobre estilosentre cineastas é secundária. Ou aqueles que acreditam que o estilo, como disse Proust,não deve ser <strong>um</strong>a questão de técnica, mas <strong>um</strong>a questão de visão. Não vai aqui, é claro,nenh<strong>um</strong> tipo de ataque específico a qualquer filme que se utilize de <strong>um</strong>a ou mais dastécnicas propostas pelo Cânon <strong>do</strong> Experimentalismo. Gosto de vários filmes, inclusivealguns dirigi<strong>do</strong>s por mim mesmo, que se encaixariam perfeitamente nos ensinamentosexperimentalistas <strong>do</strong> Cânon. Mas entre aquilo que me faz gostar desses filmes estácertamente o fato de que eles não parecem ter ti<strong>do</strong> a preocupação fundamental de seenquadrar em cânon nenh<strong>um</strong> (a não ser que estivéssemos falan<strong>do</strong> da marca japonesada câmera utilizada).Não estou dizen<strong>do</strong> aqui que o artista pode estar livre de toda intenção. Nem de to<strong>do</strong>princípio, nem mesmo de to<strong>do</strong> artifício. Claro que sempre há <strong>um</strong>a intenção inicial. Masacredito ser fundamental que, durante a experiência da criação, o cria<strong>do</strong>r – e em particularo <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entarista, que lida com <strong>um</strong> imponderável bastante externo a si próprio – estejaaberto a mudar cada <strong>um</strong>a de suas intenções iniciais, se a realidade pedir. Foi o queaconteceu com Preto e Branco. Em vários momentos da produção, experimentei efeitosmais ostensivos de linguagem. Mas o filme – esse ser que, como to<strong>do</strong> cria<strong>do</strong>r sabe, é<strong>do</strong>ta<strong>do</strong> de certa vida própria – tratou de expelir alguns desses efeitos. E, se nem semprerejeitou to<strong>do</strong>s os efeitos em si, não aceitou em nenh<strong>um</strong> momento a ostensibilidade delesou qualquer expressivismo objetivo demais de <strong>um</strong>a subjetividade “de autor”. Estou falan<strong>do</strong>de <strong>um</strong> caso específico. O processo de realização de P&B ensinou-me que a linguagemexpressiva não deveria estar entre os protagonistas e que, justamente por isso, ela serviriamelhor à própria mensagem que naquele momento carregava. Além disso, repito, não éque o filme esteja livre de artifícios de linguagem. Nenh<strong>um</strong> filme existe sem artifícios delinguagem; <strong>um</strong> filme é, em si, <strong>um</strong> artifício de linguagem.Que fique claro: tenho grande admiração por vários artistas que dedicam suas trajetóriasa realizar experiências no campo da inovação da linguagem. É algo que especialmenteme interessa e a que também dedico parte <strong>do</strong> meu trabalho. Mas, como Richard Rorty,acredito que “as linguagens não são tentativas de copiarmos o que existe, mas simferramentas para lidarmos com o que existe; assim não há como separar a ‘contribuiçãoque o objeto traz ao nosso conhecimento’ da ‘contribuição dada por nossa subjetividade’ ”.As linguagens não são <strong>um</strong> espelho, subjetivo ou objetivo, aparta<strong>do</strong> <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. São a redede conexão <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Não é possível dissociá-las nem <strong>do</strong>s autores, nem <strong>do</strong>s seus objetos.Mesmo no caso hipotético de <strong>um</strong>a obra que tenha a própria linguagem como fim oucomo objeto principal, ela precisará também de linguagem para ter acesso a seu objeto,a linguagem. Linguagem sobre linguagem. Assim, <strong>um</strong> “experimentalismo de linguagem”– que é, em última instância, aquilo em que os que crêem no cânon vêem como deusúnico e que é também <strong>um</strong>a das divindades da minha cosmogonia – poderá resultar emtrabalhos interessantíssimos ou jogos de espelhos vazios. Uma experiência artística delinguagem também terá de ser necessariamente <strong>um</strong>a experiência artística de vida e, ameu ver, também terá sua legitimidade diretamente ligada à liberdade com que se dá.Gosto de pensar o conjunto de linguagens que constituem a arte como <strong>um</strong> subgênero<strong>do</strong> conjunto de linguagens que constituem a vida.Preto e Branco não tem entre suas propostas a de discutir ou inovar as linguagens. O filmequer apenas usá-las como ferramenta. Muitas vezes, a linguagem é como a tecnologia:torna-se mais eficiente à medida que se torna mais transparente, na medida em que deixade aparecer. Aliviar o peso <strong>do</strong>s artifícios de linguagem, ou seja, eliminar a ostensibilidade


90 Carlos Nader Filme livre 91com que a subjetividade se manifesta, não significa necessariamente eliminar a própriasubjetividade. Às vezes, pode significar o contrário. Um olhar mais aberto ao P&B, comoo da professora da UFRJ Andréa França, em artigo para a revista Contracampo, vê asubjetividade como defini<strong>do</strong>ra dele, “<strong>um</strong> filme que se ampara na presença <strong>do</strong> diretor e notipo de relação que ele estabelece com seus personagens, estruturan<strong>do</strong> os momentosde encenação entre eles como <strong>um</strong>a espécie de intimidade partilhada”. <strong>Outros</strong> olharesabertos veriam no filme, além dessa “encenação íntima” que não quer ser nem ostensivanem escamoteada, vários momentos de intervenção explícita. Momentos em que acâmera é entregue aos próprios personagens, ou momentos em que a imagem é tratadacomo a de <strong>um</strong> reality show, ou ainda momentos em que ela, ao contrário, é tratadacomo <strong>um</strong>a imagem mais típica de videoarte. Talvez então o grande peca<strong>do</strong> de Preto eBranco, à vista <strong>do</strong> cânon, não seja o de dispensar artifícios experimentalistas, mas o demisturar vários deles sem afirmar <strong>um</strong> só. A crença em qualquer cânon geralmente implica<strong>um</strong> desejo de pureza mesmo que, como no caso <strong>do</strong> cânon <strong>do</strong> experimentalismo, essacrença esteja travestida de seu oposto, já que a experimentação geralmente coincidecom a afirmação de <strong>um</strong>a mistura inusitada. Nesse caso, o peca<strong>do</strong> de Preto e Brancotorna-se ainda mais mortal porque o filme realmente se contrapõe a qualquer desejo depureza, misturan<strong>do</strong> não só diferentes efeitos geralmente aceitos como “experimentais”,mas acrescentan<strong>do</strong> ao cal<strong>do</strong> efeitos considera<strong>do</strong>s “tradicionais”, como as referidasentrevistas com especialistas ou o uso “careta” da música. E, para piorar tu<strong>do</strong> ainda mais,o <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário não hierarquiza esses efeitos.Claro que não existe <strong>um</strong> só ser h<strong>um</strong>ano sadio livre de conceitos, com os quais, inclusive, elenorteia sua própria experiência de mun<strong>do</strong>. O reconhecimento de padrões e a decorrentetransformação deles em conceitos nortea<strong>do</strong>res é algo que define a h<strong>um</strong>anidade. Emrazão disso, é inevitável que cânones de toda espécie pipoquem por aí, em toda época,em toda área h<strong>um</strong>ana. Mas, para a própria h<strong>um</strong>anidade, não será o território das artesjustamente o espaço fundamental em que determinada subjetividade pode questionare reinventar esses conceitos, usan<strong>do</strong>-os da maneira mais liberta possível? E não será essejustamente o senti<strong>do</strong> mais h<strong>um</strong>ano <strong>do</strong> experimentalismo? Acredito que sim. Por isso,acho que qualquer tentativa de canonização <strong>do</strong> experimental ou de institucionalização<strong>do</strong> subjetivo não são apenas grandes contradições em termos, mas também <strong>um</strong> inimigointerno que to<strong>do</strong> artista, <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entarista ou não, deve combater.A cineasta Agnès Varda disse recentemente n<strong>um</strong>a entrevista à Folha de S.Paulo: “Nos<strong>do</strong>c<strong>um</strong>entários, eu estou a serviço <strong>do</strong> tema, me transformo em serva das pessoas e dashistórias, estou lá para ajudá-las, estimulá-las a se expressar. Já nas ficções, claro, eu ocupoo lugar de artista e reinvento de acor<strong>do</strong> com minha visão expressiva”. Gosto da idéia deAgnès, em termos. O artista, o escravo da obra, parece estar eternamente condena<strong>do</strong> ajogar <strong>um</strong>a capoeira metafísica entre esses <strong>do</strong>is senhores, irmãos de criação: o tema e suaprópria autoralidade. Toda obra é resulta<strong>do</strong> dessa dança-luta. Mas, diferentemente deVarda, a única coisa que faço é <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário. E eu poderia até dizer que alguns deles,como Trovoada, estão <strong>um</strong> pouco mais a serviço da autoralidade e alguns outros <strong>um</strong>pouco mais a serviço <strong>do</strong> tema, como é o caso de Preto e Branco. De to<strong>do</strong> mo<strong>do</strong>, não éesse tipo de distinção o que mais me interessa. Em qualquer trabalho, existe <strong>um</strong> graude amalgamamento entre o tema e o autor, o mun<strong>do</strong> e o autor. Na verdade, o trabalhoé justamente esse amálgama. O que importa realmente, para mim, repito, é que eleseja, nos termos que mencionei, fruto de <strong>um</strong>a experiência legítima, livre, e que consigaser <strong>um</strong>a boa tradução dessa experiência. E, se vejo com maus olhos <strong>um</strong> conjunto deconceitos que norteiam a experiência de <strong>um</strong>a obra, também só posso desconfiar aindamais quan<strong>do</strong> determina<strong>do</strong> cânon passa a nortear o julgamento de <strong>um</strong>a obra. Aí é quemora o perigo maior, ainda mais quan<strong>do</strong> o cânon vem travesti<strong>do</strong> de receita “libertária”ou “moderna” e é justamente o oposto disso. Um julgamento basea<strong>do</strong> em conceitosapriorísticos está sempre corren<strong>do</strong> o risco iminente de se transformar n<strong>um</strong> julgamentobasea<strong>do</strong> em preconceitos.


92 93Judith Cortezão, <strong>um</strong>a sábia amiga, certo dia me disse: “O que o fotógrafo enfoca nãodeve ser propriamente a realidade, mas, sim, o impacto na sensibilidade e na mentedessa realidade, isso traz sempre <strong>um</strong>a imagem de sonho”.Judith me disse isso em meio a <strong>um</strong>a espessa neblina, em que, mesmo la<strong>do</strong> a la<strong>do</strong>, malpodíamos nos enxergar. Estávamos próximos ao Chuí, na fronteira entre o Brasil e o Uruguai,para a filmagem de <strong>um</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário, que, depois dessa frase dita n<strong>um</strong> tom “primordial”,ganhou o título de Paisagens Invisíveis.A angústia que senti, gerada pela impossibilidade de registrar a amplidão <strong>do</strong> vale quehavia visita<strong>do</strong> <strong>do</strong>is meses antes, na pesquisa <strong>do</strong> filme, me colocava em busca de outrodispositivo, pois o imponderável redirecionava o filme a voltar-se para a única paisagemvisível, <strong>um</strong>a paisagem interna, impressa na alma.<strong>Outros</strong> novos r<strong>um</strong>osPaschoal SamoraDoc<strong>um</strong>entarista, realizou os filmes Confidências <strong>do</strong> Rio das Mortes (1999), a série de <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entáriosAo Sul da Paisagem (2000-2001), Rio de Fevereiro (2003) e Diário de Naná (2006).Pode parecer contraditório, mas, na “arte de <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entar”, aquilo que nos desestabilizaé, muitas vezes, o fator que nos alimenta e aguça a criatividade, pois não há respostamais sincera e “real” <strong>do</strong> que nossa postura e nossas atitudes diante <strong>do</strong>s fatos; enfim,a única certeza que podemos alimentar é a de nos prepararmos para algo quedesconhecemos. O “real” no <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário, de fato, nada mais é <strong>do</strong> que a arte de lidarcom esse imponderável.Estamos constantemente em busca desse desconheci<strong>do</strong>, algo em geral não verbaliza<strong>do</strong>ou ainda impossível de o ser, pois, ao longo de mais de <strong>um</strong> século, foram as reflexões acerca<strong>do</strong>s conflitos <strong>do</strong>s <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entaristas que levaram o gênero a ser <strong>um</strong> meio de expressão emsi. O <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário “auto-reflexivo” não é necessariamente algo objetivo ou decifrável aolho nu, pois o processo de sua linguagem criativa já é, em si, a própria linguagem.A jornada <strong>do</strong> programa R<strong>um</strong>os pôde me proporcionar <strong>um</strong>a espécie de “desvelamento” <strong>do</strong>smotivos pelos quais faço <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entários, pois, ao compartilhar esse “pensar o filme” de muitos,na reflexão acerca das idéias em debate, nos encontros e reencontros com as pessoas e nos


