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Princípios da natureza na Física A, de Aristóteles: pré ... - IFCS

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ANAIS DE FILOSOFIA CLÁSSICA, vol. V nº 9, 2011ISSN 1982-5323SANTOS, José Trin<strong>da</strong><strong>de</strong>Princípios <strong>da</strong> <strong><strong>na</strong>tureza</strong> <strong>na</strong> Física A, <strong>de</strong> Aristóteles: pré-socráticos, PlatãoO objetivo <strong>de</strong>ste texto é acompanhar este movimento, tal como é visto pelo Estagiritano Livro A <strong>da</strong> Física. Após uma breve referência a alguns pré-socráticos e a Platão, ireiconcentrar-me nesse Tratado, no qual Aristóteles vai <strong>da</strong>r pistas sobre a formação <strong>da</strong> sua teoriasobre os princípios físicos, a partir <strong>da</strong>s teses <strong>de</strong> outros pensadores <strong>da</strong> tradição que ele próprioresume e critica 1 .PRÉ-SOCRÁTICOSO termo ‘physis’ 2 e a noção, ou noções a ele associa<strong>da</strong>s tor<strong>na</strong>m-se comuns <strong>na</strong>literatura grega a partir do séc. V. Embora diversas acepções sejam <strong>de</strong>tectáveis em váriosautores, a tradução “<strong><strong>na</strong>tureza</strong>” é consensual nos contextos cosmológico e político. Em ca<strong>da</strong>um <strong>de</strong>les, o termo opõe-se ao par categorial respectivo: o nomos – “lei”, “convenção” – nocontexto político, e a technê – “arte”, “técnica” –, no onto-cosmológico.Pondo <strong>de</strong> parte o contexto político, do qual se colhem lições pouco relevantespara a compreensão <strong>da</strong> problemática expressa pelo sentido cosmológico do termo 3 (embora oinverso possa ocorrer 4 ), começo por sumariar os sentidos com que é usado pelos Présocráticose Platão. Depois, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>rei que, no Estagirita, os principais problemas postos pelanoção <strong>de</strong> ‘physis’ se acham <strong>na</strong> gênese <strong>da</strong> Física como ciência, po<strong>de</strong>ndo colher-se sobretudo <strong>na</strong>Metafísica Δ5, nos oito Livros <strong>da</strong> Física e nos dois do Da geração e corrupção.Para se captar imediatamente o âmbito do uso do termo no contexto cosmológico,apresentarei alguns exemplos paradigmáticos, recolhidos dos fragmentos dos pré-socráticos:1 A abor<strong>da</strong>gem <strong>de</strong>senvolvi<strong>da</strong> no Livro A (alarga<strong>da</strong> nos Livros subsequentes) <strong>de</strong>ixa a tradição dividi<strong>da</strong> em trêsgrupos:1. A <strong>da</strong>queles a quem é concedi<strong>da</strong> maior atenção: Parmêni<strong>de</strong>s e A<strong>na</strong>xágoras; pontualmente,A<strong>na</strong>ximandro, Empédocles, Atomistas, Platônicos;2. a dos que são <strong>de</strong>scartados: Heraclito e Melisso (quer porque em <strong>na</strong><strong>da</strong> contribuem para a discipli<strong>na</strong>,quer porque Aristóteles os consi<strong>de</strong>ra irrelevantes);3. a dos que não são mencio<strong>na</strong>dos: Pitagóricos, Arquelau e Diógenes <strong>de</strong> Apolônia (presumivelmentepor em <strong>na</strong><strong>da</strong> contribuírem para a reflexão aristotélica sobre o problema posto pelos princípios <strong>da</strong>Natureza).2 Substantivo formado a partir do verbo phyô e respectivas formas. A sua primeira aparição, <strong>na</strong> Odisseia X,303,referindo a erva a que os <strong>de</strong>uses dão o nome “moly”, recebe habitualmente a tradução “<strong><strong>na</strong>tureza</strong>”. No índice dosFragmentos dos pré-socráticos, Diels distingue diversas acepções, <strong>da</strong>s quais <strong>de</strong>staco o resultado do processo quefaz “brotar” algo, com os seus aspecto e características próprias e o conjunto dos seres “<strong>na</strong>turais”.3 Registe-se a proeminência do uso do termo no seu contexto cosmológico, atesta<strong>da</strong> pelo fato <strong>de</strong>, do ponto <strong>de</strong>vista <strong>da</strong> composição e preservação dos textos pré-socráticos, a tradição posterior usar indiscrimi<strong>na</strong><strong>da</strong>mente aexpressão “Peri physeôs” para referir qualquer obra atribuí<strong>da</strong> a um physikos, <strong>na</strong> qual se expõem as suasdoutri<strong>na</strong>s acerca <strong>da</strong> constituição do cosmo.4 Vi<strong>de</strong> M. Ostwald, Nomos and the Beginnings of Athenian Democracy, Oxford 1969, 20-54.18


ANAIS DE FILOSOFIA CLÁSSICA, vol. V nº 9, 2011ISSN 1982-5323SANTOS, José Trin<strong>da</strong><strong>de</strong>Princípios <strong>da</strong> <strong><strong>na</strong>tureza</strong> <strong>na</strong> Física A, <strong>de</strong> Aristóteles: pré-socráticos, Platão1. B123, <strong>de</strong> Heraclito: “a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira constituição <strong>da</strong> coisas (physis) gosta <strong>de</strong> seescon<strong>de</strong>r” 5 ;2. B16.3, <strong>de</strong> Parmêni<strong>de</strong>s: referindo o papel <strong>da</strong> “<strong><strong>na</strong>tureza</strong> dos membros” (meleônphysis: significando “os sentidos”) no pensamento dos homens;3. B8.1,3, <strong>de</strong> Empédocles: negando a “<strong><strong>na</strong>tureza</strong>” (com o sentido <strong>de</strong> “<strong>na</strong>scimento”) e amorte e consi<strong>de</strong>rando ‘physis’ um nome forjado pelos homens;4. B33, <strong>de</strong> Demócrito; que aproxima <strong><strong>na</strong>tureza</strong> e educação, alegando que esta“constitui a <strong><strong>na</strong>tureza</strong>” (physiopoiei) do homem.Destes quatro fragmentos, o segundo e o quarto, em particular, são ilustrativos doprocesso pelo qual ca<strong>da</strong> ser, ou uma sua parte, “faz aquilo que faz” e “é aquilo que é”. É estamesma i<strong>de</strong>ia que o fragmento <strong>de</strong> Empédocles rejeita, propondo a tese que reduz <strong>na</strong>scimento emorte à mistura e separação dos quatro elementos.Na Física A4, Aristóteles insistirá <strong>na</strong> <strong>de</strong>núncia <strong>da</strong> inconsistência radical <strong>de</strong>staconcepção, responsabilizando por ela a subserviência perante as teses dos Eleatas. Enquanto<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>rem a impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> geração a partir do ser e do não-ser, os Físicos serãoimpotentes para explicar quer a emergência dos contrários elementais, quer a produção doscorpos a partir <strong>de</strong>les, por composição e separação.PLATÃOEsta dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> também afecta a compreensão <strong>da</strong> proposta física que Platão avançano Timeu. Por essa razão, os usos platônicos do termo physis no contexto cosmológicorefletem a inconsistência que Aristóteles atribui aos pré-socráticos, embora ganhem novossentidos problemáticos nos diálogos. A physis <strong>de</strong> algo reflete a “sua <strong><strong>na</strong>tureza</strong>”, o princípio emvirtu<strong>de</strong> do qual esse algo “é aquilo que é”. Platão <strong>de</strong>riva <strong>de</strong>ste princípio uma tese abrangente,<strong>de</strong> carácter onto-epistemológico:“... as coisas (ta pragmata) têm uma certa enti<strong>da</strong><strong>de</strong> estável (ousia bebaiôs)..., que é emsi mesma e relativamente a si mesma, a qual é (e “existe”) “por <strong><strong>na</strong>tureza</strong>” (physei:Crátilo 386e).Usa-a para <strong>de</strong>finir o princípio em que assentam as suas concepções em domínios tãodistintos quanto os <strong>da</strong> onto-epistemologia e <strong>da</strong> pesquisa sobre os nomes. No passo citado, oobjetivo secundário <strong>da</strong> tese é opor-se quer à concepção <strong>de</strong> que a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> é domi<strong>na</strong><strong>da</strong> por umfluxo catastrófico – no Crátilo e no Teeteto, i<strong>de</strong>ntifica<strong>da</strong> com doutri<strong>na</strong>s propostas por5 As traduções <strong>de</strong> textos gregos são <strong>da</strong> minha responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong>, exceto quando houver indicação em contrário.19


ANAIS DE FILOSOFIA CLÁSSICA, vol. V nº 9, 2011ISSN 1982-5323SANTOS, José Trin<strong>da</strong><strong>de</strong>Princípios <strong>da</strong> <strong><strong>na</strong>tureza</strong> <strong>na</strong> Física A, <strong>de</strong> Aristóteles: pré-socráticos, PlatãoHeraclito e Crátilo –, quer a uma forma qualifica<strong>da</strong> <strong>de</strong> relativismo 6 , atribuí<strong>da</strong> a Protágoras, noTeeteto. Segundo esta concepção, a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> apresenta-se aos percipientes <strong>de</strong> forma difusa,pois “as coisas (hekasta) são para ca<strong>da</strong> um como lhe parecem” (Crá. 386a; Teet. 152a: veja-sea extraordinária elaboração pela qual passa esta tese em 156a-157c, 166a-168c).Mas o aspecto mais problemático <strong>da</strong> tese platônica acha-se implícito <strong>na</strong> formulaçãoexpressa. Uma vez que, no passo do Crátilo citado acima, a expressão “as coisas” só po<strong>de</strong>referir-se às Formas inteligíveis 7 , po<strong>de</strong> inferir-se que aos sensíveis só <strong>de</strong>rivativa eimitativamente será atribuí<strong>da</strong> uma <strong><strong>na</strong>tureza</strong> própria. É esse o motivo <strong>de</strong> diversos diálogosatestarem que a investigação <strong>da</strong> <strong><strong>na</strong>tureza</strong> gera perplexi<strong>da</strong><strong>de</strong>s que só a teoria <strong>da</strong>s Formaspo<strong>de</strong>rá resolver (Féd. 95c-100a).Será talvez essa a razão pela qual, para se referir ao mundo sensível como “a<strong><strong>na</strong>tureza</strong>”, no sentido coletivo, o filósofo recorre ao termo ‘genesis’ (sistematicamentecontraposto a ousia), caracterizando, através do uso do verbo gignomai 8 , as coisas que sãogera<strong>da</strong>s e se transformam por efeito <strong>de</strong> uma causa (Ti. 28a, passim).No entanto – como o Timeu insistirá –, esta oposição é justifica<strong>da</strong> pela teoriaabrangente, <strong>de</strong> acordo com a qual o mundo visível é objeto <strong>da</strong> criação por um <strong>de</strong>miurgo. Ajustificação <strong>de</strong>sta <strong>de</strong>cisão divi<strong>na</strong> é apresenta<strong>da</strong> <strong>de</strong> modo circunstanciado.Por ser bom, o <strong>de</strong>miurgo <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> dotar <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> o visível 9 . Para isso cria a almainteligente e esten<strong>de</strong>-a até esta constituir o cosmo visível, contendo-o numa esfera, or<strong>de</strong><strong>na</strong><strong>da</strong>em intervalos harmónicos, <strong>de</strong>finidores <strong>da</strong> or<strong>de</strong>m do Tempo 10 . Subsequentemente, a partir <strong>da</strong>noção <strong>de</strong> espaço, o <strong>de</strong>miurgo or<strong>de</strong><strong>na</strong> e estrutura o corpo do cosmo.6 No Crátilo, o seu objetivo primário é rejeitar a concepção convencio<strong>na</strong>lista dos nomes, proposta porHermógenes.7 I<strong>de</strong>ntifica<strong>da</strong>s no fi<strong>na</strong>l do diálogo como o objeto <strong>da</strong> pesquisa acerca <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong>: Crá. 438e ad fin.8 Ao longo dos diálogos, os dois verbos – ei<strong>na</strong>i (‘ser’) e gignomai (‘<strong>na</strong>scer’, ‘tor<strong>na</strong>r-se’) – são usadosparalelamente para <strong>de</strong>screver os mundos inteligível e visível:“... o que é aquilo que é sempre e não tem geração e aquilo que se gera sempre e nunca é”(Timeu 27d:tradução <strong>de</strong> M. J. Figueiredo, Platão, Timeu, Lisboa 2003); vi<strong>de</strong> infra 37e-38e, para a caracterizaçãolinguística do regime paralelo dos dois verbos).9 Embora esta fi<strong>na</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong> não se ache perfeitamente explicita<strong>da</strong> no texto, a continua<strong>da</strong> referência à or<strong>de</strong>m <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>,que distingue a obra cria<strong>da</strong> pelo <strong>de</strong>miurgo do “visível”, sujeito ao movimento <strong>de</strong>sor<strong>de</strong><strong>na</strong>do, mostrainegavelmente que a cosmogonia do Timeu não po<strong>de</strong> ser encara<strong>da</strong> em termos puramente corpóreos, ou materiais,como é habitual ver referido pela maioria dos comentadores.10 A <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong> como a expansão <strong>da</strong> alma constituiu o cosmo parecerá a muitos fantasiosa. Representa,contudo, a primeira tentativa <strong>de</strong> ultrapassagem do velho “mo<strong>de</strong>lo cosmológico do vórtice”, pelo qual oscontrários emergem <strong>de</strong> uma <strong><strong>na</strong>tureza</strong> origi<strong>na</strong>l, a partir <strong>de</strong> A<strong>na</strong>ximandro aceito pelos Gregos (vi<strong>de</strong> infraAristóteles Física A4,18720-23).20


