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Crítica da Razão Tupiniquim - iPhi

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CRÍTICA DA RAZÃOTÜPINIQÜIMRoberto GomeslOt EDIÇÃOiliFTD


Copyright (c) Roberto Gomes, 1990Todos os direitos de edição reservados àEDITORA FTD S.A.MATRIZ Rua Rui Barbosa 156 (Bela Vista) São PauloCEP 01326-010 Tel. 253.5011FAX (011)288 0132Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)Gomes, Roberto, 1944-Crítica <strong>da</strong> razão tupiniquim / Roberto Gomes. — 11. ed.— São Paulo : FTD, 1994. — (Coleção prazer em conhecer)ISBN 85-322-0333-71. Filosofia - Brasil 2. Filosofia brasileira I. Título. II.Série.94-0590 CDD-199.81índices para catálogo sistemático:1. Brasil : Filosofia 199.812. Filosofia brasileira 199.81Editor: Jorge Cláudio RibeiroCoordenador de revisão: Adolfo José FacchiniEditor de arte: Cláudio CuellarCapa: Criação - Roberto SoeiroExecução - Chromo Digital, Design GráficoIlustrador: Luiz CarneiroProdução e Diagramação: Reginae CremaEditoração eletrônica: Paulo Lopes <strong>da</strong> Silva


índiceCapitulo 1 - Um título 4Capitulo 2 - A sério: a serie<strong>da</strong>de 9Capitulo 3 - Uma Razão que se expressa 17Capitulo 4 - Filosofia e negação 26Capitulo 5 - O mito <strong>da</strong> imparciali<strong>da</strong>de: o ecletismo 32Capitulo 6 - O mito <strong>da</strong> concórdia: o jeito 41Capitulo 7- Originali<strong>da</strong>de e jeito 48Capitulo 8 - A Filosofia entre-nós 55Capitulo 9 - A Razão Ornamental 69Capitulo 10- A Razão Afirmativa 82Capitulo 11 - Razão Dependente e negação 95Sugestões de ativi<strong>da</strong>des didáticas 111O autor 117Bibliografia 117


Capítulo 1Um título


Um título 5MUXÔR FERNANDES(Papáverum MPOESIA COM LAMENTAÇÃODO LOCAL DE NASCIMENTOTudo o que eu digo, acreditem,teria mais solidezse em vez de carioquinhaeu fosse um velho chinês.Oque pode significar isso: Razão <strong>Tupiniquim</strong>? Tratandosede título de um livro, supõe-se que denuncie um tema.Ocorre que este tema jamais foi explicitado, nãoexistindo. Fácil constatar que entre nós esta Razão estaráadormeci<strong>da</strong> ou pulveriza<strong>da</strong> em mil manifestações queseria problemático reunir num único nó com a virtude <strong>da</strong> sínteseTalvez seja impossível o tema deste livro, embora seu títulopossa ser até sugestivo. Não é fácil escrever sobre algo que só existirácaso seja inventado. Uma Razão Brasileira, não existindo atualmente,precisaria antes do mais ser providencia<strong>da</strong>, vindo à tona.Então, <strong>da</strong>s duas uma: ou este livro não pode ser escrito ou seráuma tentativa de "inventar" esta Razão, seguindo vestígios esparsosno romance, na poesia, na música popular e até - pois é capazde que mesmo aí transpareça - nalguns livros de Filosofia.


6 Um títuloMas estas alternativas devem ser rejeita<strong>da</strong>s. Primeiro, me éimpossível não escrever este livro. Segundo, é absur<strong>da</strong> a pretensãode "inventar", aqui, seu tema. Outra será sua pretensão.Partamos de algo pacífico: mal sabemos o que seja uma Razão<strong>Tupiniquim</strong>. Uma pia<strong>da</strong>, talvez. Hipótese que nos causaria grandeprazer. Gostamos muito de pia<strong>da</strong>s. Há todo um espírito brasileiroque se delicia com a própria agili<strong>da</strong>de mental, esta capaci<strong>da</strong>dede ver o avesso <strong>da</strong>s coisas revelado numa palavra, frase, fato.Somos, os brasileiros, muito bem-humorados. Conseguimos rir detudo. Do governo que cai e do governo que sobe. Das instituiçõesque deveriam estar a nosso serviço, dos dirigentes que deveriamrepresentar nossos interesses. E não é só. Chegamos a fazer pia<strong>da</strong>ssobre nossa capaci<strong>da</strong>de de fazer pia<strong>da</strong>s. Na<strong>da</strong> mais ilustrativodo que a série de pia<strong>da</strong>s onde representantes de outros países sãoridicularizados pelo desconcertante "jeitinho" de um brasileiro.Neste plano, seja dito, nos movemos com facili<strong>da</strong>de gritante.Desta atitude seria útil extrair o avesso. Embora tenhamosuma imensa mitologia construí<strong>da</strong> em cima de nosso jeito piadístico,no momento de pensar não admitimos pia<strong>da</strong>. Queremos a coisaséria. Frases na ordem inversa, palavras raras, citações latinae é impossível qualquer pia<strong>da</strong> em latim, creio. Isto criou situaçõesconstrangedoras, como as fúteis críticas sérias a Oswald de Ande, acusado de mero piadista. Estranha gente, esta. Gaba seu inimitáveljeito piadístico, mas na hora <strong>da</strong>s coisas "culturais" mergulha num escafandro greco-romano.j Creio que a existência de uma pia<strong>da</strong> tipicamente brasileiradeveria ser objeto de estudo mais aprofun<strong>da</strong>do. Possuirá característicasespecíficas? Que atitudes básicas revela? Uma saudávelmaneira de suportar um existir humilhado? Um modo de estar acima<strong>da</strong>quilo que amesquinha nosso dia a dia? Talvez sim. Certamentesim. Uns reagem com dramatici<strong>da</strong>de, tragédia e muito sangue- ocorreu-nos reagir com o riso.Talvez uma posição existencial muito nossa. O riso - um certotipo de riso, o nosso - nos salva, tiraniza o tirano, amesquinhaquem nos tortura, exorciza nossas angústias. Não creio, aqui de


Um título 7meu ponto de vista brasileiro - e que outro ponto de vista poderiame importar? - que pudéssemos ter feito melhor.Há um perigo, porém. Sempre há um perigo. A mesma pia<strong>da</strong>que salva pode mascarar-se em alienação. Como qualquer criaçãohumana, também a pia<strong>da</strong> deve ser essencialmente crítica, jáque é de sua pretensão ser isso: uma forma de conhecimento. Ora,quando o riso se perde em pura facili<strong>da</strong>de, em distração, morre aatitude crítica. E o "jeito piadístico" estará a serviço de nossa inatentici<strong>da</strong>de. Há indícios, entre nós, de tal coisa: deixar como estápra ver como é que fica; não esquentar a cabeça; analisa não; dáseum jeito.O conformismo brasileiro encontra aí seu terreno de eleição.Justificar, por exemplo, sua própria condição - dependência, insolvênciapolítica, jogos de privilégios - através de um simples "o brasileiro é assim mesmo", eis o que impede seja cria<strong>da</strong> entre nósuma atitude tipicamente brasileira ao nível <strong>da</strong> reflexão crítica, propostae assumi<strong>da</strong> como nossa. Desconhecendo-se, mal sabendode uma Razão <strong>Tupiniquim</strong>, o brasileiro aliena-se de dois modos:rindo de sua sem-importância ou delirando em torno do "país dofuturo", em variados "anauês". Na ver<strong>da</strong>de, conformismo e ausênciade poder crítico, pois nos dois casos há um abandono - "deixacomo está para ver como é que fica" - e uma esperança mágica - "dá-se um jeito".Mergulhado num escafandro greco-romano - embora não sejanem grego nem romano -, o brasileiro foge de sua identi<strong>da</strong>de.Tem sido na Filosofia que o espírito humano tem buscado sua auto-revelação.Porém, autocomplacente e conformista, sujeito sério brasileiro ain<strong>da</strong> não produziu Filosofia. Assim, é necessário advertirque um pensamento brasileiro jamais esteve lá onde tem sidoprocurado: teses universitárias, cursos de graduação e pós-graduação,revistas especializa<strong>da</strong>s - e logo se verá por quê. No bolorde nosso "pensamento oficial" não se encontra qualquer sinal deuma atitude que assuma o Brasil e preten<strong>da</strong> pensá-lo em nossostermos. Além do palavrório ari<strong>da</strong>mente técnico e estéril, <strong>da</strong>s idéi


8 Um títulogerais, <strong>da</strong>s teses que antecipa<strong>da</strong>mente sabemos como vão concluir,<strong>da</strong>s idéias bem pensantes, na<strong>da</strong> encontramos que possa denunciara presença de um pensamento brasileiro entre nossos "filósofosoficiais", vítimas de um discurso que não pensa, delira.Este livro inviável começa, pois, com uma série de advertências. A questão de um pensamento brasileiro deverá brotar deuma reali<strong>da</strong>de brasileira - não do "pensamento" e <strong>da</strong> "reali<strong>da</strong>de"oficiais. Deve inventar seus temas, ritmo, linguagem. E inventarseus pontos de vista. Obras como as de Mário de Andrade, Oswaldde Andrade, Machado de Assis, Lima Barreto, Sérgio Buarquede Holan<strong>da</strong>, Noel, Chico Buarque, além <strong>da</strong>quilo que se temfeito no campo <strong>da</strong>s ciências humanas nos últimos anos, têm maisa nos dizer do que as maçantes teses universitárias nas quais a Filosofia se mascara no Brasil. O mesmo se diga do torcedor de futebol,<strong>da</strong> porta-estan<strong>da</strong>rte e do homem <strong>da</strong> rua em geralMas não será apenas isso que irá tornar viável este livro.Uma Razão não se faz com um livro. Provisoriamente, permaneçamosem nossos limites. Não se trata de "inventar" uma Razão <strong>Tupiniquim</strong>,mas de propor um projeto, um certo tipo de pretensãocertamente quixotesca e evidentemente absur<strong>da</strong>: pensar o que seé, como se é.


Capítulo 2A sério: a serie<strong>da</strong>


10 A séno: a serie<strong>da</strong>Aliás muito difícil nesta prosa saber onde terminaa blague onde principia a serie<strong>da</strong>de.Nem eu sei.MÁRIO DE ANDRADE(Prefácio InteressaNo capítulo anterior levantou-se um tema para um título.É necessário não desperdiçar título tão sugestivo. Cabagora perguntar: trata-se de tema "sério"?Pelo que ficou dito, propõe-se ser sério, não umapia<strong>da</strong>. Quero que me enten<strong>da</strong>m: não uma pia<strong>da</strong> em seusentido alienante. É tema que deverá ser "seriamente" considerado.Mas: conseguiremos pensar "a sério"? Razão <strong>Tupiniquim</strong>?Não é coisa no que se pense - e sobretudo nestes termos. Só podeser brincadeira, jamais um tema "sério". Quer dizer: não constade nenhuma tese defendi<strong>da</strong> na Sorbonne ou em Freiberg.Prestando atenção, vemos que há vários empregos possíveispara a palavra "sério" e, conseqüentemente, vários sentidos para "serie<strong>da</strong>de". Creio que isso fique claro se considerarmos estasduas ocorrências: "Fulano de Tal é um homem sério" e "Fulde Tal leva a sério seu trabalho".Entre os dois empregos não há apenas o acréscimo de umaletra, mas uma mu<strong>da</strong>nça de perspectiva e de acentuação. Mudouo caráter <strong>da</strong> serie<strong>da</strong>de em questão. No primeiro caso queremosdizer que Fulano de Tal é um homem que zela pela serie<strong>da</strong>de <strong>da</strong>sjaparências. É respeitador <strong>da</strong>s normas e convenções sociais. Seriaincapaz de "sair <strong>da</strong> linha". Dele não se esperam coisas que fujam


A séno: a serie<strong>da</strong>de 11ao normal estatístico. Isto vale dizer: Fulano de Tal é um homemrespeitador e respeitável.Na segun<strong>da</strong> ocorrência, a serie<strong>da</strong>de em questão remete-se aoutra gama de significações. Levar a sério, seja um trabalho,lugar ou um amor, não consiste no zelo pela vigência de normassociais. Ao contrário. O acento faz com que to<strong>da</strong> carga significativarecaia sobre o aspecto interno e virtualmente negador do socialmenteadmitido. Se levo a sério, isto é algo que sai de mim emreção ao objeto <strong>da</strong> serie<strong>da</strong>de. Se sou sério, me coisifico como objetode serie<strong>da</strong>de. Aí está a diferença entre o que é dinâmico - etenamente em questão -, encontrado no a sério, e o caráter desa acaba<strong>da</strong> e estéril <strong>da</strong> serie<strong>da</strong>de do sujeito objetificado. A sérirevigoro o mundo com uma quanti<strong>da</strong>de imensa de significações.Sério, reduzo-me a objeto morto, caricato, de existir centradoexterno.Ao levar a sério, estou profun<strong>da</strong>mente interessado em alma coisa, a ponto de voltar to<strong>da</strong>s as minhas energias no sentidode sua realização - outro não sendo o princípio de erotização doagir. Mesmo quando isso exige "sair <strong>da</strong> linha". Só aqui poderemosencontrar o germe revolucionário indispensável à criativi<strong>da</strong>de.Fixemos, por exemplo, o caso do artista. O protótipo do artista,se quiserem. E óbvio que aí encontramos uma figura muito distante<strong>da</strong>quilo que se considera sério. Valores não convencionpalavras e frases talvez extravagantes, um modo de vi<strong>da</strong> que torceo nariz aos bem pensantes. O artista - e o filósofo, quando fielà sua vocação igualmente marginal - tem recebido ao longo <strong>da</strong>história o rótulo de louco. E sua "loucura" consiste nisto: não éum homem sério.Por oposição, na<strong>da</strong> parece ser levado tão a sério quanto o tbalho artístico. Ativi<strong>da</strong>de desinteressa<strong>da</strong> - não no sentido de alienação<strong>da</strong>s questões de sua época, mas em oposição à serie<strong>da</strong>de<strong>da</strong>quilo que é vigente. Não é sem motivo que hoje se busca no artistaum modelo de ação não repressiva e de reerotização do agir.O critério segundo o qual se orienta não é o lucro ou a dominaçãodo outro, sendo flagrante que o artista realiza um conjunto de valoresque se chocam frontalmente com aqueles que são vigentes.


12 A séno: a serie<strong>da</strong>No homem sério, ao contrário, encontramos a perfeita ennação do "interessado" - palavra agora utiliza<strong>da</strong> em sua conotaçãomenor: eu como objeto <strong>da</strong> serie<strong>da</strong>de. É ambicioso, calculista,visa lucro, poder, organiza suas relações em termos de futuro proveitoetc. Curioso notar que na<strong>da</strong> poderia estar tão distante dosvalores idealmente apregoados pela tradição do pensamento ocidentaldo que o homem sério. No entanto, é o artista que, ao ccretizar estes valores, acaba recebendo to<strong>da</strong> a carga de agressãosob o rótulo de "louco".O artista, este marginal, é objeto de tabu, suportando a mesmaagressiva ambivalência por parte do homem sério: amor e ódAliás, duas são as coisas que o homem sério faz ao chegar aoder: instaura a censura e constrói suntuosos museus e teatros. Edistribui prêmios literários. Isso só parecerá contraditório se deixarmos de considerar que existem duas maneiras de aniquilar com oartista: censurando-o ou promovendo-o a uma espécie de ornamentosocial. E é assim que o homem sério exorciza aquilo que teme.I Algumas conclusões são possíveis. Antes de mais na<strong>da</strong>, é óbvioque o sério está a serviço de uma máscara social - é umaisona que assumo. Ou: que me assume. Casca normativa que nosvem do exterior e que nos dita o que convém, esta a essência detal serie<strong>da</strong>de. A partir disso, pouco ou na<strong>da</strong> importam as intuiçõesque proce<strong>da</strong>m do interior, ficando nossa expressão mais pessoal ecrítica elimina<strong>da</strong>. Eis como existem coisas que um professor faz -e outras que não faz. Usar óculos, ser carrancudo e empertigado.Afogar-se e suar desespera<strong>da</strong>mente num terno e gravata. Falarnum jargão convencional e altamente "erudito" - coisas que cabem,que convêm. Outras, nem tanto.O mesmo se dá com aqueles que praticam a Filosofia entrenós,a imensa maioria composta por professores. Existem coisassérias, consagra<strong>da</strong>s pelo uso acadêmico, de bom tom e alta ilusção. São coisas que vêm sendo discuti<strong>da</strong>s na Sorbonne, em Oxford,publica<strong>da</strong>s em Paris ou Berlim, apresenta<strong>da</strong>s em congressos. Constituiua Filosofia, desta forma, seus próprios temas e maneiras detratá-los - aqueles que convêm. Quer dizer, seus sufocantes ternose gravatas. E o triunfo do homem sério é atingido quando se ch


A sério: a serie<strong>da</strong>de 13ga à completa ritualização. Quando já não importa o dito, mas amaneira de dizer dentro de padrões previamente consagrados. Assim,uma comunicação a um congresso pode ser absolutamentevazia e soberbamente tola - mas, cumprido o ritual, o aspecto "sacrossanto"<strong>da</strong> cultura é preservado. Eis aí coisas convenientes, perfeitamentesérias.Quero com isto dizer - não principalmente e não só - queo tema providenciado para este título exigiria sair do sério. Pce evidente que Filosofia brasileira só existirá a partir do momentoque vier a ser, como a pia<strong>da</strong>, uma investigação do avesso <strong>da</strong> serie<strong>da</strong>devigente. Obras sérias são feitas com arquivos, notas ao<strong>da</strong> página e num jargão que me aborrece. É esta máscara sérque vem sufocando o pensamento brasileiro, onde ela mais profun<strong>da</strong>menteaderiu ao rosto. A ritualização, triunfo do sério, consiexatamente nisto: fala-se agora sobre temas adequados, pouco importandose importam. Vale dizer: mesmo que se trate de especulaçõessem qualquer raiz na reali<strong>da</strong>de que nos circun<strong>da</strong>. Assim,perdeu-se a ligação e a referência crítica à reali<strong>da</strong>de, que semprefoi a pretensão básica <strong>da</strong> Filosofia quando soube ser fiel à sua missãomarginal.Faz algum tempo. li uma entrevista de Nelson Rodrigues -exemplo de típica inteligência brasileira cujos descaminhos só nosresta lamentar - em que dizia que o mais grave defeito dos personagensde romance brasileiro é serem incapazes de cobrar um escanteio.Por detrás do efeito de espírito, uma intuição radical: entre-nós perdeu-se o contato com a reali<strong>da</strong>de em torno.Isso tudo vem a ser ain<strong>da</strong> mais espantoso se observarmosque nossa atitude corriqueira - a do brasileiro, vale dizer - é deprofun<strong>da</strong> aversão ao formal. Temos horror à pompa. Um traçobásico do humor brasileiro, e, portanto, <strong>da</strong> sabedoria do brasileiro,é desestruturar qualquer pomposi<strong>da</strong>de, desarmando as tentati-


14 A sério-, a seriedvas de empostação. Já as expressões <strong>da</strong> língua revelam isto. Umfrancês qualquer pode dizer: "Je vous en prie" ou "Je suis enchantéde faire votre connaissance". Isto, ao pé <strong>da</strong> letra, é ridículo emportuguês. Um escritor alemão pode, por exemplo, semear generosospontos de exclamação ao longo do que escreve. Em termosbrasileiros, na<strong>da</strong> mais chocante do que uma exclamação. Não conferecom nosso natural ceticismo, nossa oblíqua maneira de olhar.Em nós é espontânea a tendência a ver o avesso <strong>da</strong>s coisas. Se dizque qualquer personali<strong>da</strong>de mundial, com dois dias de Brasil, jánão seria mais leva<strong>da</strong> a sério.Entretanto, é no Brasil onde o falar, o escrever e o pensarvieram a ser as coisas mais formaliza<strong>da</strong>s e rígi<strong>da</strong>s que se conhece.Todo sujeito que sobe numa tribuna julga essencial, antes do mais,colocar-se na ponta dos pés e no alto de seus tamancos. Essencialtrocar to<strong>da</strong>s as palavras usuais por palavras que estranham nossomodo. Construir frases numa ordem que jamais usaria para pedirum cafezinho. E falar sobre coisas para as quais nos custa encontrarreferência na reali<strong>da</strong>de em volta. No intelectual brasileiro quediscursa, triunfa o sério - expressão de uma classe privilegia<strong>da</strong> diate <strong>da</strong> multidão analfabeta. No homem sério, triunfa a Razão Ornmental.O melhor exemplo disto talvez seja o terno e gravata. Esteuso revela entre-nós muito mais do que se poderia supor. Além<strong>da</strong> natural aversão ao formalismo, as razões de clima: este é umpaís onde, na maior extensão, o calor é brutal. Apesar disto, sempreque se trata de realizar uma ativi<strong>da</strong>de "cultural" - apresentaruma aula, discursar, escrever um livro ou pensar -, o brasileiro sériomergulha num terno e gravata.Este triunfo do externo não significa apenas a submissão aovigente. Significa mais. A bem dizer, determina que o discurso,em terno e gravata, fuja <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de brasileira. E óbvio que ninguémsaberá cobrar um escanteio nestes trajes. Pelo mesmo motivo, na<strong>da</strong> poderá dizer de importante, que importe. A roupa determina,no caso, um ato de seletivi<strong>da</strong>de que procede do vigente: apartir do momento em que a assumo, uma série de coisas deixamde ser urgentes. Não as vejo. Não são suficientemente sérias.