94 Paschoal Samora <strong>Outros</strong> novos r<strong>um</strong>os 95universos de cada projeto li<strong>do</strong> e fala<strong>do</strong>, encontrei-me novamente diante dessa espessa neblina.Vieram à tona durante o ciclo de palestras realizadas em diversas capitais <strong>do</strong> país aolongo <strong>do</strong> programa R<strong>um</strong>os questões inesgotáveis, longamente discutidas na história <strong>do</strong><strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário desde a sua invenção, que atribuem ao processo <strong>do</strong>c<strong>um</strong>ental <strong>um</strong> caráterexistencial por excelência, por situar-se nos limites entre o que é realidade e o que éinvenção ou, ainda, pela transposição para filme de sua matéria-prima tão “concreta”,“palpável” e ao mesmo tempo tão “inconstante” e “volátil” – o real.Com a mesma pertinência de questões capitais como essas, fui contempla<strong>do</strong> nesseprocesso com a convivência com grandes pensa<strong>do</strong>res contemporâneos desse gênero,com reflexões novas e bastante instigantes acerca <strong>do</strong> filme <strong>do</strong>c<strong>um</strong>ental.Francisco Elinal<strong>do</strong> Teixeira, realiza<strong>do</strong>r e teórico de cinema, autor <strong>do</strong> livroDoc<strong>um</strong>entário no Brasil, defende com muita propriedade o que ele chama de“cinema expandi<strong>do</strong>”, partin<strong>do</strong> da idéia de que toda forma de experimentação noâmbito cinematográfico encontra no gênero <strong>do</strong>c<strong>um</strong>ental <strong>um</strong> terreno fértil para ocruzamento dessas formas de expressão.Seja pela linguagem, seja pela própria natureza aberta e visceral, o <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário tornousea ferramenta de investigação de artistas e profissionais de outras sintaxes, extrapolan<strong>do</strong>os limites entre o <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário, as artes plásticas e a poesia.Em sua arg<strong>um</strong>entação, Teixeira reconstrói a história da linguagem no <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário,partin<strong>do</strong> de conflitos entre conceito e resulta<strong>do</strong> na obra de Dziga Vertov e culminan<strong>do</strong>n<strong>um</strong>a rica discussão a respeito da produção audiovisual brasileira contemporânea, emque cita Arthur Omar e Cao Guimarães. Um autor imperdível.José Carlos Avellar, professor e produtor, chama atenção para o fato de que a televisão noBrasil, que seria o espaço <strong>do</strong>s naturais (<strong>do</strong>c<strong>um</strong>entários), pertence aos posa<strong>do</strong>s (ficção), fatocontraditório, mas possível, afinal, a televisão brasileira nasceu <strong>do</strong> rádio.Avellar faz essa observação a fim de discutir os espaços <strong>do</strong> cinema <strong>do</strong>c<strong>um</strong>ental nachamada “retomada <strong>do</strong> cinema brasileiro”, com o difícil objetivo de identificar esse “ser”invisível chama<strong>do</strong> “merca<strong>do</strong>”, n<strong>um</strong> país onde a falta de políticas específicas para o gêneroe onde a banalização diante de <strong>um</strong> modelo televisivo nivela<strong>do</strong>r já seriam suficientes paraempurrar o <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário para <strong>um</strong> abismo sem precedentes, condiciona<strong>do</strong> a <strong>um</strong> modelode produção medíocre, óbvio e maçante.Eis a grande contradição: a televisão como espaço natural <strong>do</strong>s “naturais”, em regra geral,sempre representou o “túmulo <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário” no Brasil.Entretanto, Avellar sinaliza com muita fé e sabe<strong>do</strong>ria para trabalhos recentes como EdifícioMaster, de Eduar<strong>do</strong> Coutinho, e Nelson Freire, de João Moreira Salles, que superaram aprópria impossibilidade e se estabeleceram bem nas salas de cinema, espaço natural <strong>do</strong>sposa<strong>do</strong>s, sobretu<strong>do</strong> pela força e personalidade de sua abordagem.Consuelo Lins investiga <strong>um</strong> mecanismo recorrente na produção <strong>do</strong>c<strong>um</strong>ental brasileira, aoqual se atribui o conceito de cinema-dispositivo, citan<strong>do</strong> filmes como 33, de Kiko Goifman,e O Fim e o Princípio, de Eduar<strong>do</strong> Coutinho, nos quais o realiza<strong>do</strong>r delimita principalmenteo tempo e o espaço de seu recorte e, ao estabelecer esses limites na investigação, ass<strong>um</strong>ede antemão sua impossibilidade, que se converte automaticamente em liberdade desustentar, ou quem sabe suportar, o seu propósito de realização <strong>do</strong> filme.O conceito de cinema-dispositivo, de certa forma, liberta o realiza<strong>do</strong>r <strong>do</strong> terrível far<strong>do</strong> <strong>do</strong>“real”, afinal, esse objeto de estu<strong>do</strong>, e de desejo, <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entarista é tão infinito, tão vasto,tão concreto, que pode ser <strong>um</strong>a grande armadilha ante o imponderável.De fato, esse realiza<strong>do</strong>r talvez busque a si mesmo em cada personagem ou em cadaparagem em que se encontre, e encontra-se, por fim, em busca de <strong>um</strong> lugar no mun<strong>do</strong>.São fatores como esses que caracterizam o <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário hoje como “arte <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>ento”,porque se realimenta, ao longo de sua história, dessa postura de “construção em temporeal”, de reflexão sobre a natureza de sua sintaxe que confunde sujeito e objeto, de buscainfinita de acesso a níveis sutis de realidade.É justamente essa vocação existencial <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário que ponho em questão: anatureza de construção, desconstrução e reconstrução de <strong>um</strong> filme.De fato o <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entarista é <strong>um</strong> ser em conflito, pois a busca desses níveis sutis de realidadese dá geralmente no meio de <strong>um</strong> turbilhão, a partir de fatos que ele cria ou nos quaisinterfere, utilizan<strong>do</strong>-se da ferramenta <strong>do</strong> filme a fim de torná-los “fatos únicos”.Para<strong>do</strong>xalmente, o <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entarista também é aquele que detém a ferramenta <strong>do</strong>registro, é o elemento mobiliza<strong>do</strong>r <strong>do</strong> ato <strong>do</strong>c<strong>um</strong>ental, mas com o desejo de que, paraalém <strong>do</strong> espera<strong>do</strong> ou calcula<strong>do</strong>, exista algo muitas vezes indizível a ser flagra<strong>do</strong>.Nesse senti<strong>do</strong>, o <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entarista passa a ser mais <strong>um</strong> personagem incondicional de seupróprio filme, e é nessa busca estética e ética de sua abordagem que o <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário“moderno” se apresenta. Um cinema de “descoberta”, em tempo real.À idéia de <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário, hoje, soma-se a história de sua invenção e reinvenção ao longode mais de <strong>um</strong> século e essa visceral natureza de busca e descoberta inerente a ele,ao advento <strong>do</strong> digital, <strong>um</strong>a espécie de “democratização” da ferramenta que traz certospoderes de expressão a nós, seres <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entaristas e marginais por excelência.Seja pela verdade, seja pela invenção ou, ainda, pela invenção da verdade que se fazurgente e acessível, de fato, o <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário descobriu na última década a possibilidadede ser e estar no mun<strong>do</strong> como meio de expressão, por tornar-se algo viável, possível, eque brinca e brinda a própria imprevisibilidade.O resulta<strong>do</strong> é nada menos que <strong>um</strong>a produção efervescente e multilateral que imprime anecessidade e a urgência desse meio em si.O <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário carrega como seus maiores trunfos a dualidade, a imprevisibilidade, acriação e a impossibilidade, fatores esses naturais, comuns à vida e à existência.


98 Roberto Moreira S. Cruz R<strong>um</strong>os Itaú <strong>Cultural</strong> Cinema e Vídeo: trajetória e perspectiva 99O Itaú <strong>Cultural</strong> apostou no <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário, muito antes da hegemonia dessegênero no cenário. Um aprimoramento dessa iniciativa foi o R<strong>um</strong>os Itaú<strong>Cultural</strong> Cinema e Vídeo, volta<strong>do</strong> para a produção de <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entários. Fui<strong>um</strong> <strong>do</strong>s membros da comissão de seleção da edição 2003, cuja participaçãofoi longa, profunda e instigante. Desconheço qualquer processo similar defomento qualifica<strong>do</strong> à produção no Brasil.• Sebastianismo no Brasil, de Cláudio AssisPesquisa e roteiro para <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário sobre o movimento sebastianista no Brasil e suasvárias formas de manifestação cultural e religiosa.• Hélices, de Carmela GrossVídeo experimental inspira<strong>do</strong> em objetos cria<strong>do</strong>s pela artista plástica Carmela Gross eexpostos no MAM/RJ em 1993.3 Nesse ano, paralelamente ao programade apoio à pesquisa e realizaçãode <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entários, foi elaborada <strong>um</strong>aprogramação de mostras periódicas nasede <strong>do</strong> Itaú <strong>Cultural</strong>, em São Paulo. Desetembro de 1998 a novembro de 1999,essa programação divulgou obras de referência,exibin<strong>do</strong> a produção nacional einternacional em formatos e linguagensdiversas.Meto<strong>do</strong>logias e resulta<strong>do</strong>sAs quatro edições de R<strong>um</strong>os Itaú <strong>Cultural</strong> Cinema e Vídeo apresentaram mecânicas distintas.Essas mudanças foram em grande parte motivadas pelo próprio amadurecimento daproposta <strong>do</strong> programa e pela necessidade de adequação à política cultural que orientoua instituição nos últimos anos. Uma breve descrição de cada <strong>um</strong>a das edições ajudarána compreensão <strong>do</strong>s objetivos que estavam ali propostos, <strong>do</strong>s resulta<strong>do</strong>s obti<strong>do</strong>s e dasperspectivas que se abrem para a continuidade <strong>do</strong> programa.Com a crescente retomada da produção audiovisual no país, vários projetos de cinemae vídeo passaram a ser encaminha<strong>do</strong>s ao Itaú <strong>Cultural</strong> em busca de apoio e parceriapara sua realização. A qualidade <strong>do</strong>s projetos e a forte demanda <strong>do</strong> setor levaram àconsolidação de <strong>um</strong>a política de apoio à produção voltada especificamente para o<strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário, enfatizan<strong>do</strong> temas relaciona<strong>do</strong>s à arte e à cultura brasileiras. Naquelaépoca, entre os anos de 1997 e 1998, momento embrionário em que a instituiçãoassinalava a necessidade de atuar como apoia<strong>do</strong>ra de projetos audiovisuais, as propostasforam enviadas de maneira informal, sem necessariamente passar por <strong>um</strong> processode prospecção – convocação por meio de <strong>um</strong> edital, por exemplo. Portanto, essaprimeira safra de seleciona<strong>do</strong>s se deu por escolha direta, ten<strong>do</strong> estes si<strong>do</strong> analisa<strong>do</strong>s eescolhi<strong>do</strong>s com base na viabilidade de produção e na pertinência <strong>do</strong> tema. Os projetoscontempla<strong>do</strong>s em 1998 3 foram:• Arte e Tecnologia, de Walter Silveira e Tamara KáPesquisa e roteiro de cinco <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entários sobre a produção de arte e tecnologia no Brasil.• Santo Forte, de Eduar<strong>do</strong> CoutinhoDoc<strong>um</strong>entário que discute a religião como elemento fundamental no cotidiano brasileiropara a compreensão da realidade e de suas contradições eminentes.• Geral<strong>do</strong> de Barros – Trajetória de <strong>um</strong> Brasil Moderno, de Michel Favre e Fabiana de BarrosDesenvolvimento de roteiro sobre o artista, designer e fotógrafo Geral<strong>do</strong> de Barros.• Peito Vazio, de Paulo Caldas, Lírio Ferreira e Hilton LacerdaDesenvolvimento de pesquisa e roteiro para <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário sobre Cartola e a cultura <strong>do</strong> samba.• O Livro de Raul, de Arthur OmarDoc<strong>um</strong>entário experimental realiza<strong>do</strong> com base em imagens realizadas no Chile com ocineasta Raul Ruiz. Um diálogo entre o processo criativo <strong>do</strong> cineasta e o <strong>do</strong> diretor <strong>do</strong><strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário.Nessa primeira edição <strong>do</strong> programa, o Itaú <strong>Cultural</strong> teve o privilégio de contribuir para arealização <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário Santo Forte, de Eduar<strong>do</strong> Coutinho, filme que é <strong>um</strong> emblemada produção <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entarista brasileira contemporânea. A marca estilística de seu diretornos revela a religiosidade <strong>do</strong>s mora<strong>do</strong>res da Favela Vila Parque da Cidade, situada na Gávea,Zona Sul <strong>do</strong> Rio de Janeiro. Como afirma Consuelo Lins:O que se dá no dia-a-dia <strong>do</strong>s personagens de Santo Forte está para além dequalquer tentativa de classificação, de qualquer conceito ou generalização.Esta é <strong>um</strong>a das grandezas <strong>do</strong> filme: nos dar a ver múltiplas formas de seapropriar das principais religiões praticadas no Brasil, seja <strong>um</strong>banda,catolicismo ou evangélica; mostrar diferenças onde outros só vêemobediência e mesmice. 4Os resulta<strong>do</strong>s obti<strong>do</strong>s nessa primeira edição estimularam a continuidade <strong>do</strong> programa.Em 1999, <strong>um</strong> novo programa foi lança<strong>do</strong>, reformula<strong>do</strong> e amplia<strong>do</strong> para três modalidadesde fomento:• Jovens Realiza<strong>do</strong>res: destinou-se a projetos de jovens realiza<strong>do</strong>res com até 25 anos deidade e vínculo universitário;• Desenvolvimento de Projetos: contemplou pesquisa, roteiro e confecção de orçamentoe cronograma com o objetivo de permitir ao realiza<strong>do</strong>r formatar seu projeto para aprodução e posterior veiculação;• Finalização: contemplou projetos que já tinham realiza<strong>do</strong> a captação de imagens enecessitavam de <strong>um</strong> aporte para sua conclusão (pós-produção e edição).Ao to<strong>do</strong> foram 449 projetos envia<strong>do</strong>s de diversas regiões <strong>do</strong> Brasil, sen<strong>do</strong> 301 paraDesenvolvimento de Projetos, 80 para Jovens Realiza<strong>do</strong>res e 68 para Finalização.Submeti<strong>do</strong>s à análise da comissão responsável pela premiação, formada por AndréParente, Carlos Alberto de Mattos, Daniela Capelato, Francisco Cesar Filho e Roberto F.Moreira, os projetos seleciona<strong>do</strong>s foram:4 Lins, Consuelo. O <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário deEduar<strong>do</strong> Coutinho – Televisão, cinema evídeo. Rio e Janeiro: Jorge Zahar, 2004.