ANAIS DE FILOSOFIA CLÁSSICA, vol. V nº 9, 2011ISSN 1982-5323SANTOS, José Trin<strong>da</strong><strong>de</strong>Princípios <strong>da</strong> <strong><strong>na</strong>tureza</strong> <strong>na</strong> Física A, <strong>de</strong> Aristóteles: pré-socráticos, PlatãoPrimeiro, recorrendo às formas <strong>de</strong> quatro dos cinco sólidos regulares, esquematiza oselementos, regulando o ciclo <strong>da</strong>s sucessivas mu<strong>da</strong>nças pelas quais passam 11 (Ti. 53b). Or<strong>de</strong><strong>na</strong><strong>de</strong>pois (<strong>na</strong> or<strong>de</strong>m <strong>da</strong> criação, mas não <strong>na</strong> <strong>da</strong> <strong>na</strong>rrativa) aos <strong>de</strong>uses por ele criados queproce<strong>da</strong>m à construção dos corpos <strong>na</strong>turais dos três tipos <strong>de</strong> viventes afins a ca<strong>da</strong> um doselementos restantes: <strong>de</strong> um lado, acham-se os <strong>de</strong>uses imortais, <strong>de</strong> fogo; do outro, os seresmortais que vivem no ar, <strong>na</strong> terra e <strong>na</strong> água (Ti. 41a-d).A <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> uma teologia criacionista do cosmo é confirma<strong>da</strong> <strong>na</strong>s Leis X 889a ss., nocontexto <strong>de</strong> uma abor<strong>da</strong>gem origi<strong>na</strong>l <strong>da</strong> oposição <strong>da</strong> physis à technê 12 . Não só o cosmos <strong>de</strong>veser entendido como uma obra <strong>de</strong> arte produzi<strong>da</strong> por <strong>de</strong>uses existentes por <strong><strong>na</strong>tureza</strong> (890d),como a própria alma – enquanto responsável pela geração dos princípios – <strong>de</strong>ve ela tambémexistir por <strong><strong>na</strong>tureza</strong> (892c).FÍSICA, PSICOLOGIA E TEOLOGIAVale a pe<strong>na</strong> olhar <strong>de</strong> perto esta proposta cosmológica, pois alguns dos seuspressupostos parecerão obscuros 13 . Acima <strong>de</strong> tudo, <strong>de</strong>ve notar-se que a criação <strong>de</strong>miúrgicanão inclui a matéria – <strong>de</strong> todo irrelevante para a proposta platônica –, nem sequer,inicialmente, os corpos (34b). Referido pela expressão “movimentos <strong>de</strong>sor<strong>de</strong><strong>na</strong>dos”, osubstrato que Aristóteles i<strong>de</strong>ntificará com a componente material do cosmos é invocado comomotivação <strong>da</strong> <strong>de</strong>cisão criadora do cosmos vivo (30a, 53a).O que o <strong>de</strong>miurgo cria é a alma e com ela a or<strong>de</strong>m e a fi<strong>na</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. Ao estendêlaem to<strong>da</strong>s as direções a partir do centro, é criado o cosmos “animado” (empsychon, ou seja,“vivo” 14 ) e corpóreo (34b). A partir <strong>da</strong>quilo que Platão consi<strong>de</strong>ra a essência do corpóreo – aque se chamará “espaço” 15 (49a-51b) –, imitando as imagens <strong>da</strong>s Formas, po<strong>de</strong>m então ser11 A respeito dos elementos, a posição platônica é complexa. Platão começa por criticar <strong>de</strong> um ponto <strong>de</strong> vistaontoepistemológico a noção <strong>de</strong> ‘elemento’, bem como a teoria dos quatro elementos, alegando que o fluxo emque se acham envolvidos não permite conferir-lhes o carácter <strong>de</strong> princípios (Ti. 39b-e; ver adiante). Aprofun<strong>da</strong>ain<strong>da</strong> esta crítica, ao mostrar que as Formas dos elementos só po<strong>de</strong>m ser entendi<strong>da</strong>s como cópias <strong>da</strong>s Formasinteligíveis que constituíram o mo<strong>de</strong>lo a partir do qual o cosmo vivo foi gerado (Ti. 52a-d).12 Na sequência é manifesta a intenção <strong>de</strong> castigar a tradição pré-socrática pela “impie<strong>da</strong><strong>de</strong>” <strong>de</strong> ignorar ouintegrar a gênese <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>na</strong> geração do cosmos, explicando-a pela combi<strong>na</strong>ção <strong>da</strong> <strong><strong>na</strong>tureza</strong> com o acaso (889b-890c; vi<strong>de</strong> a síntese <strong>de</strong>stas i<strong>de</strong>ias em Arquelau: DK60A4; Hipól. Ref. I,9,15).13 Já o eram a Aristóteles, como se verá. De resto, Platão toma distância perante o valor <strong>da</strong> sua “<strong>na</strong>rrativaplausível” (30b, 52a-c passim), notando oportu<strong>na</strong>mente que a or<strong>de</strong>m <strong>da</strong> composição escrita não é coerente com a<strong>da</strong>s tarefas do <strong>de</strong>miurgo (34c).14 De resto, só po<strong>de</strong> ser essa a intenção do <strong>de</strong>miurgo. Os adjetivos “bom”, “melhor”, “reles” (phlauron) e ossubstantivos <strong>da</strong> família <strong>de</strong> “or<strong>de</strong>m” (30a) colocam o animado num plano superior ao i<strong>na</strong>nimado. Veja-se a notapassageira: “Deus estava ausente” (53b) do estado pré-cósmico.15 Com os sentidos <strong>de</strong> “lugar” e “meio/contentor”, como se po<strong>de</strong> inferir <strong>da</strong>s sucessivas metáforas a que recorrepara o referir e caracterizar: “região” (chôra), “assento”, “receptáculo”, “ama do <strong>de</strong>vir”, etc.21


ANAIS DE FILOSOFIA CLÁSSICA, vol. V nº 9, 2011ISSN 1982-5323SANTOS, José Trin<strong>da</strong><strong>de</strong>Princípios <strong>da</strong> <strong><strong>na</strong>tureza</strong> <strong>na</strong> Física A, <strong>de</strong> Aristóteles: pré-socráticos, Platãocriados os corpos (51a). Estes, porém, requerem que “os vestígios elementais” sejam“esquematizados por meio <strong>de</strong> Formas e números” (53a-b).Passando do macrocosmos ao microcosmos, Platão lança as bases – que algunsconsi<strong>de</strong>ram míticas 16 – <strong>da</strong> sua cosmologia. No entanto, para que ela possa explicar ofuncio<strong>na</strong>mento do sensível, será necessário, a partir do inteligível, introduzir uma série <strong>de</strong>paradigmas conceituais reguladores <strong>da</strong>s fenomenologias sensíveis. No plano físico, o Tempo 17é o único que Platão conscientemente i<strong>de</strong>ntifica, <strong>da</strong>do que o seu tratamento do espaço recorrea sugestivas metáforas, e o <strong>de</strong> matéria se acha <strong>de</strong> todo ausente. Esta abor<strong>da</strong>gem causa aAristóteles a maior perplexi<strong>da</strong><strong>de</strong> 18 .É, contudo, evi<strong>de</strong>nte que a intenção <strong>da</strong> <strong>de</strong>scrição platônica se limita à tentativa <strong>de</strong>“salvar os fenómenos” <strong>da</strong> <strong><strong>na</strong>tureza</strong>, a<strong>de</strong>quando-os aos pressupostos teóricos <strong>da</strong> suacosmologia, visando em última análise preservar a sua outra intenção, crítica do <strong>na</strong>turalismofisicalista dos pré-socráticos.Este esclarecimento é necessário para compreen<strong>de</strong>r as diferenças que separam ostratamentos platônico e aristotélico <strong>da</strong> physis. Embora o termo e a tradução sejam os mesmos,Platão e Aristóteles estão a falar <strong>de</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong>s inteiramente distintas.ARISTÓTELESAo rejeitar a componente mítica <strong>da</strong> “<strong>na</strong>rrativa plausível” (eikos mythos, eikos logos:Ti. 30b, passim) <strong>de</strong> Platão, o Estagirita anula os seus contornos teológicos e a sua intençãocrítica. O criacionismo vitalista que confere sentido ao Timeu e ao Livro X <strong>da</strong>s Leis éignorado e substituído por uma teoria física que rejeita as Formas platônicas e suprime to<strong>da</strong>sas manifestações do dualismo que distingue os mundos inteligível e sensível (vi<strong>de</strong> Ti. 27d).16 Ver a posição e a bibliografia cita<strong>da</strong> por H. Cherniss, Aristotle’s Criticism of Plato and the Aca<strong>de</strong>my, NewYork 1944, 424 ss.; L Tarán, “The Creation Myth in Plato’s Timaeus”, New Essays in Ancient Greek Philosophy,J. P. Anton, G. L. Kustas (eds.) Albany 1971, 372-407. Ver o sumário <strong>de</strong>stas posições em: A. Vallejo, “No, It’snot a Fiction”, Interpreting the Timaeus-Critias”, T. Calvo, L. Brisson (eds.), Skt. Augustin 1977, 141-164.17 Note-se que o tempo cronológico, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte do tempo cosmológico, começa com o início <strong>da</strong> rotação <strong>da</strong> almacósmica. Na<strong>da</strong> existe, nem <strong>na</strong><strong>da</strong> acontece antes <strong>de</strong>sse momento: o estado pré-cósmico é ape<strong>na</strong>s invocado comojustificação <strong>da</strong> ação do <strong>de</strong>miurgo (vi<strong>de</strong> J. G. T. Santos, ”O Tempo <strong>na</strong> <strong>na</strong>rrativa platônica <strong>da</strong> criação: o Timeu”,Hypnos 18, S Paulo 2007, 42-55).18 Na Física Δ2,209b5-16, a propósito do conceito <strong>de</strong> ‘lugar’, citando a chôra a partir do Timeu, Aristótelesi<strong>de</strong>ntifica-o com a ‘matéria’. No Da alma A3,406b26-407a2, sustenta que o <strong>de</strong>miurgo criou a alma a partir doselementos. Note-se que nem uma, nem outra <strong>de</strong>stas afirmações é confirma<strong>da</strong> pelo Timeu. A segun<strong>da</strong> está erra<strong>da</strong>e a primeira confun<strong>de</strong> a sutil explicação pela qual Platão oscila entre o “em que” e o “<strong>de</strong> que” os corpos sãofeitos, proposta no paradigma do mol<strong>da</strong>dor (49e-51b). Esta posição é coerente com a <strong>de</strong>scrição do “material”pré-cósmico através <strong>da</strong> perífrase “movimentos <strong>de</strong>sor<strong>de</strong><strong>na</strong>dos”.22


ANAIS DE FILOSOFIA CLÁSSICA, vol. V nº 9, 2011ISSN 1982-5323SANTOS, José Trin<strong>da</strong><strong>de</strong>Princípios <strong>da</strong> <strong><strong>na</strong>tureza</strong> <strong>na</strong> Física A, <strong>de</strong> Aristóteles: pré-socráticos, PlatãoNo entanto, embora o não <strong>de</strong>clare, Aristóteles aceita com reservas o princípio<strong>de</strong>termi<strong>na</strong>nte <strong>da</strong> crítica platônica aos pré-socráticos, expresso <strong>na</strong> concepção fi<strong>na</strong>lista <strong>da</strong>i<strong>de</strong>ali<strong>da</strong><strong>de</strong> do ser (Sofista 243-256, Timeu, Filebo). Neste sentido, a linha que vai <strong>de</strong>senvolver<strong>na</strong> Física irá acomo<strong>da</strong>r os dois pólos inconciliáveis <strong>da</strong> reflexão sobre a <strong><strong>na</strong>tureza</strong> <strong>da</strong>s coisas,<strong>na</strong>s abor<strong>da</strong>gens paralelas <strong>da</strong> física e metafísica <strong>da</strong> Natureza.Por um lado, reconhece o movimento <strong>na</strong> <strong><strong>na</strong>tureza</strong>, conferindo aos contrários a funçãoque lhes foi atribuí<strong>da</strong> pela tradição pré-socrática, como princípios <strong>da</strong> constituição e explicaçãofísica. Por outro, insere esta perspectiva física no contexto metafísico <strong>da</strong> substância,reforçando o teleologismo e rejeitando o dualismo platônicos.O seu ponto <strong>de</strong> parti<strong>da</strong> é a <strong><strong>na</strong>tureza</strong> (physis), que o filósofo enten<strong>de</strong> em diversossentidos, dos quais <strong>de</strong>staco três:1. “a gênese <strong>da</strong>s coisas que crescem” (Met. Δ4,1014b16-17);2. “a substância dos seres <strong>na</strong>turais” (Ibid. 36);3. “a substância <strong>da</strong>s coisas que têm o princípio <strong>de</strong> movimento em si mesmas,enquanto tais” (Id. 1015a14-15).To<strong>da</strong>s estas expressões receberão <strong>na</strong> Física A a explicitação e estruturação conceituaisem que assenta a teoria física <strong>de</strong> Aristóteles.OS PRINCÍPIOS DA NATUREZAEstas três citações <strong>de</strong>limitam o problema <strong>de</strong> Aristóteles. Para o abor<strong>da</strong>r, começarei poruma breve exposição <strong>da</strong> Física A, cujo objetivo será <strong>de</strong>finir os conceitos que permitemcompreen<strong>de</strong>r o tratamento aristotélico <strong>da</strong> Natureza. Termi<strong>na</strong>rei com a aplicação <strong>de</strong>stesconceitos à teoria física <strong>de</strong> Aristóteles, cujo estudo concluirei com uma exposição sumária doproblema <strong>da</strong> materia prima, sem o qual a teoria física do Estagirita se mostra inconsistente.Se as substâncias dos seres <strong>na</strong>turais explicam a sua gênese e crescimento, então asubstância <strong>de</strong>ve ser entendi<strong>da</strong> como o “princípio <strong>de</strong> movimento e do repouso” que as fazserem como são. Mantendo o uso do termo como princípio em virtu<strong>de</strong> do qual as coisas são oque são, “enquanto tais”, a análise do Estagirita confere dois sentidos complementares àphysis:1) individualmente, o princípio em virtu<strong>de</strong> do qual ca<strong>da</strong> coisa é aquilo que é(B1,193b32-193a2);23