A séno.- a serie<strong>da</strong>de 15tão, a fuga para um universo adequado ao traje: a fria Europa.Assim, o filósofo brasileiro, capaz de vôos tão mirabolantesno tempo e no espaço, capaz de pensar o século XIII ou as cosmovisões européias, não é capaz, pela armadura na qual se encontra,de enxergar um palmo diante do nariz. Este mesmo "pensador"não é capaz de cobrar um escanteio ou <strong>da</strong>nçar um samba. O quelevanta a questão fun<strong>da</strong>mental sobre as condições de possibili<strong>da</strong>dede um juízo filosóficobrasileiro: a Filosofia, de terno e gravata,pensa?Eis o que desejaria mostrar: nossa aversão à pompa acabaconvertendo-se em seu oposto - o triunfo <strong>da</strong> cultura formalistica.E, pois, urgente que assumamos a capaci<strong>da</strong>de a séno do humcomo forma de conhecimento. Só no momento em que, abandona<strong>da</strong>a tirania do sério, percebermos que nossa atitude mais profun<strong>da</strong>encontra-se em ver o avesso <strong>da</strong>s coisas é que poderemos retirarde nossas costas o peso de séculos de academismo. E só entãopensar por conta própria. Se deslocarmos a acentuação do externopara o interno, encontraremos condições de pensar o que estádiante de nosso nariz. E o que é Filosofia? É a tentativa, penso,de enxergar um palmo diante do nariz - o que não é tão fácil nemtão inútil quanto muitos pensam. Afinal, o peixe é quem menossabe <strong>da</strong> água.


16A séno: a serie<strong>da</strong>deCreio ser isto suficiente para denunciar nossa inautentici<strong>da</strong>deintelectual. Quando, com um mínimo de consciência crítica, investimos contra nossos deuses e fantasmas, nossos sagrados preconceitos?Sempre <strong>da</strong>mos um jeito? E o que quer dizer isto? Uma virtude,uma maleabili<strong>da</strong>de maior? Este é o país <strong>da</strong>s "revoluções semsangue"? De fato e historicamente? E o que significa isto? Umhumanismo superior? Falta de caráter? Um deixar como está para ver como é que fica? Mito <strong>da</strong> conciliação? Fuga do a sério?Vejamos bem: se este é o país do futebol, por que nossospersonagens de romance não sabem cobrar um escanteio? Ou seráo país do eterno carnaval, <strong>da</strong> praia, do cafezinho, do papo descontraído,do funcionário público, do herói sem nenhum carátedo chope gelado, ou, antes e acima de tudo, o país do jogo do bichoe <strong>da</strong> loteria esportiva, revivência dos mitos do bandeirante?Mas qual a Razão - se há - implícita nisto? Qual o pensar que<strong>da</strong>í decorre? Qual o projeto existencial que a tudo isso informa?Em suma: o que significa isto?Não sabemos. Estes temas ain<strong>da</strong> não adquiriram o status deassunto sério, pois o intelectual brasileiro só leva a sério osério, óbvia inversão. Onde o hábito faz o monge.


Capítub 3Uma Razãoque se expressa


18 Uma Sazão que se expressaMARIO DE ANDRADE(Prefácio InteressanFor muitos anos procurei-me amim mesmo. Achei.Agora nâo me digam que ando àprocura <strong>da</strong> originali<strong>da</strong>de, porquejá descobri onde estava,pertence-me, é minha.Sempre que uma Razão se expressa, inventa Filosofia.O que chamamos de Filosofia grega na<strong>da</strong> mais é do queo síreap-íease cultural que a Razão grega realizou de simesma. É deste ato - mais simples do que gostariamde supor os pensadores tupiniquins -, no qual uma Razãose descobre em sua originali<strong>da</strong>de e conhece seus mais íntimosprojetos, que emerge a possibili<strong>da</strong>de de Filosofia.Mas no que consiste descobrir-se em sua originali<strong>da</strong>de? Temosaqui duas questões: sobre o que seja descobrir-se e sobre anatureza <strong>da</strong> originali<strong>da</strong>de. E algo anterior: as condições desta descoberta.Se parto do suposto que descobrir-se é, de algum modo, descobriralguma coisa, desde logo me coloco em oposição a isto quedeverei descobrir. No momento em que encontrasse tal objeto, teriaconcluído minha tarefa. Mas não existe de fato na<strong>da</strong> com oque, ou com quem, eu deva me encontrar para descobrir-me. Osencontros com são externos e superficiais.


Uma Sazão que se expressa 19De fato, descobrir-se é encontrar-se em, pelo simples fatode não haver um "outro" que eu deva descobrir - desde o iníciosou eu quem está em questão. A descoberta é, pois, fenômeno primário: um re-conhecimento.Se nos despimos de to<strong>da</strong>s as artificiali<strong>da</strong>des que providenciamospara nossa instalação no real, verificamos que a questão sobreo esíar permanece além de to<strong>da</strong>s. Assim, desde o início a questão a respeito do que eu sou remete-se à pergunta: "Onde estou?" E onde estou? Num tempo, num lugar, entre coisas qu


20 Uma Sazão que se expressafaz pleno sentido. Fora disso, parecerá construção vazia e "platônica"- o que de fato nunca foi.Quanto a Tomás de Aquino - um dos autores, aliás, peloqual devemos ter o máximo de pie<strong>da</strong>de, pois foi vítima do piodos preconceitos, o preconceito a favor -, devemos notar que, "historicamente,o tomismo não surgiu como o sistema intemporal e'sabe-tudo' que nos apresentam (...) era a resposta patente a umproblema inadiável do momento".1 Encontrava-se em <strong>da</strong><strong>da</strong> posiçãoe dela buscava a resposta àquilo que era urgente questionar.Assim, tentar eternizá-lo, colocando-o acima do tempo, é desservilo- donde se conclui que, em matéria de desserviços, os tomistaconseguiram mais do que os mais severos críticos de Tomás dAquino. "Isola<strong>da</strong> do contexto histórico que a viu nascer, a síntesetomista aparece como anacrônica."2Os exemplos poderiam continuar e to<strong>da</strong> uma história <strong>da</strong> Filosofiapoderia ser escrita a partir <strong>da</strong>í. Fiquemos apenas com o essencial.Como entender Hegel sem a Revolução Francesa, sem referênciaà necessi<strong>da</strong>de de reorganização do Estado e <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>deem bases racionais? "Os esforços históricos concretos paraestabelecimento de um tipo de socie<strong>da</strong>de racional haviam sidotranspostos, na Alemanha, para o plano filosófico e transpareciamnos esforços para elaborar o conceito de Razão. Tal conceito estáno cerne <strong>da</strong> Filosofia de Hegel. Este sustenta que o pensamentofilosófico na<strong>da</strong> pressupõe além <strong>da</strong> Razão, que a história trata<strong>da</strong> Razão, e somente <strong>da</strong> Razão, e que o Estado é a realização <strong>da</strong>Razão. Estas afirmações não são compreensíveis, porém, se a Razão for toma<strong>da</strong> como um puro conceito metafísico, pois a idéiaque Hegel fazia <strong>da</strong> Razão preservava, ain<strong>da</strong> que sob forma idealística,os esforços materiais no sentido de uma vi<strong>da</strong> livre e racional.(...) A não ser que se apreen<strong>da</strong> com clareza o sentido de tais conceitos,e sua intrínseca correlação, o sistema de Hegel aparecerá1. SCHOOYANS, Michel. Tarefas e vocação <strong>da</strong> filosofia no BrasiL Revista Brasüede FúosoBa, São Paulo, 21(41):61-69, jan./fev./mar., 1961, p. 65.2 Idem, ibidem.


Uma Sazio que se expressa 21como a obscura metafísica que de fato nunca foi."3Fora, portanto, <strong>da</strong>s urgências de seu tempo, os pensadoresnão chegam a fazer pleno sentido. Mas não basta ressaltar que todopensamento traz a marca de seu lugar e tempo - isto, de ummodo ou de outro, muitos aceitam. O vital é reconhecermos queum pensamento é original não por superar sua posição - o que éimpossível -, mas precisamente por <strong>da</strong>r forma e consistência a estetempo e apresentar uma revisão crítica <strong>da</strong>s questões de sua época,aí tendo origem. O pensamento é superior não a despeito deser situado, mas justamente por situar-se.Desta forma, embora entre as pretensões <strong>da</strong> Filosofia - e também<strong>da</strong> ciência, no caso - encontremos a de querer ultrapassar oespaço e o tempo, esta mesma possibili<strong>da</strong>de de superação radicaseno ato de assumir sua posição específica. Isto equivale a dizerque é justo esta pretensão que se encontra em jogo. Entre-nós,por exemplo, encontramos o apego extremo ao pensamento deoutros por julgarmos que só os outros poderão nos <strong>da</strong>r qualquerchave do saber. Assim, queremos nos descobrir num encontro comum pensamento qualquer, seja medieval ou grego, de hoje ou deontem. Aguar<strong>da</strong>mos uma solução estrangeta sem nos <strong>da</strong>rmos contade que, sendo estrangeta, será precisamente isto: estranha.o pensamento, antes <strong>da</strong> pretensão de ser atemporal, deve ter apretensão primária de não ser jamais estranho, o saber de um outro.Se exigirmos <strong>da</strong> Filosofia não ser apenas algo entre-nós, masFilosofia brasileira, é claro que estamos supondo uma originali<strong>da</strong>de,a nossa. Um erro seria, portanto, apegar-se a uma resposta estranha,que aqui não tenha nascido. Outro, confundir originali<strong>da</strong>decom novi<strong>da</strong>de. O novo é apenas um acidente do original. Querodizer: dele decorre em alguns casos. Uma formulação qualqueré original não pelo fato acidental de ser nova ou inédita, mas pelofato de esíar vincula<strong>da</strong> a determina<strong>da</strong>s origens. Produto de um3. MARCUSE, Herbert Razão e Revolução. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira,1969, p: 17.


22 Uma Razão que se expressaato do espírito que se enraíza em. Criar um automóvel sem motodireção e lugares e - suprema novi<strong>da</strong>de - que não transporte, seriaalgo absolutamente novo, rigorosamente inédito. Creio, no entanto,que sem nenhuma originali<strong>da</strong>de. O delírio novi<strong>da</strong>deiro e formalísticona arte, por exemplo, tem produzido resultados deste tipo- uma arte que se recusa a qualquer compromisso para bastarsenum auto-envolvimento aos limites do narcisismo. De fato istorevela tão-somente o vazio existencial, a ausência de qualquer projetocriador. Surge, de resto, num momento em que a arte perdeua noção de qualquer papel histórico.O original, em suma, é o avesso do estranho e do novo: temraízes aqui e de longa <strong>da</strong>ta.Coisas simples decorrem <strong>da</strong>í. Se não assumo minha posição,carecerei de um ponto de vista e, conseqüentemente, na<strong>da</strong> verei.E condição de visão estar em <strong>da</strong><strong>da</strong> posição e dela vislumbrar osobjetos. Ver é, ou envolve, um ato de seletivi<strong>da</strong>de. E só vejo deminha posição. Qualquer ver<strong>da</strong>de é minha ver<strong>da</strong>de - e só o seráse vier a ser minha. Não pretendo, como uma acusação ligeira esuperficial poderia supor, qualquer inexistência <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de. Visoinsistir em que é preciso ver, ou estar-vendo, <strong>da</strong> única maneirapossível: historicamente. O suposto <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de, de resto, é postuladointencionalmente na própria natureza do ato de pensar. Ocorreque a ver<strong>da</strong>de não se encontra onde muitos julgam que esteja.Se quisermos ser fiéis à ver<strong>da</strong>de, devemos supor que resi<strong>da</strong> nãoem nossos juízos (históricos, situados, mutáveis, refutáveis), mano limite projetivo destes juízos. A ver<strong>da</strong>de, sendo criação histórica,encontra-se no limite <strong>da</strong> direção para o qual apontam os juízos.Daí a refutabili<strong>da</strong>de indefini<strong>da</strong> do conhecimento, seja científico,seja filosófico. Daí a ilusão de esgotá-lo no juízo, uma vez que, historicamente - quer dizer: de fato e efetivamente -, a ver<strong>da</strong>de nãoreside no juízo, mas em sua projeção.A originali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Filosofia consiste em descobrir-se em determina<strong>da</strong>posição, assumindo-a reflexivamente. Além disso: se suapretensão básica é a ver<strong>da</strong>de, vale lembrar que esta só faz senti-


Vaia Sazão que se expressa 23do quando é minha. Mesmo a ver<strong>da</strong>de de um outro só poderá server<strong>da</strong>de para mim se dela me apropriar, antropofagicamente. Enão se poderia objetar, do ponto de vista de um pensamento rudimentar,que a ver<strong>da</strong>de em si já se encontrava lá. Por um motivosimples: ver<strong>da</strong>de em si não faz sentido algum.Eis por que uma Filosofia brasileira só terá condições de originali<strong>da</strong>dee existência quando se descobrir no Brasil. Estar no Brasilpara poder ser brasileira. E isto não tem ocorrido. Desde semprenosso pensar tem sido estranho, providenciado no estrangeiro.É imprescindível, portanto, a clara consciência de que um problemapara um alemão do século XX ou um grego do século Va.C. pode, perfeitamente, não ser um problema para mim. Ou:só o será se eu o fizer meu. E só poderei legitimamente fazê-lomeu se corresponder às importâncias e urgências diante <strong>da</strong>s quaisme encontro. Esta, a condição de possibili<strong>da</strong>de anterior a to<strong>da</strong> equalquer Filosofia. Não há aqui um elenco de coisas anteriormentefixa<strong>da</strong>s - "estranhamente" - que eu possa utilizar como um roteiroou espécie de índice, de tal maneira que, ao tratar de ca<strong>da</strong>um destes assuntos, eu esteja inevitavelmente fazendo Filosofia.Fazer Filosofia é fazer a Filosofia. O que envolve: seus temas eseu modo de abor<strong>da</strong>gem. Jamais posso dá-la como pressuposta,como se bastasse manuseá-la à maneira de um arquivo.Urge, pois, com relação aos temas e instrumentos "estranhamente"providenciados, que eu verifique se me-importam. Só entãoterei condições de aproximar-me deles a sério, fazendo cque sejam efetivamente meus. Condição para que meu conhecimentoseja um estar-vendo de minha posição - e não um abstratover fora do tempo e do espaço.Motivo pelo qual uma Razão só se expressa ao providenciarseus temas, sua linguagem, decorrência de encontrar-se em suaposição. A grande dificul<strong>da</strong>de, no sentido de fazer explodir to<strong>da</strong>uma construção séria <strong>da</strong> Filosofia que entre-nós se instalou, é rlizar a consciência de que o pensamento e seus objetos são pura


24 Uma Sazão que se expressainvenção. Com efeito, não havia um "problema" para a Filosofiagrega antes que os gregos o inventassem, assim como a IX? Sinfonianão estava em parte alguma antes que Beethoven a criasse.Não havia um "problema hegeliano" esperando por Hegel anteriormentea Hegel. Assim, não há um "problema" para a Razão Brasileiraque nos esteja esperando. Urge, isto sim, inventá-lo no próprioato de inventar um Filosofia brasileira. Nosso streap-tease cultural.Invenção, porém, que não se dá no vazio. Hegel, Tales ouMarcuse não injetaram um problema na consciência de seu tempo,assim como um médico implanta - "estranhamente" - um órgãoou tecido no corpo do paciente. Ao contrário, de Tales a Marcusea Filosofia fez vir à consciência reflexiva <strong>da</strong> época coisas queurgiam ser providencia<strong>da</strong>s. Não que, ao modo do em si acima referido,tais elementos lá estivessem em estado latente à espera deuma espécie de sucção reflexiva. Insista-se que os filósofos, ao inventaremFilosofia, inventaram igualmente o que importava e destacaramo que era urgente, o que se veio a perceber depois de tersido inventado. Daí a intuição original que gerou <strong>da</strong>do conjuntode idéias. A noção de que o pensamento é uma espécie de ápicreflexivo <strong>da</strong> consciência de seu tempo pode ser excessivamente romântica- mas é inevitável. E uma história <strong>da</strong> Filosofia que se rcuse a ser um amontoado de <strong>da</strong>dos terá por tarefa recuperar aquelasintuições que, ao longo <strong>da</strong> história, geraram pensamento.Assim, Filosofia é uma Razão que se expressa - fórmula ondea palavra Razão comparece carrega<strong>da</strong> de historici<strong>da</strong>de. E umaFilosofia brasileira precisaria ser o desnu<strong>da</strong>mento desta Razão queviemos a ser. Seja por excesso de pudor, por medo, o fato é queaté hoje não nos despimos. Talvez temendo na<strong>da</strong> encontrar pordebaixo de nossos trajes europeus, nosso infatigável terno e gravata.Ou talvez fosse para nós excessivamente doloroso descobrir-seem, enfrentando a radical solidão <strong>da</strong> nudez. Tiraríamos as roupaspara descobrir, absur<strong>da</strong>mente, que estamos nus. Sem máscarasde aplausos ou punições, sem nossa imagem de homens sériocheios de certezas. O que, afinal, fazer de uma nudez que não aceitamoscomo nossa?


Uma Sazão que se expressa 25A questão se reduz a algo simples: não existe uma "problemática"brasileiraà nossa espera. Urge ser inventa<strong>da</strong>. Inventa<strong>da</strong> e postaem questão - este, o esforço <strong>da</strong> Filosofia, desde sempre. Cabeperguntar se entre-nós encontramos sinais de tal esforço. Em resumo e di<strong>da</strong>ticamente: há uma Filosofia brasileira?


