ANAIS DE FILOSOFIA CLÁSSICA, vol. V nº 9, 2011ISSN 1982-5323SANTOS, José Trin<strong>da</strong><strong>de</strong>Princípios <strong>da</strong> <strong><strong>na</strong>tureza</strong> <strong>na</strong> Física A, <strong>de</strong> Aristóteles: pré-socráticos, PlatãoMatéria é aquilo que, por exemplo, a partir <strong>da</strong> árvore, ao ser cortado, se transforma <strong>na</strong>ma<strong>de</strong>ira, po<strong>de</strong>ndo vir a ser um leito ou qualquer outro artefato, que eventualmente se há-<strong>de</strong>corromper retor<strong>na</strong>ndo aos elementos constituintes <strong>da</strong> ma<strong>de</strong>ira: secando, apodrecendo, ouar<strong>de</strong>ndo.Por outro lado, “forma” é aquilo que ca<strong>da</strong> ente é e o <strong>de</strong>fine como substância, como émostrado nos exemplos acima, <strong>da</strong> árvore, <strong>da</strong> ma<strong>de</strong>ira e do leito. Ao ser corta<strong>da</strong>, a substância“árvore” é corrompi<strong>da</strong> gerando-se a nova substância “ma<strong>de</strong>ira”. Por outro lado, a matéria <strong>da</strong>árvore persiste <strong>na</strong> ma<strong>de</strong>ira corta<strong>da</strong>, embora se corrompa <strong>na</strong> matéria <strong>da</strong> chama, do fumo e <strong>da</strong>cinza, gera<strong>da</strong>s pela ação do fogo.Fica então clara a razão <strong>de</strong> se sustentar que a matéria é potência – possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>receber sucessivas formas –, enquanto a forma é a atuali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>ssa potência; seja, aquilo quenum <strong>da</strong>do momento é uma <strong>da</strong><strong>da</strong> substância e noutro outra (no exemplo, árvore, ma<strong>de</strong>ira ou oartefato produzido a partir <strong>de</strong>las). Note-se, porém, que não po<strong>de</strong> ser qualquer outra coisa(A5,188b3-8), pois a árvore nunca po<strong>de</strong> ser matéria do bronze, por exemplo.Acontece assim porque “forma” e “matéria”, embora sejam conceitos in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes,nunca ocorrem <strong>na</strong> <strong><strong>na</strong>tureza</strong> separa<strong>da</strong>s um do outro: a forma <strong>de</strong>termi<strong>na</strong> uma certa matériagerando uma substância; a matéria é o substrato <strong>de</strong>ssa substância que a forma atualiza 57 . Estainter<strong>de</strong>pendência é reconheci<strong>da</strong> pelo discurso corrente, que confun<strong>de</strong> uma com a outra quandosustenta que a “árvore é a matéria <strong>da</strong> ma<strong>de</strong>ira corta<strong>da</strong>” e ao mesmo tempo que a ma<strong>de</strong>ira é amatéria <strong>da</strong> árvore, antes <strong>de</strong> esta ter sido corta<strong>da</strong>.Há nesta relação duas questões a esclarecer. A primeira tem a ver com a ligação <strong>da</strong>matéria à forma. Por exemplo, a forma <strong>de</strong> uma <strong>da</strong><strong>da</strong> matéria po<strong>de</strong> transformar-se <strong>na</strong> matéria<strong>de</strong> outra forma, como é o caso <strong>da</strong> árvore e <strong>da</strong> ma<strong>de</strong>ira. Por exemplo, o bronze é uma liga <strong>de</strong>cobre e estanho que associa a algumas <strong>da</strong>s proprie<strong>da</strong><strong>de</strong>s dos metais que a constituem umaoutra, nova, que eles não possuíam: a dureza. Neste caso, ‘bronze’ é o nome <strong>da</strong> substânciagera<strong>da</strong> pela corrupção do estanho e do cobre, mas também o nome <strong>da</strong> matéria <strong>de</strong>ssasubstância (vi<strong>de</strong> A9,192a5-6). No entanto, <strong>na</strong> substância que é a estátua, o bronze é a matériamol<strong>da</strong><strong>da</strong> <strong>na</strong> forma <strong>da</strong>quela.Portanto, sabendo que o que é atualizado é a substância, cabe então perguntar como serealiza essa atualização. A resposta é: através dos contrários. Por exemplo, aqueci<strong>da</strong> pela ação57 A inter<strong>de</strong>pendência <strong>de</strong> forma e matéria é expressamente reconheci<strong>da</strong> por Aristóteles <strong>na</strong> sua <strong>de</strong>finição <strong>de</strong>“<strong><strong>na</strong>tureza</strong>” <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> uma <strong>da</strong>s perspectivas complementares: Fís. B1,193a9-b21. Esta inter<strong>de</strong>pendência é tão forteque se esten<strong>de</strong> à relação entre o corpo e a alma <strong>de</strong> um animal (DA B2,414a19-20)38