ANAIS DE FILOSOFIA CLÁSSICA, vol. V nº 9, 2011ISSN 1982-5323SANTOS, José Trin<strong>da</strong><strong>de</strong>Princípios <strong>da</strong> <strong><strong>na</strong>tureza</strong> <strong>na</strong> Física A, <strong>de</strong> Aristóteles: pré-socráticos, Platão2) coletivamente, o conjunto <strong>da</strong>s substâncias que são “por <strong><strong>na</strong>tureza</strong>” (to kata physin, tophysikon, contraposto ao conjunto dos artefatos: ta kata technên, to technikon: Fís.B1,193a30-33).Só em B1 Aristóteles, recorrendo à abor<strong>da</strong>gem <strong>da</strong> <strong><strong>na</strong>tureza</strong> ora como matéria (193a9-27), ora como forma (Ibid. a28-b21), superará, e indiretamente, o não pequeno problema <strong>da</strong><strong>de</strong>finição do conceito englobante <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> física. Sem <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ser fiel à i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que a<strong><strong>na</strong>tureza</strong> é o princípio interno <strong>da</strong>s substâncias <strong>na</strong>turais (1, acima), estabelece a concepçãoenglobante <strong>de</strong> <strong><strong>na</strong>tureza</strong> através <strong>da</strong> oposição do conjunto <strong>da</strong>s coisas <strong>na</strong>turais ao <strong>da</strong>s artificiais(2).Antes do que constitui o ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro começo <strong>da</strong> exposição <strong>da</strong> sua teoria física, no LivroA, Aristóteles confronta-se com os principais problemas que reconhece ter recebido <strong>da</strong>tradição, entre os quais avultam dois. O primeiro é o <strong>de</strong> como, <strong>de</strong> “o que é aquilo que é”, sepo<strong>de</strong> dizer “que é aquilo que não é” 19 .Na abor<strong>da</strong>gem platônica, esse é o duplo problema <strong>da</strong> participação e <strong>da</strong> predicação, queo Mestre <strong>da</strong> Aca<strong>de</strong>mia tinha começado a resolver no Sofista com a sua tese <strong>da</strong> “comunhão dosgêneros 20 ”. O segundo problema – já integralmente aristotélico –, é o <strong>da</strong> gênese <strong>de</strong> “o que éaquilo que é” ora a partir <strong>de</strong> “aquilo que é”, ora <strong>de</strong> “aquilo que não é” 21 (ver adianteA8,191a22-33).A FÍSICA APLANO DO TRATADOO Livro A comporta nove capítulos, que po<strong>de</strong>m ser agrupados em três partes, ca<strong>da</strong> umdos quais <strong>de</strong>senvolvendo um problema específico:19 Se “A é B”, e “é” <strong>de</strong>ve ser lido no sentido predicativo, “A” é diferente <strong>de</strong> “B”. Como po<strong>de</strong> então “B” ser dito<strong>de</strong> “A”, se “A é A” e “B é B”? Aristóteles mostra ter perfeita consciência <strong>de</strong>ste problema <strong>na</strong> sua <strong>de</strong>fesa doprincípio <strong>da</strong> não-contradição. Na Metafísica Γ4,1007a10-b17, mostra que o que distingue substância <strong>de</strong> aci<strong>de</strong>ntebasta para concluir que “haverá algo que significa ‘substância’” e que é <strong>de</strong>la que os aci<strong>de</strong>ntes são ditos (vi<strong>de</strong> Cat.5,4a10-32). Na Física A vai mostrar as razões pelas quais pensa que os que o antece<strong>de</strong>ram nunca pu<strong>de</strong>ramchegar a esta distinção.20 O problema é resolvido no Sofista pela associação <strong>da</strong> predicação à participação, entendi<strong>da</strong> como a relação queestabelece a i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> parcial entre duas enti<strong>da</strong><strong>de</strong>s. O gênero “Ser” é aquele <strong>de</strong> que todos os outros participampara po<strong>de</strong>rem ser, mas não po<strong>de</strong> ser o Mesmo, sob pe<strong>na</strong> <strong>de</strong> ser todos e ca<strong>da</strong> um <strong>de</strong>les (254d-256a). Sendo,portanto, outro em relação a eles, embora todos os outros comunguem <strong>de</strong>le, é também “Não-Ser” (Sof. 256d-258b).21 Se “o que é” é gerado, só po<strong>de</strong> sê-lo a partir <strong>de</strong> “o que é” ou <strong>de</strong> “o que não é”. To<strong>da</strong>via, enquanto <strong>de</strong> “o que é”não há geração – porque é –, <strong>de</strong> “o que não é” a geração é impossível, porque “<strong>na</strong><strong>da</strong> não é” (Parmêni<strong>de</strong>s B6.2a).O problema resi<strong>de</strong> <strong>na</strong> explicação <strong>de</strong> como a geração é possível, partindo <strong>de</strong> uma coisa “que é aquilo que é” paraoutra coisa que igualmente é aquilo que é, sem que <strong>de</strong> nenhuma <strong>de</strong>las se diga que começou a ser, ou <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong>ser, aquilo que é.24


ANAIS DE FILOSOFIA CLÁSSICA, vol. V nº 9, 2011ISSN 1982-5323SANTOS, José Trin<strong>da</strong><strong>de</strong>Princípios <strong>da</strong> <strong><strong>na</strong>tureza</strong> <strong>na</strong> Física A, <strong>de</strong> Aristóteles: pré-socráticos, PlatãoI – A1 (introdução);II – A2-4 (seção histórica: Eleatas – Parméni<strong>de</strong>s e Melisso –; Físicos: A<strong>na</strong>ximandro,Empédocles e A<strong>na</strong>xágoras);III – A5-9 (teoria aristotélica dos princípios <strong>da</strong> <strong><strong>na</strong>tureza</strong>):A5: aceitação <strong>da</strong> tese que <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> que os contrários são princípios;A6: Número dos princípios;A7: Três elementos <strong>da</strong> geração (substrato e contrários); três princípios: matéria, forma,privação;A8: A tradição pré-socrática e a teoria aristotélica <strong>da</strong> geração, a partir do não-ser,segundo o ato e a potência;A9: Matéria e privação; princípios material e formal.INTRODUÇÃO METODOLÓGICAComeçando por uma exposição teórica acerca <strong>da</strong> questão com a qual se confronta (Fís.A1,184a10-b14), Aristóteles abor<strong>da</strong> os dois problemas referidos no primeiro Livro <strong>da</strong> Física.O passo introdutório <strong>de</strong>ixa claro que a questão em apreço é a <strong>de</strong> como os primeiros princípios(184a10-15) e elementos <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s e ca<strong>da</strong> uma <strong>da</strong>s coisas po<strong>de</strong>m ser conhecidos. Tendodistinguido o que é “mais cognoscível para nós” do que é “mais cognoscível por <strong><strong>na</strong>tureza</strong>”,Aristóteles acrescenta:“Inicialmente, são-nos evi<strong>de</strong>ntes e claras sobretudo coisas confusas: <strong>de</strong>pois, a partir<strong>de</strong>las, para aqueles que as discernem, tor<strong>na</strong>m-se conhecidos os elementos e osprincípios. Por isso, é necessário progredir dos universais até os particulares; <strong>de</strong> fato, otodo é mais cognoscível pela sensação, e o universal é um certo todo, pois o universalcompreen<strong>de</strong> muitas coisas como partes” 22 (Fís. 184a21-26)Além <strong>de</strong> apontar o sentido global do processo do conhecimento científico – avançandodos universais em nós para a captação dos universais em si –, o passo constitui os elementoscomo princípios. Deste modo, aponta-os como princípios constitutivos <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> física,caracterizando o seu conhecimento <strong>na</strong> Natureza como o objeto <strong>da</strong> pesquisa em Física (<strong>de</strong>vecomparar-se esta proposta com a posição contrária <strong>de</strong> Platão, no Ti. 49b-e 23 ).22 Tradução (prefácio, introdução e comentários) <strong>de</strong> Lucas Angioni, Aristóteles: Física I-II, Campi<strong>na</strong>s 2009(doravante, Angioni 2009; a obra inclui um rigoroso comentário sequencial <strong>da</strong> Física A-B, indispensável a quembusca o conhecimento do texto e <strong>da</strong>s problemáticas nele trata<strong>da</strong>s). Relativamente à questão do que é “maiscognoscível”, o tradutor e comentador <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> a coerência do pensamento <strong>de</strong> Aristóteles, comparando o passocom os dos Seg. a<strong>na</strong>l. 71b34-72a5 e Met. Z3,1029b3-12.23 Distorci<strong>da</strong> por Aristóteles no Da alma A2,404b16-17; vi<strong>de</strong> Física Δ2,209b5-16.25


ANAIS DE FILOSOFIA CLÁSSICA, vol. V nº 9, 2011ISSN 1982-5323SANTOS, José Trin<strong>da</strong><strong>de</strong>Princípios <strong>da</strong> <strong><strong>na</strong>tureza</strong> <strong>na</strong> Física A, <strong>de</strong> Aristóteles: pré-socráticos, PlatãoNo contexto amplo <strong>da</strong> Natureza, os “universais” são as “substâncias segun<strong>da</strong>s”(Categorias 2-5), as espécies que constituem a estrutura, real e conceitual a um tempo, <strong>da</strong>reali<strong>da</strong><strong>de</strong> em que o Homem se acha inserido. Só mediante o conhecimento dos universais serápossível reconhecer os entes individuais – “substâncias primeiras” –, distinguindo-os <strong>da</strong>sespécies que persistem através <strong>da</strong> geração e morte dos indivíduos.No contexto específico <strong>da</strong> Física, a conclusão a extrair do passo é a <strong>de</strong> que oconhecimento <strong>da</strong> Natureza <strong>de</strong>ve começar pela i<strong>de</strong>ntificação dos princípios, a saber, doselementos que a constituem, por aqueles que os buscam <strong>na</strong> sua investigação <strong>da</strong> Natureza.Estabelecido este ponto prelimi<strong>na</strong>r, A2 abor<strong>da</strong> a questão do número dos princípios, a qualinicia a seção histórica do Livro A (A2-5, A8).OS ELEATAS (A2-3)Para resolver o primeiro dos problemas referidos acima, basta a Aristóteles umasolução lógica: registrar a equivoci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> “é” <strong>na</strong>s duas posições que ocupa <strong>na</strong> frase queatesta a existência e i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> dos seres <strong>na</strong>turais: “é aquilo que é” 24 . Relativamente a umsujeito, “o que é” é a substância; enquanto, como predicado, será atributo, essencial ouaci<strong>de</strong>ntal, <strong>da</strong> substância. Esta crítica é dirigi<strong>da</strong> aos eleáticos, que o Estagirita acusa <strong>de</strong>“dizerem o ser <strong>de</strong> uma só maneira”, <strong>de</strong>nunciando, além <strong>da</strong> confusão do sujeito com opredicado, o erro <strong>de</strong> reduzirem à uni<strong>da</strong><strong>de</strong> do ser a quanti<strong>da</strong><strong>de</strong>, a quali<strong>da</strong><strong>de</strong> (Física A2,185a20-b24), o uno ou o múltiplo, divisível ou indivisível.O segundo problema, porém, é <strong>de</strong> outra <strong><strong>na</strong>tureza</strong>. Requere, além <strong>da</strong> distinção anterior,soluções epistemológicas específicas, que implicam a reformulação crítica <strong>da</strong> estruturaconceitual usa<strong>da</strong> pela tradição. Também aqui a crítica começa por ser dirigi<strong>da</strong> aos eleáticos,para quem o ser é uno e imóvel (Física A2,184b15-16; 185a20-186a3; A3,186a22-187a10),mas também se dirige aos Físicos – sobretudo A<strong>na</strong>xágoras –, que dizem o ser múltiplo esujeito ao movimento/mu<strong>da</strong>nça (ibid. 16-25; A4,187a12-A5,188a18).Contra a doutri<strong>na</strong> eleática que sustenta a uni<strong>da</strong><strong>de</strong> do ser, Aristóteles <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> a tese <strong>de</strong>que “o ser se diz <strong>de</strong> muitas maneiras” (A2,185a20-21). E dá como exemplo o ser, que é quercomo substância, como quali<strong>da</strong><strong>de</strong> ou quanti<strong>da</strong><strong>de</strong>, quer como uno ou múltiplo, e, como uno,24 Permiti<strong>da</strong> pela ambigui<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> forma participial – to on –, que po<strong>de</strong> referir tanto “aquilo” que é, como “o queé” “isso que é”. A dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> é assi<strong>na</strong>la<strong>da</strong> pelo próprio Platão, no Parmêni<strong>de</strong>s e no Timeu, como o “problema doterceiro homem”, conducente ao <strong>da</strong> autopredicação <strong>da</strong>s Formas. Aristóteles faz-lhe referência <strong>na</strong> Metafísica A9 eno tratado Peri i<strong>de</strong>ôn.26


ANAIS DE FILOSOFIA CLÁSSICA, vol. V nº 9, 2011ISSN 1982-5323SANTOS, José Trin<strong>da</strong><strong>de</strong>Princípios <strong>da</strong> <strong><strong>na</strong>tureza</strong> <strong>na</strong> Física A, <strong>de</strong> Aristóteles: pré-socráticos, Platãoquer seja contínuo e divisível; por outro lado, sendo indivisível, este ser será uno e múltiplo,segundo a potência e o ato (A2,185b5-186a3):“Se [o ser] for tanto substância quanto quanti<strong>da</strong><strong>de</strong>, é dois e não um; mas, se for ape<strong>na</strong>ssubstância, o ser não será ilimitado nem terá gran<strong>de</strong>za, pois será uma certaquanti<strong>da</strong><strong>de</strong>” 25 (A2,185b3-5).Em A3, a <strong>de</strong>dução <strong>da</strong> imobili<strong>da</strong><strong>de</strong> do ser <strong>da</strong> tese <strong>da</strong> uni<strong>da</strong><strong>de</strong> é refuta<strong>da</strong> pela introdução<strong>da</strong> terminologia cria<strong>da</strong> para <strong>da</strong>r conta do <strong>de</strong>vir (metabolê) no ser, pelo qual Aristótelesdistingue a alteração (alloiôsis) <strong>da</strong> geração e corrupção (genesis kai phthora). A distinçãocorrige os erros <strong>de</strong> Melisso, que atribui princípio ape<strong>na</strong>s ao que po<strong>de</strong> ser gerado, enten<strong>de</strong>ndoosegundo a [i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>] coisa e não segundo o tempo, <strong>de</strong>sse modo reduzindo to<strong>da</strong> aalteração à geração propriamente dita (A3,186a10-15).Outro erro <strong>de</strong> Melisso consistirá em <strong>de</strong>duzir a imobili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> uni<strong>da</strong><strong>de</strong>, ignorando quetambém a parte é u<strong>na</strong> 26 (186a16). Pois, o ser po<strong>de</strong> ser uno, segundo a forma, e múltiplo,segundo a matéria, sofrendo alteração aqui ou ali, agora ou <strong>de</strong>pois, <strong>de</strong> acordo com a oposiçãodos contrários (Ibid. 16-21).Valendo o mesmo argumento contra Parmêni<strong>de</strong>s, Aristóteles argumenta: que o sercuja forma é u<strong>na</strong> não <strong>de</strong>ixa por isso <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r ser materialmente muitos; que o ser po<strong>de</strong> serpredicado e aquilo <strong>de</strong> que é predicado, contrariamente à suposição <strong>de</strong> que o ser significa o uno(186a26-b3). Fi<strong>na</strong>lmente, se o ser enquanto ser não é atributo, mas pelo contrário tudo lhe éatribuído, por que razão essa atribuição não caberá ao não-ser? Ora, se o ser é ape<strong>na</strong>s sujeito,a sua essência não é como o ser, sendo portanto não-ser. Por outro lado, se o ser é como o ser,significa mais coisas e não ape<strong>na</strong>s uma 27 (186b4-11; 187a1-10).25 Angioni 2009, com peque<strong>na</strong>s modificações; as mais relevantes residindo <strong>na</strong> tradução <strong>da</strong>s formas <strong>de</strong> ei<strong>na</strong>i peloverbo ‘ser’ (e não ‘haver’); e por “seres” em vez <strong>de</strong> “entes”.Esta crítica atinge o coração <strong>da</strong> argumentação eleática, sendo também váli<strong>da</strong> para a teoria platônica <strong>da</strong>sFormas. A ambigui<strong>da</strong><strong>de</strong> do particípio grego, que permite ler “o ser” como sujeito e predicado, evi<strong>de</strong>ncia aimpossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> o tomar simultaneamente como classe <strong>da</strong>s coisas que são e a proprie<strong>da</strong><strong>de</strong> comum a todos osmembros <strong>da</strong> classe, que justifica a sua inclusão nela.26 Pois, também qualquer um entre muitos seres é uno. Se houver muitos, todos serão unos, sem que <strong>da</strong>í resulteterem <strong>de</strong> ser imóveis/imutáveis.27 O problema <strong>da</strong> “significação” do ser – <strong>de</strong> todo alheio a Parmêni<strong>de</strong>s – reduz-se ao <strong>da</strong> uni<strong>da</strong><strong>de</strong> do camposemântico do verbo ‘ser’. Se o ser tem um significado único, por exemplo, <strong>na</strong> frase “o ser é ser”, tanto o não-seré (a saber, um certo não-ser é não-ser), como o ser não é (“um certo ser”). Bem à maneira <strong>de</strong> Górgias, a frasepermite extrair <strong>de</strong>la duas consequências absur<strong>da</strong>s e contraditórias (187a3-10; vi<strong>de</strong> Górgias DK68B3a: DeMelisso, Xenophane, Gorgia 5.25-28; 979a25-28).Em todos estes argumentos, Aristóteles onera Parmêni<strong>de</strong>s com a falácia <strong>de</strong> justificar a uni<strong>da</strong><strong>de</strong> do serpela uni<strong>da</strong><strong>de</strong> do significado do termo (Angioni 2009, 102-105), quando o que ocorre é o inverso. A uni<strong>da</strong><strong>de</strong> docampo semântico <strong>de</strong> “é” po<strong>de</strong>rá ser justifica<strong>da</strong> pelo argumento que o opõe a “não é”, consi<strong>de</strong>rado incognoscível(Parmêni<strong>de</strong>s B2.2-8).27