Capítulo 4Filosofia e negação


Filosofia e negação 27O passado é lição para se meditar,não para reproduzir.MARIO DE ANDRADE(Prefácio InteressaAFilosofia goza de um destino certamente trágico: devejustificar-se. Não no sentido em que as ciências devemjustificar-se. de, <strong>da</strong>s condições Quanto de à construção ciência, urge de seus saber objetos de sua e vali<strong>da</strong>­determinar,no conjunto <strong>da</strong> cultura, o lugar do conhecimentoque propõe. Não é o que ocorre com a Filosofia.A ciência e seu saber procedem de um movimento do espíritoem direção ao real que nos circun<strong>da</strong>, real suposto independentede mim. Em nossos dias isto assumiu um caráter pragmático:seu valor é o de seus resultados em termos de técnica. Antes mesmode determinado o lugar e a vali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> ciência, já <strong>da</strong>mos porsuposta sua importância. A ciência nos importa, sendo úseus resultados. Antes mesmo de questionarmos a respeito de seussupostos e conseqüências, <strong>da</strong>mos por admitido que os resultadosdo saber científico são desejáveis, gerando progresso. É claro quemal sabemos o que seja progresso, mas não importa: o cientista é,do ponto de vista do vigente, dispensado de defender a ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia<strong>da</strong> ciência. Ela já a tem, admiti<strong>da</strong>.As coisas mu<strong>da</strong>m quando tratamos <strong>da</strong> Filosofia. Torna-se agoraurgente justificar e assumir a Filosofia. Justificá-la não é ain<strong>da</strong>a defesa de sua ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia, mas algo anterior. Antes do mais, impli-


28 Filosofia e negaçãoca certa atitude geral diante do Universo - atitude muito diversa<strong>da</strong>quela adota<strong>da</strong> pela ciência. Nesta li<strong>da</strong>mos com determinadosobjetos munidos de determinados instrumentos, sendo que antesconvencionamos os limites e o valor de sua utilização. Na Filosofia,deparamos com um modo de colocar a existência em questão. Sendoque este modo gera seus próprios objetos. Não há, já foi visto,objetos que aí estejam - "filosoficamente" - à espera de um tratamentoadequado. Tais objetos são criados pelo espírito, isoladosnum ato de intuição. Não ocorre a simples seleção de um objeto,mas sua invenção. Por Sm, sua projeção existencial no plano denossas importâncias e urgências.Estes momentos - atitude, invenção, projeção e determinação<strong>da</strong>s urgências - descrevem um único processo. No entanto,não é tudo. Ocorre um momento paralelo: urge assumir a Filosofia.Talvez isto signifique algo simples: pergunta-se aqui se a Filosofiaé, para nós, importante. Será que, além do bolor acadêmicodo qual se reveste e <strong>da</strong> busca de sucesso intelectual, a Filosofia realmentenos importa? Responder a tal questão implica determinara distância que vai <strong>da</strong> justificação <strong>da</strong> atitude filosófica (crítica) aouso <strong>da</strong> Filosofia para justificar atitudes (ideologia).Não basta estabelecermos os vícios de nossa costumeira posiçãointelectual, ain<strong>da</strong> que isso seja decisivo. E preciso perguntaralém, na origem. Ou seja: precisamos mesmo de Filosofia? Proporesta questão não é um mero perguntar-se acadêmico - e "brilhante",num jogo de palavras. É levar o questionamento a seu limite:o limite de sua importância.É ver<strong>da</strong>de que qualquer executivo esbarra ao longo <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>com questões que constam entre aquelas problematiza<strong>da</strong>s pelosfilósofos. Mas só isto não concede importância a tais questpreciso que eu esteja envolvido num processo no qual tais questõesemerjam como decisivas, vindo a ser urgentes, quando as levoa sério.Descobrimos para lá <strong>da</strong> importância <strong>da</strong> Filosofia <strong>da</strong><strong>da</strong> pelohomem sério - erudição, brilho, status, justificação ideológicavigente - a importância <strong>da</strong> Filosofia quando leva<strong>da</strong> a sério -emergência <strong>da</strong> consciência negadora.


Filosofia e negação 29As questões decorrentes são as seguintes. Onde, entre-nós,esta importância a sério do filosofar? Onde, o objetopreocupações referido ao que nos rodeia e inventado por ato deuma consciência crítica brasileira? Onde, a autentici<strong>da</strong>de e a ci<strong>da</strong><strong>da</strong>niade uma Filosofia nossa?Estas, as questões que entre-nós foram extravia<strong>da</strong>s. Isto porquea grande tentação <strong>da</strong> Filosofia - algo que compartilha com aarte - é apresentar-se como "respeitável", quer dizer, com pretensõessérias.O conceito de responsabili<strong>da</strong>de é, assim visto, essencialmenteacrítico; e já sabemos que o homem respeitável é o homem sério. Tal homem está definitivamente comprometido com <strong>da</strong>do sistema,molde e fim de seus atos. A partir do momento em que a Filosofiaadquire respeitabili<strong>da</strong>de, pode conseguir tudo - verbas, diplomas,honrarias, imortali<strong>da</strong>des acadêmicas -, menos o essencial: espíritocrítico.Em livro de introdução à Filosofia, por exemplo, é comumencontrarmos a insistência com relação à "utili<strong>da</strong>de" <strong>da</strong> Filosofia- versão séria <strong>da</strong> importância. É apresenta<strong>da</strong> como coto desinteressado (o que, de resto, ou é equívoco ou não existe,sendo todo conhecimento interessado, já que é assumido como urgente),embora fosse melhor dizer inofensivo. E assim busca-semostrar os benefícios informativos e formativos - "espirituais" -<strong>da</strong> Filosofia. Esta atitude dos manuais equivale a pedir um lugarao sol para um pobre mendigo, o filósofo. Jura que é inofensivo,sério, e que cui<strong>da</strong> apenas <strong>da</strong>s coisas do espírito - e pede um pouco de sol. Desconfio que tal sujeito mendiga errado, já que não sabedo que precisa.Ao se ressaltar a utili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Filosofia - e é uma importânciaséria que lhe será <strong>da</strong><strong>da</strong> - estaremos de imediato liqui<strong>da</strong>ndo cesta Filosofia. Poderá a partir de então reproduzir ideologicamenteo que é vigente, só. "Pense" o que quiser, será sempre ideológica.Tal Filosofia ficará impossibilita<strong>da</strong> de, antes de mais na<strong>da</strong>,criar um mundo - o que equivale a dizer: destruir um mundo, aqueleque impede o próximo. Visará manter o mundo <strong>da</strong>do com to<strong>da</strong> a sua serie<strong>da</strong>de. Assim, as duas características anteriormente


30Filosofia e negaçãoexigi<strong>da</strong>s, autentici<strong>da</strong>de e ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia, ficam prejudica<strong>da</strong>s. E a Filosofiapermanecerá entre-nós como aquele agregado de Machadde Assis, o José Dias, que aplaude e concede para sobreviver.A Filosofia não pode prescindir de sua missão primeira: destruirum mundo. Efetivamente, o que é Filosofia? A mim pareceser isto: dizer o contrário.Esta, a lição primária que uma história do pensamento deveriasempre ressaltar. Os grandes momentos do pensamento surgemno auge de uma curva, <strong>da</strong>ndo consistência e definição a um momentodo processo histórico. E condensam isto numa intuição potencialmentecriadora. Imediatamente após o período de criaçãosurge a cristalização e a esterili<strong>da</strong>de - e aí encontramos os pretensosseguidores. É quando aquela intuição originária se perde nalgumaescolástica. Só mais tarde surgirá o ver<strong>da</strong>deiro sucessor: aqueleque disser o contrário, respondendo à intuição envelheci<strong>da</strong> em conceitocom uma nova intuição. E o processo segue.Antes de mais na<strong>da</strong>, Sócrates diz não a tudo que o precede,como Tales havia dito não às cosmogonias e como Platão dirá nãoa Sócrates - encontrando em Aristóteles aquele que lhe diz o contrário. Os ver<strong>da</strong>deiros seguidores de Platão não são os neoplatônicos,pois estes festejam um cadáver. Poderíamos construir to<strong>da</strong>uma história <strong>da</strong> Filosofia, que se recusasse a ser mero arsenal ilustrativode <strong>da</strong>dos históricos, mostrando que qualquer momento criadorfoi, na origem, uma negação. Isto não envolve, advirto, a idéiade uma necessária sucessão linear que conduzisse a um "progresso"contínuo para algo melhor - apenas envolve momentos legítimosde um processo que, embora produto humano, nos escapaem seu sentido globaLOswald de Andrade, que entre-nós representou um momentode devastadora destruição e, portanto, de máxima criação, fezbem em notar com relação à arte: "Essa necessi<strong>da</strong>de de modernizaré de todos os tempos (...) Giorgio Vasari, o grande crítico doRenascimento, fala sempre e insistindo em exaltar, na 'maneiramoderna' de Leonardo <strong>da</strong> Vinci, de Rafaelo Sanzio de Urbino,esses que são hoje os clarins supremos do classicismo. E o são justamenteporque foram 'modernistas'. Se não o fossem, aguavam


Filosofia e negação 31repetindo Giotto e Cimabue, em vez de produzir a Língua nova<strong>da</strong> Renascença."4Qualquer conhecimento inicia sendo negação, ou seja, comoessencialmente crítico. O que não é, está visto, exclusivi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>Filosofia. Das artes plásticas à ciência, assistimos à sucessão de intuiçõescriadoras degra<strong>da</strong>ndo-se em estereótipos até serem recuperadospor nova intuição.Há, no entanto, uma condição para este não. A crítica é algoa ser assumido, é uma posição do espírito. E não a assumo doponto de vista <strong>da</strong> eterni<strong>da</strong>de. Por um motivo simples: não estouna eterni<strong>da</strong>de. Estou no tempo, num lugar. Ao assumir a posturacrítica a partir deste tempo e lugar, deixa de haver distância entreo que digo e o que sou - inexistindo qualquer diferença entre estare ser. Digo o que sou. Isto é Filosofia. Meu streap-tease cultural.Entre-nós, porém, encontramos atitude oposta, que chamarede "mito <strong>da</strong> imparciali<strong>da</strong>de". Queremos estar acima <strong>da</strong>s oposições.Não no sentido de assumi-las e então resolvê-las. Mas no sentidode evitá-las e então dissolvê-las. Aguando, como diria Oswald deAndrade.E fato constante nossa tendência a evitar o choque de idéiase as toma<strong>da</strong>s de posição. Encontramos sempre um meio-termo entre,digamos, idealismo e realismo, subjetivismo e objetivismo, ehouve mesmo quem entre-nós encontrasse um meio-termo entrepositivismo e marxismo, disparate que me intriga. Tudo isto poderiaconsistir em empresa louvável, mas não do modo como a conduzimos:dissolvendo oposições. Cabe, a propósito, alertar que nomeio não está a virtude, como muitos pensam. No meio está omedíocre.Eis por que, não assumindo uma posição nossa, um pensarbrasileiro torna-se impossível - impossibilitado de criar por nãoaceitar destruir o passado que nos impuseram -, recusando assumirsua condição básica: que seja nosso, negador do alheio.4. ANDRADE, Oswald de. Ponta de Lança. 3? ed., Rio de Janeiro, Civilização Brasira, 1972, p. 12.


CapüubSO mito <strong>da</strong> imparciali<strong>da</strong>de:o ecletismo


O mito <strong>da</strong> imparciali<strong>da</strong>de: o ecletismoTrazendo em seu espírito o reflexo<strong>da</strong>s faces mercantil efeu<strong>da</strong>l do domínio, ceve a intel-Ugentsia nacional que conciliartambém o liberalismo econômicoe o instituto <strong>da</strong> escravatura,procurando ajustá-lo àreali<strong>da</strong>de do país. Ademais, tudoa levava a uma ideologia <strong>da</strong> mediação.PAULO MERCADANTE(A Consciência Conservadora no Brasil)Brasil aconteceu ser o paraíso de algumas outras coisas,além do futebol e do jogo do bicho. Entre elas, o ecletismoe o jeito."A corrente eclética representa o primeiro movimentofilosófico plenamente estruturado no Brasil (...).No meio século transcorrido entre as déca<strong>da</strong>s de 30 e 70 inseremse a formação, o apogeu e o declínio do ecletismo no BrasiL Assementes lança<strong>da</strong>s sob o manto <strong>da</strong> autori<strong>da</strong>de de Cousin, filósofooficial na França de Luís Filipe (1831/1848), encontraram terrenofértil Se não chega a estruturar-se numa autêntica corrente filosófica,a doutrina configura plenamente o espírito <strong>da</strong> elite dirigenteconstituí<strong>da</strong> durante este período. Sinônimo de simples justaposiçãde idéias, perde, no Brasü, to<strong>da</strong> e qualquer conotação negativa eé adotado, quase universalmente, com a denominação de esclarecido,qualificativo que visa sem dúvi<strong>da</strong> enobrecê-lo. Mais que isto,a própria vitória <strong>da</strong> conciliação no plano político, durante o Segundo Reinado, é atribuí<strong>da</strong> ao estado de espírito que se identificavacom o ecletismo."55. PAIM, Antônio. História <strong>da</strong>s Idéias Filosóficas no Brasil 1? ed., São Pa1967, pp. 75 e 104.


34 O mito <strong>da</strong> imparciali<strong>da</strong>de: o ecletismoAs idéias deste filósofo menor, Cousin, espécie de hegelianismo dissolvido aos limites <strong>da</strong> inconsistência, vieram a ser não apenasaquilo em que o espírito <strong>da</strong>s elites dominantes se viram retrata<strong>da</strong>s,mas, sobretudo, as frouxas bases sobre as quais se fundouuma autêntica ideologia <strong>da</strong> conciliação. Seus traços mais marcantesseriam: 1? - a desconfiança com os "sistemas", que seriam camisas-de-forçado espírito; 2? - a crença de que a "ver<strong>da</strong>de" poderia ser o resultado de um mosaico montado a partir de inúmerospensadores, o que, além de livrar-nos dos perigos dos sistemas,permitiria um enriquecimento indefinido, aproveitando-se de ca<strong>da</strong>sistema o "melhor" - <strong>da</strong>í a qualificação de "esclarecido"; diziaCousin: "O que recomendo é um ecletismo ilustrado que, julgandocom eqüi<strong>da</strong>de e inclusive com benevolência to<strong>da</strong>s as escolas,peça-lhes por empréstimo o que têm de ver<strong>da</strong>deiro e elimineque têm de falso"; 3? - finalmente, a crença tipicamente narcisistae imatura de que, assim agindo, estaríamos <strong>da</strong>ndo mostras de"espírito aberto", "esclarecido", não-dogmático - mito que serianotável relacionar com aquele <strong>da</strong> natural "bon<strong>da</strong>de" do brasileiro,ou com os mitos <strong>da</strong> "cordiali<strong>da</strong>de", <strong>da</strong> "democracia racial", <strong>da</strong>s "revoluçõessem sangue".Não é minha pretensão desenvolver aqui as peripécias históricasdescritas pelo ecletismo entre-nós.6 Quero outra coisa. Me pareceque o ecletismo não foi entre-nós apenas um movimento, oprimeiro a se estruturar, ou o simples reflexo de uma determina<strong>da</strong>situação política e social. Produto direto <strong>da</strong> indiferenciação intelectualbrasileira, que por sua vez é produto <strong>da</strong> dependência culturalque até hoje perdura, creio que no ecletismo tenhamos reveladomuito mais do que normalmente se supõe. É manifestação dealguns traços básicos de nosso caráter intelectual e de nossa condção política, e continua vivo, ain<strong>da</strong> encontradiço, prezado e vigenteentre-nós. Saber como se manifesta, porque optamos por ele,6. Sobre o tema, além <strong>da</strong> obra de Antônio Paim acima referi<strong>da</strong>, o livro de José Honório Rodrigues: Conciliação e Reforma no Brasil, um desafio histórico-cultural. CivilizaçãoBrasileira, Rio de Janeiro, 1965, onde se faz uma análise de nossa característica "politicade conciliação" e a obra A Consciência Conservadora no Brasil, de Paulo Merca<strong>da</strong>nte, Riode Janeiro, Civilização Brasileira, 2? ed., 1972


O mito <strong>da</strong> imparciali<strong>da</strong>de: o ecletismo 35onde se encontra, eis algumas coisas que urgiriam ser respondi<strong>da</strong>s.Compõe o que chamo de um mito brasileiro: o espírito <strong>da</strong> imparciali<strong>da</strong>de.Fica claro neste mito que, se ain<strong>da</strong> não criamos qualquer posiçãofilosófica nossa, demos varia<strong>da</strong>s mostras de imaturi<strong>da</strong>de intelectual,e, no ecletismo, retratamos nossa hesitação em assumirum ponto de vista que nos permitisse uma síntese original De resto,reflexo <strong>da</strong> dependência cultural que desde sempre nos acompanha.Gostaria de começar por uma afirmação óbvia e altament"ingênua": a de que o Brasil é um "país jovem". Esta expressão,que circulou com sucesso durante anos, ressalta nossa pujança virtuale grandeza ain<strong>da</strong> não realiza<strong>da</strong>. Com a transformação históricaopera<strong>da</strong> pela consciência <strong>da</strong> dependência, caiu em desuso. Ea noção de "país subdesenvolvido" ganhou ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia.7Mas peço licença para usar a expressão num sentido mais simples e elementar, prescindindo por ora <strong>da</strong>s implicações <strong>da</strong> dependênciapara a devi<strong>da</strong> compreensão <strong>da</strong> despersonalização em quenos encontramos. Viso ressaltar tão-somente que este país foi descobertoem 1500 - há 476 anos - mas que apenas em 1808, vindoa Corte para o Brasil, ganhou alguns favores mínimos, sem osquais um país não pode (sequer) pretender existir. E só em 1822tornamo-nos formalmente independentes. Estes <strong>da</strong>dos poderiamser complicados para ganhar em consistência, mas pretendo me limitara isto: de.país colonizado passamos a fazer parte dos satélitesdos impérios que emergiam e, de fato e materialmente, nossadependência prolongou-se, assumindo diferentes formas, às vezestão sutis que chegamos a pensar, sem brincadeiras, que éramos livres.Resta, portanto, a constatação de que este país tem uns centoe poucos anos, num critério fraco e condescendente - e que teriaain<strong>da</strong> menos, caso o critério viesse a ser mais severo.7. CANDIDO, Antonio. Literatura e subdesenvolvimento. Reviste Argumento, São Paulo,1:6-24, out, 1973.


36O mito <strong>da</strong> imparciali<strong>da</strong>de: o ecletismoO jovem leva uma vantagem: ain<strong>da</strong> não se cristalizou em posiçõesrígi<strong>da</strong>s e defensivas. Há, no jovem, a disponibili<strong>da</strong>de indispensávelao trabalho criador: o gosto pelo novo, o risco do incerto.Em oposição, o passar do tempo se acumula sob forma de rigideze fracasso na criação. Mas cuidemos <strong>da</strong> conclusão apressa<strong>da</strong>:a de que o jovem seja por si mais criador do que o idoso. E cuidemos<strong>da</strong> facili<strong>da</strong>de oposta: a de que só o homem "experiente" sejacapaz de criar. Não. O tempo não é experiência. Pode ser esclerose.Numa visão ligeira, envelhecer seria um caminhar no sentidodo futuro - o que não corresponde à ver<strong>da</strong>de. Caminhar emdireção ao futuro é a característica do jovem, ocorrendo envelhecimentoquando se inicia o processo inverso: a volta ao passado, suapreservação, dele se fazendo sempre mais dependente. No que envelhece,o risco é o hábito - a infindável repetição <strong>da</strong>quilo que foantes uma resposta criadora. O perigo é a tensão, inerente ao passado,de buscar perpetuar-se, oferecendo as mesmas respostas aquestões que agora são outras.Esta, a ameaça do passado. Mas há outro ângulo. O passado não se acumula somente sob a forma de hábito, mas, virtualmente,introduz a possibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> memória. E se o hábito faz comque se repitam mecanicamente respostas caducas, a memória é opotencial criador sempre disponível com o qual a história pode contarO jovem está, num certo limite, livre de um passado que ameaceescravizá-lo - simplesmente por não existir ou por não ter atingidoa intensi<strong>da</strong>de necessária. Na aparência - como se isso nãodependesse de uma posição do espírito -, sendo o Brasil um paísjovem, estaríamos menos próximos dos perigos <strong>da</strong> esclerose. Macom o que podemos contar? Já foi dito, de resto, ser o Brasil umpaís sem memória. Nosso ceticismo destruiria esta consideraçãono sentido de levar em conta - com relação ao passado. Pareceque estamos condenados a sempre partir do zero.Desta forma, um país jovem pode ser apenas infantil. Se nãocorre o risco <strong>da</strong> esclerose, não conta com o potencial criador <strong>da</strong>memória.É neste contexto contraditório - na ver<strong>da</strong>de apenas vital -que se dá (ou não) o ato de assumir-se uma personali<strong>da</strong>de defini-


O mito <strong>da</strong> imparciali<strong>da</strong>de: o ecletismo 37<strong>da</strong>, propondo uma Filosofia. Foi concretizando esta personali<strong>da</strong>deassumi<strong>da</strong> que ao longo <strong>da</strong> história o espírito criou a si mesmoPor isso, a questão de uma Filosofia brasileira encontra-se com aurgência de ter que assumir uma Razão Brasileira.Para que isso ocorra, precisamos atinar que o passado, o presentee o futuro não são coisas <strong>da</strong><strong>da</strong>s, mas cria<strong>da</strong>s - primeira condiçãode pensamento original. O passado, na aparência, é <strong>da</strong>do -do ponto de vista em que nos encontramos. Mas ele mesmo éuma questão em aberto: foi feito e poderá ser recriado em inúmerossentidos se encarado como memória. Só na medi<strong>da</strong> em queassumirmos a essencial temporali<strong>da</strong>de e contingência inerente aoprocesso de criação de um espírito brasileiro, assumindo ao mesmotempo nossas contradições e alienações, tomaremos posse deuma <strong>da</strong>s condições do pensar brasileiro: nossa posição.Algumas constatações de fato. Não há, em Filosofia, algo queseja uma posição brasileira. Há uma ilusão: a de que possamos, imparcialmente,usufruir benefícios <strong>da</strong>s mais diversas reflexões estrangeiras,delas retirando o "melhor". Desde sempre visamos extrairdo pensado por outros aquilo que poderá nos ser útil - e isto constitui o mito <strong>da</strong> imparciali<strong>da</strong>de. Entre-nós, é atitude freqüente buscar dissolver oposições, justapondo subjetivismo e objetivismo, materialismoe idealismo, racionalismo e empirismo - como se tal atitudepudesse, impunemente, ser adota<strong>da</strong>. Sem nos cobrar o preço<strong>da</strong>quilo que poderíamos ser. Assim, nos falseamos, na<strong>da</strong> sendoE na<strong>da</strong> assimilamos. A condição mínima de assimilação é a existênciaprévia de uma estrutura que assimile. Não existe assimilaçãoneutra, na qual só a objetivi<strong>da</strong>de bruta do conhecido importe. Exige-sea presença do fator originante do conhecimento: a posiçãodo sujeito.E pretensão ingênua querer tudo assimilar, dissolvendo oposições,extraindo de ca<strong>da</strong> um o "melhor". Para extrair o "melhor",é necessário seletivi<strong>da</strong>de - e esta envolve um critério. Logo, um