100 Roberto Moreira S. Cruz R<strong>um</strong>os Itaú <strong>Cultural</strong> Cinema e Vídeo: trajetória e perspectiva 101Finalização:• Glauces, o Estu<strong>do</strong> de <strong>um</strong> Rosto, de Joel PizziniDoc<strong>um</strong>entário sobre Glauce Rocha (1930-1971), <strong>um</strong>a das mais importantes atrizesbrasileiras, com os principais registros de sua carreira no cinema e no teatro.• A Pessoa É para o que Nasce, de Roberto BerlinerDoc<strong>um</strong>entário sobre três irmãs cegas canta<strong>do</strong>ras <strong>do</strong>s Cariris Velhos, na Paraíba.• Barra 68 – sem Perder a Ternura, de Vladimir CarvalhoMostra a invasão da Universidade de Brasília por tropas militares em 1968, seguida pelapromulgação <strong>do</strong> AI-5 e pelo fechamento <strong>do</strong> Congresso.• No Rastro da Navilouca, de Ivan Car<strong>do</strong>soApresenta amplo painel audiovisual da produção udigrudi e de seus basti<strong>do</strong>res, no início<strong>do</strong>s anos 1970.Desenvolvimento de Projetos:• No Olho <strong>do</strong> Furacão, de Renato Tapajós e Toni VenturiDoc<strong>um</strong>entário sobre a história <strong>do</strong>s militantes da luta armada brasileira.• A Caravana <strong>do</strong> Brega, de Ursula VidalDois cantores dão fôlego a <strong>um</strong> ritmo cultua<strong>do</strong> nas festas de subúrbio da Amazônia: o brega.Nesse universo em que falta estrutura de merca<strong>do</strong>, sobram criatividade e extravagância.• Koellreutter: Experiência <strong>do</strong> Tempo, de Carlos AdrianoDoc<strong>um</strong>entário sobre Hans-Joachim Koellreutter, <strong>um</strong> <strong>do</strong>s mais importantes compositoresda música brasileira.• O Folclore Urbano nas Páginas <strong>do</strong> Notícias Populares, de Renata Druck e Janice D’AvilaInvestiga o significa<strong>do</strong> de três lendas urbanas paulistanas: o Bebê Diabo <strong>do</strong> ABC, a LoiraFantasma e a Gangue <strong>do</strong> Palhaço.• Carranca de Acrílico Azul Piscina, de Marcelo Gomes e Karim AïnouzEnsaio poético sobre o sertão contemporâneo, traz <strong>um</strong>a reflexão sobre como a regiãomarcada pela aridez, pelo isolamento e pela escassez tem convivi<strong>do</strong> com agu<strong>do</strong>sprocessos de globalização e modernização cultural.Jovens Realiza<strong>do</strong>res:• A Soltura <strong>do</strong> Louco, de Bernar<strong>do</strong> de Castro e Cristian CancinoA fronteira que separa a loucura da sanidade é confrontada com a fronteira que separaa cidade <strong>do</strong>s sãos (Santos/SP) da cidade <strong>do</strong>s loucos (manicômio <strong>do</strong> Juquery, em Francoda Rocha/SP).• Cinema de Casa, de Marcos Tole<strong>do</strong>Doc<strong>um</strong>entário sobre o uso <strong>do</strong>méstico <strong>do</strong> super-8 no Recife.• Filme da Família, de Maya PinskyDoc<strong>um</strong>entário co-realiza<strong>do</strong> por integrantes de <strong>um</strong>a mesma família que nunca tiveramexperiência com cinema ou direção.• Tom Zé ou quem Irá Colocar <strong>um</strong>a Dinamite na Cabeça <strong>do</strong> Século?, de Carla GalloRetrato estético <strong>do</strong> cantor e compositor Tom Zé.• Terra-Mãe, de Andre FrancioliConta a experiência de transformar <strong>um</strong>a rádio comunitária em porta-voz detrabalha<strong>do</strong>res sem-terra.• Cemitério de Elefantes, de Rodrigo LorenzettiDoc<strong>um</strong>entário sobre <strong>um</strong> ator (Kaio César) orienta<strong>do</strong> por <strong>um</strong> diretor (Zé Carlos Macha<strong>do</strong>) asair à rua para construir seu personagem, observan<strong>do</strong> mendigos bêba<strong>do</strong>s.• Internos, de Luciana RochaDoc<strong>um</strong>entário que retrata a produção cultural e artística em <strong>um</strong>a prisão.Mais <strong>um</strong>a vez <strong>um</strong>a edição que teve como resulta<strong>do</strong> filmes e projetos que se destacarampela qualidade, originalidade temática e expressividade criativa. Barra 68 – sem Perder aTernura, de Vladimir Carvalho, é <strong>um</strong> importante <strong>do</strong>c<strong>um</strong>ento histórico sobre a determinação<strong>do</strong> antropólogo Darcy Ribeiro de criar a Universidade de Brasília, a interferência autoritária<strong>do</strong> governo sobre esse projeto universitário e a repressão sofrida pelos estudantese professores nos anos da década de 1960. Em A Pessoa É para o que Nasce, o cineastaRoberto Berliner conta como sua vida cruzou com a das cantoras populares da Paraíba,três irmãs, todas cegas. O <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário acaba por transformar a vida das artistas, queviviam em esta<strong>do</strong> de pobreza, desamparadas e sem perspectivas 5 .Da mesma forma, os projetos das categorias Desenvolvimento de Projetos e JovensRealiza<strong>do</strong>res, <strong>um</strong>a novidade dessa edição, apresentaram pesquisas e roteiros de excelentequalidade e diretores iniciantes que tiveram por meio <strong>do</strong> R<strong>um</strong>os Itaú <strong>Cultural</strong> Cinema eVídeo a oportunidade de realizar seu primeiro <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário.A terceira edição <strong>do</strong> programa repetiu a mesma estratégia da edição anterior, incentivan<strong>do</strong>a produção de <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entários em três categorias. Na etapa de recebimento <strong>do</strong>s projetos,priorizou-se a divulgação <strong>do</strong> programa n<strong>um</strong>a tentativa de promover a profissionalização naformatação <strong>do</strong>s projetos <strong>do</strong>s proponentes. Para isso foram realizadas palestras promovidasem cinco instituições parceiras, para anunciar o programa, apresentar e sugerir modelos5 Esse filme foi definitivamente concluí<strong>do</strong>em 2005 e exibi<strong>do</strong> nacionalmente nocircuito comercial. Mas vale ressaltar queo projeto teve em R<strong>um</strong>os Itaú <strong>Cultural</strong>Cinema e Vídeo o ponto de partida paraa realização, cerca de quatro anos antesde sua finalização.