ANAIS DE FILOSOFIA CLÁSSICA, vol. V nº 9, 2011ISSN 1982-5323SANTOS, José Trin<strong>da</strong><strong>de</strong>Princípios <strong>da</strong> <strong><strong>na</strong>tureza</strong> <strong>na</strong> Física A, <strong>de</strong> Aristóteles: pré-socráticos, PlatãoO SENTIDO DAS CRÍTICAS AOS ELEÁTICOSSe é indubitável que o objetivo <strong>da</strong>s críticas <strong>de</strong> Aristóteles aos Eleatas é <strong>de</strong>nunciar anuli<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> sua contribuição para a investigação <strong>da</strong> Natureza 28 , é lícito perguntar por que lhes<strong>de</strong>dica atenção. A resposta a esta pergunta colhe-se logo a seguir, <strong>na</strong> Física A, quando, nocurso <strong>da</strong> exposição <strong>da</strong>s teorias físicas <strong>de</strong> A<strong>na</strong>xágoras, o Estagirita revela quanto nelas sereflete a aceitação <strong>da</strong> argumentação eleática sobre o ser.Esta observação sugere que Aristóteles lê Parmêni<strong>de</strong>s <strong>na</strong> tradição <strong>da</strong> qual ele próprio éo termo, mais do que <strong>na</strong> letra do Poema, pois, se to<strong>da</strong> a argumentação do Da <strong><strong>na</strong>tureza</strong> é alheiaa uma perspectiva cosmológica, pelo contrário, as obras dos pós-eleáticos importam osargumentos eleáticos para o contexto do mundo físico 29 .Já a acusação <strong>de</strong> que Parmêni<strong>de</strong>s diz o ser “<strong>de</strong> uma só maneira” 30 (Fís. A3,186a-187a3ss.; Met. B4,1001a29 ss., N2,1089a2 ss.; Alexandre, metaph. 44,10 s.: vi<strong>de</strong> DK28A27)proce<strong>de</strong> no Poema a partir <strong>da</strong> oposição do ser ao não-ser; este último i<strong>de</strong>ntificado com <strong>na</strong><strong>da</strong>(Met. A5,986b29). Contudo, se <strong>na</strong><strong>da</strong> liga o ser <strong>de</strong> Parmêni<strong>de</strong>s à Natureza, é claro que não é noDa <strong><strong>na</strong>tureza</strong>, mas nos fragmentos dos eleáticos e póseleáticos que, <strong>da</strong> uni<strong>da</strong><strong>de</strong> semântica doverbo ‘ser’, são extraí<strong>da</strong>s:1. a proibição <strong>da</strong> geração/corrupção e <strong>da</strong> multiplici<strong>da</strong><strong>de</strong> no mundo físico (Fís.A8,191a24 ss.: DK28A24);2. a <strong>de</strong>fesa <strong>da</strong> uni<strong>da</strong><strong>de</strong> e imobili<strong>da</strong><strong>de</strong>/imutabili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> <strong><strong>na</strong>tureza</strong> (Met. A3,984a27 ss.:id.).O texto <strong>da</strong> Física documenta a relevância <strong>de</strong>stas duas teses para as críticas queAristóteles en<strong>de</strong>reça a Parmêni<strong>de</strong>s 31 . No entanto, por nenhuma <strong>de</strong>las o Eleata é responsável,To<strong>da</strong>via, o argumento proce<strong>de</strong> <strong>de</strong> premissas linguísticas e epistemológicas, por alegar a impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong>do conhecimento <strong>de</strong> algo cuja i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> é nega<strong>da</strong> (aquilo a que Aristóteles chama “nome in<strong>de</strong>finido”: Dainterpretação 16a30-33), mantendo-se <strong>de</strong> todo alheio à reali<strong>da</strong><strong>de</strong> física.28 Note-se que logo em 185a12-13 Aristóteles afirma:“Para nós, consi<strong>de</strong>re-se estabelecido que que as coisas que são por <strong><strong>na</strong>tureza</strong>, ou to<strong>da</strong>s elas ou algumas,são suscetíveis <strong>de</strong> movimento” (Angioni 2009).Nesta <strong>de</strong>claração <strong>de</strong> Aristóteles está implícita a rejeição <strong>da</strong>s duas teses pelas quais os Eleatas sãoreconheci<strong>da</strong>mente responsáveis: as <strong>da</strong> uni<strong>da</strong><strong>de</strong> e imobili<strong>da</strong><strong>de</strong> do ser.29 Ver em J. T. Santos, “Presença <strong>da</strong> i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> eleática <strong>na</strong> filosofia grega clássica”, Jour<strong>na</strong>l of AncientPhilosophy III, 2009,2, 1-41 (www.filosofiaantiga.com), a <strong>de</strong>fesa <strong>da</strong> tese segundo a qual “o que é”, no Poema <strong>de</strong>Parmêni<strong>de</strong>s, não se refere ao mundo físico. De acordo com esta interpretação, a responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong> por conferir aomundo físico os “atributos” do ser enumerados em B8 cabe às cosmologias póseleáticas.30 Em particular, ao tomar o ser como sujeito e predicado (“substância, vs. quali<strong>da</strong><strong>de</strong> e quanti<strong>da</strong><strong>de</strong>”: Fís. 185a20-b4).31 A segun<strong>da</strong> tese é objeto <strong>de</strong> atura<strong>da</strong> crítica em A2-3. A primeira constitui o tópico que inicia a exposição sobreA<strong>na</strong>xágoras.28


ANAIS DE FILOSOFIA CLÁSSICA, vol. V nº 9, 2011ISSN 1982-5323SANTOS, José Trin<strong>da</strong><strong>de</strong>Princípios <strong>da</strong> <strong><strong>na</strong>tureza</strong> <strong>na</strong> Física A, <strong>de</strong> Aristóteles: pré-socráticos, Platãose não há motivo para supor que aos “atributos” do ser, enumerados em B8, correspon<strong>da</strong> anegação <strong>de</strong> fatos ou proprie<strong>da</strong><strong>de</strong>s do mundo físico. Feita esta reserva, <strong>de</strong>ve, contudo, notar-seque a oposição do ser ao não-ser 32 – capital em B2.2-8 –, registra<strong>da</strong> <strong>na</strong> Met. A5,986b28-31,merece uma chama<strong>da</strong> <strong>de</strong> atenção.No fi<strong>na</strong>l do passo, sem transição – tal como fará <strong>na</strong> Física (A5,188a20-22: veradiante) –, Aristóteles passa a referir-se a tópicos constitutivos <strong>da</strong>s “opiniões dos mortais”(B8.51-61). Sustenta aí que, embora Parmêni<strong>de</strong>s pense que <strong>na</strong><strong>da</strong> existe além do ser –“... obrigado a seguir os fenômenos e a opi<strong>na</strong>r que o uno é segundo o logos, e múltiplo,segundo as sensações” –,distingue duas causas e princípios: o quente e o frio, ou o fogo e a terra –, alinhandouns do lado do ser, outros, do não ser (Met. A5,986b27-987a2; vi<strong>de</strong> G. C. A3,318b6-7,B3,330b13-15: DK28A35).No entanto, parece que, longe <strong>de</strong> querer confundir ou transformar o monismo eleáticonum dualismo – entrando em flagrante contradição com a linha domi<strong>na</strong>nte <strong>da</strong> sua crítica –,Aristóteles visa a apontar a distinta proveniência <strong>de</strong> um e <strong>de</strong> outro. A sua intenção é mostrarque, enquanto o primeiro se restringe à teoria epistêmica, o segundo é requerido para <strong>da</strong>rconta <strong>da</strong> diversi<strong>da</strong><strong>de</strong> dos fenômenos. Na sua perspectiva, a argumentação monista aspiraape<strong>na</strong>s a fornecer as condições <strong>de</strong> compreensão do real e não a <strong>de</strong>screvê-lo. Por isso mesmo,<strong>na</strong> sequência <strong>da</strong> citação <strong>de</strong> B16, <strong>de</strong> Parmêni<strong>de</strong>s, em <strong>de</strong>fesa do princípio <strong>da</strong> contradição, oEstagirita observa que os filósofos:“... investigaram a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> acerca dos seres, mas consi<strong>de</strong>ram seres ape<strong>na</strong>s ossensíveis, e nestes em muito inere a <strong><strong>na</strong>tureza</strong> do in<strong>de</strong>termi<strong>na</strong>do e a do ser...” (Met.Γ5,1010a2-4).Que sentido atribuir a esta última observação? Creio que Aristóteles quer apontaraquele problema que consi<strong>de</strong>ra nuclear <strong>da</strong> investigação do mundo físico. Todos os pensadoresque o antece<strong>de</strong>ram tentaram explicar a <strong><strong>na</strong>tureza</strong> <strong>da</strong>s coisas conjugando princípios <strong>de</strong> or<strong>de</strong>mdistinta, quando não oposta. Enquanto, <strong>de</strong> um lado, colocaram o princípio metafísico que lhespermitia conce<strong>de</strong>r uni<strong>da</strong><strong>de</strong> e regulari<strong>da</strong><strong>de</strong> à Natureza, do outro, puseram o princípio materialconstitutivo dos corpos.Desta abor<strong>da</strong>gem resultou o problema que afeta to<strong>da</strong>s as suas tentativas, a saber, o <strong>da</strong>irredutibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> in<strong>de</strong>termi<strong>na</strong>ção <strong>da</strong> matéria à inteligibili<strong>da</strong><strong>de</strong> do ser (acima aludi<strong>da</strong>s).32 Esta crítica é o “cavalo <strong>de</strong> batalha” <strong>de</strong> Aristóteles em A3: se ser e não-ser não se opusessem em bloco, seriapossível falar <strong>de</strong> “um certo ente” no Da <strong><strong>na</strong>tureza</strong> (vi<strong>de</strong> a expressão no argumento iniciado em A3,186b2-3).29


ANAIS DE FILOSOFIA CLÁSSICA, vol. V nº 9, 2011ISSN 1982-5323SANTOS, José Trin<strong>da</strong><strong>de</strong>Princípios <strong>da</strong> <strong><strong>na</strong>tureza</strong> <strong>na</strong> Física A, <strong>de</strong> Aristóteles: pré-socráticos, PlatãoSublimi<strong>na</strong>rmente, o Estagirita está a dizer aos seus leitores que é este mesmo problema que asua concepção <strong>da</strong> investigação física vai afrontar e resolver com sucesso através <strong>da</strong> propostado hilemorfismo.OS FÍSICOSPor isso, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter <strong>de</strong>nunciado os vícios e a i<strong>na</strong><strong>de</strong>quação <strong>da</strong> argumentação eleática,entre A4 e e A6, a Física A se entrega à abor<strong>da</strong>gem do estudo dos Físicos, propriamente ditos.Elimi<strong>na</strong><strong>da</strong> a argumentação que constrangia o ser à uni<strong>da</strong><strong>de</strong> e imobili<strong>da</strong><strong>de</strong>, a próxima tarefa <strong>da</strong>análise é <strong>da</strong>r conta <strong>da</strong> ca<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s que o eleatismo fazia constitutivas <strong>da</strong> Natureza: atríplice proibição:– <strong>da</strong> <strong>de</strong>rivação do múltiplo a partir do uno, e vice-versa;– do movimento a partir do repouso, e vice-versa;– <strong>da</strong> gênese tanto a partir do ser, quanto do não-ser.O seu ponto <strong>de</strong> parti<strong>da</strong> é a divisão dos estudiosos <strong>da</strong> <strong><strong>na</strong>tureza</strong> quanto ao número e<strong><strong>na</strong>tureza</strong> dos contrários:“Alguns, fazendo um só o corpo subjacente – ou um dos três, ou outro, mais <strong>de</strong>nso queo fogo, porém mais sutil que o ar –, geram as outras coisas, fazendo-as muitas, por<strong>de</strong>nsi<strong>da</strong><strong>de</strong> e rareza (estas são contrárias e, em geral, são excesso e falta, como Platãoconcebe o gran<strong>de</strong> e o pequeno, embora ele faça <strong>de</strong> tais coisas matéria, e do um forma,ao passo que os outros fazem do um, do subjacente, matéria, e dos contráriosdiferenças e formas). Outros geram as diversas coisas por discrimi<strong>na</strong>r, <strong>de</strong> uma sócoisa, as contrarie<strong>da</strong><strong>de</strong>s lá inerentes, como A<strong>na</strong>ximandro 33 ...” (Fís. A4,187a12-21).Aristóteles divi<strong>de</strong> os Físicos em dois grupos: o dos que partem <strong>de</strong> um dos contrários eo dos que partem <strong>da</strong> mistura. Descartando os primeiros – presumivelmente os outros Milésios–, sem se referir à teoria cósmica do vórtice, que explica a emergência dos contrários a partirdo apeiron ou <strong>da</strong> mistura 34 , liga A<strong>na</strong>ximandro a Empédocles e A<strong>na</strong>xágoras.O seu objetivo é, nos dois últimos citados, assi<strong>na</strong>lar a releitura dos postulados jônicosque, por influência <strong>da</strong> argumentação eleática, se obrigam a fazer. A proibição <strong>da</strong> geração apartir do não-ser e <strong>da</strong> corrupção no não-ser (Empédocles B11.2,. B12.1; A<strong>na</strong>xágoras B17)reduz a mu<strong>da</strong>nça ao estatuto <strong>de</strong> mera aparência, “salva” pela or<strong>de</strong>m imutável do ser (ver,Melisso B8).33 Angioni 2009.34 Vejam-se as referências ao “turbilhão” que terá provocado a emergência dos contrários (por exemplo, emA<strong>na</strong>xágoras B12, e <strong>na</strong> doxografia dos Atomistas).30


