ANAIS DE FILOSOFIA CLÁSSICA, vol. V nº 9, 2011ISSN 1982-5323SANTOS, José Trin<strong>da</strong><strong>de</strong>Princípios <strong>da</strong> <strong><strong>na</strong>tureza</strong> <strong>na</strong> Física A, <strong>de</strong> Aristóteles: pré-socráticos, Platão“No entanto, que jamais haverão <strong>de</strong> estar discrimi<strong>na</strong>dos [a carne, o sangue, a medula],embora não se afirme consabi<strong>da</strong>mente, afirma-se <strong>de</strong> modo correto, pois as afeções sãoinseparáveis” (A4,188a6-7 46 ).Aristóteles quer dizer que A<strong>na</strong>xágoras tem razão, mas não sabe o que está a dizer! Achave <strong>da</strong> crítica acha-se <strong>na</strong> distinção implícita entre as “afeções” (Met. Δ21,1022b15-21) e osconstituintes em que inerem. Sendo “quali<strong>da</strong><strong>de</strong>s”, as afeções não po<strong>de</strong>m ser separa<strong>da</strong>s <strong>da</strong>s<strong><strong>na</strong>tureza</strong>s em que inerem – pelo que a sua discrimi<strong>na</strong>ção po<strong>de</strong>rá prosseguir in<strong>de</strong>fini<strong>da</strong>mentesem que acabem por se resolver nos seus constituintes 47 –, embora, pelo contrário, as<strong><strong>na</strong>tureza</strong>s, pelo fato <strong>de</strong> serem o que se manifesta separa<strong>da</strong>mente, sempre se resolvem nos seusconstituintes 48 . Por outro lado, pelo fato <strong>de</strong> se manifestarem separa<strong>da</strong>mente, estas não po<strong>de</strong>mser vistas ape<strong>na</strong>s como “coisas”: sendo aquilo que são, têm a i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> própria que só po<strong>de</strong>ser conferi<strong>da</strong> às “substâncias” 49 .Resta ain<strong>da</strong> o não pequeno problema <strong>de</strong> explicar a razão pela qual as afeções inerem<strong>na</strong>s substâncias. E é aqui que Aristóteles opera mais uma revolução epistemológica aoretomar <strong>da</strong> tradição pré-socrática a noção <strong>de</strong> “contrários”, embora mostre estar consciente doque o separa dos seus antecessores.Até este momento, a crítica <strong>de</strong> Aristóteles aos pré-socráticos <strong>de</strong>ixou no ar três aporias<strong>da</strong> geração, à resolução <strong>da</strong>s quais se entrega em A5:1. Como é possível que algo se gere a partir do ser ou do não-ser?2. Como é possível que o múltiplo se gere a partir do uno?3. Como po<strong>de</strong>m os contrários se gerar a partir um do outro?Por isso, A5 começa por introduzir três distinções sem as quais nenhum argumentocoerente será alguma vez possível em Física. Em 188a30-b3, é expressa a reserva em queassenta a noção <strong>de</strong> ‘<strong>de</strong>vir’: nem um ente po<strong>de</strong> fazer ou sofrer qualquer coisa por efeito <strong>de</strong>outro, nem qualquer coisa po<strong>de</strong> vir a ser qualquer outra. Terá <strong>de</strong> ser assim porque to<strong>da</strong>geração ou corrupção se dá a partir dos contrários e seus intermediários (188b22-24), queinerem em ca<strong>da</strong> substância.46 Angioni 2009; ver ain<strong>da</strong> as notas ad loc., 120-123.47 Tratando-se <strong>de</strong> quali<strong>da</strong><strong>de</strong>s, a discrimi<strong>na</strong>ção <strong>de</strong> algumas cores po<strong>de</strong>ria prosseguir in<strong>de</strong>fini<strong>da</strong>mente sem que<strong>de</strong>las se separem os seus constituintes.48 Sendo esse processo evi<strong>de</strong>nte <strong>na</strong>s substâncias compostas, <strong>de</strong>verá ocorrer também <strong>na</strong>s simples – por exemplo,nos elementos –, embora não em termos físicos, como se verá adiante.49 Embora isso não seja evi<strong>de</strong>nte, neste ponto Aristóteles está a aproveitar a argumentação <strong>de</strong> Parmêni<strong>de</strong>s através<strong>da</strong> interpretação que lhe é <strong>da</strong><strong>da</strong> por Platão, mesmo rejeitando a noção platônica <strong>de</strong> “Forma”.34