102 Roberto Moreira S. Cruz R<strong>um</strong>os Itaú <strong>Cultural</strong> Cinema e Vídeo: trajetória e perspectiva 1036 A comissão de seleção recebeu separadamente<strong>um</strong>a relação de projetos, assimdividida: Bruno Vianna e Francisco CesarFilho – 116 projetos de Produção, 27projetos de Desenvolvimento. AlexandreVeras – 51 projetos de Produção, 40projetos de Jovens Realiza<strong>do</strong>res e 43projetos de Desenvolvimento. RobertoMoreira <strong>do</strong>s Santos Cruz – 57 projetos deDesenvolvimento e 85 projetos de JovensRealiza<strong>do</strong>res. Paulo Roberto Rego BarrosBiscaia Filho – 51 projetos de Produção,14 projetos de Desenvolvimento e 45projetos de Jovens Realiza<strong>do</strong>res.de propostas e suas formatações mais adequadas. O resulta<strong>do</strong> foram 540 projetos inscritose <strong>um</strong> salto qualitativo das propostas.Vale ressaltar o trabalho da comissão de seleção nessa terceira edição que, após<strong>um</strong>a primeira triagem 6 , analisou em conjunto 85 projetos de Produção, 39 de JovensRealiza<strong>do</strong>res e 39 de Desenvolvimento. Nessa etapa foi considera<strong>do</strong> o materialcomplementar <strong>do</strong>s projetos (roteiro, currículo e portfólio). Para chegar à seleção final<strong>do</strong>s projetos de produção, foram utiliza<strong>do</strong>s critérios de orçamento, para que se atingisseo maior número possível de premia<strong>do</strong>s. Foram elimina<strong>do</strong>s projetos cujo orçamento nãoera coerente com o produto, que se aproximavam <strong>do</strong> teto de maneira artificial, bemcomo projetos que não se adequavam de maneira rígida aos critérios utiliza<strong>do</strong>s nas fasesanteriores. Os ganha<strong>do</strong>res nessa edição foram:Produção:• 33, de Kiko GoifmanDoc<strong>um</strong>entário em que o diretor Kiko Goifman procura sua mãe biológica com base emdicas de detetives de São Paulo e Belo Horizonte.• Nasceu o Bebê Diabo em São Paulo, de Renata DruckOriginadas em boatos, as lendas populares foram noticiadas pelo jornal NotíciasPopulares. Na busca da origem de cada <strong>um</strong>a, é revela<strong>do</strong> <strong>um</strong> universo no qual fantasia erealidade se confundem.• Na Garupa de Deus, de Rogério CorreaÉ <strong>um</strong>a reflexão sobre a vida na Grande São Paulo com base no perfil das pessoas que tiramda motocicleta sua sobrevivência: os motoboys.• Me Erra, de Paola Barreto“Me erra” é <strong>um</strong> jargão usa<strong>do</strong> pelos boxea<strong>do</strong>res da Academia Nobre Arte, que funciona há12 anos no Morro <strong>do</strong> Cantagalo, no Rio de Janeiro, como <strong>um</strong>a iniciativa pioneira de boxeama<strong>do</strong>r e trabalho comunitário.• O Atelier de Luzia, de Marcos JorgeDoc<strong>um</strong>entário que propõe analisar os vestígios arqueológicos brasileiros contrapon<strong>do</strong>essa iconografia com as pichações urbanas.• O Prisioneiro da Grade de Ferro, de Paulo SacramentoO cotidiano no cárcere <strong>do</strong> Carandiru, sob o ponto de vista <strong>do</strong>s presidiários.Desenvolvimento de Projeto:• Eu Vou de Volta, de Camilo Santos CavalcanteEssa pesquisa descreve o regresso de migrantes nordestinos à terra de origem.• Jardelina Silva e Sua Assinatura <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>, de Cristiane MesquitaÉ <strong>um</strong>a investigação sobre o vestuário surrealista da ex-costureira Jardelina Silva.• Linhas de Organdi, de Glauber FilhoEm Córrego <strong>do</strong>s Fernandes, município de Aracati (CE), existe <strong>um</strong> grupo de 12 rendeiras, devárias gerações, que ainda conservam as tradições de seus antepassa<strong>do</strong>s.• Tão Longe, Tão Perto, de Inês Car<strong>do</strong>soEsse projeto investiga as conseqüências deixadas pela extinção <strong>do</strong> trajeto ferroviário entreCrato (PE) e Maceió (AL), rota construída pelos ingleses no início <strong>do</strong> século XX.Jovens Realiza<strong>do</strong>res:• E Agora, José?, de Maya Da-RinNo alto da Mantiqueira, entre o céu e a terra, <strong>do</strong>is homens caminham por estradas reais eimaginárias.• Encomenda ao Ganso, de Pablo LobatoO cineasta faz <strong>um</strong>a proposta ao artista plástico marginal Paulo Pessoa, conheci<strong>do</strong> em BeloHorizonte como Ganso, para que este crie <strong>um</strong>a obra com três espaços vazios e passa aacompanhar o processo criativo.• Outras Amazonas, de Marina WeisO <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário procura <strong>um</strong>a aproximação com o mun<strong>do</strong> das mulheres da tribo indígena<strong>do</strong>s waiãpis, no Acre, para registrar seu cotidiano entre a floresta e a cidade.• Se Tu Fores, de Ilana Feldman e Guilherme CoelhoUm encontro com personalidades <strong>do</strong> samba tradicional carioca.• Tranca Abre, de Paula Siqueira e Ricar<strong>do</strong> CalaçaDoc<strong>um</strong>entário sobre a possessão religiosa em Brasília, que destaca sua importância paraos adeptos da <strong>um</strong>banda, <strong>do</strong> neopentecostismo e da <strong>do</strong>utrina <strong>do</strong> Vale <strong>do</strong> Amanhecer.Essa foi <strong>um</strong>a safra extraordinária, em que os filmes tiveram grande repercussão pública,sen<strong>do</strong> exibi<strong>do</strong>s no circuito comercial e premia<strong>do</strong>s em festivais e mostras internacionais. OPrisioneiro da Grade de Ferro, de Paulo Sacramento, é <strong>um</strong> bom exemplo disso. Foi grava<strong>do</strong> nasdependências <strong>do</strong> Carandiru, <strong>um</strong> presídio com mais de 9 mil detentos localiza<strong>do</strong> na regiãometropolitana de São Paulo e desativa<strong>do</strong> no ano em que o <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário foi concluí<strong>do</strong>.Com imagens feitas, em boa parte, pelos próprios detentos em atividades e oficinas de


104 Roberto Moreira S. Cruz R<strong>um</strong>os Itaú <strong>Cultural</strong> Cinema e Vídeo: trajetória e perspectiva 1057 Bernardet, Jean-Claude. Doc<strong>um</strong>entáriosde busca: 33 e Passaporte Húngaro. In:Mourão, Maria Dora; e Labaki. O Cinema<strong>do</strong> Real. São Paulo: Cosac Naify, 2005. p.149.produção realizadas pelo diretor, esse filme desvenda a rotina <strong>do</strong>s protagonistas e revelaas condições de vida no cárcere. Premia<strong>do</strong> na 60ª edição da Mostra Internacional de ArteCinematográfica de Veneza, no Festival Internacional de Leeds e no Tribeca Film Festival,Paulo Sacramento reconhece a importância <strong>do</strong> programa R<strong>um</strong>os neste depoimento:O Itaú <strong>Cultural</strong> viabilizou parcialmente a realização de O Prisioneiroda Grade de Ferro. O R<strong>um</strong>os Itaú <strong>Cultural</strong> Cinema e Vídeo foi pioneirono apoio a <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entários, sen<strong>do</strong> <strong>um</strong>a iniciativa que já alcançouextraordinários resulta<strong>do</strong>s, merece<strong>do</strong>r de incrementos para expandir aexcelência de sua atuação.Outro <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário que também teve <strong>um</strong>a repercussão muito positiva foi 33, deKiko Goifman. Bastante original em sua proposta, o apoio a esse projeto viabilizouintegralmente a produção executiva <strong>do</strong> filme e permitiu que o realiza<strong>do</strong>r se aventurassena busca por sua mãe biológica. Como declara o próprio diretor, “a equipe <strong>do</strong> programaR<strong>um</strong>os Cinema e Vídeo teve coragem de apostar no <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário 33 e apoiar <strong>um</strong> projetonada convencional”. Kiko Goifman sempre soube que era filho a<strong>do</strong>tivo e, aos 33 anos,n<strong>um</strong> prazo de 33 dias, se aventurou n<strong>um</strong>a experiência em que sua vida pessoal e a deseus familiares passaram a ser investigadas. Ten<strong>do</strong> como referência estética o filme noiramericano e abordan<strong>do</strong> a realidade sob <strong>um</strong> olhar detetivesco, o filme mescla elementosnarrativos ficcionais elabora<strong>do</strong>s com base no ponto de vista <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r – o própriodiretor – e <strong>do</strong> clima de suspense e dramatização em que os protagonistas são envolvi<strong>do</strong>s.Como observa Jean-Claude Bernardet:Essas pessoas-personagens obedecem a <strong>um</strong>a construção dramática. Ospersonagens têm objetivos, os personagens enfrentam obstáculos (que elessuperam ou não superam), alcançam seus objetivos ou não, exatamentecomo nos filmes de ficção, e tu<strong>do</strong> isso organiza<strong>do</strong> n<strong>um</strong>a narrativa. 7Em 2003, quan<strong>do</strong> foi lançada a quarta edição de R<strong>um</strong>os Itaú <strong>Cultural</strong> Cinema e Vídeo, <strong>um</strong>anova estratégia de fomento foi a<strong>do</strong>tada pela instituição. Visan<strong>do</strong> a <strong>um</strong>a maior visibilidade<strong>do</strong>s <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entários, o apoio foi direciona<strong>do</strong> a filmes de 26 minutos para compor <strong>um</strong>asérie voltada para televisão e mostras itinerantes. Mais <strong>um</strong>a vez iniciou-se o processo derecebimento, análise e seleção de projetos, que culminou com a realização <strong>do</strong>s filmes. Daurbanidade ao sertão profun<strong>do</strong>, de distintos personagens a visões subjetivas da realidade,os cinco <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entários apresentaram como fio condutor o conceito de contraste. Sejaele social, cultural ou étnico, a diversidade da cultura brasileira e suas mais distintasparticularidades foram representadas nesses filmes. Lança<strong>do</strong>s em <strong>um</strong> DVD, foram exibi<strong>do</strong>sem rede nacional pela TV Cultura, ten<strong>do</strong> <strong>um</strong>a excelente receptividade, chegan<strong>do</strong> aregistrar 4 pontos no índice de aferição de recepção na Grande São Paulo – o que equivalea aproximadamente 350 mil especta<strong>do</strong>res. A qualidade dessas produções e o olhar verticalsobre a realidade brasileira valeram à série o convite para participar <strong>do</strong> Audiovisual E-platform, programa da Unesco para conteú<strong>do</strong>s criativos em meios audiovisuais. Nessaplataforma, que funciona como <strong>um</strong>a rede de informação via internet, o usuário acessainformações sobre o projeto R<strong>um</strong>os Itaú <strong>Cultural</strong> Cinema e Vídeo, assiste on demand aosvídeos da série Brasil 3x4 e a alguns <strong>do</strong>s filmes produzi<strong>do</strong>s nas edições anteriores.Vale a pena lembrar aqui alg<strong>um</strong>as das histórias narradas nos filmes da série. Em1969, a cidade de Carrapateira, no interior da Paraíba, foi considerada <strong>um</strong>a das maiscarentes <strong>do</strong> Brasil. Naquele mesmo ano a tripulação da Apolo 11 pisava o solo lunarpela primeira vez. Mais de 30 anos depois, o <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário Carrapateira não Tem MaisCiúmes da Apolo 11, de Fabiano Maciel, mostra como vive o povo daquela cidade nosdias de hoje e relaciona a conquista da Lua com os sonhos pessoais de progresso eprosperidade no sertão nordestino. Em Garota Zona Sul, Luciano de Paiva Mello revelaas diferentes realidades de duas garotas da mesma idade, mas de classes sociaisdistintas. Uma é carioca, mora com os pais n<strong>um</strong>a casa confortável de classe média, noLeblon. A outra mora com a mãe e mais nove pessoas n<strong>um</strong>a casa simples no bairro <strong>do</strong>Capão Re<strong>do</strong>n<strong>do</strong>, periferia de São Paulo. Os cineastas Karim Aïnouz e Marcelo Gomesenveredam por <strong>um</strong>a viagem e <strong>um</strong> devaneio pelo sertão brasileiro. Em Sertão de AcrílicoAzul Piscina, lugares remotos revelam tradições e cost<strong>um</strong>es de <strong>um</strong>a paisagem brasileiraque é ao mesmo tempo primitiva e contemporânea, regional e globalizada. Basea<strong>do</strong>em entrevistas e com <strong>um</strong>a rica iconografia da época, Aristocrata Clube, de Jasmin Pinhoe Aza Pinho, traça <strong>um</strong> <strong>panorama</strong> histórico desse clube recreativo exclusivamente denegros, funda<strong>do</strong> na década de 1960 na cidade de São Paulo. O último filme da série éInvisíveis Prazeres Cotidianos, de Jorane Castro. Um retrato de Belém <strong>do</strong> Pará com base norelato de seus jovens mora<strong>do</strong>res, que se expressam e se comunicam pelos blogs. Pelasdistâncias geográfica e cultural, desenvolveu-se em torno de si mesma e da Amazônia<strong>um</strong>a cidade que desde sempre viveu afastada <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, quase <strong>um</strong>a autarquia.Essa edição de R<strong>um</strong>os Itaú <strong>Cultural</strong> Cinema e Vídeo também apresentou <strong>um</strong>a novaproposta no processo de seleção <strong>do</strong>s projetos. Para permitir <strong>um</strong>a coerência na seleção<strong>do</strong>s filmes e para que a instituição garantisse qualidade conceitual e técnica da série, acomissão de seleção atuou como commission editors. Como afirma Amir Labaki, <strong>um</strong> <strong>do</strong>sparticipantes da comissão ao la<strong>do</strong> de Carlos Nader e Renato Barbieri:C<strong>um</strong>primos o papel de consciência crítica externa <strong>do</strong>s produtores erealiza<strong>do</strong>res de cada obra, propon<strong>do</strong> mudanças de edição, novas filmagens,comentan<strong>do</strong> opções estilísticas, tu<strong>do</strong> em nome <strong>do</strong> melhor desenvolvimento<strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário a partir <strong>do</strong>s r<strong>um</strong>os inicialmente traça<strong>do</strong>s.Os resulta<strong>do</strong>s de to<strong>do</strong> o processo foram muito favoráveis e aprova<strong>do</strong>s inclusive pelospróprios realiza<strong>do</strong>res. Fabiano Maciel, diretor de <strong>um</strong> <strong>do</strong>s filmes da série, declara que:A maneira como foi conduzi<strong>do</strong> o processo de seleção <strong>do</strong> R<strong>um</strong>os Itaú <strong>Cultural</strong>Cinema e Vídeo é rara no Brasil e faz dele <strong>um</strong> modelo a ser segui<strong>do</strong>. A criação de<strong>um</strong>a comissão que acompanha o projeto <strong>do</strong> começo ao fim, com encontroscom a comissão julga<strong>do</strong>ra, a<strong>um</strong>enta a visão crítica e aprimora o resulta<strong>do</strong>.