ANAIS DE FILOSOFIA CLÁSSICA, vol. V nº 9, 2011ISSN 1982-5323SANTOS, José Trin<strong>da</strong><strong>de</strong>Princípios <strong>da</strong> <strong><strong>na</strong>tureza</strong> <strong>na</strong> Física A, <strong>de</strong> Aristóteles: pré-socráticos, Platãodo fogo, a água ferve, transformando-se em ar; pelo contrário, arrefeci<strong>da</strong> pelo frio,transforma-se em gelo.A água é a matéria próxima tanto do ar, como do gelo, por po<strong>de</strong>r sofrer alteração paraou a partir <strong>de</strong>les. Assim sendo, é possível perguntar como é que isso acontece e porquê <strong>de</strong>ssemodo; como é que sempre se transforma, num caso, num elemento, noutro caso, noutro, sem,ao sofrer a ação do fogo ou do frio, nunca po<strong>de</strong>r se transformar numa outra substância (vi<strong>de</strong>A5,188b3-8).Para que se compreen<strong>da</strong> a invariância <strong>de</strong>sta regulari<strong>da</strong><strong>de</strong>, é forçoso admitir que algo<strong>na</strong> matéria <strong>da</strong> água admite receber o quente ou o frio (mas não quaisquer outros contrários),gerando, nos dois casos, aquelas substâncias em que os contrários comuns se manifestam enão outros. Essa disposição só po<strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r-se como uma potência para acolher oscontrários que as duas substâncias partilham.Noutras palavras, tal disposição tem <strong>de</strong> existir em potência <strong>na</strong> água, e,consequentemente, em todos os corpos simples, ou elementos, entre os quais ocorre amu<strong>da</strong>nça. De outro modo, os processos <strong>de</strong>terminísticos que regem a geração e corrupçãosubstanciais seriam senão impossíveis, pelo menos, <strong>de</strong> todo inexplicáveis.A MATERIA PRIMAOra, para que assim ocorra, será necessário supor que em to<strong>da</strong>s as substâncias existeem potência uma “matéria prima”, entendi<strong>da</strong> como suporte dos contrários que <strong>de</strong>termi<strong>na</strong>mquer a alteração qualitativa (allôiosis), quer a corrupção (phthora) <strong>da</strong> substância,concomitante com a geração (genesis) <strong>de</strong> uma nova substância 58 , <strong>da</strong> qual se geram oselementos (G. C. b329a24-26).Essa matéria prima po<strong>de</strong> ser entendi<strong>da</strong> como um certo “objeto lógico” (Charles 2004,154) que po<strong>de</strong>ria ser avançado como justificação <strong>da</strong> existência <strong>de</strong> um substrato material empotência, imperceptível e não separado, o qual, como Aristóteles sustentou, po<strong>de</strong> serreconhecido por a<strong>na</strong>logia (A7,191a7). Este, apesar <strong>de</strong> não po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> se manifestar comocorpóreo, não constituiria um corpo, pelo fato <strong>de</strong> não ser <strong>de</strong>termi<strong>na</strong>do pela forma <strong>de</strong> nenhumasubstância: seja aquela a quo, seja aquela ad quem proce<strong>de</strong> a mu<strong>da</strong>nça. Essa matéria é amatéria prima:58 Ver o comentário a A7,191a7-12 em Angioni 2009, 163-165; em particular no que diz respeito à crítica àconcepção tradicio<strong>na</strong>l <strong>de</strong> matéria prima (Charlton 1983, 208), a qual <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> que para todos os entes compostos,há um mesmo y que <strong>de</strong>sempenha o papel <strong>de</strong> matéria <strong>de</strong> todos” (165).39
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