ANAIS DE FILOSOFIA CLÁSSICA, vol. V nº 9, 2011ISSN 1982-5323SANTOS, José Trin<strong>da</strong><strong>de</strong>Princípios <strong>da</strong> <strong><strong>na</strong>tureza</strong> <strong>na</strong> Física A, <strong>de</strong> Aristóteles: pré-socráticos, PlatãoEstabeleci<strong>da</strong>s estas teses, A6 avança para a <strong>de</strong>termi<strong>na</strong>ção do número dos princípiosnotando que, não sendo essências, os contrários não po<strong>de</strong>m ser anteriores à substância, à qual,por sua vez, <strong>na</strong><strong>da</strong> po<strong>de</strong> ser anterior ou se opor (A6,187a27-33). Por essa razão, os princípiosreduzem-se a dois ou três (189b27-29).Se os dois contrários são o que não subsiste (A7,190a21-25) “vir a ser” diz-se <strong>de</strong> duasmaneiras. Como substância e forma, fala-se <strong>de</strong> geração, pois também elas provêm <strong>de</strong> algosubjacente (190b1-28). Mas <strong>de</strong>ve ain<strong>da</strong> consi<strong>de</strong>rar-se o que ocorre entre os contrários, que sãoprivação um do outro (190b27), efetuando-se a mu<strong>da</strong>nça (metabolê) pela sua presença ouausência (191a6-7).A tese <strong>de</strong> que os contrários inerem <strong>na</strong>s substâncias 50 insere a noção num contexto queaté aí lhe era estranho. Em vez <strong>de</strong> se formarem por ação <strong>de</strong> um fenômeno puramentemecânico, que lhes é <strong>de</strong> todo estranho e inexplicável 51 , os contrários <strong>de</strong>termi<strong>na</strong>m aconstituição <strong>da</strong>s substâncias pelo fato <strong>de</strong> lhes serem inerentes, <strong>de</strong> existirem nelas, embora empotência. São, pois, os contrários e as substâncias os princípios que Aristóteles buscava:“Está dito, portanto, quantos são os princípios dos seres <strong>na</strong>turais envolvidos no vir aser, e <strong>de</strong> que modo são tantos. É evi<strong>de</strong>nte que é preciso que algo esteja subjacente aoscontrários e que os contrários sejam dois” (Angioni 2009, 191a3-6).Completando a sua digressão pelos que o antece<strong>de</strong>ram, Aristóteles encontrou emA<strong>na</strong>xágoras a resposta à sua pergunta sobre os princípios. As “coisas” são o “subjacente”(“substrato”), o princípio material <strong>da</strong> substância. Os “contrários” são os princípiosreguladores do “repouso e movimento” <strong>da</strong> substância, que materialmente ditam a suapersistência e capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> transformação 52 .FÍSICA E METAFÍSICA NA FÍSICA AÉ nesta síntese que Aristóteles se concentra para, extinto o eco <strong>da</strong>s críticas aos présocráticos(A6), po<strong>de</strong>r entregar-se à exposição <strong>da</strong> sua teoria. Do 4º princípio <strong>de</strong> A<strong>na</strong>xágoras50 To<strong>da</strong>via, o modo como inerem acrescenta um <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iro ponto à crítica <strong>de</strong> Aristóteles: através <strong>da</strong> “potência” edo “ato” (“capaci<strong>da</strong><strong>de</strong>” e “efetivi<strong>da</strong><strong>de</strong>”: Angioni 2009). Voltarei à questão adiante.51 Uma vez mais Aristóteles mostra-se <strong>de</strong>vedor dos argumentos eleáticos contra os Físicos que os prece<strong>de</strong>ram.To<strong>da</strong> a argumentação <strong>de</strong> Parmêni<strong>de</strong>s contra a geração/corrupção e o <strong>de</strong>vir (B8.2-31) converge <strong>na</strong> crítica à teseque <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> o “mo<strong>de</strong>lo cosmológico do vórtice”, ou seja o fenômeno que produz a emergência dos contráriospor “discrimi<strong>na</strong>ção” (Fís. A4,187a20-24; Simplício fís. 24,21). Deste ponto <strong>de</strong> vista, a postulação <strong>de</strong>ssa hipótesemostra-se absur<strong>da</strong>.52 Numa <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>ira <strong>de</strong>finição do contorno <strong>da</strong> sua teoria, Aristóteles aproveita ain<strong>da</strong> a doutri<strong>na</strong> <strong>de</strong> A<strong>na</strong>xágoras. Os“seres inerentes e imperceptíveis” (187a31-32), necessários para assegurar a “discrimi<strong>na</strong>ção <strong>da</strong>s coisas”, foramassimilados pelos contrários aristotélicos, qualifica<strong>da</strong> e não genericamente inerentes <strong>na</strong> substância, nos termos <strong>da</strong>concepção hilemórfica.35
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