38 O mito <strong>da</strong> imparciali<strong>da</strong>de: o ecletismoposição. O vazio na<strong>da</strong> assimila. E o que determinaria o "melhor"?Fator originante do conhecimento, a posição do sujeito équem organiza a seletivi<strong>da</strong>de. A distinção entre um conhecimentocrítico e um conhecimento ingênuo como o praticado no Brasil éesta: a consciência clara dos critérios adotados. Só a partir <strong>da</strong> consciênciade um critério é que deixo de me encontrar diante de umuniverso neutro, fazendo surgir um universo cognoscíveL Só assimhaverá assimilação, não havendo apenas coisas a serem assimila<strong>da</strong>s,mas uma ativi<strong>da</strong>de criadora do sujeito que assimila.Se no ecletismo se fizer presente algum critério, deixa de serecletismo, passando a ser uma posição caracteriza<strong>da</strong> pelo critérioexistente. Além de ingênuo, o ecletismo é impossível. Como sempre haverá, por mais obscuro, algum critério, o ecletismo determina um tipo de Filosofia enlouqueci<strong>da</strong>, que não sabe de si. Pois fazerFilosofia é colocar em questão os critérios, os pressupostos comos quais trabalho. Uma Filosofia não filosofa<strong>da</strong>, eis a estranha coisa- numa estranha expressão - que se tem praticado no Brasil.Nosso sono dogmático consiste em assumirmos uma posição queé, ao mesmo tempo, ingênua e contraditória.Ausência de critérios críticos, além de absur<strong>da</strong> e caótica, npode ser confundi<strong>da</strong> com abertura intelectual e menos ain<strong>da</strong> com"esclarecimento". E despersonalização intelectual e produz o maisbaixo dos produtos culturais: o ecletismo e seu pragmatismo cego.Essa indiferenciação intelectual gerou um monstrengo em termosde atitude filosófica: evitar oposições e dissolvê-las, ao invés de enfrentá-las e resolvê-las. Sérgio Buarque de Holan<strong>da</strong> deu expressãoa este fenômeno: "E freqüente, entre os brasileiros que se presumem intelectuais, a facili<strong>da</strong>de com que se alimentam, ao mesmotempo, de doutrinas dos mais variados matizes e com que sustentam,simultaneamente, as convicções mais díspares. Basta que taisdoutrinas e convicções se possam impor à imaginação por uma roupagemvistosa: palavras bonitas ou argumentos sedutores. A contradiçãoque porventura possa existir entre elas parece-lhes tãopouco chocante, que alguns se alarmariam e se revoltariam sinceramentequando não achássemos legítima sua capaci<strong>da</strong>de de aceitálas com o mesmo entusiasmo. Não há, talvez, nenhum exagero


O mito <strong>da</strong> imparciali<strong>da</strong>de: o ecletismo39em dizer-se que quase todos os nossos homens de grande talentosão um pouco dessa espécie".8O que não quer dizer, sendo impossível, que não tenhamoscritérios seletivos. Mas são <strong>da</strong> pior espécie, sem consciência de sisem reflexão ao nível crítico. Não usamos nossos critérios, somosuas vítimas. São formados por algo próximo do meio-termo (onde, já foi visto, não está a virtude, mas o medíocre), qualquer coisa que gostamos de chamar de bom senso, ponderação, sensatez,e que eu prefiro chamar de "senso impensado".Um país sem memória não pode ficar esperando que um passado caia do céu: precisa construí-lo, pois mesmo um passado seconstrói - quando o faço para mim. E o paradoxo se dissolve: constniímos um passado voltando-nos para o futuro, escolhendo umprojeto, um ponto de vista. Nossa posição.Este gesto nos faltou: apostar. Lembremos que assumir umaposição não é fechar-se ao real, mas condição de reali<strong>da</strong>de. Assumiruma posição não significa embotamento. É, ao contrário, condiçãode existência, o momento em que passamos a conviver coma dúvi<strong>da</strong>. O contrário é a despersonalização na qual nos encontramos, atados a nosso dogma peculiar: a ingênua imparciali<strong>da</strong>de.Todo pensamento é parciaL A partir do momento em quese põe. É delírio pretender um conhecimento absoluto, imutável.E aqui emerge outra de nossas contradições: de célicos, nos revelamosdogmáticos. Nosso ecletismo surgiu por não admitirmos limitações- querendo de tudo o "melhor", o saber completo -, pelo fatode sonharmos com a ilimitação. Ora, Platão é o ponto de vistade Platão - nem poderia ser de modo diverso. Esta, a tragédia ea força de todo pensamento criador.O dilema não é assumirmos ou não uma posição, mas àssumi-lacom espírito crítico. O espírito <strong>da</strong> dúvi<strong>da</strong>, que sempre fquando a Filosofia soube ser fiel a si mesma, a essência do pensa-8. BUARQUE DE HOLANDA, Sérgio. Raízes do BrasíL 7? ed., Rio de JaneiOlympio, 1973, p. 113.


40 O mito <strong>da</strong> imparciali<strong>da</strong>de: o ecletismomento. Daí o "mito <strong>da</strong> imparciali<strong>da</strong>de" revelar, por detrás <strong>da</strong> máscarade isenção e objetivi<strong>da</strong>de, uma fraqueza primária: a ausênciade risco. A incapaci<strong>da</strong>de de ver no conhecimento um empreendimentoa mais, uma invenção a ser leva<strong>da</strong> a termo. A tentativa dedissolver oposições. Dar um jeito. Não radicalizar.Isso revela um dos elementos de nosso ceticismo: a autocríticaimpiedosa e castradora de um personagem que ain<strong>da</strong> não se libertoudo imprímatur europeu. Nosso folclore cultural estána música e no romance, no esporte e no teatro, de momentosem que, aplaudidos na Europa, nos sentimos altamente satisfeitos,pois a Europa novamente se curva diante do Brasil Na ver<strong>da</strong>deisso não revela, na cifração do inconsciente - ou <strong>da</strong> má-fé, se quiserem-, a submissão <strong>da</strong> Europa ao Brasil, mas nossa imatura alegriapor termos sido reconhecidos e aceitos pela Grande Mãe.No fundo, medo de assumir nossa posição. Medo de desligar-se<strong>da</strong> cultura européia, dela suplicando reconhecimento.Entre-nós, portanto, a pobreza filosófica de um país não apenas jovem, mas sobretudo imaturo. Que ain<strong>da</strong> não conseguiu levarsea sério, preso a modelos de serie<strong>da</strong>de providenciados estranmente. No "mito <strong>da</strong> imparciali<strong>da</strong>de", recusamos estar no Brasil.E só deste estar poderíamos extrair um critério seletivo nosso, reivindicando nosso ser.Se na<strong>da</strong> fizermos, corremos o risco de continuar sendo apenasum país jovem que não sabe a que veio, nem o que tem a dizer.Por medo, omissão, covardia. E jamais inventaremos nossaposição, na<strong>da</strong> vindo a ser. Sem termos providenciado nossa exclusivaproblematici<strong>da</strong>de.E Filosofia, entre-nós, não será feita.


Capítulo 6O mito <strong>da</strong> concóro jeito


42 O mito <strong>da</strong> concórdia: oA gente dá um jeito.(Do povo)0ufanismo brasileiro privilegia um objeto: o jeito. É vozcorrente que <strong>da</strong>mos um jeito em tudo, do existencialao político, do físico ao metafísico. E não paramos aficamos muito satisfeitos em ser, pelo que nos parece,o único povo capaz de tão saudável atitude.Creio que o elemento constitutivo do jeito seja a não-radicalizaçãoUm distanciamento <strong>da</strong>s posições a serem toma<strong>da</strong>s, o quecombina com nosso modo oblíquo de olhar as coisas e nosso peculiarceticismo. Um homem que se exalta perde a capaci<strong>da</strong>de de"<strong>da</strong>r um jeito". Um país que entra num processo revolucionárionão soube descobrir o "jeito" de evitar coisa tão desagradável Ésaber ver: para o brasileiro - futebol posto de lado -, o máximoridículo é ser apanhado "crendo". Seja em política, Filosofia oligião. Nunca nos sentimos mais estúpidos do que no momentoem que alguém aponta a nossa radicalização, nosso empenho numprojeto. Envolver-se determina a per<strong>da</strong> <strong>da</strong>quilo que confundimoscom espírito crítico: a imparciali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Razão <strong>Tupiniquim</strong>. Numa atitude dissolvente que sempre nos acompanha, ao modo demanter um pé atrás, nos afastamos <strong>da</strong>s posições a assumir. Daí, o jeito.Nasce o espírito conciliador. Afinal, as coisas <strong>da</strong> existência,seja pessoal ou social, não estão aí para serem leva<strong>da</strong>s tão a sérioConciliador e obediente, cordial, o brasileiro jamais conduz as tensõesàquele nível em que geram um limite sem retorno.


O mito <strong>da</strong> concórdia.' o jeito 45O que fazer diante de uma condição, a existência, que continuamentese apresenta como urgente, exigindo que se assumauma posição? Existir é radicalizar. Radicalização que será posteriormentenega<strong>da</strong>, num processo indefinido. Posição é estar e pretender.Necessariamente uma escolha e uma radicalização. Não possover a vi<strong>da</strong> como espetáculo, como não a posso ver do "pontode vista <strong>da</strong> eterni<strong>da</strong>de".Resta saber: a gente dá um jeito?Justificamos nosso abandono ao ecletismo como antídoto aofanatismo, já que abominamos soluções radicais. Louvável intenção,se supusermos que soluções possam ser não-radicais. Jeitosamentebuscamos a conciliação, esquecendo e dissolvendo oposições.Um exemplo: a burocracia. Esta lamentável coisa, exigi<strong>da</strong> pelamáquina que hoje nos utiliza, exerce uma tirania quase completa.O princípio <strong>da</strong> burocracia, no entanto, não é apenas a mecanização- fator inerente a seu processo -, mas algo ain<strong>da</strong> anterior:a desconfiança. Ou: a falência do humano diante do mecânico. Ofator alienado na burocracia é minha veraci<strong>da</strong>de, mesmo a maisprimitiva, quando digo: eu sou eu. Burocraticamente, só sou este"eu" que afirmo se o nego através de uma identi<strong>da</strong>de. O reconhecimento<strong>da</strong> burocracia recai sobre o eu que não sou. Aquele 3 por 4.


44 O mito <strong>da</strong> concórdia: oDiante disso, o jeito. O extremo formalismo, que encontramosno social, recebe como resposta o jeito. O ascensorista dáum jeito e não vê o cigarro que acendi O guar<strong>da</strong> rodoviário dáum jeito se meu exame de vista está vencido. Faço matrículas condicionais, a própria institucionalização burocrática do jeito.Nosso ceticismo guar<strong>da</strong> a noção essencial de que por detrás<strong>da</strong>s formali<strong>da</strong>des se encontram valores mais respeitáveis do queum "eu" 3 por 4. O jeito é, portanto, uma maneira marota de desrespeitara extrema formali<strong>da</strong>de em respeito a valores maiores.Associado, porém, ao muito nosso "deixa como está para vecomo é que fica", o jeito nos tem conduzido a um vazio existencialdos mais estéreis. À custa de sempre dissolvermos oposições,acabamos sem qualquer posição, vítimas disto que já identificamos:o senso impensado. Esta indiferenciação existencial na qual nosencontramos talvez explique o tipo de vítimas dóceis que nos habituamos a ser dos colonizadores, dos senhores de engenho, dos coronéis,<strong>da</strong>s potências estrangeiras, dos politiqueiros e dos regimesditatoriais.A indiferenciação do senso impensado é tanto intelectual quantopolítica. Afinal, coisas indissociáveis. Sérgio Buarque de Holan<strong>da</strong> mostrou, citando Holan<strong>da</strong> Cavalcânti - "Na<strong>da</strong> há mais parecidocom um saquarema do que um luzia no poder" -, que na<strong>da</strong>distinguia realmente os dois grandes partidos do tempo <strong>da</strong> Monarquia,salvo rótulos. "Na tão malsina<strong>da</strong> primazia <strong>da</strong>s conveniênciasparticulares sobre os interesses de ordem coletiva revela-se niti<strong>da</strong>menteo predomínio do elemento emotivo sobre o racional"9Embora a observação seja precisa, não me parece suficiente.Embora a constatação esteja correta, o fun<strong>da</strong>mento desta críticaparece fraco. Analisar a partir do pressuposto de que "somosum povo pouco especulativo" é coisa perigosa e, de resto, falsa.Representa, em última análise, introjetar a dependência. Todos sa9. BUARQUE DE HOLANDA, Sérgio. Op. ciL, p. 137.


O mito <strong>da</strong> concórdia: o jeito 45bemos que não é o povo o encarregado <strong>da</strong> direção política, assimcomo não é o povo que, por consenso, escreve obras de Filosofia.São elites. As elites políticas.e intelectuais. O que precisaria serressaltado é o estado de alienação destas mesmas elites - do que,seja dito, Sérgio Buarque de Holan<strong>da</strong> não esquece. O desapego<strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de em volta, a falta de identi<strong>da</strong>de com o povo e a preocupaçãoincestuosa com uma distinta e idealiza<strong>da</strong> Europa fizeramcom que as elites políticas, através de seus representantes intelectuais e cui<strong>da</strong>ndo de seus interesses, ficassem inteiramente alheiasa uma reali<strong>da</strong>de brasileira. Pois a elite brasileira sempre teve horrorao que a circun<strong>da</strong>va. Preferiram esquecer isso, que era feio echocante, e voltaram-se para as questiúnculas metafísicas, refugiando-se "nó mundo ideal de onde lhes acenavam os doutrinadoresdo tempo. Criaram asas para não ver o espetáculo detestável queo país lhes oferecia".10O resultado concreto foi a importação, pelas elites dominantes,de modelos políticos, econômicos e educacionais inteiramentestranhos às nossas condições e àquilo que somos e viemos a ser.Não tão estranhos, porém, aos interesses destas elites.Envolvi<strong>da</strong>s em lutar por interesses internos e/ou externos, aselites mostram uma desvinculação tão mais sensível quanto maiora teorização "ornamental" utiliza<strong>da</strong> para justificar sua ação e poder.Daí a enxurra<strong>da</strong> verbalística que sempre envolveu, entre-nós,a discussão política e de idéias. O discurso brasileiro não apresentou nunca aquela característica de buscar um desvelamento denossas urgências e importâncias, antes pelo contrário.Se um saquarema é idêntico a um luzia, a indiferenciação denunciaa inconsistência de nosso ecletismo, produto de senso impensado.Os partidos políticos têm apresentado entre-nós a oposição mais estranha: nenhuma. Somemos a isso a "jeitosi<strong>da</strong>de", ahábil conciliação de uma teoria grandiloqüente com uma reali<strong>da</strong>de simplesmente esqueci<strong>da</strong>. Nesta alienação, as origens <strong>da</strong> RazãoOrnamental, <strong>da</strong> teorização barroca e sem compromisso com oreal - exceto quando se trata de legitimar o vigente.10. Idem, p. 140.


46 O mito <strong>da</strong> concórdia: oObra de uma elite desvincula<strong>da</strong> <strong>da</strong>s urgências históricas dopais, os partidos políticos em na<strong>da</strong> se diferenciam, exceto pelos interessesdos grupos que representam. "No Império de D. Pedro IIfoi o ecletismo recebido com aplausos gerais, graças à inércia política <strong>da</strong>quela socie<strong>da</strong>de escravocrata e semipatriarcal, onde a lutapelo poder não passava de intrigas palacianas, onde os partidosnão representavam na<strong>da</strong> de substancial, sendo manejados displicentementepor um monarca bocejante e onde, finalmente, por essaépoca, o Marquês do Paraná formava o mais heterogêneo e amorfo dos governos, a que a história batizou precisamente com o predicadopróprio <strong>da</strong> Filosofia eclética, como o Gabinete <strong>da</strong> Conciliação."11Inconsistente e indiferencia<strong>da</strong>, nossa posição política gerariaum novo fanatismo: o <strong>da</strong> concórdia. Não comportando em si ochoque de idéias, buscando antes dissolvê-lo, as divergências devemser excluí<strong>da</strong>s. Oliveira Viana acerta ao dizer que entre-nós "o adversário político é considerado pelo vencedor um ver<strong>da</strong>deiro outlaw".Não estando prevista a oposição real - posto que o ecletismosuprime a noção de oposição -, os que se atrevem a radicalizarpassam a ser olhados com hostili<strong>da</strong>de. Se por um lado o brasileiroatura de tudo - chegando, no carnaval, a aturar o próprioavesso <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de séria -, por outro lado hostiliza, de modo pmário, aquilo que questiona seus comodismos de instalação. E nós,pretensamente tolerantes e esclarecidos, os ecléticos de espíritoaberto, mostramos nossa ver<strong>da</strong>deira face: a intolerância. Uma intolerânciaséria. Aquela que constitui, por indiferenciação intelectuas igrejinhas de políticos, artistas, filósofos de academia, grupos rivais,com suas trocas de favores, elogios, influências e idéias inevitavelmentevazias. Isso casa perfeitamente com a intolerância política.As igrejinhas de intelectuais são os PSDs lítero-musicais.Esta, a expressão máxima de nosso pretenso espírito ecléticoe conciliador: o fanatismo do mesmo. Os grupos são lugaresde privilégio <strong>da</strong>s elites na partilha do poder. Nesta prisão primária11. VITA, Luís Washington. Escorço de Filosofia no Brasil Coimbra, Atlânti<strong>da</strong>, 1964, p. 51


O mito <strong>da</strong> concórdia: o jeito 47que é o grupo fanatizado, a visão mágica emerge. Divergir é crime.Discor<strong>da</strong>r é subversão. Perguntar já é um ato de desobediência.Isso no país do jeitinho, do homem cordial, do carnaval eterno.Com efeito, o real não apresenta a lineari<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s distinçõeslógicas. Nele, o indiferenciado, o inconsciente, é o que mais atuae sob a forma mais arcaica.Urgente, pois, que se faça a leitura além <strong>da</strong>s aparências dosmitos com os quais gostamos de nos revestir de modo narcisista.Além <strong>da</strong> cordiali<strong>da</strong>de, do espírito aberto e conciliador; são mitose apresentam algo comum aos mitos: estruturam uma visão demundo e pretendem ser inquestionáveis. Gerados pela ausênciade uma posição crítica, são produto <strong>da</strong> indiferenciação intelectualEis por que, ausente a crítica, seu contrário emerge sob a formade intolerância, sectarismo, parti<strong>da</strong>rismo estéril, repressão, censura- um campo fértil para a atuação <strong>da</strong> autori<strong>da</strong>de irracional e paraos regimes que dela façam uso.Quanto à Filosofia, é grave que entre-nós tenha se recusadoa cumprir a missão que lhe seria própria: ser o centro <strong>da</strong> consciênciacrítica, <strong>da</strong> negação de nossas falsificações existenciais. A inexpressivi<strong>da</strong>de<strong>da</strong> Filosofia no Brasil se deve ao fato de ocorrer, semrevolta, ao nível de repressão difusa no todo social. E esta despersonalização,ain<strong>da</strong> não pensa<strong>da</strong> entre-nós, que destrói a possibili<strong>da</strong>dede um pensamento nosso. Se esse pensamento quiser existir,deverá traçar para si um caminho marginal, ousar, sair do séricoisas que vão contra predisposições assumi<strong>da</strong>s ao longo de tantotempo que, hábito arraigado, nos aprisionam. Assim, não umpaís jovem, mas apenas infantil - e isso não se refere ao povo,mas àqueles que dizem falar em seu nome. E país ameaçado deenvelhecimento precoce, já que vítima de uma história dependente,devedor do passado.Se quiser sair do bolor universitário e acadêmico, a Filosofiaprecisa realizar entre-nós a conquista de ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia crítica, radicalizandonossa posição.Quanto a isso, não há como <strong>da</strong>r jeito.