ANAIS DE FILOSOFIA CLÁSSICA, vol. V nº 9, 2011ISSN 1982-5323SANTOS, José Trin<strong>da</strong><strong>de</strong>Princípios <strong>da</strong> <strong><strong>na</strong>tureza</strong> <strong>na</strong> Física A, <strong>de</strong> Aristóteles: pré-socráticos, PlatãoEmbora aceite a teoria jônica, segundo a qual os contrários “emergem a partir <strong>de</strong>” 35(ekkrinesthai: A4,187a10-11, 13) uma substância origi<strong>na</strong>l, A<strong>na</strong>xágoras – bem como “todos osfísicos” – a<strong>de</strong>re à argumentação eleática que o impe<strong>de</strong> <strong>de</strong> aceitar a geração a partir do não-ser(Ibid. 26-35). Para a ultrapassar, propõe a tese <strong>de</strong> que as substâncias “provêm <strong>de</strong> entes jáinerentes” <strong>na</strong> mistura origi<strong>na</strong>l, “mas imperceptíveis a nós <strong>de</strong>vido à pequenez dos volumes” 36(Ibid. 31-32, 35-37; vi<strong>de</strong> A<strong>na</strong>xágoras DK59B3).No entanto, após a crítica circunstancia<strong>da</strong> <strong>da</strong>s opiniões <strong>de</strong> A<strong>na</strong>xágoras (A4,187b7-188a18), alarga<strong>da</strong>, em A5, a todos os Físicos 37 , Aristóteles, concor<strong>da</strong>ndo com eles, tor<strong>na</strong> ainsistir em apontar os contrários como os princípios <strong>de</strong> que se <strong>de</strong>ve partir para explicar agênese (A5,188a26-30; 188b26-189a10 38 ). Justifica o seu assentimento pela distinção, atrásaponta<strong>da</strong>, entre a alteração e a geração e corrupção, incluindo entre os contrários osintermediários nos processos <strong>de</strong> geração e corrupção. Po<strong>de</strong> então concluir:“....tudo o que vem a ser provém dos contrários, bem como tudo que se corrompe secorrompe nos contrários (e em seus intermediários)” (188b22-24).No entanto, antes <strong>de</strong> abor<strong>da</strong>r a exposição <strong>da</strong> teoria que Aristóteles vai propor, adistinção entre geração/corrupção e alteração merece um comentário aprofun<strong>da</strong>do que obrigaa exami<strong>na</strong>r resumi<strong>da</strong>mente a proposta física <strong>de</strong> A<strong>na</strong>xágoras.A FÍSICA DA ANAXÁGORASPo<strong>de</strong>rá perguntar-se por que inci<strong>de</strong> em A<strong>na</strong>xágoras o foco <strong>da</strong> crítica <strong>de</strong> Aristóteles.Sugeri atrás que a resposta a esta pergunta começa a ser <strong>de</strong>fini<strong>da</strong> <strong>na</strong>s críticas apresenta<strong>da</strong>s aParmêni<strong>de</strong>s. Se o ser eleático correspon<strong>de</strong> ao mundo físico, a ele se aplicam, por um lado,tanto os argumentos a favor <strong>da</strong> uni<strong>da</strong><strong>de</strong> e imobili<strong>da</strong><strong>de</strong>/imutabili<strong>da</strong><strong>de</strong> do ser; quanto, por outro,a proibição <strong>da</strong> geração e corrupção a partir do ser ou do não-ser.35 Na tradução cita<strong>da</strong>: “discrimi<strong>na</strong>m”. O verbo ekkrinesthai, do qual se propõem duas traduções, recorreconstantemente ao longo <strong>de</strong> to<strong>da</strong> a crítica a A<strong>na</strong>xágoras.36 Angioni 2009.37 Nos quais estranhamente inclui Parmêni<strong>de</strong>s, a quem, como se viu, atribui uma cosmologia dualista (Fís.A5,188a20-22). Mas a “estranheza” po<strong>de</strong>rá ter a explicação atrás referi<strong>da</strong> (vi<strong>de</strong> Aristóteles Do céu Γ1,298b19-25, GC A8,325a13-23: DK28A25; Plutarco Adv. Col. 13, p. 1114D; Simplício fís. 38,20; 25,15: DK28A34).Vi<strong>de</strong> ain<strong>da</strong> J. T. Santos, “Presença <strong>da</strong> i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> eleática ...”, www.filosofiaantiga.com.38 Neste passo, Aristóteles compara as espécies <strong>de</strong> contrários (p. ex. “quente/frio”, “raro-<strong>de</strong>nso”), regressando àdistinção introdutória a A, entre “mais cognoscíveis” pela Razão ou pela sensação. O ponto mais sutil <strong>da</strong> suaanálise resi<strong>de</strong> <strong>na</strong> a<strong>na</strong>logia que une os Físicos em torno <strong>da</strong> contrarie<strong>da</strong><strong>de</strong>, mesmo quando apontam diferentesespécies <strong>de</strong> contrários. Creio que por <strong>de</strong>trás <strong>de</strong>ste ponto se acha a importante tese proposta adiante segundo aqual “a <strong><strong>na</strong>tureza</strong> que está subjacente po<strong>de</strong> ser reconheci<strong>da</strong> por a<strong>na</strong>logia” (A7,191a7-8; ver a nota sobre a“matéria prima”, em Angioni 2009, 163-165). Tal como, no que respeita ao substrato – a matéria –, os contráriospo<strong>de</strong>m ser reconhecidos por a<strong>na</strong>logia.31


ANAIS DE FILOSOFIA CLÁSSICA, vol. V nº 9, 2011ISSN 1982-5323SANTOS, José Trin<strong>da</strong><strong>de</strong>Princípios <strong>da</strong> <strong><strong>na</strong>tureza</strong> <strong>na</strong> Física A, <strong>de</strong> Aristóteles: pré-socráticos, PlatãoÉ com estas dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s que os póseleatas têm <strong>de</strong> se confrontar, se quiserem explicaro mundo físico aceitando os argumentos eleáticos, sendo <strong>de</strong>las que <strong>na</strong>sce a série <strong>de</strong> problemasontológicos e epistemológicos, domi<strong>na</strong>ntes <strong>na</strong>s filosofias <strong>de</strong> Platão e <strong>de</strong> Aristóteles:1. o uno e o múltiplo;2. o <strong>de</strong>vir;3. a geração e corrupção.Quanto a estes problemas, há que registrar as tentativas <strong>de</strong> solução propostas tanto porEmpédocles, quanto por A<strong>na</strong>xágoras. No seu Poema Da <strong><strong>na</strong>tureza</strong>, o Agrigentino <strong>na</strong>rra a“dupla história” <strong>de</strong> quatro elementos eternos e divinos que estruturam um cosmos domi<strong>na</strong>dopor processos <strong>de</strong> combi<strong>na</strong>ção e separação 39 . Mas o Ab<strong>de</strong>rita consegue propor uma teoriafísica consistente, que po<strong>de</strong> ser fixa<strong>da</strong> em quatro princípios básicos, repeti<strong>da</strong>mente expressosnos fragmentos:1. “tudo está em tudo” (DK59B6), “as coisas 40 (chrêmata) estão to<strong>da</strong>s juntas” (B1,B4, B6, B8, B11, B12);2. “nenhuma coisa <strong>na</strong>sce ou perece: [to<strong>da</strong>s] se misturam ou separam <strong>de</strong> coisasexistentes” (B17: vi<strong>de</strong> B2, B6, B7, B9, B13, B16);3. to<strong>da</strong>s as coisas são infinitamente divisíveis e componíveis (B3, B6);4. “ca<strong>da</strong> coisa é e era [as coisas] mais manifestas que nela há 41 ” (B12, fi<strong>na</strong>l).A conjugação dos três primeiros princípios <strong>de</strong>screve uma or<strong>de</strong>m cósmica <strong>na</strong> qual “ascoisas” constantemente se estão a separar <strong>da</strong> mistura e a regressar a ela. Contudo, para que talestado seja compreensível, respeitando os argumentos eleáticos (2, acima), é necessáriopostular que as coisas são constituí<strong>da</strong>s por partículas infinitamente divisíveis (3), em ca<strong>da</strong>uma <strong>da</strong>s quais existem partículas <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as outras (1).É por essa razão que as coisas nunca po<strong>de</strong>m ser reduzi<strong>da</strong>s a mínimos (3) nos quais asua i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> se <strong>de</strong>fi<strong>na</strong> ontologicamente 42 . No entanto, se “tudo está em tudo” (B6), para que39 Na Física, Aristóteles não faz uso <strong>de</strong>sta <strong>na</strong>rrativa mítica, embora refira alguns dos seus aspectos <strong>na</strong> Metafísicae, no Da geração e corrupção (A3,317a-A4,320a5) use os <strong>da</strong>dos que recolhe <strong>de</strong>le para distinguir os doisprocessos físicos que caracterizam o <strong>de</strong>vir, <strong>da</strong> “geração e corrupção” e <strong>da</strong> “alteração”. Note-se que, no fi<strong>na</strong>l <strong>da</strong>seção <strong>de</strong>dica<strong>da</strong> a A<strong>na</strong>xágoras (Fís. A4), Aristóteles mencio<strong>na</strong> Empédocles para expressar a sua preferência pelaescolha dos quatro elementos como princípios (188a17-18). Por outro lado, no Da alma, aproveita-o no contextopsicológico.40 “Coisa” (chrêma) é o termo escolhido por A<strong>na</strong>xágoras, nos diversos fragmentos, para <strong>de</strong>sig<strong>na</strong>r os diferentesagregados corpóreos existentes no mundo. A escolha <strong>de</strong> um termo vago, mas específico, em vez do artigo neutrohabitualmente utilizado para referir “as coisas que são” (ta eonta: Parmêni<strong>de</strong>s B7.1; ta onta: Platão) é reveladora<strong>da</strong> intenção <strong>de</strong> distinguir <strong><strong>na</strong>tureza</strong>s físicas com características próprias.41 A frase completa é: “Nenhuma outra coisa é igual a <strong>na</strong><strong>da</strong>, mas, <strong>da</strong>s coisas que há mais numa, ca<strong>da</strong> uma é e era[as coisas] mais manifestas que nela há”.32


ANAIS DE FILOSOFIA CLÁSSICA, vol. V nº 9, 2011ISSN 1982-5323SANTOS, José Trin<strong>da</strong><strong>de</strong>Princípios <strong>da</strong> <strong><strong>na</strong>tureza</strong> <strong>na</strong> Física A, <strong>de</strong> Aristóteles: pré-socráticos, Platãoqualquer coisa possa se distinguir <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as outras, há necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> postular ain<strong>da</strong> umoutro princípio. É essa a função <strong>da</strong> “tese <strong>da</strong> predominância” (4: expressa <strong>na</strong> frase que encerraB12), segundo a qual ca<strong>da</strong> coisa é aquilo que nela mais há 43 .A CRÍTICA DE ARISTÓTELES A ANAXÁGORASNem sempre é fácil perceber on<strong>de</strong> quer Aristóteles chegar com as críticas que faz aosseus pre<strong>de</strong>cessores, embora seja sempre mais difícil perceber o que aproveita <strong>de</strong>les do que oque rejeita <strong>na</strong>s suas teses. No caso <strong>de</strong> A<strong>na</strong>xágoras, é claro que rejeita em bloco os quatroprincípios, embora aceite parcialmente os dois últimos e as suas implicações.Isso nota-se pelas duas menções do princípio <strong>da</strong> predominância, que no Ab<strong>de</strong>rita é tãopontual e passageira que dá para perguntar se alguém lhe conferiria importância, não fosse aatenção que Aristóteles lhe confere <strong>na</strong> Física. É <strong>de</strong>le que Aristóteles retira a revolucionáriai<strong>de</strong>ia – se pensarmos no Timeu platônico – <strong>de</strong> que aquilo que uma coisa é é aquilo que nela(mais) há. É claro que A<strong>na</strong>xágoras está a pensar em “coisas”. Mas o Estagirita não po<strong>de</strong>contentar-se com essa noção in<strong>de</strong>fini<strong>da</strong>. O seu problema consiste então em i<strong>de</strong>ntificar a<strong><strong>na</strong>tureza</strong> <strong>da</strong>s “coisas” 44 , orientando-se para o conceito, inteiramente novo, <strong>da</strong> matéria que asconstitui.O futuro <strong>da</strong> ciência física acha-se encapsulado nesta tese. Não é, porém, possívelcompreen<strong>de</strong>r o seu alcance <strong>na</strong> Física sem prestar atenção ao contexto metafísico em que vaiser inseri<strong>da</strong>. Sem fazer referência ao termo, Aristóteles vai empreen<strong>de</strong>r uma profun<strong>da</strong>reformulação <strong>da</strong>s <strong><strong>na</strong>tureza</strong>s a que A<strong>na</strong>xágoras chama ‘coisas’.Depois <strong>de</strong> algumas objeções à “inerência”, “imanência”, “discrimi<strong>na</strong>ção” eimplicitamente à “geração” 45 , Aristóteles concentra-se no que é para ele o problema capital:42 Aristóteles observa com agu<strong>de</strong>za que a “discrimi<strong>na</strong>ção” (ekkrisis) não po<strong>de</strong> termi<strong>na</strong>r <strong>de</strong> forma a que “ca<strong>da</strong>coisa se encontre em ca<strong>da</strong> coisa” (Angioni 2009), contrariamente ao princípio <strong>de</strong> que “tudo está em tudo”(187b30-31).43 As versões aristotélicas <strong>da</strong> tese <strong>de</strong> A<strong>na</strong>xágoras interpretam-<strong>na</strong> sem a distorcer. O superlativo “maismanifestas” (endêlotata) é explorado <strong>de</strong> uma perspectiva epistemológica:“[as coisas] que diferem parecem e são chama<strong>da</strong>s diferentes (hetera) pelo que exce<strong>de</strong> <strong>na</strong> mistura dosinfinitos umas <strong>da</strong>s outras” (187b2-4); “... as coisas estão to<strong>da</strong>s umas <strong>na</strong>s outras e as que estão <strong>de</strong>ntro(“estão inerentes”: Angioni 2009) não se geram, mas separam-se, sendo chama<strong>da</strong>s pela [sua] maiorparte...” (187b22-24).44 Dois conceitos operatórios se <strong>de</strong>stacam <strong>da</strong> aplicação <strong>de</strong>ste princípio: o <strong>de</strong> uma ‘matéria’ constituinte <strong>da</strong>s coisase o <strong>da</strong> ‘existência’ <strong>de</strong>ssa matéria <strong>na</strong>s coisas. As consequências <strong>da</strong> interação <strong>de</strong>stes conceitos vão ser<strong>de</strong>termi<strong>na</strong>ntes <strong>da</strong> formação <strong>da</strong> física <strong>de</strong> Aristóteles e do futuro <strong>da</strong> discipli<strong>na</strong>.45 As traduções são <strong>de</strong> Angioni 2009.33