106 Roberto Moreira S. Cruz R<strong>um</strong>os Itaú <strong>Cultural</strong> Cinema e Vídeo: trajetória e perspectiva 107Em 2006, a proposta da quinta edição <strong>do</strong> programa, ampliada e com <strong>um</strong> aporte financeiromaior, destaca o R<strong>um</strong>os Itaú <strong>Cultural</strong> Cinema e Vídeo como o mais importante programade apoio à produção de <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entários, desenvolvi<strong>do</strong> por <strong>um</strong> instituto cultural e comabrangência nacional. Além <strong>do</strong> objetivo primeiro desse programa, que é a viabilizaçãoda produção e a finalização <strong>do</strong>s filmes, to<strong>do</strong> o processo de lançamento, difusão, análisee desenvolvimento estimula o debate e possibilita a criação de <strong>um</strong>a rede de articulaçãoentre o público interessa<strong>do</strong>, produtores, pesquisa<strong>do</strong>res e realiza<strong>do</strong>res, dinamizan<strong>do</strong> eestimulan<strong>do</strong> a reflexão sobre o <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário brasileiro e o contexto de sua produçãono cenário contemporâneo.• Memórias de <strong>um</strong>a Mulher Impossível, de Marcia Derraik (RJ)Um mosaico sobre a vida, a criação e as idéias da escritora e editora Rose Marie Muraro.Nessa edição, foi concedi<strong>do</strong> <strong>um</strong> prêmio especial para o projeto Diário de Sintra, dePaula Gaitán. Esse <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário se estrutura com base em registros pessoais <strong>do</strong>cotidiano <strong>do</strong> cineasta Glauber Rocha na cidade portuguesa, onde morou com suaesposa Paula Gaitán e seus <strong>do</strong>is filhos Eryk Rocha e Ava Patrya no ano de 1981, temposque antecederam sua morte.Com a participação de <strong>um</strong>a comissão de seleção mais integrada no processo delançamento e na difusão <strong>do</strong> programa, amplificou-se a abrangência <strong>do</strong> programa ediversificou-se o plano de ação. Liliana Sulzbach, Paschoal Samora e Luís Eduar<strong>do</strong> Jorgeacompanharam a equipe de coordenação <strong>do</strong> R<strong>um</strong>os Itaú <strong>Cultural</strong> Cinema e Vídeo n<strong>um</strong>aviagem por 13 cidades, nas quais foram realiza<strong>do</strong>s encontros, palestras e mostras com ointuito de informar o público interessa<strong>do</strong> no programa e discutir com ele. Juntaram-sea esse grupo os realiza<strong>do</strong>res e pesquisa<strong>do</strong>res Cláudia Mesquita, Cao Guimarães, ÉrikaBauer, Francisco Elinal<strong>do</strong> Teixeira, José Carlos Avellar, Consuelo Lins, Carlos Nader eSheila Schvarzman, colabora<strong>do</strong>res notáveis no processo de reflexão e compreensão <strong>do</strong>cenário da produção de <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entários no país.Resulta<strong>do</strong>: 375 projetos inscritos e a escolha de cinco projetos, que receberam <strong>um</strong>financiamento no valor de R$ 100 mil cada <strong>um</strong> para a produção <strong>do</strong> filme. Mais <strong>um</strong>a veza diversidade da cultura brasileira foi compreendida em projetos que tratam de questõescontemporâneas como fronteiras, migrações, cidadania e subjetividade. Os projetoscontempla<strong>do</strong>s foram:• Eu Vou de Volta, de Camilo Santos Cavalcante e Claudio Assis (PE)Um vídeo sobre a migração nordestina para São Paulo e o regresso à terra de origem.• Histórias de Morar e Demolições, de Andre Costa (SP)Quatro famílias paulistanas têm suas casas vendidas para <strong>um</strong> grande incorpora<strong>do</strong>rimobiliário que as demolirá.• Margem, de Maya Werneck Da-Rin (RJ)Uma viagem de barco através <strong>do</strong> Rio Amazanos e da fronteira tríplice entre o Brasil, aColômbia e o Peru, n<strong>um</strong> espaço marginaliza<strong>do</strong> e quase esqueci<strong>do</strong> de nosso país, o fim ouo início <strong>do</strong> Brasil, lugar de interseção entre diversos povos, culturas, línguas e cre<strong>do</strong>s.• Procura-se Janaína, de Miriam Chnaiderman, São Paulo (SP)Por meio da busca de Janaína, criança órfã e com necessidades especiais, pretenderegistrar os processos históricos e a situação atual da criança em situação de aban<strong>do</strong>no, ecomo se dá, atualmente, o atendimento a psicóticos em São Paulo.


108 109Manaus6 de março de 2006Um casarão antigo em Manaus, à beira <strong>do</strong> rio Negro, abrigou a primeira palestra dedivulgação <strong>do</strong> R<strong>um</strong>os Itaú <strong>Cultural</strong> Cinema e Vídeo 2006-2007. O encontro aconteceu nodia 6 de março, na Usina Chaminé, <strong>um</strong> centro cultural que já funcionou como usina deestação de tratamento de esgoto.Kety Fernandes, <strong>do</strong> Núcleo de Audiovisual <strong>do</strong> Itaú <strong>Cultural</strong>, fez a abertura <strong>do</strong> evento eapresentou Cláudia Mesquita, jornalista, realiza<strong>do</strong>ra e pesquisa<strong>do</strong>ra de cinema, queministrou a palestra “Panorama da Produção de Doc<strong>um</strong>entários no Brasil”. A mediaçãoficou a cargo da produtora e diretora Liliana Sulzbach, que realizou o <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário OCárcere e a Rua, de 2005, e faz parte da comissão julga<strong>do</strong>ra desta edição de R<strong>um</strong>os.Relatório de viagemFlavia CelidônioPara fazer <strong>um</strong> retrato <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário no Brasil, Cláudia apresentou trechos de Viramun<strong>do</strong>(1965), de Geral<strong>do</strong> Sarno, e de Santo Forte (1999), de Eduar<strong>do</strong> Coutinho – filme parcialmenterealiza<strong>do</strong> com apoio recebi<strong>do</strong> na primeira edição de R<strong>um</strong>os Itaú <strong>Cultural</strong> Cinema e Vídeo.A exibição foi seguida de comentários de Cláudia e Liliana, que apontaram as diferençasentre filmes de épocas tão distantes.A principal delas: a abrangência <strong>do</strong> tema <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entários. Enquanto <strong>um</strong> mapeia aespiritualidade apenas de <strong>um</strong>a pequena comunidade carioca (Santo Forte), o outro fala dasaga de migrantes nordestinos na chegada a São Paulo, sem a preocupação de ater-se aindividualidades. Para Liliana, essa busca pela particularização é reflexo da sociedade atual,que não acredita em <strong>um</strong>a única verdade, mas, sim, que tu<strong>do</strong> tem ângulos diversos.


110 Flavia Celidônio Relatório de viagem 111BELÉM8 de março de 2006A segunda palestra de divulgação <strong>do</strong> R<strong>um</strong>os Itaú <strong>Cultural</strong> Cinema e Vídeo 2006-2007aconteceu em Belém <strong>do</strong> Pará, no dia 8 de março. Cláudia Mesquita, jornalista e pesquisa<strong>do</strong>rade cinema, e Liliana Sulzbach, produtora e diretora, autora de O Cárcere e a Rua, compuserama mesa que discutiu o <strong>panorama</strong> da produção de <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entários no Brasil.Para fazer <strong>um</strong> retrato histórico da produção nacional, Cláudia destacou <strong>do</strong>is momentosimportantes <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário brasileiro. Um deles, os anos 1960, com o filme Viramun<strong>do</strong>(1965), de Geral<strong>do</strong> Sarno, reconheci<strong>do</strong> pelo uso, até então inédito, <strong>do</strong> som direto,que possibilitava a gravação de entrevistas, e o início da produção <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entárioindependente no Brasil. Ela apontou fortes características <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário dessa época,como a abordagem de grandes temas, no caso a migração de nordestinos a São Paulo ea tentativa de tratar assuntos da atualidade. Mostran<strong>do</strong> trechos <strong>do</strong> filme, Cláudia abor<strong>do</strong>uoutros pontos que marcaram a produção desse perío<strong>do</strong>, como a utilização ainda tímidadas entrevistas e a opção pela voz em off.O contraponto a essa época é a década de 1990, que assistiu à retomada <strong>do</strong> cinemabrasileiro. O filme escolhi<strong>do</strong> por Cláudia para representar esse momento foi Santo Forte(1999), de Eduar<strong>do</strong> Coutinho. Nesse caso, as entrevistas constituem o ponto principal<strong>do</strong> filme, que não tem narração. Ao contrário de Viramun<strong>do</strong>, não existe manipulação dainformação ou <strong>um</strong>a tentativa de corroborar a tese <strong>do</strong> realiza<strong>do</strong>r. Quem dá significa<strong>do</strong>ao conteú<strong>do</strong> <strong>do</strong> filme são os 11 integrantes de <strong>um</strong>a pequena comunidade carioca quecontam suas experiências religiosas em longas entrevistas.Liliana Sulzbach, membro da comissão julga<strong>do</strong>ra desta edição <strong>do</strong> R<strong>um</strong>os Itaú <strong>Cultural</strong>Cinema e Vídeo, usou as informações de Cláudia para afirmar que hoje em dia há <strong>um</strong>abusca pela particularização, pelo recorte, <strong>um</strong>a tentativa de mostrar que não existe <strong>um</strong>aúnica verdade, o que acontece em Viramun<strong>do</strong>, em que os migrantes são trata<strong>do</strong>s comocategoria, sem individualidades. To<strong>do</strong>s eles saíram <strong>do</strong> Nordeste por causa de problemascom a terra e nem to<strong>do</strong>s conseguem ser bem-sucedi<strong>do</strong>s em São Paulo.GOIÂNIA13 de março de 2006A terceira palestra de divulgação <strong>do</strong> projeto R<strong>um</strong>os Itaú <strong>Cultural</strong> Cinema e Vídeo 2006-2007 aconteceu em Goiânia.Francisco Elinal<strong>do</strong> Teixeira, professor de pós-graduação em multimeios da Unicamp eautor <strong>do</strong> livro Doc<strong>um</strong>entário no Brasil – Tradição e Transformação, foi o palestrante, com otema “O Doc<strong>um</strong>entário e a Representação: Identidade e Brasilidade”.Teixeira discorreu sobre os vários modelos de <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário no Brasil e apresentou a tesede que o nacional contemporâneo se utiliza de to<strong>do</strong>s os modelos já conheci<strong>do</strong>s. Para ele,o da atualidade tem <strong>um</strong>a visão expandida em relação ao que já foi ao longo da história.Como arg<strong>um</strong>entos para provar sua tese, o professor levantou modelos de <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário.Primeiro o clássico, que tem <strong>um</strong>a abordagem histórica <strong>do</strong>s fatos e é <strong>um</strong>a oposição à ficção.O segun<strong>do</strong> é o <strong>do</strong> cinema direto, que defende <strong>um</strong>a mínima intervenção <strong>do</strong> realiza<strong>do</strong>r,tanto na captação quanto na montagem, utilizan<strong>do</strong> planos-seqüência e buscan<strong>do</strong> orealismo da imagem. Por último o <strong>do</strong> cinema-verdade, de tradição européia, quan<strong>do</strong> éintroduzida a idéia da intervenção ten<strong>do</strong> em vista que a realidade não “está dada” e precisaser construída, é <strong>um</strong> contraponto ao cinema direto, observacional. Na opinião <strong>do</strong> professor,esses conheci<strong>do</strong>s modelos de <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário, que foram se contrapon<strong>do</strong> aos já existentes,constroem o <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário da atualidade, o que ele chama de “<strong>do</strong>cudiversidade”.Paschoal Samora, <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entarista autor de Confidências <strong>do</strong> Rio das Mortes (1999), Ao Sulda Paisagem (2000-2001), Rio de Fevereiro (2003) e Diário de Naná (2006) e membro dacomissão julga<strong>do</strong>ra de R<strong>um</strong>os, compôs a mesa ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong> professor Teixeira. Samorapreferiu falar daquilo que para ele constitui a principal característica <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário: amatéria-prima, a descoberta em tempo real <strong>do</strong>s fatos e o méto<strong>do</strong> da realização. Para ele, o<strong>do</strong>c<strong>um</strong>entarista deve estar sempre aberto ao que pode acontecer durante as filmagens. Aomesmo tempo em que o <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entarista é aquele que manipula o fato, o desejo essencial<strong>do</strong> realiza<strong>do</strong>r é o de perder o controle. Como dica para o público que assistiu à palestra,Samora diz que a “descoberta da invenção <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário” é o que mais interessa.Liliana ainda deu dicas aos interessa<strong>do</strong>s em apresentar projetos ao R<strong>um</strong>os Itaú<strong>Cultural</strong> Cinema e Vídeo 2006-2007. Ela acha que existe <strong>um</strong>a carência de filmes maispolíticos e <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entários investigativos. Para ela, as temáticas social e cultural jáforam bastante exploradas.