Captiub 7Originali<strong>da</strong>de e jeito


Originali<strong>da</strong>de e jeito 49Sempre enfezei ser eu mesmo. Mau mas eu.OSWALD DE ANDRADE(Ponta de lança)Se nos limitarmos à superfície, o jeito é promotor de umaatitude de tolerância e de abertura intelectual Comoexpressão <strong>da</strong> Razão Conciliadora, um dos produtos maislamentáveis, de potencial despótico e conservador.Há um retrato possível, cruel mas ver<strong>da</strong>deiro, dopraticante de Filosofia no Brasil - a imensa maioria composta deprofessores, tipos entre os quais predomina, a despeito <strong>da</strong>s alegóricaspretensões reformistas (idealiza<strong>da</strong>s, de resto), o espírito maisretrógrado e legitimador do vigente. Neste retrato vemos alguémsempre disposto a encontrar analogias - as quais pretende brilhantes- entre as teorias mais opostas e irreconciliáveis, fazendo suatradicional sala<strong>da</strong> filosofante, onde, em proporções idênticas ounão, entra algo de tomismo e de Comte, de Comte e de Marx,de Marx e de estruturalismo, de estruturalismo e Marcuse.Ocorre, porém, uma coisa estranha: o mesmo homem que realizaa mais dissolvente conciliação, urra de ódio contra os opositores.A maldosa crítica fora de propósito, dirigi<strong>da</strong> contra pessoas enão contra idéias, passa a ser então a arma de que se vale este curiosoarrivista, o intelectual tupiniquim. Somos incapazes de convivere dialogar com alguém que discorde de nosso modo de ver -embora sejamos capazes de conviver com autores e obras mutua-


50 Originali<strong>da</strong>de e jeitomente excludentes, adotando a to<strong>da</strong>s com igual entusiasmo. Noque se percebe pouca razão.Há razão, porém. Mesmo o irracional tem uma Razão através<strong>da</strong> qual podemos dele nos <strong>da</strong>r conta. A atitude conciliadora éausente de critérios, de intuições geradoras de pensamento. Pensaré unificar. O esforço secular <strong>da</strong> Filosofia tem sido a tentativa,continuamente renova<strong>da</strong>, de apreender o real num único ato desaber. Comumente - e isto é ostensivo entre-nós - confundimoso filósofo com aquele sujeito que sabe muitas coisas e que discursasobre tudo. Em suma: o filósofo é tido como o homem de muitasidéias. Equívoco total. O filósofo é o homem de uma idéia sIdéia que, por sua virtuali<strong>da</strong>de criadora, é capaz de desenvolverno espírito uma visão unifica<strong>da</strong> do mundo.A razão desse nosso despotismo intelectual tavez seja esta:se um objeto qualquer é submetido à Razão Conciliadora apresentandocontradições, a única coisa a fazer é suprimir a oposição.Explica-se: se a Razão Conciliadora não dispõe de critérios explícijtos para pôr em questão situações que lhe escapam, se não sabe<strong>da</strong>r razões de suas alternativas, só lhe resta se dirigir ao portador<strong>da</strong> idéia e não à idéia ela mesma. Impossível enfrentá-la.Daí a ocorrência de variados modismos entre-nós. Indiferen-I cia<strong>da</strong> e personalista, nossa "Razão" saltita de galho em galho, re-


Originali<strong>da</strong>de e jeito 51produzindo posições que, como na recente mo<strong>da</strong> estruturalista,na<strong>da</strong> têm a ver com qualquer urgência brasileira. Há muitos anoscala<strong>da</strong>, a "inteligência" brasileira voltou-se para um formalismodelirante, novi<strong>da</strong>deiro e pernóstico, e "esqueceu" o que a fazia calar.Esquecimento que ocorre diretamente ligado ao fato de que,não dispondo de critérios assumidos criticamente, a problemáticafilosófica no Brasil não se gera por uma problematização internae vincula<strong>da</strong> às urgências do país, tese já defendi<strong>da</strong> por Sylvio Romeroem 1878. "Na história do desenvolvimento espiritual no Brasilhá uma lacuna a considerar: a falta de seriação nas idéias, a ausênciade uma genética. Por outros termos: entre nós um autornão procede de outro; um sistema não é uma conseqüência de algumque o precedeu. (...) A leitura de um escritor estrangeiro, apredileção por um livro de fora vem decidir a natureza <strong>da</strong>s opiniõesde um autor entre nós. As idéias dos filósofos, que vou estu<strong>da</strong>ndo,não descendem umas <strong>da</strong>s outras pela força lógica dos acontecimentos.(...) É que a fonte onde nutriam suas idéias é extranacionaL"12É bem ver<strong>da</strong>de que, desastra<strong>da</strong>mente, após fazer esta constataçãode grande valia, Sylvio Romero acrescenta: "Não é um prejuízo;antes equivale a uma vantagem".13 E passa a fantasiar em tornode um "cosmopolitismo" que o impediu de determinar, já em1878, a origem real <strong>da</strong> constatação que fizera. Mas seria pedir demais,talvez.Estas observações - conciliação ou supressão do pensamentoalheio - nos conduzem à seguinte característica <strong>da</strong> Razão Ornamental:a vigência entre-nós de coisas que, em <strong>da</strong>dos momentos,são de bom tom ler, comentar ou pensar. Tendo se furtado a respondera urgências históricas nossas, a grande crise do intelectualtupiniquim é viver mendigando consideração e reconhecimento.Mas busca este reconhecimento numa possível identificação compensadores de nações "mais cultas", equívoco através do qual bus12. ROMERO, Sylvio. A Filosofia no Brasil: ensaio crítico. In: Obra Filosófica. RJaneiro, José Otympio, 1969, p. 3213. Idem, ibidem.


52 Originali<strong>da</strong>de e jeitoca aceitação. Quer ser aceito sem perceber que ser aceito é morrerpara a Razão. Querendo ser sério - para então ser levadosério -, policia-se: o que pensar, o que ler, o que escrever. Seu equecimento consiste nisto: esqueceu-se de que pretende ser reconhecidopelo que não-é. Seu pensamento, portanto, será puro ornamento.Duas são as possibili<strong>da</strong>des de defesa desta Razão aliena<strong>da</strong>:ou conciliar ou suprimir. Expressões de seu abandono do real, aconciliação e a supressão não se realizam com relação às coisascircun<strong>da</strong>ntes, mas com as teorias que versam sobre o real. A RazãoConciliadora li<strong>da</strong> com razões anteriormente <strong>da</strong><strong>da</strong>s do real -não com o real enquanto taL O pólo que centraliza nossa Razãosão teorias enquanto verbalizações, posto que o real sobre o qualversam é o estrangeiro.Esta, a razão pela qual, em matéria de Filosofia, viríamos aser fazedores de misturas ideológicas. Por exemplo: "A tarefa deconciliar Marx e Comte seria <strong>da</strong>quelas a que Leôni<strong>da</strong>s de Rezendese entregaria de modo permanente e persistente".14 Despreza<strong>da</strong>a desagradável reali<strong>da</strong>de que nos circun<strong>da</strong>, restou ao intelectualbrasileiro fazer Filosofia como quem, monta um quebra-cabeça:buscando o melhor ajuste (conciliação) possível e rejeitando(supressão) as peças mais rebeldes. Dando um jeito. Considerandotão-somente os "verbos" e suas possíveis ajeitações. Toma<strong>da</strong>sem lugar <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de, as idéias filosóficas no Brasil passaram aviver, dentro <strong>da</strong> pirotecnia carnavalesca <strong>da</strong>quilo que chamo deRazão Ornamental, como seres em si. Ou, como teria dito JoséMaria Alkmim - aliás, concretização quase perfeita <strong>da</strong> Razão Ornamental- "importam as versões, não os fatos".Havendo conclusão, esta é simples. Se não assumo com clarezaposições vincula<strong>da</strong>s à situação em que me encontro, só me restareagir primitivamente diante do que escapa à minha possibili<strong>da</strong>-14. PAIM, Antônio. Op. cit, p. 22R


Originali<strong>da</strong>de e jeito53de de conciliação: suprimindo. Só levando isso em conta poderemosutilizar a oposição entre o "emocional" e o "racional" paracompreendermos o caráter brasileiro. A supressão é carrega<strong>da</strong> deemoção na medi<strong>da</strong> em que representa o retorno de um conflitoque foi esquecido pela Razão Ornamental.Reconheço que seja irritante aceitar o jeito - objeto denosso deslumbrado ufanismo - como retrato de uma alienação intelectuale política. Mas, para além de qualquer envolvimento emocional,devemos reconhecer que o jeito, se pode <strong>da</strong>r origem a umtipo de humanismo tipicamente brasileiro - ain<strong>da</strong> não precisado,de resto -, é também responsável pela rudimentari<strong>da</strong>de de nossasposições. O que se revela em nossa busca de semelhanças, na tentativade ver em tudo o "mesmo", quando é <strong>da</strong> essência do espíritoapreender em tudo as oposições no interior de um processo.Ou seja: o diverso. Nesta paixão pela "mesmi<strong>da</strong>de", a falta de consistênciado pensar entre-nós. Eis por que qualquer Razão, paravir a ser expressão brasileira, precisará <strong>da</strong>r-se conta desta ingenui<strong>da</strong>de:ver em tudo o "mesmo". Deixa<strong>da</strong> no esquecimento, esta atitudenos impede de chegar ao irredutível <strong>da</strong>s coisas. Aquilo queelas têm delas próprias.Por aí se percebe que não será com o acúmulo de <strong>da</strong>dos, teses,argumentos que se chegará à Filosofia. Urge buscarmos suasraízes noutra parte. De fato, chegamos à Filosofia através de algomais simples e primitivo, uma originali<strong>da</strong>de anterior a qualquer erudição:a tragédia. É através <strong>da</strong> tragédia que chegamos às urgências de nossa posição.Se as origens <strong>da</strong> Filosofia se encontram na tragédia, é fácilperceber por que tantas pessoas fogem dela. Fuga que procedepela supressão. Existindo duas formas de supressão, uma delas pelasimples afirmação. Me explico. Ou abandono a Filosofia comoalgo metafísico e me dispenso de fazê-la, ou a afirmo sem mais,como se seu existir fosse óbvio, o que também me dispensa de fazê-la,pois já a encontro feita. Estas duas posições têm isto em comum:ambas exigem <strong>da</strong> Filosofia uma importância em si.Ora, filosofar é <strong>da</strong>r-se conta <strong>da</strong> Filosofia. Dando razões desua existência e assumindo os riscos seguintes. Ela não tem qual-


54 Originali<strong>da</strong>de e jeitoquer importância que possa se impor a mim antes do moem que eu me importe. Ao <strong>da</strong>rmos a existência <strong>da</strong> Filosofia comoóbvia, ela se vê transforma<strong>da</strong> em sistema acabado, ao modode um arquivo de primeiros socorros existenciais. Se dou sua importânciapor suposta, a tarefa do pensamento se empobrece, reduzindo-seà busca de um bom ajuste entre fórmulas e modelos,estruturas e conceitos, mais ou menos como me comporto diante<strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de de cumprir à risca uma receita de bolo. Irei julgarque ao menos virtualmente - como o bolo <strong>da</strong> receita - ela já seencontra lá, acaba<strong>da</strong>. Mas não se esgota aí a falência desta atitude.Se a pressuponho feita, jamais a faço minha. E seria justamentenisso que consistiria <strong>da</strong>r-lhe existência.A supressão <strong>da</strong> questão a respeito <strong>da</strong> Filosofia ou a supressão<strong>da</strong> própria Filosofia, como, por exemplo, encontramos no tomismoe no neopositivismo, explicariam por que, conciliando, jamaistenhamos chegado à originali<strong>da</strong>de.Conciliação é sempre do prévio, jamais do original - nãovendo sentido na aplicação <strong>da</strong> palavra conciliação no último caso.Conciliar exige admitir algo como pressuposto; por exemplo: umaimportância em si, que existirá ou não. Daí a incompatibilidtal entre uma originação <strong>da</strong> Filosofia brasileira e a atitude de conciliação.Ti<strong>da</strong> como prévia, jamais será original.Uma Filosofia condena<strong>da</strong> a não ser original está condena<strong>da</strong>a não ir às origens, pois é isso que a palavra originali<strong>da</strong>de significa.Não o novo, mas aquilo que li<strong>da</strong> com as origens. Na<strong>da</strong>, portanto,poderá ser <strong>da</strong>do como prévio. Tudo deve estar em questãoEsta, a tragédia.E inteiramente estranha à Filosofia uma atitude de conciliaçãoque tome idéias como coisas <strong>da</strong><strong>da</strong>s em si mesmas. Sem a críticadesta questão, qualquer esforço de pensamento estará, entrenós,a serviço <strong>da</strong> Razão Ornamental. Mais simplesmente: enquantoa Filosofia no Brasil não encontrar suas condições de originali<strong>da</strong>de,não poderá, está visto, ter origem.


Caputilo 8A Filosofia entre-


56 A FUosoãa entre-nosMARIO CASALLA(Razón y liberatioBabei 'Filosofia latinoamericana' en el momento y en lamedi<strong>da</strong> en que el pensar laánoamerícano logre articular supropio discurso de lo universal situado, encontrar d lenguajeinhérente a su propia situation histórica.Creio que possamos admitir pacificamente a existênciade Filosofia no Brasil, clarificado o sentido deste termo.Há Filosofia no Brasil porque ela aqui se encontra entrenós,manifestando sua presença. Talvez um corpo estranho,mas presente. Não só contamos com documentosa respeito, documentos com <strong>da</strong>ta marca<strong>da</strong>, como encontramos revistase livros que versam sobre seus temas. Aqui realizam-se congressos,encontros, debates, e nos currículos universitários a Filosofiaconsta obviamente - ca<strong>da</strong> vez menos, mas consta. Tudo isso indicaque a Filosofia está entre-nós. Como um parente distante,uma tia talvez, que chega e vai ficando -mas, seja como for, entre-nós.Esta presença e seu caráter se evidenciam se procurarmosextrair o negativo <strong>da</strong>s seguintes palavras de Luís Washington Vita:"De fato, cumprindo seu destino e sua vocação, o pensamento brasileiro,mais do que criativo, é assimilativo <strong>da</strong>s idéias alheias, e,ao invés de abrir rumos novos, limita-se a assimilar e a incorporaro que vem de fora. Daí a história <strong>da</strong> Filosofia no Brasil ser, emgeral, uma história <strong>da</strong> penetração do pensamento alheio nos recessosde nossa vi<strong>da</strong> especulativa, ser, em suma, a narrativa do grau


A Filosofia entre-nós 57de compreensão, <strong>da</strong> nossa capaci<strong>da</strong>de de assimilação nas diferentesépocas e do nosso quociente de sensibili<strong>da</strong>de espiritual".15Em termos de retrato, perfeito. Mas creio que Luís WashingtonVita não conseguiu extrair do negativo que tinha nas mãos arevelação ver<strong>da</strong>deiramente significativa. Afirma que "cumprindoseu destino e sua vocação" - o que equivale a dizer que existe inscritoem algum céu transcendental algo que seja o "destino" e a"vocação" do pensamento brasileiro. Ao contrário, vejo aí a confirmaçãode que, manifestação de um país dependente, nossos intelectuaisassumiram ao limite o papel que lhes reservou a condiçãode colonizados: serem assimflativos. Introjetou-se aqui a funçãodo dependente: compreender as idéias alheias e, curiosamente, reduzira história <strong>da</strong> Filosofia no Brasil à narrativa de nossa "capaci<strong>da</strong>dede assimilação" e de nosso "quociente de sensibili<strong>da</strong>de espiritual",quando, numa adequa<strong>da</strong> compreensão histórica, caberia, istosim, extrair desta constatação o significado mais profundo: osmodos de falsificação dos quais temos sido vítimas e co-autores. "Osimples fato <strong>da</strong> questão (como ser original) - nota Antonio Candido- nunca ter sido proposta revela que, nas cama<strong>da</strong>s profun<strong>da</strong>s<strong>da</strong> criação (as que envolvem a escolha dos instrumentos expressivos)sempre reconhecemos como natural a nossa inevitável dependência."16Com a naturali<strong>da</strong>de com que esquecemos de ser originais,deixamos de observar que um pensamento alheio se enraíza e temem mira uma situação histórica diversa <strong>da</strong>quela na qual nos encontramos.O que se envidencia pela preocupação de Luís W. Vitacom nosso "grau de compreensão" do pensamento alheio. Esquecemosigualmente que idéias vitais para um europeu ou norte-americanopoderão ser aqui meros ornamentos intelectuais, desfibradose mambembes.Seja como for, há Filosofia entre-nós. Lembro, no entanto,que isso não esgota a problemática a respeito de uma Filosofiabrasileira, propondo, no mais <strong>da</strong>s vezes, seu avesso: os sinais de15. VITA, Luís Washington. Op. àt, p. 9.16. CANDIDO, Antonio. Op. cit, p. 8.


58 A Filosofia entrenóseu esquecimento. Carentes de melhor distinção entre estas duasquestões - Filosofìa entre-nós e Filosofìa nossa -, encontrem nossos historiadores de idéias uma marca constante: a quasetotali<strong>da</strong>de do que se escreveu sobre o tema baseia-se num equívocoprimário. Este: confundir o valor ou existência de livros de Filosofiaescritos por brasileiros com o valor ou existência de uma Filosofiabrasileira. Eis o que permitiu a Lufe W. Vita a estarrecedoraafirmação: "Há Filosofia num pafe quando existem nele filósofos".17O autor obscurece e embaralha a questão, confundindo osdois problemas. Assim, chega a concluir que "por isso podemosafirmar que há Filosofìa brasileira"16 sem o menor sobressalto.Este, o equívoco básico sobre o qual elaborou to<strong>da</strong> espéciede ufanismo embandeirado ou pessimismo diluidor - conforme sejulgue estarem as obras entre-nós produzi<strong>da</strong>s à altura ou não <strong>da</strong>sestrangeiras. Pretendeu-se que a constatação de uma Filosofia entre-nósfosse critério suficiente para a inferência de que existe umaFilosofia brasileira. Que existam autores de obras filosóficas entrenósnão pode ser objeto de dúvi<strong>da</strong>. Basta consultar alguns catálogos.Que tais autores sejam, em alguns casos, do melhor nível, tambémnão pode ser contestado. Ocorre que isso não diz respeito àessência <strong>da</strong> questão aqui levanta<strong>da</strong>. Na ver<strong>da</strong>de nunca se perguntou,a sério, quais as condições de uma Filosofia brasileira, limitando-sea son<strong>da</strong>r, de modo vicioso, o valor de autores que aqui escrevemou escreveram.Elaborando em cima de equívocos desta ordem, ocorreu naspáginas <strong>da</strong> Revista Brasileira de Filosofìa19 um curioso debate entreVilém Flusser e Nelson Nogueira Sal<strong>da</strong>nha que tem o valor17. VITA, Lufe Washington. Op. cit, p. 14.18. Idem, ibidem.19. FLUSSER, Vilém. Há filosofia no Brasil? Demonstração em três pensadores expressivos.Revista Brasileira de Filosofia, São Paulo, í7(65):5-9, jan./fev./mar., 1967 e Há Filosofiano Brasil? Diálogo de Nelson Nogueira Sal<strong>da</strong>nha e Vilém Flusser. Revista Brasileira deFÉosofia, São Paulo, 27(67):3004, juL/ago./set, 1967.