ANAIS DE FILOSOFIA CLÁSSICA, vol. V nº 9, 2011ISSN 1982-5323SANTOS, José Trin<strong>da</strong><strong>de</strong>Princípios <strong>da</strong> <strong><strong>na</strong>tureza</strong> <strong>na</strong> Física A, <strong>de</strong> Aristóteles: pré-socráticos, Platão“No entanto, que jamais haverão <strong>de</strong> estar discrimi<strong>na</strong>dos [a carne, o sangue, a medula],embora não se afirme consabi<strong>da</strong>mente, afirma-se <strong>de</strong> modo correto, pois as afeções sãoinseparáveis” (A4,188a6-7 46 ).Aristóteles quer dizer que A<strong>na</strong>xágoras tem razão, mas não sabe o que está a dizer! Achave <strong>da</strong> crítica acha-se <strong>na</strong> distinção implícita entre as “afeções” (Met. Δ21,1022b15-21) e osconstituintes em que inerem. Sendo “quali<strong>da</strong><strong>de</strong>s”, as afeções não po<strong>de</strong>m ser separa<strong>da</strong>s <strong>da</strong>s<strong><strong>na</strong>tureza</strong>s em que inerem – pelo que a sua discrimi<strong>na</strong>ção po<strong>de</strong>rá prosseguir in<strong>de</strong>fini<strong>da</strong>mentesem que acabem por se resolver nos seus constituintes 47 –, embora, pelo contrário, as<strong><strong>na</strong>tureza</strong>s, pelo fato <strong>de</strong> serem o que se manifesta separa<strong>da</strong>mente, sempre se resolvem nos seusconstituintes 48 . Por outro lado, pelo fato <strong>de</strong> se manifestarem separa<strong>da</strong>mente, estas não po<strong>de</strong>mser vistas ape<strong>na</strong>s como “coisas”: sendo aquilo que são, têm a i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> própria que só po<strong>de</strong>ser conferi<strong>da</strong> às “substâncias” 49 .Resta ain<strong>da</strong> o não pequeno problema <strong>de</strong> explicar a razão pela qual as afeções inerem<strong>na</strong>s substâncias. E é aqui que Aristóteles opera mais uma revolução epistemológica aoretomar <strong>da</strong> tradição pré-socrática a noção <strong>de</strong> “contrários”, embora mostre estar consciente doque o separa dos seus antecessores.Até este momento, a crítica <strong>de</strong> Aristóteles aos pré-socráticos <strong>de</strong>ixou no ar três aporias<strong>da</strong> geração, à resolução <strong>da</strong>s quais se entrega em A5:1. Como é possível que algo se gere a partir do ser ou do não-ser?2. Como é possível que o múltiplo se gere a partir do uno?3. Como po<strong>de</strong>m os contrários se gerar a partir um do outro?Por isso, A5 começa por introduzir três distinções sem as quais nenhum argumentocoerente será alguma vez possível em Física. Em 188a30-b3, é expressa a reserva em queassenta a noção <strong>de</strong> ‘<strong>de</strong>vir’: nem um ente po<strong>de</strong> fazer ou sofrer qualquer coisa por efeito <strong>de</strong>outro, nem qualquer coisa po<strong>de</strong> vir a ser qualquer outra. Terá <strong>de</strong> ser assim porque to<strong>da</strong>geração ou corrupção se dá a partir dos contrários e seus intermediários (188b22-24), queinerem em ca<strong>da</strong> substância.46 Angioni 2009; ver ain<strong>da</strong> as notas ad loc., 120-123.47 Tratando-se <strong>de</strong> quali<strong>da</strong><strong>de</strong>s, a discrimi<strong>na</strong>ção <strong>de</strong> algumas cores po<strong>de</strong>ria prosseguir in<strong>de</strong>fini<strong>da</strong>mente sem que<strong>de</strong>las se separem os seus constituintes.48 Sendo esse processo evi<strong>de</strong>nte <strong>na</strong>s substâncias compostas, <strong>de</strong>verá ocorrer também <strong>na</strong>s simples – por exemplo,nos elementos –, embora não em termos físicos, como se verá adiante.49 Embora isso não seja evi<strong>de</strong>nte, neste ponto Aristóteles está a aproveitar a argumentação <strong>de</strong> Parmêni<strong>de</strong>s através<strong>da</strong> interpretação que lhe é <strong>da</strong><strong>da</strong> por Platão, mesmo rejeitando a noção platônica <strong>de</strong> “Forma”.34


ANAIS DE FILOSOFIA CLÁSSICA, vol. V nº 9, 2011ISSN 1982-5323SANTOS, José Trin<strong>da</strong><strong>de</strong>Princípios <strong>da</strong> <strong><strong>na</strong>tureza</strong> <strong>na</strong> Física A, <strong>de</strong> Aristóteles: pré-socráticos, PlatãoEstabeleci<strong>da</strong>s estas teses, A6 avança para a <strong>de</strong>termi<strong>na</strong>ção do número dos princípiosnotando que, não sendo essências, os contrários não po<strong>de</strong>m ser anteriores à substância, à qual,por sua vez, <strong>na</strong><strong>da</strong> po<strong>de</strong> ser anterior ou se opor (A6,187a27-33). Por essa razão, os princípiosreduzem-se a dois ou três (189b27-29).Se os dois contrários são o que não subsiste (A7,190a21-25) “vir a ser” diz-se <strong>de</strong> duasmaneiras. Como substância e forma, fala-se <strong>de</strong> geração, pois também elas provêm <strong>de</strong> algosubjacente (190b1-28). Mas <strong>de</strong>ve ain<strong>da</strong> consi<strong>de</strong>rar-se o que ocorre entre os contrários, que sãoprivação um do outro (190b27), efetuando-se a mu<strong>da</strong>nça (metabolê) pela sua presença ouausência (191a6-7).A tese <strong>de</strong> que os contrários inerem <strong>na</strong>s substâncias 50 insere a noção num contexto queaté aí lhe era estranho. Em vez <strong>de</strong> se formarem por ação <strong>de</strong> um fenômeno puramentemecânico, que lhes é <strong>de</strong> todo estranho e inexplicável 51 , os contrários <strong>de</strong>termi<strong>na</strong>m aconstituição <strong>da</strong>s substâncias pelo fato <strong>de</strong> lhes serem inerentes, <strong>de</strong> existirem nelas, embora empotência. São, pois, os contrários e as substâncias os princípios que Aristóteles buscava:“Está dito, portanto, quantos são os princípios dos seres <strong>na</strong>turais envolvidos no vir aser, e <strong>de</strong> que modo são tantos. É evi<strong>de</strong>nte que é preciso que algo esteja subjacente aoscontrários e que os contrários sejam dois” (Angioni 2009, 191a3-6).Completando a sua digressão pelos que o antece<strong>de</strong>ram, Aristóteles encontrou emA<strong>na</strong>xágoras a resposta à sua pergunta sobre os princípios. As “coisas” são o “subjacente”(“substrato”), o princípio material <strong>da</strong> substância. Os “contrários” são os princípiosreguladores do “repouso e movimento” <strong>da</strong> substância, que materialmente ditam a suapersistência e capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> transformação 52 .FÍSICA E METAFÍSICA NA FÍSICA AÉ nesta síntese que Aristóteles se concentra para, extinto o eco <strong>da</strong>s críticas aos présocráticos(A6), po<strong>de</strong>r entregar-se à exposição <strong>da</strong> sua teoria. Do 4º princípio <strong>de</strong> A<strong>na</strong>xágoras50 To<strong>da</strong>via, o modo como inerem acrescenta um <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iro ponto à crítica <strong>de</strong> Aristóteles: através <strong>da</strong> “potência” edo “ato” (“capaci<strong>da</strong><strong>de</strong>” e “efetivi<strong>da</strong><strong>de</strong>”: Angioni 2009). Voltarei à questão adiante.51 Uma vez mais Aristóteles mostra-se <strong>de</strong>vedor dos argumentos eleáticos contra os Físicos que os prece<strong>de</strong>ram.To<strong>da</strong> a argumentação <strong>de</strong> Parmêni<strong>de</strong>s contra a geração/corrupção e o <strong>de</strong>vir (B8.2-31) converge <strong>na</strong> crítica à teseque <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> o “mo<strong>de</strong>lo cosmológico do vórtice”, ou seja o fenômeno que produz a emergência dos contráriospor “discrimi<strong>na</strong>ção” (Fís. A4,187a20-24; Simplício fís. 24,21). Deste ponto <strong>de</strong> vista, a postulação <strong>de</strong>ssa hipótesemostra-se absur<strong>da</strong>.52 Numa <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>ira <strong>de</strong>finição do contorno <strong>da</strong> sua teoria, Aristóteles aproveita ain<strong>da</strong> a doutri<strong>na</strong> <strong>de</strong> A<strong>na</strong>xágoras. Os“seres inerentes e imperceptíveis” (187a31-32), necessários para assegurar a “discrimi<strong>na</strong>ção <strong>da</strong>s coisas”, foramassimilados pelos contrários aristotélicos, qualifica<strong>da</strong> e não genericamente inerentes <strong>na</strong> substância, nos termos <strong>da</strong>concepção hilemórfica.35


ANAIS DE FILOSOFIA CLÁSSICA, vol. V nº 9, 2011ISSN 1982-5323SANTOS, José Trin<strong>da</strong><strong>de</strong>Princípios <strong>da</strong> <strong><strong>na</strong>tureza</strong> <strong>na</strong> Física A, <strong>de</strong> Aristóteles: pré-socráticos, Platãoextrai o princípio condicio<strong>na</strong>nte <strong>da</strong> sua própria teoria física, segundo o qual as coisas sãoconstituí<strong>da</strong>s por aquilo que nelas há.Contudo, <strong>na</strong> Física a tese ganha diversos novos sentidos. Às “coisas” vai ser atribuídoo estatuto formal <strong>de</strong> “substâncias”, sendo aquilo que nelas há a “matéria” que a “forma” <strong>da</strong>substância <strong>de</strong>termi<strong>na</strong> através <strong>da</strong> interação dos “contrários”; sendo estes inerentes <strong>na</strong> matériarelativa à forma <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> substância específica. To<strong>da</strong>via, este complexo jogo <strong>de</strong> <strong>de</strong>termi<strong>na</strong>çõessó po<strong>de</strong> ser captado pela teoria hilemórfica, que conjuga <strong>na</strong>s substâncias as noções <strong>de</strong>‘matéria’, ‘forma’, ‘ato’ e ‘potência’.Um número finito <strong>de</strong> contrários 53 <strong>de</strong>ve ser atribuído à substância, em si, <strong>de</strong>sprovi<strong>da</strong> <strong>de</strong>contrário (A6,189a27-33), uma vez que, como se viu, só “o que não é oposto subsiste”(A7,190a18-19). Esta opção abre caminho à teoria <strong>de</strong> Aristóteles, proposta em três momentos.A menção <strong>da</strong>s “aporias dos Antigos” aponta à aceitação <strong>da</strong> proibição <strong>da</strong> geração ecorrupção tanto a partir do ser ou do não-ser, quanto para o ser ou o não-ser (A8,191a22-33).No primeiro momento, ain<strong>da</strong> <strong>na</strong> crítica aos eleáticos, Aristóteles implicitamente afirma anecessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> postulação <strong>de</strong> um substrato (191a31) no qual existam os contrários.Depois, para clarificar o modo <strong>de</strong> manifestação, distingue “ser” e “não-ser” em“enquanto tal” e “por aci<strong>de</strong>nte”: (191b2-4, 13-15). A sua solução <strong>da</strong> aporia consiste em tomara geração e a corrupção a partir <strong>de</strong>, ou para, contrários que “são” e “não-são” por aci<strong>de</strong>nte 54 ,enquanto o substrato persiste, enquanto tal 55 (191a34-b26).No terceiro momento, Aristóteles mostra que os contrários existem em potência nosubstrato, consistindo a mu<strong>da</strong>nça no processo pelo qual o contrário que existia em potênciapassa a existir em ato, enquanto o seu contrário passa pelo processo inverso (191b27-29).Os princípios <strong>da</strong> geração e corrupção são, portanto, três: o substrato e os contrários, osquais, como foi dito, “pela sua presença ou ausência produzem a mu<strong>da</strong>nça” (191a6-7), <strong>da</strong>ndosea presença dos contrários <strong>na</strong> forma, e a ausência, por aci<strong>de</strong>nte, <strong>na</strong> privação 56 (Ibid. 13-14):53 Notar, no fi<strong>na</strong>l <strong>de</strong> A4, a crítica à ilimitação dos princípios por A<strong>na</strong>xágoras e a preferência pela opção <strong>de</strong>Empédocles. Uma e outra posição refletem a censura eleática à aceitação <strong>da</strong> duali<strong>da</strong><strong>de</strong> dos contrários: se sãocontrários, não po<strong>de</strong>m ambos ser; se só um é, o outro não é contrário (Parmêni<strong>de</strong>s B8.50-61). Enquanto oAgrigentino suprime a contrarie<strong>da</strong><strong>de</strong> dos elementos, remetendo a oposição para o Amor e o Ódio, o Ab<strong>de</strong>ritadissolve-a <strong>na</strong> admissão <strong>de</strong> uma infini<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> princípios.54 “Por concomitância” (Angioni 2009). Para o esclarecimento do sutil argumento <strong>de</strong>senvolvido por Aristótelesem A8, remeto para o meticuloso comentário, em Angioni 2009, 168-183.55 Se um médico constrói uma casa, fá-la não enquanto médico, mas enquanto construtor, embora, por aci<strong>de</strong>nte,seja médico.56 Adiante, Aristóteles caracterizará a matéria como não-ser por aci<strong>de</strong>nte e a privação como não-ser em si(A9,192a4-5).36


ANAIS DE FILOSOFIA CLÁSSICA, vol. V nº 9, 2011ISSN 1982-5323SANTOS, José Trin<strong>da</strong><strong>de</strong>Princípios <strong>da</strong> <strong><strong>na</strong>tureza</strong> <strong>na</strong> Física A, <strong>de</strong> Aristóteles: pré-socráticos, Platão“... também nós afirmamos que <strong>na</strong><strong>da</strong> provém do não-ser, sem mais; no entanto, mesmoassim, afirmamos que provém do não-ser, a saber, por concomitância (<strong>de</strong> fato, <strong>da</strong>privação, que é por si mesma um não-ser, e, que não está inerente [sc. no resultado],provém algo... )” (A8,191b13-16: Angioni 2009).A geração dá-se “por concomitância” (ou “por aci<strong>de</strong>nte”). Por exemplo, é porque umcerto cão <strong>na</strong>sce <strong>de</strong> certo um cão, e não do animal, embora o cão seja um animal, que a geraçãoé “por aci<strong>de</strong>nte” (Ibid. 16-27). Avança<strong>da</strong> esta primeira razão, há então que propor a segun<strong>da</strong>,<strong>de</strong> que a geração dá-se também segundo o ato e a potência, do modo que se verá a seguir(Ibid. 27-29).O erro dos Antigos foi, portanto, tomarem to<strong>da</strong> geração como sendo “sem mais”(haplôs: A9,191b36). Não po<strong>de</strong>, porém, ser assim, pois:“matéria e privação são distintas entre si, e [...] uma <strong>de</strong>las, a matéria, éaproxima<strong>da</strong>mente e <strong>de</strong> certo modo substância, mas a outra <strong>de</strong> modo algum ésubstância...” (A9,192a3-6: Angioni 2009).APLICAÇÃO DOS CONCEITOSFORMA/MATÉRIA, ATO/POTÊNCIAEm Aristóteles, a substância não po<strong>de</strong> ser – como para “os que primeiro filosofaram”– “<strong>na</strong> forma <strong>da</strong> matéria” (Met. A3,986b6), mas constituí<strong>da</strong> pela atuali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> forma <strong>na</strong>matéria. Entendi<strong>da</strong> como “princípio <strong>de</strong> movimento e repouso”, chama-se “substância” a ca<strong>da</strong>um dos entes que são “aquilo que são” e existem, com as suas proprie<strong>da</strong><strong>de</strong>s (p. ex., umaárvore e o leito fabricado com a ma<strong>de</strong>ira <strong>de</strong>ssa árvore; vi<strong>de</strong> Met. Δ8,1017b10-26).O “princípio <strong>de</strong> movimento” <strong>de</strong>termi<strong>na</strong> as possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> transformação <strong>de</strong> umasubstância (a árvore po<strong>de</strong> ser transforma<strong>da</strong> em chama, fumo e cinza – sejam, fogo, ar, água eterra –, por ação do fogo, mas não tem capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> para se transformar no que quer que seja:A5,188b3-8); enquanto o “princípio <strong>de</strong> repouso“ limita estas possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s à permanência <strong>da</strong>i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> substância: a ma<strong>de</strong>ira persiste no leito, mas não a árvore. Daí o famosoexemplo, atribuído a Antifonte (Fís. B1.19312-16): se enterrarmos um leito e calhar eleganhar raízes, o que é gerado é uma árvore e não um outro leito.Esta série <strong>de</strong> exemplos permite compreen<strong>de</strong>r o modo como forma e matéria serelacio<strong>na</strong>m. “Matéria” é o substrato <strong>da</strong> mu<strong>da</strong>nça e <strong>da</strong> permanência:“... aquilo que primeiramente está subjacente a ca<strong>da</strong> coisa, como elemento imanente<strong>de</strong> que algo provém não por concomitância” (Angioni 2009, ou “por aci<strong>de</strong>nte”).37