112 Flavia Celidônio Relatório de viagem 113CAMPO GRANDE15 de março de 2006Um rico bate-papo, considera<strong>do</strong> até como <strong>um</strong> laboratório para alguns participantes. Foiassim o encontro de R<strong>um</strong>os Itaú <strong>Cultural</strong> Cinema e Vídeo 2006-2007 na capital de MatoGrosso <strong>do</strong> Sul, Campo Grande.O <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entarista Paschoal Samora, membro da comissão julga<strong>do</strong>ra desta edição deR<strong>um</strong>os, e Francisco Elinal<strong>do</strong> Teixeira, professor de multimeios da Unicamp e autor de livrossobre <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário, iniciaram <strong>um</strong>a conversa, curiosos para saber o que se passava nacapital quan<strong>do</strong> o assunto é <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário.O público presente ao encontro agradeceu a possibilidade de concorrer ao prêmio deR<strong>um</strong>os e disse achar importante que existam iniciativas como essa. Também lamentarama não-existência de cursos de cinema nas universidades <strong>do</strong> esta<strong>do</strong>. A boa notícia é que oFestival de Cinema de Campo Grande já está em sua terceira edição, e há <strong>um</strong>a tentativa decriar <strong>um</strong>a cultura de produção cinematográfica, pelo menos <strong>do</strong> ponto de vista de jovensestudantes ou recém-forma<strong>do</strong>s em cursos liga<strong>do</strong>s à comunicação, como jornalismo, echeios de vontade de produzir em sua cidade.Um público interessa<strong>do</strong> e ávi<strong>do</strong> por informações ouviu a palestra <strong>do</strong> professor Teixeirasobre o <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário contemporâneo. Ele, mais <strong>um</strong>a vez, apresentou sua tese <strong>do</strong> cinemaexpandi<strong>do</strong>, da “<strong>do</strong>cudiversidade”, nome da<strong>do</strong> por ele às produções <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entais <strong>do</strong>s diasde hoje que abarcam to<strong>do</strong>s os modelos de <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entários na história, desde o clássico,com a abordagem histórica <strong>do</strong>s fatos e em oposição à ficção; passan<strong>do</strong> pelo cinemadireto, que defende <strong>um</strong>a mínima intervenção <strong>do</strong> realiza<strong>do</strong>r, tanto na captação quantona montagem, buscan<strong>do</strong> o realismo da imagem; até o modelo <strong>do</strong> cinema-verdade, detradição européia, quan<strong>do</strong> é introduzida a idéia da intervenção ten<strong>do</strong> em vista que arealidade não “está dada” e precisa ser construída, em contraponto ao cinema direto,observacional.Ao perceber que existe certo desânimo com as poucas possibilidades de realizar filmesem geral na opinião <strong>do</strong>s participantes, os <strong>do</strong>is palestrantes deixaram clara a importânciade se formular <strong>um</strong> projeto mesmo que ele não seja escolhi<strong>do</strong> para receber o prêmio.Os <strong>do</strong>is frisaram que, ao formular e organizar as idéias, o projeto amadurece e pode seraperfeiçoa<strong>do</strong>.A sugestão de Pachoal Samora: “criem <strong>um</strong> projeto de guerrilha”.FORTALEZA20 de março de 2006“Doc<strong>um</strong>entário como Gênero: Linguagens e Meios”. Esse foi o tema da palestra dedivulgação de R<strong>um</strong>os Itaú <strong>Cultural</strong> Cinema e Vídeo 2006-2007 em Fortaleza, a quintacidade a receber os encontros que marcam o início <strong>do</strong> projeto.Érika Bauer, professora da Universidade de Brasília e realiza<strong>do</strong>ra, autora de Dom HelderCâmara, o Santo Rebelde, foi a palestrante e contemplou a platéia, formada por jovensestudantes de comunicação, com a sua própria experiência como realiza<strong>do</strong>ra. H<strong>um</strong>anizaro personagem, essa é a “tarefa” mais desafia<strong>do</strong>ra para quem se propõe a fazer <strong>um</strong><strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário na opinião da professora. Foi realizan<strong>do</strong> o filme sobre Dom Helder que aquestão apareceu de forma mais clara para ela. Estudar a vida <strong>do</strong> personagem em questãoe buscar elementos que o tornassem mais h<strong>um</strong>ano e menos mito é algo que, para Érika,deve ser sempre persegui<strong>do</strong>. A professora acredita que a linguagem e a forma comoo <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário vai se dar chegam de maneira quase intuitiva. O importante é ter emmente que a construção da narrativa passa necessariamente pela forma como o realiza<strong>do</strong>renxerga o personagem. A linha tênue que separa o <strong>do</strong>c<strong>um</strong>ental da ficção também é algoque chama a atenção da realiza<strong>do</strong>ra. Para ela, a realidade é muito mais ficcional <strong>do</strong> queaparenta ser. Foi <strong>um</strong>a palestra bastante rica para <strong>um</strong> público ávi<strong>do</strong> por produzir e encontrarsuas próprias linguagens.Érika também falou sobre o momento atual <strong>do</strong> cinema <strong>do</strong>c<strong>um</strong>ental no Brasil, que, no seuentender, está se aperfeiçoan<strong>do</strong>, acompanhan<strong>do</strong> a maturação <strong>do</strong>s intelectuais brasileiros,interrompida pela ditadura militar e retomada nos anos 1980.Luis Eduar<strong>do</strong> Jorge, realiza<strong>do</strong>r, antropólogo e membro da comissão julga<strong>do</strong>ra destaedição de R<strong>um</strong>os, também abor<strong>do</strong>u a história <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário e <strong>do</strong> cinema no Brasil.Ele lamentou que as universidades não sejam mais centros de formação volta<strong>do</strong>s para aconstrução de cidadãos críticos e comprometi<strong>do</strong>s com a sociedade. Eduar<strong>do</strong> Jorge frisoua importância de não se perder a visão crítica e questiona<strong>do</strong>ra. Para ele, o <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entáriodeve ter <strong>um</strong>a função social, tem de provocar a reflexão.Roberto Cruz, gerente <strong>do</strong> Núcleo de Audiovisual <strong>do</strong> Itaú <strong>Cultural</strong>, também presente noencontro, respondeu a dúvidas e questões sobre o edital e afirmou, diante de jovenscéticos quanto às possibilidades de produção, que participar de <strong>um</strong> concurso como oR<strong>um</strong>os é importante para ganhar maturidade e aperfeiçoar o projeto, mesmo que ele nãoseja contempla<strong>do</strong>.


114 Flavia Celidônio Relatório de viagem 115RECIFE22 de março de 2006O encontro de R<strong>um</strong>os Itaú <strong>Cultural</strong> Cinema e Vídeo 2006-2007 na Fundação JoaquimNabuco, no Recife, se transformou n<strong>um</strong>a interessante conversa entre o público e oscomponentes da mesa: Érika Bauer, professora da Universidade de Brasília e realiza<strong>do</strong>ra,autora de Dom Helder Câmara, o Santo Rebelde, Luis Eduar<strong>do</strong> Jorge, realiza<strong>do</strong>r, antropólogoe membro da comissão julga<strong>do</strong>ra desta edição de R<strong>um</strong>os, e Roberto Cruz, gerente deAudiovisual <strong>do</strong> Itaú <strong>Cultural</strong>.Érika Bauer falou sobre sua experiência como realiza<strong>do</strong>ra e o que a atrai no trabalho comodiretora. Para ela, lidar com <strong>um</strong> tema pouco conheci<strong>do</strong> é o mais interessante para <strong>um</strong><strong>do</strong>c<strong>um</strong>entarista. Procura sempre tratar assuntos ou personagens que lhe são “estranhos”,em vez de fazer <strong>um</strong> filme sobre algo familiar. Como professora, tenta sugerir aos alunos quebusquem o desafio de pesquisar e mergulhar em <strong>um</strong> tema mais distante de sua realidade.Usan<strong>do</strong> o exemplo da produção de seu filme sobre Dom Helder, falou sobre a ética quedeve estar sempre presente no tratamento <strong>do</strong>s personagens <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário. Ética paranão distorcer ou manipular a “fala” <strong>do</strong> entrevista<strong>do</strong>. Para ela, na montagem, por vezes émelhor abrir mão de certos trechos se não for possível incluir o contexto em que algo foidito. O <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entarista deve tratar com máximo respeito o objeto de seu filme. Comoexemplo citou Eduar<strong>do</strong> Coutinho, em constante busca por essa ética.Como sugestão para o público, que queria saber se existem temas mais interessantes aser trata<strong>do</strong>s em <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entários, disse que qualquer tema pode ser <strong>um</strong> grande tema, tu<strong>do</strong>depende da maneira como o realiza<strong>do</strong>r trata o assunto. E avisou: sempre há mais por trás<strong>do</strong> que se imagina ou se enxerga, há que estar atento às descobertas que ocorrem nomeio da produção de <strong>um</strong> filme. Um <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entarista deve ter os olhos abertos ao quepode surgir durante a realização <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário.Provocar a reflexão no especta<strong>do</strong>r, na sociedade. Esse deve ser o papel <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entaristana opinião de Luis Eduar<strong>do</strong> Jorge. Mas, para isso, é preciso consciência crítica, algo queele acredita estar em falta na formação <strong>do</strong> brasileiro. Ele lamenta que as universidadesnão sejam mais centros de formação volta<strong>do</strong>s para a construção de cidadãos críticos ecomprometi<strong>do</strong>s com a sociedade. “Da mesma forma que o brasileiro não lê, tambémnão tem cultura audiovisual.” Eduar<strong>do</strong> Jorge defende que o cinema deveria fazer parte dagrade curricular das escolas desde as primeiras séries <strong>do</strong> ensino fundamental.SALVADOR27 de março de 2006A professora Sheila Schvarzman e a jornalista Liliana Sulzbach participaram, no dia 27 demarço, da sétima palestra de divulgação <strong>do</strong> programa R<strong>um</strong>os Itaú <strong>Cultural</strong> Cinema e Vídeo2006-2007, realizada em Salva<strong>do</strong>r.Sheila abor<strong>do</strong>u as tendências <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário no Brasil desde os primeiros filmes<strong>do</strong> gênero, produzi<strong>do</strong>s pelo Instituto Nacional <strong>do</strong> Cinema Educativo (Ince). Aprofessora projetou cenas de O Despertar da Redentora para mostrar que os temas <strong>do</strong>s<strong>do</strong>c<strong>um</strong>entários nos anos 1940 não tratavam <strong>do</strong> homem simples, mas, sim, de í<strong>do</strong>los emodelos a ser segui<strong>do</strong>s.Nos anos 1950, com as Brasilianas e a Caravana Farkas, o <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário começou a seaproximar <strong>do</strong> modelo que conhecemos hoje. Ainda que de forma generalizada, semindividualidades, o “homem” brasileiro aparece.Após o intervalo da produção no perío<strong>do</strong> da ditadura militar, a retomada <strong>do</strong> cinemano Brasil foi marcada por <strong>um</strong> negativismo na esteira da queda <strong>do</strong> Muro de Berlim, nosanos 1980. Esse negativismo marca a retratação <strong>do</strong> homem de forma radical. Começama aparecer as favelas, a desigualdade social, a miséria. O tema urbano substitui o rural,retratan<strong>do</strong> as mudanças que ocorreram no Brasil com a saída <strong>do</strong> homem <strong>do</strong> campo embusca das grandes cidades. Nas palavras da professora, “passamos <strong>do</strong> romantismo paraa crueza”. Para Sheila, está na hora de os <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entaristas voltarem os olhos para osseus iguais, ou seja, a classe média, mostran<strong>do</strong> que existe algo além dessa desigualdadesocial brasileira.Liliana, membro da comissão julga<strong>do</strong>ra de R<strong>um</strong>os, concor<strong>do</strong>u com a professora e sugeriuoutros formatos que gostaria de ver produzi<strong>do</strong>s no Brasil, como os <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entários debusca, a exemplo de 33, de Kiko Goifman – contempla<strong>do</strong> em edição anterior de R<strong>um</strong>os–, ou Passaporte Húngaro, de Sandra Kogut. Ela também sente falta de <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entáriosinvestigativos, de acompanhamento, e diz que a produção <strong>do</strong>c<strong>um</strong>ental brasileirapoderia se aproximar mais da ficção, dan<strong>do</strong> dramaticidade ao filme e fazen<strong>do</strong> com que oespecta<strong>do</strong>r se pergunte sobre o que vai acontecer.Roberto Cruz falou sobre o perío<strong>do</strong> atual <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário no Brasil, que é promissor, no seuentender. “Está surgin<strong>do</strong> <strong>um</strong>a geração nova de <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entaristas que não necessariamenteé ligada ao cinema e isso é saudável.” Para ele, há mais interesse em se retratar a realidadebrasileira, o que só vem enriquecer a cultura <strong>do</strong> audiovisual. Como dica aos que são céticosem relação ao merca<strong>do</strong> dedica<strong>do</strong> ao <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário no país, diz que não se pode pensar emdistribuição, é preciso pensar no antes, no “fazer” <strong>do</strong> filme, o resto vem depois. Mãos à massa.