A Filosofia entre-nos59de sintoma. É significativo do plano em que se costuma colocar aquestão de um pensamento brasileiro. Vilém Flusser publicou umartigo intitulado "Há Filosofia no Brasil? - Demonstração em trêspensadores expressivos". Começa emitindo conceitos que, no mínimo,exigiriam longas justificativas - "é absurdo falar na Filosofiade um país", por exemplo - e chega ao disparate total: "é isto quedistingue a Filosofia <strong>da</strong> maioria <strong>da</strong>s outras disciplinas: essencialmente,ela não possui geografia nem história". Absurdo, é claro.Mas deixemos passar. Me importam coisas mais próximas.O sr. Flusser levanta em segui<strong>da</strong> alguns traços que poderiamcaracterizar o esforço filosófico entre-nós. Diz ser a Filosofia umarebelião "independente do tempo e do espaço". O que complicaas coisas: se independente do tempo e do espaço, rebelar-se contrao quê? Bom. Há Filosofia entre-nós, voltando ao autor, porque,sendo seres humanos, filosofamos. E haveria entre-nós a presençade um duvi<strong>da</strong>r e um distanciar-se "indisciplinados", o que seria"uma herança de Portugal e é, talvez, um caráter latino em geral"Isso teria conduzido nossos trabalhos num sentido "desordena<strong>da</strong>menteeclético".Mas, ao invés de tentar a revelação do negativo que tinhaem mãos, já de si impreciso, preferiu apresentar o que seriam "trêspensadores expressivos". E nos sumaria a obra de Vicente Ferreira<strong>da</strong> Silva, Leôni<strong>da</strong>s Hegenberg e Miguel Reale. Sequer pretendome ocupar em saber se estes são ou deixam de ser pensadoresbrasileiros. Nem me importa o valor do que escreveram. Por ummotivo simples: coloca<strong>da</strong> nestes termos, a questão está vicia<strong>da</strong>.Na<strong>da</strong> do que possa ser caracterizado como brasileiro foi precisadopelo autor, o que não permite a conclusão de que estejamosdiante de representantes, respectivamente, <strong>da</strong> estética, <strong>da</strong> teoriado conhecimento e <strong>da</strong> ética brasileira. De resto, juntar um possívelexistencialista com um neopositivista e um culturalista, comorepresentantes de uma mesma coisa, me parece bastante problemático.Se na obra de Vicente Ferreira <strong>da</strong> Silva podemos encontraruns lampejos de preocupação brasileira, um mínimo de esforçode memória nos mostra que pelo menos um destes autores, osr. Leôni<strong>da</strong>s Hegenberg, houvesse escrito em inglês, ninguém nota


60A Filosoãa entre-nosria diferença. Ficaria até mais adequado.Na resposta de Flusser, o sr. Nelson Nogueira Sal<strong>da</strong>nha mostra-sedesastrosamente provinciano. Julga uma ofensa não constardo rol dos "expressivos" nenhum representante de outros Estados,onde, segundo diz, "há também grandes pensadores; o país temoutros metafísicos. A estética brasileira tem outros lados, sr. professor!" É o equívoco no auge do delírio.O que salva - no que é possível - é Vilém Flusser perguntarem sua réplica: "Bastam filósofos exemplares para que se possaresponder afirmativamente à pergunta? Ou não seria necessário,para tanto, um determinado clima filosófico que nos falta?Eis uma observação que importava levar adiante. No entanto,no atropelo geral, o sr. Flusser acaba jogando tudo por terra -no fundo numa atitude de conciliação - ao afirmar: "Não nos preocupemosdemais com a brasili<strong>da</strong>de desse pensamento. Preocupemo-noscom o pensamento". Quer dizer: continuemos assimiladorese ornamentais, acima do tempo e do espaço, no sétimo céumetafísico.E o desastre se consuma no desfecho, quando percebemosque, indiferencia<strong>da</strong>, a questão não poderia conduzir senão a umbrilhareco palavroso: "Portanto: há Filosofia no Brasil? Há, e haverá,se quisermos e se pudermos".Mas precisamente sobre isso esperávamos que houvesse escrito,sendo estas as questões que urgiam ser esclareci<strong>da</strong>s: ondehá Filosofia? por que haverá Filosofia entre-nós? será que queremos, sendo a Filosofia importante para nós? sob quais condiçõespoderemos fazer Filosofia?Extravia<strong>da</strong>s as questões que. eram urgentes, estes senhoresconseguiram apenas nos <strong>da</strong>r uma amostra de que não há Filosofiabrasileira, em cinco pensadores expressivos.Desta questão fogem nossos filósofos oficiais: saber se a Filosofiaé para nós importante. Fogem igualmente <strong>da</strong>s questões seguintes:quais os objetos, a metodologia, a linguagem de uma Filosofianossa?; quais as condições desta Filosofia e as condições de nossoquerer? Engloba<strong>da</strong>s, formam o elenco a ser respondido se quiser-


A Filosofia entre-nos61mos realizar não apenas uma Filosofia entre-nós. Só saberemosquestionar uma Filosofia brasileira se formos capazes de saber como,por que, de que modo tal coisa nos importa. O que só se tornarápossível a partir de uma posição de dentro <strong>da</strong> qual, ou a partir <strong>da</strong> qual, isto se ponha para nós. E vem o drama: fugimos deuma personali<strong>da</strong>de que seja nossa. Mal sabemos dela.Precisamos remontar a algo mais primitivo e elementar queos sinais de uma presença <strong>da</strong> Filosofia entre-nós. Só a partir deuma reflexão crítica a respeito de nosso modo de existir, de nossalinguagem, de nossas falsificações existenciais e históricas é quepoderemos chegar aos limites de uma Filosofia nossa. Para tanto,colocar em questão nosso particular modo de estar e ser, os valoresque constituem nosso horizonte intelectual. E traçar as peripéciasdo trajeto histórico que nos levou a ser o que somos. Em suma:descobrir nossa alienação específica.Diante dessas exigências, o ufanismo isolacionista ou a mórbi<strong>da</strong>dependência com relação ao passado se mostram mais cômodos.Nos permitem dissolver oposições e realizar a concórdia. Nega-se,por exemplo, qualquer significado e importância ao passadoeuropeu e delira-se num verde-amarelismo de bananeiras e jacas.Como um feto, nos apegamos à Mãe-Europa - o que nos livrade nossas angústias, servindo-nos um prato feito, os talherespostos, as regras do jogo previamente determina<strong>da</strong>s. A vantagemdessas atitudes que temos preferido ao longo <strong>da</strong> história são óbvias:dispensam-nos de pensar. Pensar é incômodo. Chato. Descobrirnossas alienações dói e mutila. E a tragédia. Súbito, somos filhosabandonados, obrigados a vencer por conta própria. Uma significaçãoque venha do exterior para conferir digni<strong>da</strong>de a nossastarefas é como uma receita - impede-nos todos os riscos e nosconcede a paz reconfortante de uma mãe onipresente. Ou, noutroextremo, somos bugres. Pelados e verde-amarelos a correr pelomato. "Tupi or not tupi", já notou Oswald de Andrade.O que poderiam parecer duas opções são dois modos de alienação.Tanto é infantil o filho que necessita <strong>da</strong> asa protetora <strong>da</strong>mãe quanto aquele que a hostiliza - possuem em comum a patologiade um mesmo traço: a dependência.


62 A Filosofia entre-nosAlém do ufanismo e <strong>da</strong> submissão, há um outro equívocoque cabe analisar. Me refiro à afirmação de que não é próprioao espírito brasileiro o filosofar. Esta questão pode ser desdobra<strong>da</strong>em duas outras. A primeira nega ao brasileiro espírito capazde Filosofia. A segun<strong>da</strong> afirma não ser a língua portuguesa capazde adequa<strong>da</strong> expressão filosófica. Careceríamos, no primeiro caso,de melhor aptidão intelectual, talvez comum aos latinos, e, no segundo,de uma língua adequa<strong>da</strong>, herança especificamente portuguesaA primeira destas atitudes creio encontrar, se bem que vela<strong>da</strong>,em Álvaro Lins.20 Julga esse autor que "nunca se explicará comsuficiente exatidão o que determina a ausência de um ver<strong>da</strong>deirofilósofo no Brasil".21 Isso já é discutível. No mínimo, um tema. Nentanto, ao invés de se propor esse tema, Álvaro Lins prefere supor a impossibili<strong>da</strong>de de uma explicação. Me parece que assimprocedendo perde a chance de ressaltar o único que interessavainvestigar: o sentido de nossa fuga à Filosofia.Faz, em segui<strong>da</strong>, uma afirmação ain<strong>da</strong> mais grave: "Talvezque se possa encontrar assim, na herança portuguesa, a causa <strong>da</strong>ausência de um filósofo no Brasil. As facul<strong>da</strong>des especulativas ecríticas, a capaci<strong>da</strong>de de tratar os problemas abstratos, o dom doestudo paciente, desinteressado e introspectivo - não parecemmuito habituais nos homens luso-brasileiros".22Creio ser coisa errônea supor o conhecimento filosófico como"desinteressado". Todo conhecer é interessado, versando sobreo que importa. Caberia apenas distinguir, como já foi feito aqui,entre um interesse sério e um interesse a sério. Por outro ladintrospectivo não me parece ser condição para a reflexão - Aristótelese Marx, por exemplo, são extrovertidos quase em estado puro.Quanto ao que seja um estudo paciente, o mesmo: o que é paciência,ordem, para mim, pode ser um aborrecimento para umalemão - e vice-versa.20. LINS, Álvaro. Os Mortos de Sobrecasaca. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira,1963, [Cap. 25].21. Idem, ibidem, p. 355.22. Idem, ibidem.


A Filosofia entre-nos63De fato, a "herança filosófica" que nos deixou Portugal nãofoi <strong>da</strong>s mais ricas. Acontece que "herança filosófica" é coisa quenão existe. Não se her<strong>da</strong> uma Filosofia, cumpre apropriar-se dela,fazendo-a nossa. O pensamento alemão , por exemplo, não "herdou"passado algum; apropriou-se de um passado filosófico. Assim,ou muito me engano, ou Álvaro Lins é vítima aqui de uma análise abstrata, meramente conceituai e idealista, desconhecendo aver<strong>da</strong>deira dinâmica <strong>da</strong> história. É problemático "reduzir" a história. Nem sempre se encontra, mesmo porque nem sempre existe,aquele elemento externo, alheio, que possa explicar as criaçõesde um povo. Ain<strong>da</strong> mais se notarmos que a criação não é jamaisdo "prévio", mas do original - aquilo que ca<strong>da</strong> um tem de si. Sabemos<strong>da</strong>s dificul<strong>da</strong>des de se encontrar, anteriormente ao advento<strong>da</strong> Filosofia na Grécia, algo que pudesse explicar por que aí sedeu tal acontecimento. Na<strong>da</strong> parece poder explicar retroativamenteesta "invenção" do espírito grego. Creio que o simples reconhecimentode tal fato nos livraria de uma multidão de equívocos efalsos problemas que vimos acumulando. Trata-se de reconhecer,para além de qualquer recurso ao que é prévio, que na GréciaFilosofia é um fenômeno original, pois aí encontra suas origens.Pretender sempre encontrar no passado a razão de atos dopresente me parece mau modelo: esquecemos o que há de ato criadorem ca<strong>da</strong> nova situação histórica. Não se trata de propor umesquecimento do passado, mas de evitar um abandono no passado.A história é o fenômeno <strong>da</strong> originali<strong>da</strong>de e a ciência correspondentedeverá lhe ser fiel. Isso quer dizer que não podemos, mecanicamente,justificar a ausência de Filosofia no Brasil pelo fato denão termos contado com uma boa influência de Portugal. Antesdo mais, porque esta influência deve ser entendi<strong>da</strong> em termos derelação de dependência. Dependência que foi menos de Portugaldo que de outros países europeus, os centros efetivos do projetoexpansionista dos impérios ibéricos - e, desses centros, influênciasexemplos, modelos, foi o que não faltou. Fosse a história coisa mecânica,fora de relações determina<strong>da</strong>s, tais influências teriam conduzidoa uma Filosofia brasileira - mas isso não se deu. Por quê?Porque nos foi nega<strong>da</strong>, nas relações de dependência, a originali<strong>da</strong>-


64 A Filosofia entre-nosde: fazer desse passado uma diferença nossa. Não chegamos a nosapropriar desse passado - e as condições, externas e internas, quenos impediram a realização dessa apropriação, eis o tema esquecido<strong>da</strong> Filosofia brasileira.A mais pobre <strong>da</strong>s argumentações é esquecer-se num fatalismoqualquer: o brasileiro não possuiria pendor para a Filosofia, por exemplo.23Como se isso fosse uma pesa<strong>da</strong> e gorducha "coisa em si". Comose isso não fosse algo a ser inventado, a ser feito historicamente.Investigar o que nos levou às comodi<strong>da</strong>des de tal esquecimento, eiso que talvez possa responder à questão que Álvaro Lins crê irrespondível:o que determina a ausência de um ver<strong>da</strong>deiro filósofo no Brasil.É inevitável que o autor - que aqui tomo aleatoriamente, sempretender que sua escolha signifique mais do que outra - venhaa se contradizer continuamente. Diz mais adiante que Filosofia epoesia são afins, e que no caso <strong>da</strong> poesia contamos com grandesrepresentantes e dom de originali<strong>da</strong>de. À vista disso, creio problemática'aafirmação de que carecemos de espírito especulativo, deinvestigação do sentido do mundo, se poesia e Filosofia têm raízescomuns. Aconteceu não nos apropriarmos de uma "forma" de especulação,a filosófica. Por quê? Que fique sugerido: talvez porquea poesia sempre guardou seu potencial de rebeldia, seu carátermarginal, enquanto a Filosofia concedeu em servir de apoioideológico ao estabelecido. O que fez com que entre-nós a RazãoDependente e a Ornamental se tenham transformado em RazãoAfirmativa do vigente. Ideólogos na colônia, nossos pensadoresnão puderam ir além "<strong>da</strong>s chinelas", como diria Machado deAssis.23. Encontramos esta forma equívoca de colocar a questão em autores de orientaçõesas mais diversas: João Ribeiro, Tobias Barreto, Luís W. Vita. O dito de Tobias Barreto temsido repetido à exaustão. "O Brasil não tem cabeça filosófica". A Lufe W. Vita já fizemosreferência no início deste capítulo. João Ribeiro (A Filosofia no Brasil Revista Brasileirade Filosofia, ed. Instituto Brasileiro de Filosofia, São Paulo 4(3):413-6), numa crítica arrasadoraa Farias Brito e Tobias Barreto, chega aos limites <strong>da</strong> convulsão emocional ao escrever."Não está no temperamento nem nas virtudes de nossa raça o culto <strong>da</strong> filosofia (...)Seja curteza de vista ou repugnância natural, não há raça mais retrataria à metafísica quea nossa." (p. 413) A análise de todos fracassa na medi<strong>da</strong> em que, não dispondo de instrumentospara a compreensão do que viam, coisificavam para além do espaço e do tempo oque deveria ser analisado no ceme de um processo histórico.


A Filosofia entre-nos 65E diria mais: "Deci<strong>da</strong> o leitor entre o militar e o cónego; euvolto ao emplasto".A questão <strong>da</strong> língua. O português que praticamos seria umentrave a nos afastar dos temas "elevados" que são objeto <strong>da</strong> reflexão.Haveria uma debili<strong>da</strong>de inerente ao português - língua adequa<strong>da</strong>no máximo às pia<strong>da</strong>s de botequim - que explicaria por quenão chegamos ain<strong>da</strong> (e talvez não cheguemos jamais) à Filosofia.Tal argumento, cristalização perfeita do esquecimento em que nosencontramos, é mais uma <strong>da</strong>s manifestações de nosso tipo particularde alienação.Me explico. O grande drama de nossos professores de Filosofia- e nisso Álvaro Lins acerta: contamos com professores de Filosofiae não com filósofos - é conseguir traduzir para o portuguêsexpressões alemãs, francesas ou latinas. Daí a avalanche de citaçõese de notas ao pé <strong>da</strong> página que dão a certos livros aquele climade hermetici<strong>da</strong>de imbecil O esquecido por nossos filósofos profissionaisé que as expressões alemãs ou latinas são justamente isto:originais. Nasceram lá, lá foram cria<strong>da</strong>s, e trazem a marca deum momento, suas importâncias e urgências. De fato jamais serãotraduzi<strong>da</strong>s - cumpriria transplantar situações de lugar e tempo,coisa impossível.• Diante disso, nossa atitude é lamentar a insuficiência <strong>da</strong> língua.Como o português não traduz uma expressão de Hegel, Kantou Aristóteles - mais recentemente, ao delírio, Heidegger - o português seria língua inferior quanto às possibili<strong>da</strong>des de filosofar.Ocorre aí um imenso equívoco: o de que o único filosofar possíveconsista em ser "assimilativo" e ter "sensibili<strong>da</strong>de espiritual" paracom os problemas dos outros. Esquecemos que a situação dos outrosé isto: deles. Se nossa língua não é capaz de exprimir o alheio,isso em na<strong>da</strong> a desmerece, uma vez que uma língua tem por funçãoexprimir o próprio, não o alheio. Se as inteligências que li<strong>da</strong>mcom a Filosofia entre-nós pudessem se alçar a este modesto graude flexibili<strong>da</strong>de, encontrariam uma multidão de coisas que, ditas


66 A Filosoãa entre-nosem português, não poderão ser traduzi<strong>da</strong>s para inúmeras línguasO que, de resto, não as desmerece.Trata-se de questão mal coloca<strong>da</strong>. Mário de Andrade já arespondeu de modo definitivo: ao invés de imaginarmos que nãotemos pensamento por falta de linguagem, por que não supomosque não temos linguagem por falta de pensamento?É aliena<strong>da</strong> a busca obsessiva de termos que pudessem traduzircoisas estrangeiras. Seria como transplantar o termo sem transplantara intuição - e na intuição está a reali<strong>da</strong>de, sua importânciae urgência. Precisamos entender que os termos alemães, por exemplo,designam reali<strong>da</strong>des que passaram a existir para os alemãesem determinado momento, sendo para eles importantes numa posição.Cabe a nós descobrir o que nos importa. Descoberto isso,teremos a palavra adequa<strong>da</strong>. Adequa<strong>da</strong> ao que é nosso. Dita ànossa maneira, com nossa preocupação específica. E perceberemos,então, que serão coisas talvez intraduzíveis para o alemão, ogrego, o francês. O que, novamente, não debilita tais línguas e asimportâncias e urgências de seus falantes. Apenas mostra que osproblemas dos usuários dessas línguas são outros. São outras acoisas que importam.O problema de uma linguagem filosófica nossa não se dáem abstrato nem se reduz a uma simples questão de técnica de tradução.Na palavra isolamos, concretizando, um conceito. A totali<strong>da</strong>dedos conceitos possíveis, bem como a totali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s coisas,não são indiferentemente iguais para mim. Há conceitos que meimportam mais que outros e há os que são absolutamente urgentes,ou seja: aqueles que urge isolar e concretizar numa palavrapara que me permita o domínio do reaL O ato de pensar é estemovimento em direção à ordenação dos conceitos e <strong>da</strong>s coisas, ordenaçãoexigi<strong>da</strong> pela posição em que estou.Me explico. Ao existir, preciso providenciar esta existência oque envolve: <strong>da</strong>r conta de acontecimentos inúmeros, mais ou menossignificativos. O que vier a ser para mim de alta significaçãoé algo importante. O que me exigir, devido à sua alta importância,uma prontidão imediata é urgente. Para tais situações se voltamnossos atos de intelecção. Busco apreender o importante e,


A Filosofia entre-nós 67mais imediatamente, o urgente.Eis como a questão <strong>da</strong> linguagem filosófica entre-nós envolveuma revisão crítica de nossas importâncias e urgências. As palavras não estão aí desde sempre a "significar" - e nenhuma línguapossui desde sempre uma estrutura "filosófica", coisa que não existe.É historicamente que as palavras adquirem significados e umalíngua reflete em sua organização a atitude existencial de seus falantes.A ca<strong>da</strong> língua pertencerá um determinado tipo de ordenação que lhe vem <strong>da</strong> visão de mundo para a qual foi historicamenteprovidencia<strong>da</strong>. Assim, na língua, ocorre a materialização <strong>da</strong>s importânciase urgências de seus portadores.Podemos agora precisar como não deveria ser coloca<strong>da</strong> aquestão <strong>da</strong> linguagem filosófica. Não se trata de opor, confrontando,o que existe agora em português e o que existe em qualqueroutra língua. Por motivos simples: 1? - o critério seria externo e2? - em na<strong>da</strong> acrescentaria o saber próprio de nossa língua. Sendo externo o critério, o metro estará errado. Se meço o portuguêpelo inglês, estou fazendo algo como operar com centímetros recorrendoa polega<strong>da</strong>s. Já estarei <strong>da</strong>ndo como suposto o valor <strong>da</strong>quiloque é usado como metro. Pode ser importante para uma triboqualquer distinguir "árvore grossa" de "árvore fina", sem queisso seja igualmente importante para nós, não representando qualquerdeficiência. Apenas mostra que aquilo que ali se encontraem questão não nos importa.Uma coisa talvez seja certa: poderemos enriquecer nosso instrumentallingüístico desde que partamos de nossas importânciase urgências para as palavras e a língua - e não o contrário. Sequestiono <strong>da</strong> urgência de se <strong>da</strong>r existência a um conceito, isolando-onuma palavra, estou transformando o sistema de dentro parafora, fazendo-o criador. Se me limito a transplantar palavras,na<strong>da</strong> acrescento, na<strong>da</strong> crio. Veja-se, por exemplo, a que conduziramas infindáveis citações: a infindáveis itálicos.É necessário levar em conta que ca<strong>da</strong> língua realiza um modo de existência, uma determina<strong>da</strong> criação do humano. Supor queuma seja superior à outra é supor um critério que paire acima delase que as julgue - o que parece absurdo.