ANAIS DE FILOSOFIA CLÁSSICA, vol. V nº 9, 2011ISSN 1982-5323SANTOS, José Trin<strong>da</strong><strong>de</strong>Princípios <strong>da</strong> <strong><strong>na</strong>tureza</strong> <strong>na</strong> Física A, <strong>de</strong> Aristóteles: pré-socráticos, PlatãoMatéria é aquilo que, por exemplo, a partir <strong>da</strong> árvore, ao ser cortado, se transforma <strong>na</strong>ma<strong>de</strong>ira, po<strong>de</strong>ndo vir a ser um leito ou qualquer outro artefato, que eventualmente se há-<strong>de</strong>corromper retor<strong>na</strong>ndo aos elementos constituintes <strong>da</strong> ma<strong>de</strong>ira: secando, apodrecendo, ouar<strong>de</strong>ndo.Por outro lado, “forma” é aquilo que ca<strong>da</strong> ente é e o <strong>de</strong>fine como substância, como émostrado nos exemplos acima, <strong>da</strong> árvore, <strong>da</strong> ma<strong>de</strong>ira e do leito. Ao ser corta<strong>da</strong>, a substância“árvore” é corrompi<strong>da</strong> gerando-se a nova substância “ma<strong>de</strong>ira”. Por outro lado, a matéria <strong>da</strong>árvore persiste <strong>na</strong> ma<strong>de</strong>ira corta<strong>da</strong>, embora se corrompa <strong>na</strong> matéria <strong>da</strong> chama, do fumo e <strong>da</strong>cinza, gera<strong>da</strong>s pela ação do fogo.Fica então clara a razão <strong>de</strong> se sustentar que a matéria é potência – possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>receber sucessivas formas –, enquanto a forma é a atuali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>ssa potência; seja, aquilo quenum <strong>da</strong>do momento é uma <strong>da</strong><strong>da</strong> substância e noutro outra (no exemplo, árvore, ma<strong>de</strong>ira ou oartefato produzido a partir <strong>de</strong>las). Note-se, porém, que não po<strong>de</strong> ser qualquer outra coisa(A5,188b3-8), pois a árvore nunca po<strong>de</strong> ser matéria do bronze, por exemplo.Acontece assim porque “forma” e “matéria”, embora sejam conceitos in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes,nunca ocorrem <strong>na</strong> <strong><strong>na</strong>tureza</strong> separa<strong>da</strong>s um do outro: a forma <strong>de</strong>termi<strong>na</strong> uma certa matériagerando uma substância; a matéria é o substrato <strong>de</strong>ssa substância que a forma atualiza 57 . Estainter<strong>de</strong>pendência é reconheci<strong>da</strong> pelo discurso corrente, que confun<strong>de</strong> uma com a outra quandosustenta que a “árvore é a matéria <strong>da</strong> ma<strong>de</strong>ira corta<strong>da</strong>” e ao mesmo tempo que a ma<strong>de</strong>ira é amatéria <strong>da</strong> árvore, antes <strong>de</strong> esta ter sido corta<strong>da</strong>.Há nesta relação duas questões a esclarecer. A primeira tem a ver com a ligação <strong>da</strong>matéria à forma. Por exemplo, a forma <strong>de</strong> uma <strong>da</strong><strong>da</strong> matéria po<strong>de</strong> transformar-se <strong>na</strong> matéria<strong>de</strong> outra forma, como é o caso <strong>da</strong> árvore e <strong>da</strong> ma<strong>de</strong>ira. Por exemplo, o bronze é uma liga <strong>de</strong>cobre e estanho que associa a algumas <strong>da</strong>s proprie<strong>da</strong><strong>de</strong>s dos metais que a constituem umaoutra, nova, que eles não possuíam: a dureza. Neste caso, ‘bronze’ é o nome <strong>da</strong> substânciagera<strong>da</strong> pela corrupção do estanho e do cobre, mas também o nome <strong>da</strong> matéria <strong>de</strong>ssasubstância (vi<strong>de</strong> A9,192a5-6). No entanto, <strong>na</strong> substância que é a estátua, o bronze é a matériamol<strong>da</strong><strong>da</strong> <strong>na</strong> forma <strong>da</strong>quela.Portanto, sabendo que o que é atualizado é a substância, cabe então perguntar como serealiza essa atualização. A resposta é: através dos contrários. Por exemplo, aqueci<strong>da</strong> pela ação57 A inter<strong>de</strong>pendência <strong>de</strong> forma e matéria é expressamente reconheci<strong>da</strong> por Aristóteles <strong>na</strong> sua <strong>de</strong>finição <strong>de</strong>“<strong><strong>na</strong>tureza</strong>” <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> uma <strong>da</strong>s perspectivas complementares: Fís. B1,193a9-b21. Esta inter<strong>de</strong>pendência é tão forteque se esten<strong>de</strong> à relação entre o corpo e a alma <strong>de</strong> um animal (DA B2,414a19-20)38


ANAIS DE FILOSOFIA CLÁSSICA, vol. V nº 9, 2011ISSN 1982-5323SANTOS, José Trin<strong>da</strong><strong>de</strong>Princípios <strong>da</strong> <strong><strong>na</strong>tureza</strong> <strong>na</strong> Física A, <strong>de</strong> Aristóteles: pré-socráticos, Platãodo fogo, a água ferve, transformando-se em ar; pelo contrário, arrefeci<strong>da</strong> pelo frio,transforma-se em gelo.A água é a matéria próxima tanto do ar, como do gelo, por po<strong>de</strong>r sofrer alteração paraou a partir <strong>de</strong>les. Assim sendo, é possível perguntar como é que isso acontece e porquê <strong>de</strong>ssemodo; como é que sempre se transforma, num caso, num elemento, noutro caso, noutro, sem,ao sofrer a ação do fogo ou do frio, nunca po<strong>de</strong>r se transformar numa outra substância (vi<strong>de</strong>A5,188b3-8).Para que se compreen<strong>da</strong> a invariância <strong>de</strong>sta regulari<strong>da</strong><strong>de</strong>, é forçoso admitir que algo<strong>na</strong> matéria <strong>da</strong> água admite receber o quente ou o frio (mas não quaisquer outros contrários),gerando, nos dois casos, aquelas substâncias em que os contrários comuns se manifestam enão outros. Essa disposição só po<strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r-se como uma potência para acolher oscontrários que as duas substâncias partilham.Noutras palavras, tal disposição tem <strong>de</strong> existir em potência <strong>na</strong> água, e,consequentemente, em todos os corpos simples, ou elementos, entre os quais ocorre amu<strong>da</strong>nça. De outro modo, os processos <strong>de</strong>terminísticos que regem a geração e corrupçãosubstanciais seriam senão impossíveis, pelo menos, <strong>de</strong> todo inexplicáveis.A MATERIA PRIMAOra, para que assim ocorra, será necessário supor que em to<strong>da</strong>s as substâncias existeem potência uma “matéria prima”, entendi<strong>da</strong> como suporte dos contrários que <strong>de</strong>termi<strong>na</strong>mquer a alteração qualitativa (allôiosis), quer a corrupção (phthora) <strong>da</strong> substância,concomitante com a geração (genesis) <strong>de</strong> uma nova substância 58 , <strong>da</strong> qual se geram oselementos (G. C. b329a24-26).Essa matéria prima po<strong>de</strong> ser entendi<strong>da</strong> como um certo “objeto lógico” (Charles 2004,154) que po<strong>de</strong>ria ser avançado como justificação <strong>da</strong> existência <strong>de</strong> um substrato material empotência, imperceptível e não separado, o qual, como Aristóteles sustentou, po<strong>de</strong> serreconhecido por a<strong>na</strong>logia (A7,191a7). Este, apesar <strong>de</strong> não po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> se manifestar comocorpóreo, não constituiria um corpo, pelo fato <strong>de</strong> não ser <strong>de</strong>termi<strong>na</strong>do pela forma <strong>de</strong> nenhumasubstância: seja aquela a quo, seja aquela ad quem proce<strong>de</strong> a mu<strong>da</strong>nça. Essa matéria é amatéria prima:58 Ver o comentário a A7,191a7-12 em Angioni 2009, 163-165; em particular no que diz respeito à crítica àconcepção tradicio<strong>na</strong>l <strong>de</strong> matéria prima (Charlton 1983, 208), a qual <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> que para todos os entes compostos,há um mesmo y que <strong>de</strong>sempenha o papel <strong>de</strong> matéria <strong>de</strong> todos” (165).39


ANAIS DE FILOSOFIA CLÁSSICA, vol. V nº 9, 2011ISSN 1982-5323SANTOS, José Trin<strong>da</strong><strong>de</strong>Princípios <strong>da</strong> <strong><strong>na</strong>tureza</strong> <strong>na</strong> Física A, <strong>de</strong> Aristóteles: pré-socráticos, Platão“o que quer que seja o mesmo que subjaz é o mesmo, mas o ser não é o mesmo” 59 (GCA3,319b3-4).Esta formulação comprimi<strong>da</strong>, que tem sido objeto <strong>de</strong> interpretações diversas, coloca oproblema do seguinte modo. Há algo que subjaz, que inere <strong>na</strong> substância, mas que não é omesmo que ela. Este substrato é consi<strong>de</strong>rado como sendo o que em potência po<strong>de</strong> ser<strong>de</strong>termi<strong>na</strong>do como uma <strong>da</strong>s substâncias, correspon<strong>de</strong>ndo ao que a tradição <strong>de</strong>signou comomateria prima. Trata-se, portanto, <strong>de</strong> um conceito <strong>de</strong> âmbito lógico e epistemológico, sem oqual seria impossível garantir a inteligibili<strong>da</strong><strong>de</strong> do processo <strong>de</strong> geração <strong>da</strong> substância, a qual éentendi<strong>da</strong> como composto <strong>de</strong> matéria e forma.Aplicando a noção do movimento como “a enteléquia do que é em potência, enquantopotência” (Fís. G1,201a10-11) à geração recíproca dos corpos simples, se percebe que amatéria que num corpo simples é “matéria prima” não é esse corpo simples enquantosubstância. Trata-se <strong>de</strong> aquilo que, nesse mesmo corpo simples, não é <strong>de</strong>termi<strong>na</strong>do em ato,mas é potência <strong>de</strong> uma ulterior <strong>de</strong>termi<strong>na</strong>ção num outro corpo, constituindo uma abstração.Precisando a explicação, a “matéria prima” <strong>de</strong>sig<strong>na</strong> um conceito cujo referente nãoexiste propriamente no mundo físico, mas que se incluirá no domínio <strong>de</strong> uma ciência, a saber,aquela à qual cabe a investigação dos fenómenos físicos, do modo como as substâncias físicasos coman<strong>da</strong>m. Perguntando o que é “matéria prima” <strong>de</strong> um corpo simples, a resposta apontapara a matéria a partir <strong>da</strong> qual esse corpo – e não qualquer outro – é gerado e <strong>na</strong> qual secorrompe 60 .Essa matéria não é um outro corpo simples a partir do qual (a quo) o primeiro foigerado e no qual (ad quem) acabará por se corromper. Esse corpo po<strong>de</strong>rá constituir a “matériapróxima” do outro. “Matéria prima” <strong>de</strong> um corpo será então a potência <strong>de</strong> ser um ou outrocorpo, em ato, portanto, simultaneamente um e outro, em potência.59 Tradução <strong>de</strong> F. J. A. Chorão, Matéria em Aristóteles: o Problema <strong>da</strong> Materia Prima no De Generatione etcorruptione, Tese <strong>de</strong> Doutoramento apresenta<strong>da</strong> à Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Letras <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Lisboa, 2008. Numaextensa nota, o Autor resume os pontos capitais <strong>da</strong> crítica D. Charles (2004, 151, n. 2) à tradução <strong>de</strong> H. H.Joachim (1922).60 Vejam-se os paradoxos obtidos a partir <strong>da</strong> coalescência <strong>da</strong> forma <strong>na</strong> matéria, atribuí<strong>da</strong> por Aristóteles aosMilésios, e <strong>de</strong>nuncia<strong>da</strong> <strong>na</strong> Met. A3,983b6 ss., bem como <strong>na</strong>s frequentes e sistemáticas rejeições do apeiron <strong>de</strong>A<strong>na</strong>ximandro (GC B5,332a19-333b15; Fís. Γ5,204b22-205a6). Recorre aqui o velho problema eleático criadopela impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> geração e <strong>da</strong> corrupção, pois estas teriam <strong>de</strong> ser “a partir do não ser” (Parmêni<strong>de</strong>s B8.5-29), ou “ao lado do ser” (Ibid. B8.36b-37a). Sendo em potência, a matéria prima existe como matéria, mas não é“aquilo que é”, como Forma.40