116 Flavia Celidônio Relatório de viagem 117VITÓRIA29 de março de 2006O encontro de R<strong>um</strong>os Itaú <strong>Cultural</strong> Cinema e Vídeo 2006-2007 em Vitória contou com platéiaformada por estudantes da Universidade Federal <strong>do</strong> Espírito Santo. Uma mesa formada porSheila Schvarzman, historia<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> Condephaat, professora <strong>do</strong> curso de audiovisual dasFaculdades Senac e professora convidada <strong>do</strong> Departamento de Multimeios da Unicamp;Liliana Sulzbach, jornalista, realiza<strong>do</strong>ra (autora <strong>do</strong> premia<strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário O Cárcere e aRua) e membro da comissão julga<strong>do</strong>ra de R<strong>um</strong>os; e Roberto Cruz, gerente <strong>do</strong> Núcleo deAudiovisual <strong>do</strong> Itaú <strong>Cultural</strong>. A palestra teve como tema “Tendências e Perspectivas <strong>do</strong>Doc<strong>um</strong>entário Contemporâneo”.Sheila fez <strong>um</strong> recorte na história <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário no Brasil. Escolheu falar sobre como o<strong>do</strong>c<strong>um</strong>ental brasileiro fala <strong>do</strong> “outro”. A professora levantou exemplos para mostrar que o<strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário como conhecemos hoje passou a ser realiza<strong>do</strong> nos anos 1950, época das Brasilianase da Caravana Farkas. É nessa época que o “homem” brasileiro, simples e rural, passa a estarpresente nas produções. O tema rural foi pre<strong>do</strong>minante nessa fase <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário conheci<strong>do</strong>como moderno. Antes dessa época, os personagens retrata<strong>do</strong>s eram í<strong>do</strong>los, personalidades,exemplos. A era Getúlio Vargas acreditava que o cinema era <strong>um</strong>a forma de educar o povo.RIO DE JANEIRO3 de abril de 2006No dia 3 de abril, o Rio de Janeiro foi palco de <strong>um</strong>a descontraída conversa entre PaschoalSamora, <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entarista e membro da comissão julga<strong>do</strong>ra desta edição de R<strong>um</strong>os Itaú<strong>Cultural</strong> Cinema e Vídeo 2006-2007, e José Carlos Avellar, crítico de cinema, ensaísta econsultor de cinema <strong>do</strong> Programa Petrobras <strong>Cultural</strong>.As formas de exibição <strong>do</strong> cinema e <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário estão se amplian<strong>do</strong>. Avellar acreditaque em pouco tempo se produzirá especificamente para telas de celular e outras mídias.Algo como o que está acontecen<strong>do</strong> com o merca<strong>do</strong> fonográfico, em que é possívelcomprar apenas alg<strong>um</strong>as faixas de determina<strong>do</strong> álb<strong>um</strong>.Samora acredita que os modelos e formatos <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário estão anos-luz à frente<strong>do</strong> merca<strong>do</strong>. Cabe aos realiza<strong>do</strong>res pressionar o merca<strong>do</strong> a buscar novas maneiras dedistribuição. O negócio é produzir, realizar e acreditar que bons produtos vão encontrarcaminhos para ser exibi<strong>do</strong>s e poderão c<strong>um</strong>prir seu papel de provocar a reflexão e instigarsentimentos, tanto na grande quanto na pequena tela.Após o intervalo da produção no perío<strong>do</strong> da ditadura militar, a retomada <strong>do</strong> cinemano Brasil foi marcada por profundas mudanças. O tema urbano substituiu o rural.Favelas, desigualdade social e miséria passaram a ser retratadas no <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entáriodito contemporâneo. E Eduar<strong>do</strong> Coutinho aparece como <strong>um</strong> <strong>do</strong>s expoentes desse<strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário interessa<strong>do</strong> no “homem”, com suas individualidades, defeitos e qualidades.“Passamos <strong>do</strong> romantismo para a crueza”, nas palavras da professora. “Ou temos de salvar ousermos salvos”, é assim que res<strong>um</strong>e os <strong>do</strong>is momentos <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>ental no Brasil, na épocamoderna e na contemporânea. Falan<strong>do</strong> em perspectivas, Sheila acredita estar na hora deos <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entaristas voltarem os olhos para seus iguais, para a classe média, mostran<strong>do</strong>que existe outro la<strong>do</strong> nessa desigualdade social brasileira. Esse tópico provoca os alunos,que ainda acreditam nos temas de cunho social, em que se denuncia o desrespeito aosdireitos h<strong>um</strong>anos, a fome e as agruras <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> contemporâneo.Diante <strong>do</strong> debate, Liliana Sulzbach afirmou que o mais importante é fazer bons<strong>do</strong>c<strong>um</strong>entários, independentemente <strong>do</strong> conteú<strong>do</strong>. O que importa é o formato. Ela acreditaque a mudança de foco <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário brasileiro acompanha <strong>um</strong>a mudança de comoa sociedade olha para ela mesma. Preocupan<strong>do</strong>-se mais com o formato, poderiam serproduzi<strong>do</strong>s no Brasil mais <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entários investigativos, ou de acompanhamento, ouse poderia ousar mais ao “conferir <strong>um</strong> plot narrativo ao filme”, inserin<strong>do</strong> dramaticidade einstigan<strong>do</strong> o especta<strong>do</strong>r a se perguntar o que vai acontecer no final.Roberto Cruz e Sheila chamaram a atenção de to<strong>do</strong>s para as portas que se abrem comas diversas formas de mídia que se tem hoje para a divulgação de trabalhos. Há que serinventivo e, principalmente, fazer bons <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entários.


118 Flavia Celidônio Relatório de viagem 119BELO HORIZONTE5 de abril de 2006Realizada no dia 5 de abril, em Belo Horizonte, a palestra “O Doc<strong>um</strong>entário no Contextoda Retomada <strong>do</strong> Cinema Brasileiro: Existe Merca<strong>do</strong>?” teve a participação <strong>do</strong> crítico decinema José Carlos Avellar e <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entarista Paschoal Samora. O encontro marcouo décimo evento de divulgação <strong>do</strong> programa R<strong>um</strong>os Itaú <strong>Cultural</strong> Cinema e Vídeo 2006-2007 pelo Brasil.Consultor de cinema <strong>do</strong> Programa Petrobras <strong>Cultural</strong>, Avellar fez <strong>um</strong>a analogia entre o<strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário e a pintura <strong>do</strong> início <strong>do</strong> século XIX. Lembrou que o inglês John Constablerompeu com a tradição de retratar naturezas-mortas e personagens da aristocracia pintan<strong>do</strong>paisagens e evidencian<strong>do</strong> nos quadros a data, a hora e as condições climáticas <strong>do</strong> momento.Uma forma de <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entar, mesmo sem <strong>um</strong>a câmera. O crítico citou ainda a fotografia e ofotojornalismo para chegar ao <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário como conhecemos atualmente.Para Avellar, o Brasil tem <strong>um</strong>a tradição oposta à européia ou norte-americana. Aqui atelevisão faz ficção e o cinema bebe no modelo <strong>do</strong>c<strong>um</strong>ental. Central <strong>do</strong> Brasil, Carandiru eCidade de Deus têm <strong>um</strong>a veia <strong>do</strong>c<strong>um</strong>ental, e a televisão fica a cargo de produzir ficção. OBrasil, acredita ele, produz muito mais <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entários para a grande tela em comparaçãocom o cinema europeu ou norte-americano. Avellar citou ainda o cinema novo como<strong>um</strong>a das primeiras formas de fazer cinema usan<strong>do</strong> o modelo <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário.Membro da comissão de seleção <strong>do</strong> programa, Samora concorda, de certa forma, comAvellar. Ele acredita que o <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário, no Brasil, deixou de ser <strong>um</strong> “trampolim” paraaqueles que desejam fazer ficção e firmou-se como <strong>um</strong>a forma de “fazer cinema”, <strong>um</strong>instr<strong>um</strong>ento de reflexão da sociedade. Ele acredita que a projeção digital vai ampliar omerca<strong>do</strong>, não só para o <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário, mas para o cinema brasileiro em geral, contribuin<strong>do</strong>para facilitar a distribuição das produções nacionais.CURITIBA24 de abril de 2006A palestra de divulgação de R<strong>um</strong>os Itaú <strong>Cultural</strong> Cinema e Vídeo em Curitiba começoucom <strong>um</strong>a frase de efeito <strong>do</strong> realiza<strong>do</strong>r Cao Guimarães. “Não existe <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário semsubjetividade.” O tema <strong>do</strong> encontro foi “Doc<strong>um</strong>entário e Subjetividade: o Olhar <strong>do</strong> Autor”.Diretor premia<strong>do</strong>, autor de A Alma <strong>do</strong> Osso e Rua de Mão Dupla, Cao Guimarães dividiu amesa com o diretor, roteirista e antropólogo Luiz Eduar<strong>do</strong> Jorge, membro da comissãode seleção desta edição de R<strong>um</strong>os.Para ilustrar o que estava dizen<strong>do</strong>, Cao projetou cenas de seus <strong>do</strong>is trabalhos. Em Rua deMão Dupla duas pessoas passam 24 horas na casa de <strong>um</strong> estranho com <strong>um</strong>a câmera devídeo e tentam, por meio <strong>do</strong>s objetos e da disposição da casa, descobrir quem vive naquelelugar. Para o diretor esse foi o trabalho no qual mais se aproximou de <strong>um</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entáriocom pouca interferência <strong>do</strong> olhar <strong>do</strong> autor, mas a subjetividade está fortemente presentenaquele que faz imagens de <strong>um</strong>a casa estranha, de objetivos e indícios da vida de alguémque não conhece, e imagina quem é.Em Alma <strong>do</strong> Osso, filme em que tenta mostrar como vive <strong>um</strong> ermitão, a subjetividade<strong>do</strong> autor está em boa parte <strong>do</strong> filme. Por meio de imagens, sons e montagem, o diretorespecula o que se passa na cabeça desse ermitão sem ter nenh<strong>um</strong> indicativo <strong>do</strong> que eleestá realmente pensan<strong>do</strong>. O que está no filme é a subjetividade <strong>do</strong> autor.Com as diferenças colocadas, Cao Guimarães afirma que não lhe interessa a verdade, mas,sim, a expressividade <strong>do</strong> objeto ou <strong>do</strong> personagem retrata<strong>do</strong>. Nem a palavra interessa aodiretor, que acredita que o cinema tem <strong>um</strong> vício em literatura e em teatro. Cao acreditaque cinema é feito de imagens e sons. Para ele, não é o cineasta que faz o filme, mas ofilme que faz o cineasta.Luiz Eduar<strong>do</strong> Jorge representou bem o papel de media<strong>do</strong>r. Tentou saber de CaoGuimarães suas estratégias para montar <strong>um</strong> projeto e conseguir realizar seus trabalhos.Ouviu, junto com o público, que o projeto tem de expressar bem a idéia <strong>do</strong> filme, oobjetivo que se quer com o <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário, e ter sempre em mente que tu<strong>do</strong> podemudar durante a captação. Em vista disso, Cao diz ser <strong>um</strong> apaixona<strong>do</strong> pela edição <strong>do</strong>filme, que é quan<strong>do</strong> o <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário acontece, o momento em que o realiza<strong>do</strong>r se dáconta realmente <strong>do</strong> que é o produto final de seu trabalho.