68A Filosofia entre-nTo<strong>da</strong> investigação neste sentido deveria ser interna, de dentropara fora, <strong>da</strong>s importâncias e urgências para as palavras e a línguaCaso contrário, condena-se à esterili<strong>da</strong>de, à erudição dos itálicosbem pensantes, mas que não nos pensam - e através dos quaisnão podemos pensar. E a tarefa mínima <strong>da</strong> Filosofia é pensar oque somos, como somos. Consiste na descoberta a ser realiza<strong>da</strong><strong>da</strong>quilo que temos a dizer, que só nós poderemos dizer e que, senão o dissermos, ninguém o dirá. Teríamos então a condição básca <strong>da</strong> apropriação de uma forma, a filosófica: nossa originali<strong>da</strong>de.Aí se encontra o esquecimento do pensar brasileiro. Não termospercebido que estamos sempre partindo de teorias alheias,palavras alheias, problemas alheios, buscando aprisionar nossa expressãodentro desses moldes. Com efeito, parecemos ter pavordo que nos circun<strong>da</strong>, pois não se ajusta aos moldes europeus quetransplantamos. É urgente, ao contrário, partir de importânciasque evidenciarmos e de nosso particular esquecimento. E a palavraadequa<strong>da</strong> surgirá irredutível.Esse, em suma, o apanhado de alguns problemas gerados pelafalsa perspectiva em que nos colocamos quanto a uma Filosofiabrasileira. Confundir autores entre-nós com Filosofia nossa; buscardissolver a oposição entre o isolamento e o alheamento; negar quetenhamos capaci<strong>da</strong>de de pensar por conta própria; projetar nossafalta de pensamento numa possível insuficiência <strong>da</strong> língua portuguesa. Na<strong>da</strong> disso diz respeito à essência possível de um pensarbrasileiro: são, ao contrário, tantos outros sinais de nosso esquecimento.Destruir esses equívocos é a condição indispensável <strong>da</strong> possibili<strong>da</strong>de de um juízo filosófico brasileiro.


Caputilo 9A Razão Ornamental


70 A Razão Ornamenta/Para bem corresponder ao papel que, mesmo sem o saber,lhe conferimos, inteligência há de ser ornamento e pren<strong>da</strong>,não instrumento de ação e conhecimento.SÉRGIO BUARQUE" DE HOLANDA(Raízes do Brá algo de que gostamos: do homem brilhante. Ser algumdia chamado de brilhante é a glória à qual aspira o intelectualtupiniquim. Não nos causa admiração alguémque seja organizado no trabalho intelectual, constante,dedicado. Costumamos empregar, nestas ocasiões, frasesassim: "Fulano não é muito inteligente, mas é esforçado". Querdizer: falta-lhe o brilho, a rapidez mental, o dito charmoso e desconcertante,o jogo de palavras - mas é esforçado. O esforçado é,entre-nós, uma <strong>da</strong>s figuras mais deprecia<strong>da</strong>s; por mais que produza,por melhores que sejam suas contribuições, se não chega aobrilho, não merecerá mais do que uma morna aceitação. Comose permitíssemos que continuasse existindo, embora, coitado, sejaapenas um esforçado.O tipo de inteligência que nos agra<strong>da</strong> é aquele que sabe brilharatravés <strong>da</strong>s palavras. Nunca ter feito uma frase de efeito, eisa falta que intelectual brasileiro jamais cometerá. Agra<strong>da</strong>-nos, sobretudo,a rapidez mental e o uso desenvolto <strong>da</strong> linguagem. Quemde nós suporta um orador que se plante com não sei quantas lau<strong>da</strong>sà nossa frente? Se é pra ler, leio em casa. Do orador quere-


A Sazão Ornamental 71mos algo distinto <strong>da</strong> importânica ou <strong>da</strong> consistência do que tem adizer. Queremos o improviso. Esta fascinação pelo ci<strong>da</strong>dão bemfalante conduziu à desgraça (e à graça) algumas carreiras de políticos e professores - e gerou o triunfo do bacharel. Ah, as delícias<strong>da</strong> Razão Ornamental! Jamais em parte alguma o bacharel contoucom uma platéia tão entusiasticamente domina<strong>da</strong>.Mas o brilhantismo <strong>da</strong> Razão Ornamental não envolve apenasaquelas ocorrências em que alguém é capaz de manipular palavrascom especial esmero. Na ver<strong>da</strong>de, mais nos deliciamos quandoesta capaci<strong>da</strong>de é dosa<strong>da</strong> com pita<strong>da</strong>s de sábia malandragem.O herói brasileiro é o esperto. E o esperto ludibria de maneira especial.Quase leva o ludibriado a agradecer ter sido vítima. E na<strong>da</strong>faz que choque moralmente. Ao contrário, sustenta uma açãoinocente. Um brinquedo. O dito bem bolado, a artimanha esperta,a frase marota, eis o que nos fascina - e que a tudo pode perdoar.Alguém que reunisse to<strong>da</strong>s estas quali<strong>da</strong>des seria estrondosamenteeleito presidente desta República - e, sei não, chego a pensarque isso já aconteceu.Poderíamos ilustrar estas observações com dois mortos ilustres:José Maria Alkmim e Eurico Gaspar Dutra. Do segundo sediz que não sabia falar e corre a anedota segundo a qual se elegeuporque jamais abriu a boca. Do primeiro ficou uma magnífica coleçãode frases que apresentam, na máxima realização, os ideais dohomem brilhante. O fenômeno analisado sob o nome de populismomereceria entre-nós uma abor<strong>da</strong>gem a partir deste ângulo:um povo fascinado pela Razão Ornamental e em busca de seusmais prezados arquétipos.Outra nota <strong>da</strong> Razão Ornamental é a adesão aos "ismos".Intelectual brasileiro que se preze adere a um "ismo" qualquer, oque lhe concede ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia no universo do pensamento, sobretudose for o último "ismo" aparecido. Tanto é assim que vários autores, <strong>da</strong> maneira mais disparata<strong>da</strong>, passam em certos momentosa conferir status entre-nós. Num passado recente, tivemos a seguintesucessão de mo<strong>da</strong>s: Sartre, Mounier, Teilhard de Chardin, LeviStrauss, Marcuse, McLuhan, Althusser, entre outros menos votados.Isso revela uma de nossas alienações básicas: o deslumbris-


72 A Bazão Ornamentalmo dos colonizados. Enquanto não se alcança uma linguagem hermética,acessível só a iniciados, algo cifrado e misterioso, não sacredita ter atingido um nível de pensamento aceitável. Trata-sede uma radical imaturi<strong>da</strong>de. A adesão frenética a uma corrente,a um rótulo ou chavão constitui a morte do pensamento. Na origem,todo pensamento é crítica e negação, e o limite de sua vitali<strong>da</strong>deencontra-se identificado com o limite de sua sistematizaçãoe vigência. Eis no que é preciso cui<strong>da</strong>r: um pensamento deve tervali<strong>da</strong>de, não necessariamente vigência, pois esta costuma lhe serconferi<strong>da</strong> a partir do momento em que começa a morrer.Confundimos, por outro lado, pensamento original com pensamentonovi<strong>da</strong>deiro. E preciso insistir: ser novo é um acidente dooriginal. Original é o que li<strong>da</strong> com as origens, não o último no tempo.Eis por que o rótulo de "ultrapassado" é puro equívoco. Faltando-nos originali<strong>da</strong>de ver<strong>da</strong>deira, agarramo-nos à novi<strong>da</strong>de nailusão de que nela se encontre a ver<strong>da</strong>de. Mas não é na<strong>da</strong> disso.O que constrói uma ver<strong>da</strong>de é sua perspectiva. O dito por últimopode ser perfeitamente repetitivo. Este equívoco assume entre-nósum caráter particularmente grave. A uma estrutura mental e socialfecha<strong>da</strong> e conservadora, superpomos uma ornamentali<strong>da</strong>dede novi<strong>da</strong>deiros, como se a ver<strong>da</strong>de fosse, num leilão, algo a serarrebatado por quem desse o último lance.Álvaro Lins fez um diagnóstico exato desta condição do intelectual brasileiro num capítulo chamado "Ah, logrados indígenas!".24Que cito e vou comentando.Inicia dizendo ser espantoso que "tantas pessoas ain<strong>da</strong> pratiquema literatura neste país como se fôssemos um subúrbio Literrio <strong>da</strong> França, <strong>da</strong> Inglaterra e dos Estados Unidos <strong>da</strong> América.Desejamos ser cultos, sobretudo em cultura estrangeira; somos elitesli<strong>da</strong>s e corri<strong>da</strong>s, em literatura francesa, inglesa, norte-americana...Apurando bem, no entanto, eis o resultado: não somos real-24. LINS, Álvaro. Op. ciL, pp. 431 e segs.


A Razão Ornamental73mente cultos em nossa literatura porque a desdenhamos, estu<strong>da</strong>ndo-aaos pe<strong>da</strong>ços, em restos de tempo; e não somos cultos em literaturasestrangeiras, porque um francês, ou um inglês, ou um norte-americano,de média cultura na respectiva língua, sabe muitomais do que nós destas literaturas, para as quais, entretanto, vivemostão ansiosamente, tão parvamente voltados. E às vezes paraelas voltados por intermédio de escritores e livros que são apenasprodutos de exportação, sem valor e significado na opinião literáriados seus próprios países, sem na<strong>da</strong> que correspon<strong>da</strong> ao tratamento de autores incomuns ou singulares que recebem nos paísesde tolo colonialismo, vivendo de 'transplantes literários' e 'enxertiasculturais'... Com efeito, não há autorzinho estrangeiro de segun<strong>da</strong>ordem com algum sucesso, não há movimentozinho de Saint-Germain-des-Prés ou do Boulevard Saint-Michel, não há pequenoensaio de crítico inglês ou insignificante exercício para estu<strong>da</strong>ntesde qualquer crítico universitário norte-americano -, não há na<strong>da</strong>,de tudo isso, que deixe de receber aqui amplo noticiário, emnossas revistas e jornais, enquanto tantos trabalhos de autores nacionais,às vezes de valor equivalente ou mesmo de melhor categoria,ficam na sombra, sem publici<strong>da</strong>de e sem repercussão".Comentando. Primeiro: a posição de colonizado não se esgotaem mera dependência econômica, generalizando-se para to<strong>da</strong>sas áreas; e o brasileiro é o colonizado por excelência, aquele quevive fazendo o europeu como o personagem de Machado fazia oAlferes.Segundo: ser culto, no Brasil, é avolumar erudição sobre umoutro, o não-brasileiro. Julgamos apenas exótico, ou até de maugosto, quem se dedique a coisas nossas - mas julgamos de alta erudiçãosaber alemão ou latim. Temos uma visão tipicamente arrivista<strong>da</strong> cultura: é chegar aonde outros estão. As delícias de citarProust ou Goethe! "Ah - diz Álvaro Lins - a fascinação dessesbrasileiros letrados pelas últimas 'novi<strong>da</strong>des' estrangeiras!"Terceiro: a Razão Ornamental pressupõe uma supressão. Epreciso esquecer o que está à nossa volta, voltando-nos para "a"cultura: aquilo que ocorre em Paris, Berlim ou Nova Iorque. Assim,não somos conhecedores de nós mesmos e nem dos outros, pois


74 A Razão Ornamentalé certo que os outros levam sobre nós uma vantagem decisiva: sãoeles próprios.Quarto: Álvaro Lins refere-se à prática <strong>da</strong> literatura. Mas opanorama quanto à prática <strong>da</strong> Filosofia é, de longe, muito maisalienado. Basta que se procure ler - que seja o índice - de algumarevista brasileira dedica<strong>da</strong> à Filosofia.A Razão Ornamental nos leva a abandonar tudo, esqueceraqui e fora <strong>da</strong>qui obras que importam, para correr atrás <strong>da</strong>s últimasnovi<strong>da</strong>des. Nos conduz a querer aplicar aqui "escolas" estrangeiras- portanto estranhas - como se isso fosse possível sem noscobrar um preço: o esquecimento do que somos."Por outro lado - voltando a Álvaro Lins - afigura-se um fenômenodiferente ou oposto, mas, de fato, é tão-só a segun<strong>da</strong> facedo mesmo 'complexo' de inferiori<strong>da</strong>de, colonialismo e provincianismo- isto que se pode observar a olho nu: a revolta, a mágoa,a lamentação por não sermos bastante lidos, conhecidos, traduzidosno estrangeiro. Um estado de alma, aliás, freqüentemente expressoem livro, artigos, entrevistas, em to<strong>da</strong> sorte de pronunciamentode autores brasileiros."Desejamos ser reconhecidos pela Mãe-Europa, em nossa edipianae mórbi<strong>da</strong> dependência afetiva e intelectual. Com isso perdemosa oportuni<strong>da</strong>de de ser alguma coisa qualquer, não necessariamentemelhor ou pior do que a Europa, mas apenas isto: nossa.Em conseqüência, o intelectual tupiniquim vive num estado de dissociação:voltado para fora e de fora esperando reconhecimento.Fechando os olhos à reali<strong>da</strong>de que o circun<strong>da</strong>. Descentrados, jamaisencontraremos o núcleo em torno do qual possamos <strong>da</strong>r coerênciaa nós mesmos, condição de originali<strong>da</strong>de. Evidente que opensamento brasileiro não poderia apresentar senão duas marcas<strong>da</strong>s mais pobres: o ecletismo - que não é, entre-nós, um simplesmovimento do passado, mas um clima geral que a tudo envolve,conseqüência de nossa incapaci<strong>da</strong>de de romper o cordão umbilicale "ser gaúche na vi<strong>da</strong>"; e o positivismo, o pensamento afirmvo, legitimador do vigente, que vai do tomismo ao estruturalismo,passando pelo neopositivismo."E natural que desejemos ser projetados e valorizados para


A Razão Ornamental 75além <strong>da</strong>s nossas fronteiras; não obstante, essa ânsia pelo brilhono estrangeiro, tamanha lamentação por não nos conhecerem eadmirarem bastante pelo mundo afora - isto significa, afinal, algopueril; e revela carência de segurança e estabili<strong>da</strong>de, ausência deconfiança em si mesmo, deficiência de amor-próprio.""Bem, devemos ser o que somos, devemos procurar fazer asnossas obras o melhor possível, e o resto (...) já não é problemanosso. Atingiremos a universali<strong>da</strong>de quando chegar, ou se chegar,o momento próprio, isto é: quando estivermos para isto madurose acabados, não tanto em quali<strong>da</strong>des formais ou habili<strong>da</strong>des técnicas,mas em força interior, genuína e dominadora."A primeira tarefa na existência é chegarmos a ser o que somos,fazendo de si o que se visa ser, partindo de nossa posição.Depois, seremos reconhecidos - se formos reconhecidos. Sem isso,a interiorização necessária ao surgir <strong>da</strong> Filosofia jamais ocorreráentre-nós e a Filosofia continuará sendo apenas aquela tia distante que veio e foi ficando. E a possível Filosofia brasileira permanecerávítima <strong>da</strong> Razão Ornamental.É dito e repetido que à Filosofia importa a ver<strong>da</strong>de. Aliás, aVer<strong>da</strong>de. Aí a Filosofia já começa a ser problemática, pois serianecessário antes do mais determinar o que se entende por ver<strong>da</strong>de- o que não é imediatamente claro ou evidente. A solução préviadesta questão envolve a possibili<strong>da</strong>de de seu desenvolvimentoposterior. No entanto, por mais importante que possa ser essa questão,ela aqui não se encontra em jogo; aqui não é urgente. Numquestionamento <strong>da</strong> Razão <strong>Tupiniquim</strong> como aqui se realiza, importasaber se, entre as pretensões de uma Razão Ornamental, encontramosa preocupação prioritária com a ver<strong>da</strong>de, condição de Filosofia.Me explico. A Razão Brasileira já foi aqui caracteriza<strong>da</strong> comalgumas notas: o ecletismo, o jeito, o deslumbrismo dos colonizados,a fascinação pelo brilho. A essência <strong>da</strong> Razão Ornamentalconsiste numa espécie de véu superposto ao real. O discurso intelectualbrasileiro se dá num nível de manifestação clara: o de uma


76 A Vazio OrnamentalRazão comprometi<strong>da</strong>. Não com a ver<strong>da</strong>de. Com efeito, quem aexerce? O pretendido intelectual Entre-nós, porém, encontramosalguns fenômenos que devem ser levados em conta. Se o brasileirocomum apresenta uma certa "sau<strong>da</strong>de" e um pavor/temor totêmicocom relação à Europa, o intelectual brasileiro leva tal condiçãoa seu extremo. Atemorizado com a reali<strong>da</strong>de em volta, o tecidode sonori<strong>da</strong>de palavrosa que nosso intelectual cria envolve aRazão Nacional - seja na literatura, na critica literária, na críticade arte, na Filosofia, na política, no direito e na economia - comum véu suposto em si mesmo significativo. Em outros termos, poderíamosdizer que a Razão Ornamental se caracteriza pela supressão<strong>da</strong> intencionali<strong>da</strong>de. Os objetos aos quais se refere estão encobertose esquecidos, não mais se encontrando em questão, deixandode importar. Sabemos que uma <strong>da</strong>s pretensões <strong>da</strong> Filosofia,quando interessa<strong>da</strong> na ver<strong>da</strong>de, é erguer o véu que encobre o real- e concluímos que entre a Razão Ornamental e a Filosofia nãohá possibili<strong>da</strong>de de conciliação.Penso que a raiz <strong>da</strong> alienação <strong>da</strong> Razão Brasileira numa RazãoOrnamental se encontra na recusa, desde sempre manifesta<strong>da</strong>pelo intelectual brasileiro, em assumir sua própria identi<strong>da</strong>de.E claro que isso envolve uma longa história, a do mazombo queem nós habita. Mazombo infeliz, o brasileiro colonizado jamais selibertou de sua fascinação pela "estranja". "Flutuavam (os intelectuaisbrasileiros) - diz Antonio Candido - com ou sem consciênciade culpa, acima <strong>da</strong> incultura e do atraso, certos de que estes nãoos poderiam contaminar nem afetar a quali<strong>da</strong>de do que faziam.Como o ambiente não os podia acolher intelectualmente, senãoem proporções reduzi<strong>da</strong>s, e como seus valores radicavam na Europa,para lá se projetavam, tomando-a inconscientemente comoponto de referência a escala de valores, considerando-se equivalentesao que havia lá de melhor. (...) A penúria cultural fazia o escritorvoltar-se necessariamente para os padrões metropolitanos eeuropeus em geral, formando um agrupamento de certo modo aris-


A Razão Ornamental 77tocrático em relação ao homem inculto. Com efeito, na medi<strong>da</strong>em que não existia público local suficiente, ele escrevia como sena Europa estivesse o seu público ideal, e assim se dissociava muitasvezes de sua terra. Isto <strong>da</strong>va nascimento a obras que os autorese leitores consideravam requinta<strong>da</strong>s, porque assimilavam as formase valores <strong>da</strong> mo<strong>da</strong> européia. Mas, pela falta de pontos locaisde referência, podiam não passar de exercícios de mera alienaçãocultural."25Essa dependência conduziu ao aparecimento, ao nível <strong>da</strong> reflexão,de uma atrofia escan<strong>da</strong>losa. Passou-se a discursar sobreuma reali<strong>da</strong>de queri<strong>da</strong>, a européia, sobre problemas europeus, utilizandotermos e linguagem adequados àqueles problemas que estranhaminteiramente nossa circunstância. A reali<strong>da</strong>de queri<strong>da</strong> écoisa diversa <strong>da</strong>quela na qual nos encontramos. Coisas problemáticaspara um europeu podem ser, para nós, falsos problemas quesomente à custa de ver<strong>da</strong>deira violência mental e grande alienaçãoconseguimos revestir de "importância". Se outra é a reali<strong>da</strong>de, outrossão os problemas virtualmente existentes, outros devendo seros termos e métodos. No entanto, na<strong>da</strong> disso foi providenciado.Nossa reali<strong>da</strong>de desde sempre foi suprimi<strong>da</strong>. O intelectual brasileirorefugia-se numa constelação de conceitos esvaziados e de sonoraspalavras que visam exorcizar isto de que tem tanto pavor eque julga de tão pouca classe: nossa brasili<strong>da</strong>de.Eis como, consagrados métodos e termos europeus, muitosequívocos se tornam possíveis. Entre eles, o que desabou sobrOswald de Andrade. Não há filosofante brasileiro que não se coloquesuperiormente diante de Oswald. Por quê? Fácil: não passariade um fazedor de pia<strong>da</strong>s, sujeito pouco séno. Que brincava cocoisas sérias. O próprio Oswald, que não era de deixar bobagemsem respostas, escrevia em 1943: "Segundo o sr. Antonio Candidoeu seria o inventor do sarcasmo pelo sarcasmo. Meio séculode sarcasmo! Contra quê? (Olavo Büac e Coelho Neto no auge<strong>da</strong> glória; Graça Aranha; o verbalismo de Rui Barbosa, a 'italianità' de Carlos Gomes; o apogeu do verdismo e o sr. Plínio Salga-25. CANDIDO, Antonio. Op. ciL, pp. 13 e 14.