ANAIS DE FILOSOFIA CLÁSSICA, vol. V nº 9, 2011ISSN 1982-5323SANTOS, José Trin<strong>da</strong><strong>de</strong>Princípios <strong>da</strong> <strong><strong>na</strong>tureza</strong> <strong>na</strong> Física A, <strong>de</strong> Aristóteles: pré-socráticos, PlatãoEsse substrato será o <strong>da</strong> geração <strong>de</strong> um corpo simples, enquanto substância. Mas não éuma substância. Se acaso assim acontecesse, a substância seria confundi<strong>da</strong> com a matéria queé a sua, violando a proibição expressa <strong>de</strong> Met. Z3.1029a20-30:“... aqueles que estu<strong>da</strong>m estas coisas concluem que a substância é matéria. Mas éimpossível. Pois, ser separado e algo <strong>de</strong>termi<strong>na</strong>do parece correspon<strong>de</strong>r sobretudo àsubstância. Por isso, a forma (eidos) e a substância [forma<strong>da</strong>] a partir <strong>de</strong> ambas [sc.“forma e matéria”] pareceriam ser mais substância que a matéria” (Ibid. 29-30).Apesar <strong>de</strong> ocorrer frequentemente o Estagirita se referir a corpos simples gerados apartir <strong>de</strong> outros corpos simples, i. é, “elementos”, <strong>da</strong>ndo a enten<strong>de</strong>r que são matéria dosprimeiros, segundo o passo acima, a geração <strong>de</strong> uns a partir <strong>da</strong> corrupção <strong>de</strong> outros éimpossível. Pois, um corpo simples, embora possa ser matéria próxima <strong>de</strong> outros, nunca po<strong>de</strong>ser matéria <strong>de</strong>les, sob pe<strong>na</strong> <strong>de</strong> a sua substância se reduzir à matéria que o constitui.A única solução <strong>da</strong> dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> consiste então em postular uma “matéria prima”,substrato não separado e imperceptível, no qual os contrários – quente/frio, seco/húmido, bemcomo os outros formados a partir <strong>de</strong>les – existem em potência, <strong>de</strong>termi<strong>na</strong>ndo a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong><strong>da</strong> geração <strong>da</strong> nova substância.Esta solução é a única susceptível <strong>de</strong> resolver a ambigui<strong>da</strong><strong>de</strong>, a que me referi atrás,entre os dois sentidos <strong>de</strong> physis mantidos pela tradição: como princípio <strong>de</strong> i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> (causaformal) e <strong>de</strong> constituição (causa material) <strong>da</strong> substância. Como Aristóteles insiste em Met. Z3,aquilo que uma substância é não po<strong>de</strong> ser reduzido àquilo <strong>de</strong> que ela é feita: isto é, à suamatéria.Por outro lado, a matéria não po<strong>de</strong> ser reduzi<strong>da</strong> ao estatuto <strong>de</strong> simples princípio <strong>de</strong>constituição <strong>da</strong>s coisas, <strong>de</strong> um constituinte <strong>de</strong>stituído <strong>de</strong> <strong>de</strong>termi<strong>na</strong>ções, como o apeiron <strong>de</strong>A<strong>na</strong>ximandro (Fís. Γ5,204b22-205a6). Pois, não só a matéria é matéria <strong>da</strong> forma que <strong>de</strong>fine asubstância, como também a forma é forma, não <strong>de</strong> uma matéria, mas <strong>de</strong> um <strong>da</strong>do e específicocorpo. Dois textos ilustram esta correlação.O primeiro é a segun<strong>da</strong> seção <strong>da</strong> Física B1,193a9-b21. Como o exemplo <strong>de</strong> Antifonte,atrás citado, mostra, se a substância se reduzisse à matéria, o que seria gerado a partir doplantio do leito seria outro leito. O fato <strong>de</strong> o efeito hipotético <strong>de</strong>sse plantio ser uma árvore <strong>da</strong>espécie <strong>da</strong>quela que gerou a ma<strong>de</strong>ira com que foi fabricado o leito mostra que “o princípio domovimento e do repouso” só po<strong>de</strong> residir <strong>na</strong> substância <strong>na</strong>tural – a árvore – e não <strong>na</strong>substância artificial – o leito –, cujo princípio <strong>de</strong> movimento – o artífice – lhe é <strong>de</strong> todoalheio.41


ANAIS DE FILOSOFIA CLÁSSICA, vol. V nº 9, 2011ISSN 1982-5323SANTOS, José Trin<strong>da</strong><strong>de</strong>Princípios <strong>da</strong> <strong><strong>na</strong>tureza</strong> <strong>na</strong> Física A, <strong>de</strong> Aristóteles: pré-socráticos, PlatãoÉ por essa razão que, como foi dito atrás, B1 <strong>da</strong> Física conclui com a atribuição <strong>da</strong>physis tanto à matéria, como à forma. É inegável que a primeira é necessária à constituição <strong>da</strong>substância, logo, à <strong>de</strong>finição <strong>da</strong>quilo que ela é “por <strong><strong>na</strong>tureza</strong>”. No entanto, a circunstância não<strong>de</strong>sprezível <strong>de</strong> “um certo homem” gerar a sua progénie – tal como a árvore, no caso hipotéticodo leito plantado – prova que também a forma é <strong><strong>na</strong>tureza</strong>, pelo fato <strong>de</strong> que “a <strong><strong>na</strong>tureza</strong> toma<strong>da</strong>como vir a ser (hôs genesis) é processo em direção à <strong><strong>na</strong>tureza</strong>” (Ibid. 193b13: Angioni 2009).Passando <strong>da</strong> física à psicologia, o segundo texto, que ilustra a intimi<strong>da</strong><strong>de</strong> eexclusivi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> relação que une a matéria à forma <strong>de</strong> uma <strong>da</strong><strong>da</strong> substância, mostra que ateoria <strong>da</strong> matéria prima é também requeri<strong>da</strong> para explicar um fenômeno como a sensopercepção.No Da alma B3, Aristóteles sustenta que:“a atuali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> coisa é <strong>na</strong>turalmente inerente <strong>na</strong> sua potenciali<strong>da</strong><strong>de</strong> (en tôidy<strong>na</strong>mei hyparchonti pephyken), isto é, <strong>na</strong> sua matéria própria” (oikeiai hylêi: DAB3.414a26-28).O passo nota que aquilo que se atualiza <strong>na</strong> matéria– seja como alteração, seja comogeração e corrupção – tem <strong>de</strong> se existir em ato <strong>na</strong> forma e em potência nessa matéria. Oexemplo é relevante para mostrar que só a teoria <strong>da</strong> matéria prima po<strong>de</strong> explicar como aconcepção <strong>de</strong> Aristóteles <strong>da</strong> senso-percepção funcio<strong>na</strong>:1. superando a tese tradicio<strong>na</strong>l <strong>de</strong> que “o semelhante é percebido pelo semelhante”(DA B5.416b33-417a21; 418a3-6; vi<strong>de</strong> GC A7, 323b18 ss.);2. caracterizando o aparelho perceptivo (aisthêtêrion) como o substrato no qual oscontrários existem em potência (DA B11.423b11-424a16; vi<strong>de</strong> GC B2-3; B5.332ass.).Para que o funcio<strong>na</strong>mento do órgão perceptivo permita a assimilação do<strong>de</strong>ssemelhante (a facul<strong>da</strong><strong>de</strong> perceptiva é em potência como o percebido, mas, no fi<strong>na</strong>l doprocesso perceptivo “acontece ficar” semelhante ao percebido: DA B5,417a15-21; 418a3-6), épreciso que nele existam em potência os contrários, um dos quais em ato se tor<strong>na</strong> como opercebido 61 .Portanto, regressando à Física, é claro que a tese <strong>da</strong> “matéria prima” obriga aacrescentar um terceiro princípio, puramente formal, aos dois princípios reguladores do <strong>de</strong>vir61 Por exemplo, no caso <strong>da</strong> visão, os contrários branco e o preto limitam a capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> perceber a cor;capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> entendi<strong>da</strong> como um “termo médio” entre os extremos (“to<strong>da</strong> percepção parece ser <strong>de</strong> umacontrarie<strong>da</strong><strong>de</strong>” – DA B11,422b23 –, embora haja quali<strong>da</strong><strong>de</strong>s percebi<strong>da</strong>s por diversas contrarie<strong>da</strong><strong>de</strong>s: ibid. 27-32).Para “ver vermelho” é necessário que se torne atual esse intermédio entre os contrários, que no órgão existe empotência (423b30-424a15).42


ANAIS DE FILOSOFIA CLÁSSICA, vol. V nº 9, 2011ISSN 1982-5323SANTOS, José Trin<strong>da</strong><strong>de</strong>Princípios <strong>da</strong> <strong><strong>na</strong>tureza</strong> <strong>na</strong> Física A, <strong>de</strong> Aristóteles: pré-socráticos, Platãojá encontrados, que são o substrato e a forma. É ele a privação, entendi<strong>da</strong> como “o não-serenquanto não-ser” (A8,191b9-25).Por exemplo, os pares contrários quente/frio, seco/húmido existem <strong>na</strong> água – um <strong>de</strong>lesem potência, o outro em ato –, como privação um do outro. Por ação do fogo, os contráriosfrio e úmido sofrem corrupção, possibilitando aos respectivos contrários – quente e seco – ageração <strong>de</strong> uma outra substância: o ar.Para culmi<strong>na</strong>r a refutação dos Eleatas, o exemplo permite perceber que neste sentido oente se origi<strong>na</strong> aci<strong>de</strong>ntalmente tanto a partir do ser, quanto do não-ser. Como Platão já tinhavisto no Timeu (49b-e), pelo fato <strong>de</strong> continuamente se transmutarem uns nos outros, oselementos “não suportam ser <strong>de</strong>sig<strong>na</strong>dos como enti<strong>da</strong><strong>de</strong>s estáveis” (49e). Embora o arprovenha <strong>da</strong>quilo que a água não é, essa privação não <strong>de</strong>termi<strong>na</strong> essencialmente aquilo que oar é.Em particular, esta referência permite-me expressar um <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iro intento: <strong>da</strong>r contado intransponível abismo que separa as concepções aristotélica e cartesia<strong>na</strong> <strong>de</strong> “matéria”, hojeassimila<strong>da</strong> pelo senso-comum. A crítica <strong>de</strong>sferi<strong>da</strong> pelo Estagirita ao dualismo platônicoafasta-o ain<strong>da</strong> mais do bi-substancialimo cartesiano. Em Aristóteles, enquanto correlato <strong>da</strong>forma, concorrente com ela tanto <strong>na</strong> <strong>de</strong>finição <strong>da</strong> substância (Met. Z3), como <strong>na</strong> <strong>da</strong> physis(Física B1), a matéria nunca po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>la separa<strong>da</strong> e trata<strong>da</strong> como se fosse o constituinteamorfo dos corpos.REFERÊNCIASA) FONTES1. AristótelesL. Angioni, Aristóteles, Física I-II, (Prefácio, introdução, tradução e comentários), Campi<strong>na</strong>s2009.M. Boeri, Aristóteles: De anima, Traducción directa <strong>de</strong>l griego, Estudio Prelimi<strong>na</strong>r, notas eapéndice, Buenos Aires 2009.D. Bostock, Aristotle: Metaphysics, Books Z and H, Oxford 2003.H. Carteron, Aristote, Physique I-IV, Paris 1983.H. Carteron, Aristote, Physique V-VIII, Paris 1986.W. Charlton, Aristotle: Physics, Books I and II, Oxford 1992.F. J. A. Chorão, Tradução e comentário do De generatione et corruptione, em Matéria emAristóteles: O problema <strong>da</strong> materia prima (ver abaixo).43


ANAIS DE FILOSOFIA CLÁSSICA, vol. V nº 9, 2011ISSN 1982-5323SANTOS, José Trin<strong>da</strong><strong>de</strong>Princípios <strong>da</strong> <strong><strong>na</strong>tureza</strong> <strong>na</strong> Física A, <strong>de</strong> Aristóteles: pré-socráticos, PlatãoH. H. Joachim, Aristotle: On Coming to be and Passing-away: A Revised Text withIntroduction and Commentary, Oxford 1922.V. G. Yebra, Metafísica <strong>de</strong> Aristoteles, Madrid 1987.M. Rashed, Aristote, De la Génération et la Corruption, Paris 2005C. J. F. Wiliams, Aristotle’s De Generatione et Corruptione, Oxford 2002.2. PlatãoJ. Burnet, Platonis Opera 1987.Platão, Crátilo, Tradução <strong>de</strong> M. J. Figueiredo, com uma introdução <strong>de</strong> José T. Santos, Lisboa2001.Platão, Timeu, Tradução <strong>de</strong> M. J. Figueiredo, com uma introdução <strong>de</strong> José T. Santos, Lisboa2004.3. Pré-socráticosH. Diels, W. Kranz, Die fragmente <strong>de</strong>r Vorsokratiker, 3 vols, Berlin 1951.B) ESTUDOSD. Bostock, “Aristotle on the transmutation of the Elements in the De Generatione andCorruptione I.1-4”, Oxford Studies in Ancient Philosophy 13, 1995, 217-229.D. Bostock, “Aristotle’s Theory of Matter”, in Space, Time, Matter and Form: Essays onAristotle’s Physics”, Oxford 2006, 30-47.M. Burnyeat, A Map of Metaphysics Zeta, Pittsburgh 2001.D. Charles, “Matter and Form: Unity, Persistence, and I<strong>de</strong>ntity”, Unity, I<strong>de</strong>ntity andExpla<strong>na</strong>tion in Aristotle’s Metaphysics, T. Scaltsas, D. Charles, M. L. Gill (eds.),Oxford 1994, 75-105.D. Charles, “Simple Genesis and Prime Matter”, Aristotle’s On Generation and Corruption I,F. <strong>de</strong> Haas, J. Mansfeld (eds.), Oxford 2004, 151-169.W. Charlton, “Did Aristotle Believe in Prime Matter?”, in W. Charlton, Aristotle Physics,Books I and II (1970), 129-147.W. Charlton, “Prime Matter: a Rejoin<strong>de</strong>r”, Phronesis 28, 1983, 197-211.H. Cherniss, Aristotle’s Criticism of Plato and the Aca<strong>de</strong>my, Baltimore 1944.F. J. A. Chorão, O problema <strong>da</strong> materia prima no De generatione et corruptione, Tese <strong>de</strong>doutoramento apresenta<strong>da</strong> à Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Lisboa, 2009 (não publica<strong>da</strong>).R. M. Dancy, “Aristotle and Existence”, Synthese 54, 1983, 409-442.F. <strong>de</strong> Haas, J. Mansfeld (eds.), Aristotle’s On Generation and Corruption I, Oxford 2004.D. Graham, “Aristotle’s Discovery of Matter”, Archiv für Geschichte <strong>de</strong>r Philosophie 66,1984, 37-51.D. Graham, “The Paradox of Prime Matter”, Jour<strong>na</strong>l of the History of Philosophy 25, 1987,475-490.44


ANAIS DE FILOSOFIA CLÁSSICA, vol. V nº 9, 2011ISSN 1982-5323SANTOS, José Trin<strong>da</strong><strong>de</strong>Princípios <strong>da</strong> <strong><strong>na</strong>tureza</strong> <strong>na</strong> Física A, <strong>de</strong> Aristóteles: pré-socráticos, PlatãoH. R. King, “Aristotle without Prime Matter”, Jour<strong>na</strong>l of the History of I<strong>de</strong>as 17, 1956, 370-389.E. G. Lowe, “Form without Matter”, in D. S. O<strong>de</strong>rberg (1999), 1-21.D. S. O<strong>de</strong>rberg (ed.), Form and Matter: Themes in Contemporary Metaphysics, Oxford 1999.A. Mansion, Introduction à la Physique aristotélicienne, Louvain/Paris 1945 2 .R. Polansky, Aristotle’s De Anima, 2008.J. G. T. Santos, ”O Tempo <strong>na</strong> <strong>na</strong>rrativa platônica <strong>da</strong> criação: o Timeu”, Hypnos 18, S Paulo2007, 42-55.T. Scaltsas, D. Charles, M. L. Gill (eds.), Unity, I<strong>de</strong>ntity and Expla<strong>na</strong>tion in Aristotle’sMetaphysics, Oxford 2000.L. Tarán, “The Creation Myth in Plato’s Timaeus”, New Essays in Ancient Greek Philosophy,J. P. Anton, G. L. Kustas (eds.) 1971, 372-407.A. Vallejo, “No, It’s not a Fiction”, Interpreting the Timaeus-Critias”, T. Calvo, L. Brisson(eds.), Skt. Augustin 1997, 141-164.S. Waterlow, Nature, Change and Agency in Aristotle’s Physics, Oxford 1982.[Recebido em junho 2011; aceito em julho 2011]45

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