120 Flavia Celidônio Relatório de viagem 121PORTO ALEGRE26 de abril de 2006“Doc<strong>um</strong>entário e Subjetividade: o Olhar <strong>do</strong> Autor”, esse foi o tema <strong>do</strong> encontro de R<strong>um</strong>osItaú <strong>Cultural</strong> Cinema e Vídeo em Porto Alegre.O diretor Cao Guimarães começou a conversa dizen<strong>do</strong> que não existe <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entáriosem subjetividade. Usou <strong>um</strong>a metáfora para ilustrar que tipos de <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entários eleproduz. Existem pelo menos três maneiras de estar na frente de <strong>um</strong> lago de água parada.Uma delas é contemplan<strong>do</strong> de <strong>um</strong> barranco, onde não se tem interação com esse lago,apenas a visão – são filmes de contemplação, como Da Janela <strong>do</strong> Meu Quarto, em que elegravou imagens de duas crianças brincan<strong>do</strong> n<strong>um</strong>a rua alagada no Pará, como se fosse<strong>um</strong>a coreografia e sem a interferência <strong>do</strong> autor. A outra forma é lançan<strong>do</strong> <strong>um</strong>a pedranesse lago, provocan<strong>do</strong> ondas e mexen<strong>do</strong> com a água. Para ele <strong>um</strong> exemplo é Rua deMão Dupla, em que há <strong>um</strong>a interferência <strong>do</strong> autor para que a realidade fique “bagunçada”.Nesse filme, Cao pediu a pessoas que não se conheciam que trocassem de casa por 24horas com <strong>um</strong>a câmera de vídeo nas mãos e tentassem imaginar os mora<strong>do</strong>res da casaestranha em que estavam. Uma realidade filtrada pelos olhos de quem está na casa epode apenas fazer elucubrações. A terceira maneira é atirar-se no lago, mergulhan<strong>do</strong> emsuas águas. O exemplo é A Alma <strong>do</strong> Osso, filme que Cao fez sobre a vida de <strong>um</strong> ermitãode Minas Gerais. Com as imagens <strong>do</strong> ermitão e de seu cotidiano, Cao procura imaginaro que o personagem está pensan<strong>do</strong>, o que se passa pela mente de alguém que vivesozinho n<strong>um</strong> local distante. Para fazer esse <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário, o diretor passou dias e diasfazen<strong>do</strong> imagens e conviven<strong>do</strong> com o ermitão, colocan<strong>do</strong> sua subjetividade no mergulhona personalidade da figura de seu filme.O diretor, roteirista e antropólogo Luiz Eduar<strong>do</strong> Jorge, membro da comissão seleciona<strong>do</strong>rade R<strong>um</strong>os, também estava presente no encontro. Subjetividade para ele é algo inerenteao ser h<strong>um</strong>ano. “A partir <strong>do</strong> momento em que o homem transforma a natureza em culturaele está crian<strong>do</strong> <strong>um</strong>a subjetividade.” Para Luiz Eduar<strong>do</strong>, Cao Guimarães faz da subjetividade<strong>do</strong> outro a matéria-prima de seu trabalho, realizan<strong>do</strong> assim <strong>um</strong>a leitura antropológica darelação que o homem tem com o mun<strong>do</strong>.BRASÍLIA3 de maio de 2006O último encontro de R<strong>um</strong>os Itaú <strong>Cultural</strong> Cinema e Vídeo 2006-2007 aconteceu com<strong>um</strong>a platéia formada quase inteiramente por estudantes de audiovisual de Brasília.A dupla responsável pela palestra “Panorama da Produção de Doc<strong>um</strong>entários no Brasil”foi a mesma que esteve no primeiro encontro, em Manaus. Cláudia Mesquita, jornalistae pesquisa<strong>do</strong>ra de cinema, e Liliana Sulzbach, produtora e realiza<strong>do</strong>ra, integrante dacomissão de seleção desta edição de R<strong>um</strong>os.A palestra reuniu <strong>um</strong> pouco de to<strong>do</strong>s os outros encontros. Cláudia fez <strong>um</strong> histórico <strong>do</strong>cinema <strong>do</strong>c<strong>um</strong>ental no Brasil desde os anos 1960, algo já aborda<strong>do</strong> por ela mesma emManaus. Viramun<strong>do</strong>, de Geral<strong>do</strong> Sarno, marca a era <strong>do</strong> <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário moderno, com atemática urbana, as agruras <strong>do</strong> povo e a tentativa de estabelecer <strong>um</strong> diagnóstico <strong>do</strong>sproblemas sociais no Brasil.Cabra Marca<strong>do</strong> para Morrer é <strong>um</strong> divisor de águas. O <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário de Eduar<strong>do</strong> Coutinho,finaliza<strong>do</strong> nos anos 1980, depois de ficar na gaveta durante a ditadura militar, inauguraa época contemporânea. Cláudia Mesquita classifica essa época, que vai <strong>do</strong>s anos 1980ao início <strong>do</strong>s 1990, como sen<strong>do</strong> “tempos de vídeo”, o cinema com forte relação com osmovimentos sociais, n<strong>um</strong>a clara demonstração da necessidade de criar <strong>um</strong>a identidade<strong>do</strong> brasileiro. Uma busca por interiorizar o cinema, como Coutinho também fez em SantaMarta. Para Cláudia, os “tempos de vídeo” duraram até a retomada mais forte <strong>do</strong> cinemabrasileiro em 1995, e daí para hoje há <strong>um</strong>a espécie de boom, com produção mais intensade <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entários que conseguem chegar a grandes telas, abrin<strong>do</strong> cada vez mais janelaspara a produção <strong>do</strong>c<strong>um</strong>ental no merca<strong>do</strong>.Liliana também reiterou em parte o que havia dito em Manaus, Salva<strong>do</strong>r e Vitória, ondeesteve com os encontros de R<strong>um</strong>os. Independentemente de tendências, ela acha queé o momento de mudar o foco <strong>do</strong>s <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entários feitos no Brasil. Cita, por exemplo,os acontecimentos em Brasília, com escândalos de corrupção, e pergunta se há alguémregistran<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> para transformar em <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entário. Liliana acredita que é precisoproduzir mais com temas exclusivamente políticos. E voltar a câmera para outras camadasda população, no lugar de apenas mostrar miséria ou violência em favelas, afinal, deveexistir <strong>um</strong>a elite que colabora para perpetuar as desigualdades no país.Apesar das carências, o que a realiza<strong>do</strong>ra de O Cárcere e a Rua realmente acredita éque existem bons e maus <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entários, e as boas idéias são sempre bem-vindas ebem recebidas.


123R<strong>um</strong>os Cinema e VídeoPalestrantesCao GuimarãesCarlos NaderCláudia MesquitaConsuelo LinsÉrika BauerFrancisco Elinal<strong>do</strong> TeixeiraJosé Carlos AvellarSheila SchvarzmanComissão de seleção da 5ª edição de R<strong>um</strong>osItáu <strong>Cultural</strong> Cinema e VídeoLiliana SulzbachLuiz Eduar<strong>do</strong> JorgePaschoal SamoraInstituições parceirasAgência Goiana de Cultura Pedro Lu<strong>do</strong>vico Teixeira– Agepel (GO)Centro <strong>Cultural</strong> Dragão <strong>do</strong> Mar (CE)Centro <strong>Cultural</strong> Usina Chaminé (AM)Diretoria de Artes Visuais e Multimeios daFundação <strong>Cultural</strong> da Bahia – Dimas (BA)Fundação Athos Bulcão (DF)Fundação Clóvis Salga<strong>do</strong> – Palácio das Artes (MG)Fundação de Cultura de Mato Grosso <strong>do</strong> Sul (MS)Fundação <strong>Cultural</strong> de Curitiba (PR)Fundação Joaquim Nabuco (PE)Instituto de Artes <strong>do</strong> Pará (PA)Instituto Marlin Azul (ES)Paço Imperial (RJ)Secretaria de Esta<strong>do</strong> de Cultura <strong>do</strong> Amazonas (AM)Universidade Federal <strong>do</strong> Espírito Santo (ES)Usina <strong>do</strong> Gasômetro (RS)AgradecimentosAlexandre FigueiroaAlexandre VerasAna Azeve<strong>do</strong>Andressa OliveiraBeatriz LindenbergBelchior CabralBernar<strong>do</strong> José de SouzaBya CabralCarlos MagalhãesCarolina FerreiraCarolina PortoDaniel QueirosDaniela CapelatoDulcinéia GilEudal<strong>do</strong> GuimarãesFernan<strong>do</strong> SegtowickFrancisco de A. Ass<strong>um</strong>pção NetoFrancisco LiberatoGlauber FilhoGlênio Nicola PóvoasJanine de Souza MalanskiJoão D<strong>um</strong>ansJoão JúniorKléber Men<strong>do</strong>nça FilhoMarcelo ArmosMarcelo PedrosoMárcia Mace<strong>do</strong>Paulo BragantiniVera AdamiVerônica MaiaParticipantes <strong>do</strong> Laboratório de ProjetosAroe Jari: Trilogia BororoCláudio de Oliveira AlvesBiografia das Casas ElásticoAlexandre VerasHistória na GeralAnna Azeve<strong>do</strong>Meninas de PlásticoTatiana Toffoli e Marta NehringRefugia<strong>do</strong>sIvan Canabrava e SouzaSub.UrbanosRubens Miranda JúniorProjetos premia<strong>do</strong>s e que compõem a sérieCinco sobre CincoMargemMaya Werneck Da-RinEu Vou de VoltaCamilo Santos Cavalcante e Claudio AssisHistórias de Morar e DemoliçõesAndré CostaMemórias de <strong>um</strong>a Mulher ImpossívelMarcia DerraikProcura-se JanaínaMiriam ChnaidermanPrêmio especialDiário de SintraPaula GaitánSobre fazer <strong>do</strong>c<strong>um</strong>entáriosIdentidade visual e projeto gráficoHelga VazEste livro foi organiza<strong>do</strong>, edita<strong>do</strong>, revisa<strong>do</strong> e diagrama<strong>do</strong> pela equipe <strong>do</strong> Instituto Itaú <strong>Cultural</strong>.

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