78 A Razão Ornamenta/do.) Tudo isso não passou de sarcasmo e pilhéria! Porque a vigilanteconstrução de minha crítica revisora nunca usou a maquilagem<strong>da</strong> sisudez nem o guar<strong>da</strong>-roupa <strong>da</strong> profundi<strong>da</strong>de. O sr. AntonioCandido e com ele muita gente simples confunde 'sério' com 'cacete'.Basta propedeuticamente chatear, alinhar coisas que ninguémsuporta, utilizar uma terminologia de 'in-folio' para nesta terra, ondeo bacharel de Cananéia é um símbolo fecundo, abrir-se em torno do novo Sumé a bocarra primitiva do homem <strong>da</strong> caverna e ocaminho florido <strong>da</strong>s posições".26A questão vem a ser esta: e se Oswald estivesse tentando inauguraroutra Razão, como é fácil confirmar pela leitura de A crise<strong>da</strong> filosofia messiânica? Necessariamente diversa <strong>da</strong> europvez que, propondo outra posição, exigiria outros termos e novoscritérios. Esta nova Razão - não-linear, não-silogística, não-séria -seria talvez uma tentativa de construir um discurso adequado aoque somos.Embora estivesse apontando alguma reali<strong>da</strong>de brasileira, Oswaldo fazia de forma "desrespeitosa" do ponto de vista <strong>da</strong> RazãoOrnamental, contra os clássicos padrões acadêmicos - as coisas sérias.Em função disso, a pia<strong>da</strong> de Oswald foi "esqueci<strong>da</strong>" e se transformouuma inteligência claramente brasileira em mera fazedorade anedotas. Ninguém se perguntou: um filósofo que fosse ver<strong>da</strong>deirae visceralmente brasileiro - não sugiro que Oswald tenha sido;tinha o estofo e a intuição, apenas isso - poderia deixar deser, ao mesmo tempo, um humorista? E mais: por que, ao chamarde humorista, pretendemos sempre diminuir alguém? Onde estádito que o filósofo é "superior" ou "mais profundo" do que o humorista?Não representaria o humor, ao contrário, a visão do avesso<strong>da</strong>s coisas, aquela consciência desperta, crítica, que o filósofocom freqüência teme assumir, esquecendo-se nalguma ideologia?E desde quando o humor é antagônico ao filosofar? Não será, contrariamente, a mais alta expressão do espírito crítico?No homem sério verificamos o triunfo <strong>da</strong> certeza - do vigete, <strong>da</strong> ordem, dos sistemas. Em termos brasileiros, é no humor que26. ANDRADE, Oswald de. Op. cit, p. 43.


A Bazão Ornamental 79temos encontrado a forma mais genuína de assumirmos nossas incertezas,fonte de qualquer pensamento a sério e criador.A Razão Ornamental não só cria uma reali<strong>da</strong>de à parte eque lhe convém como enaltece ao delírio seu universo palavrosoDaí a freqüência de ressentimento nos intelectuais. Julgam-se infelizes,adorando posar, numa anacrônica mística romântica, de seres etéreos e destinados, não a uma morte prematura, que os antibióticosfizeram cair de mo<strong>da</strong>, mas ao sofrimento de não seremcompreendidos. O que lhes permite assumir ares de superiori<strong>da</strong>deface à massa inculta. Num país onde o analfabetismo sempreganhou de golea<strong>da</strong>, não me parece grande vantagem.Esta pose de vítima não significa mais do que um lamentosopedido de aceitação ao sistema vigente. Ao invés de crítico, o intelectual brasileiro é apenas um ci<strong>da</strong>dão sensível a seus próprios calo- embandeira-se em rebeldia até onde ela pode ser um instrumentode afirmação. A crítica que move ao sistema atua apenas enquantoeste o rejeita, não lhe parecendo estranho que o sistema excluade seus beneficiários um imenso contingente de brasileiros que seencontram a quilômetros <strong>da</strong> "intelectuali<strong>da</strong>de". O intelectual é,entre-nós, um individualista - a versão palavrosa de Pedro Malasarte.Do ponto de vista de uma Razão Ornamental, <strong>da</strong><strong>da</strong> a importânciado "caminho florido <strong>da</strong>s posições", tudo pode ser colocadoem questão, menos o principal e o que importaria: o vigente,os comodismos de nossa instalação. A não-critici<strong>da</strong>de <strong>da</strong> RazãoOrnamental não é, portanto, algo que uma <strong>da</strong><strong>da</strong> circunstância lhetenha acrescentado, mas algo que lhe é inerente."O trabalho mental - diz Sérgio Buarque de Holan<strong>da</strong> - quenão suja as mãos e não fatiga o corpo, pode constituir, com efeito,ocupação em todos os sentidos digna de antigos senhores deescravos e dos seus herdeiros. Não significa forçosamente, nestecaso, amor ao pensamento especulativo - a ver<strong>da</strong>de é que, emborapresumindo o contrário, dedicamos, de modo geral, pouca estimaàs especulações intelectuais -, mas amor à frase sonora, ao


80 A Sazão Ornamentaiverbo espontâneo e abun<strong>da</strong>nte, à erudição ostentosa, à expressãorara. É que para bem corresponder ao papel que, mesmo sem osaber, lhe conferimos, inteligência há de ser ornamento e pren<strong>da</strong>,não instrumento de conhecimento e de ação."27I Na medi<strong>da</strong> de sua positivi<strong>da</strong>de, o pensamento produzido pelaRazão Ornamental é essencialmente servil Curioso que isso ocorraprecisamente num pais que tem no humor satírico uma de suasmaiores manifestações - o que, de resto, evidencia a alienação<strong>da</strong> elite intelectual. Transforma<strong>da</strong> em instrumento de afirmaçãosocial - como, em outros momentos, um título de nobreza, a posse<strong>da</strong>s terras, um diploma universitário -, era preciso que to<strong>da</strong> aênfase fosse transporta<strong>da</strong> para o brilho, a erudição balofa, os estéreismalabarismos estilísticos. Sem o que dizer, só restava brilhar.Ser conciliador, cordial, jeitoso, servil, tudo isso não passa dereflexo de uma doença maior, o esquecimento <strong>da</strong> Razão entre-nós.O que Sérgio Buarque de Holan<strong>da</strong> diz dos políticos cabe perfeitamente para descrever o clima em que se viu envolvido o pensamentobrasileiro: "Preferiram esquecer a reali<strong>da</strong>de, feia e desconcertante,para se refugiarem num mundo ideal de onde lhes acenavamos doutrinadores do tempo. Criaram asas para não ver o espetáculodetestável que o país lhes oferecia".28Cumprindo seu processo ao limite, só poderia acontecer oacontecido: o ecletismo como jeitosi<strong>da</strong>de geral a contaminar umaautêntica posição intelectual; a predominância do positivismo e derivados;o apego obsessivo ao tomismo - três <strong>da</strong>s mais flagrantesderrotas <strong>da</strong> Filosofia, pois ausentes de critici<strong>da</strong>de. "A persistênciado positivismo e a hegemonia neotomista sobre o ensino <strong>da</strong> disciplinaconstituem a nota dominante de nosso acanhado universo filosófico."29Paralelamente à constituição <strong>da</strong> mitologia brasileira: ojeito, a conciliação, a concórdia, o homem cordial, as revoluçõessem sangue.27. BUARQUE DE HOLANDA, Sérgio. Op. cit, pp. 50 e 51.28. Idem, p. 140.29. PAIM, Antônio. Op. cit, p. 253.


A Razão Ornamental 81Incapaz de pensar, exigindo brilhar, a Razão Ornamental conduzà fuga nos modismos, no último grito cultural, o leilão de idéias.Compreende-se assim o recente suicídio que foi representado pelamo<strong>da</strong> estruturalista, refúgio de uma intelectuali<strong>da</strong>de que buscaum lugar qualquer no mundo <strong>da</strong> tecnoburocracia. E compreendemostambém o sucesso absurdo e fora de propósito do neopositivismo e de seus cursos obtusos de estudos de lógica e teoria doconhecimento a contaminarem as universi<strong>da</strong>des brasileiras - diantedos quais, de resto, todos se deslumbram. Ah, logrados indígenas!Além de cômo<strong>da</strong>s - afinal, estas colocações simplistas e formalizantes nos oferecem um arsenal de certezas -, tais atitudessão perfeitamente inofensivas e servis. A ninguém incomo<strong>da</strong>m.Representam o aspecto sério e útil <strong>da</strong> Filosofia - e ê imenso osucesso. Seria impossível, portanto, compreender o sentido destasmo<strong>da</strong>s se as isolássemos do contexto político onde ocorrem. Desta forma, ou a Filosofia se reduziu a um arquivo de respostas feitas,pronto-socorro para qualquer dúvi<strong>da</strong>, ou se fez estudo preliminar,suntuosa propedêutica à ciência - onde, de resto, somos igualmentedependentes.Atado à camisa-de-força que vem a ser o espírito afirmativo,o pensamento pode exercer-se entre-nós desde que se comprometaa na<strong>da</strong> dizer, a não negar. Que seja apenas afirmativo. Ou seja:o pensamento pode existir entre-nós sob a condição de não pensar.Ou: de não existir.


Capítulo 10A Razão Afirmativa


A Bazio AfirmativaNem por isto compra a brigaolha bem para mim.Vence na vi<strong>da</strong> quem diz sim.Vence na vi<strong>da</strong> quem diz sim.CHICO BUARQUE/ RUY GUERRA.(Calabar)Na aparência, o ecletismo é o oposto do positivismo. Emborasuperficialmente tal oposição possa ser justifica<strong>da</strong>,a ver<strong>da</strong>de é que o aparecimento - e o triunfo - do positivismona<strong>da</strong> mais fez do que desdobrar um componentejá implícito no ecletismo anterior: a Razão Afirmativa.A Razão que diz sim.Indiferencia<strong>da</strong> e dependente, precisando legitimar idéias emodelos providenciados estranhamente, a Razão Afirmativa encontrouem nosso ambiente intelectual um campo de fácil penetração."Nas condições peculiares do pais - ausência de tradição filosóca, fragmentação e dispersão do único grupo, a Escola de Recife,que reivindicava a metafísica ao mesmo tempo em que recusavaa volta à antiga Filosofia já supera<strong>da</strong> etc. -, a ação antífilosóficados positivistas estava fa<strong>da</strong><strong>da</strong> a alcançar resultados desproporcionaisnão só à sua força efetiva como à consistência mesma <strong>da</strong> doutrina."30 Com efeito, olhando criticamente e face às urgências históricasque se apresentavam ao Brasil, o positivismo só poderia tersido aceito em função dos interesses vigentes e <strong>da</strong> reprodução <strong>da</strong>hegemonia <strong>da</strong>s classes dominantes.30. Idem, p. 195.


84 A Razão AfirmativaAliás, a resenha <strong>da</strong>s idéias filosóficas no Brasil marcaria a influência de duas correntes - o ecletismo e o positivismo - que poderíamostranqüilamente considerar como o que de pior se produziuem termos de alternativa filosófica no Ocidente. Apesar dessadebili<strong>da</strong>de intrínseca, sua influência foi tão decisiva - envolvendocondições de dependência sócio-econômica - que formaram nãoapenas correntes mas visões de mundo. Plasmaram modos de ver.De sorte que outras manifestações de pensamento que aqui chegaramforam, mais cedo ou mais tarde, absorvi<strong>da</strong>s e deturpa<strong>da</strong>s poresse clima. Ninguém poderia negar, em aparentes extremos, a afirmativi<strong>da</strong>dedos neotomistas e neopositivistas, o quê chegou a envolvermesmo o marxismo caboclo. Sempre com a marca do ortodoxo,do modelo estrangeiro a seguir, constituindo-se em modosde retenção histórica. De resto, esse clima afirmativo casa bemcom o caráter tirânico e impositivo do ecletismo - que, na ausênciade critérios ou posições criticamente assumi<strong>da</strong>s, deve optar pelasimples afirmação. Está igualmente ligado ao vício conciliador<strong>da</strong> Razão Eclética: ao invés de gerar um confronto criador, gerouentre-nós o pensar anestésico. Dissolvendo oposições, antagonismos ou choques. Reconciliando ao nível verbal as mais desencontra<strong>da</strong>salternativas, gerou o pensamento esterilizado, muito útilporque não contamina ninguém.Acerta Antônio Paim ao dizer que esta "forma mentis", o positivismo- que aqui, ampliando seu significado e extensão, chamode Razão Afirmativa -, "acabou impondo-se entre-nós maisem função do vazio cultural aqui havido do que por qualquer virtudeespecífica desta atitude. Quem fosse uma organização, conseqüentee forte, acabaria fatalmente por atuar neste meio sem consistência,nem resistência. Foi o que sucedeu ao positivismo aqui".31Talvez a melhor explicação do sucesso do positivismo entrenós,em função de sua consciência política, ain<strong>da</strong> pertença a SylvioRomero. Pelo simples fato de não dissociar, em momento algum,o pensamento positivista do contexto político no qual ocorre. EstaFilosofia dos pobres ou este neojesuitismo, como Sylvio Rome-31. Idem, p. 196.


A Razão Afirmativa 85ro se refere ao positivismo, jamais teria condições de continui<strong>da</strong>dee vigência se não viesse, no processo histórico nacional, a seunir a grupos que passaram a exercer o poder a partir <strong>da</strong> déca<strong>da</strong>de noventa do século passado. Na ver<strong>da</strong>de, o papel desempenhadopelo positivismo no estabelecimento <strong>da</strong> República tem sido exaltadoem demasia e talvez deva ser considerado mais modesto.Quando se tramava o 15 de novembro, diz Sylvio Romero, os chefesdo Centro Positivista, segundo informações correntes na época,foram avisados e, no entanto, se recusaram a participar do planode derruba<strong>da</strong> <strong>da</strong> Monarquia por meio de revolta. Tão logo porémo movimento saiu vitorioso, os positivistas aproximaram-sede Benjamim Constant, com o qual tinham tantas divergências, eacercaram-se do poder.Tenha ou não participado imediatamente do movimento republicanoem seus momentos decisivos, a ver<strong>da</strong>de é que o positivismoserviu de apoio ideológico ao grupo de militares que tramavaa que<strong>da</strong> <strong>da</strong> Monarquia e foi o positivismo, afinal, quem se beneficioucom esta que<strong>da</strong>. "Graças à influência militar no primeiro governo<strong>da</strong> República e principalmente do governo Benjamim Constant,que com razão ou sem ela passava por decidido sectário deAugusto Comte, o positivismo foi quase uma religião do Estado, aqual não era porventura desvantajoso praticar" - diz José Veríssimo.32Essa associação entre positivismo e militarismo já havia sidoestabeleci<strong>da</strong> por Sylvio Romero em 1894 nas páginas de Doutrinacontra doutrina: "Um estudo perfeito <strong>da</strong> ação do positivismo,em nossa malsina<strong>da</strong> República, para ser perfeito, deveria associaraos feitos desse partido (os positivistas não negam que constituemum partido político), os feitos do partido militar."33 Esses dois"partidos" teriam exercido a maior influência no início <strong>da</strong> Repúblicacomo dois braços de um mesmo organismo: os militares passarama deter o poder, enquanto os positivistas providenciaram o32 PAIM, Antônio. Op. cit., p. 208.33. ROMERO, Sylvio. Doutrina contra doutrina: o evolucionismo e o positivismo noBrasil In: Obra Filosófica, Rio de Janeiro, José Olympio, 1969, p. 291.


86 A Razão Afirmativaarcabouço ideológico de justificação desse poder. "Qualquer qupudesse ser a influência do militarismo em nossa política - continuemoscom Sylvio Romero - nos dias que correm, essa influência,esse valor não teria chegado para fazer, entre nós, dos militaresum ver<strong>da</strong>deiro partido preponderante, se ao militarismo, por umasingular aberração, por uma esquisitice de nossa educação desorienta<strong>da</strong>,não se tivesse vindo juntar, em íntima aliança, o positivismo. E, por outro lado, os positivistas, a despeito de suas preten-,soes e ousadias, não passariam, não teriam passado até hoje deum grupo insignificantíssimo, sem a mínima preponderância, senão contassem entre seus adeptos os moços estu<strong>da</strong>ntes e os mocosoficiais, há pouco saídos <strong>da</strong> Escola Militar e <strong>da</strong> Escola Superiorde Guerra."34Sylvio Romero lamenta ter havido esta associação entre-nós,porque "essa hibri<strong>da</strong>ção extravagante tem feito mal ao Exército evai fazendo <strong>da</strong>no a este país".35 Tais malefícios seriam devidos aofato de o positivismo ter revestido o movimento republicano comidéias conservadoras, retrógra<strong>da</strong>s, transplantando para terras tupiniquins os modelos <strong>da</strong> sociocracia imagina<strong>da</strong> por Augusto Comte,sob a forma de uma "ditadura republicana". "Note-se - diz SylvioRomero - esta diferença: até 15 de novembro a força arma<strong>da</strong> aparecia a propósito, intervinha em prol do mundo civil e retirava-se<strong>da</strong> cena política, <strong>da</strong>ndo as mais inequívocas provas de abnegação."3*Nas concepções que trouxeram prejuízo ao país, e que podemser atribuí<strong>da</strong>s "à má orientação positivista"37, encontramos o regimetotalitário de inspiração comtiana, cujo melhor exemplo, omais direto, seria o de Júlio de Castilhos, no Rio Grande do Sul,onde governou autocraticamente de 1893 a 1898, sob a inspiraçãodo Sistema de Política Positiva de Comte. Sistema totalmente ctralizado, esse regime ditatorial trazia ain<strong>da</strong> outras marcas. A des-34. Idem, ibidem.35. Idem, p. 292.36. Idem, ibidem.37. Idem, ibidem.


A Razão Afirmativa 87confiança com relação ao voto - "o voto não é nem pode ser over<strong>da</strong>deiro instrumento capaz de determinar precisamente o profundotrabalho de formação <strong>da</strong>s opiniões", dizia Júlio de CastUhos- e a personalização do poder, pois era suposto que o governo caberiaa um "ditador institucional", enquanto o poder Executivo absorveriao Legislativo, podendo o chefe de governo demitir os ocupantesdos executivos municipais. Todos estes poderes acumuladosnas mãos de um só homem marcavam desde já o caráter antiparlamentare antipartidário que, mais tarde, estaria presente em outrosmovimentos militares como, por exemplo, o tenentismo. Essasconcepções totalitárias eram de todo coerentes com o que diziaAugusto Comte no Catecismo a respeito dos direitos humanos: "Anoção de direito deve desaparecer do domínio político, como anoção de causa do domínio filosófico. Todo direito humano é tãoabsurdo quanto imoraL"É fácil perceber, e os exemplos não faltariam, que esta visãopolítica se perpetuou no país a partir <strong>da</strong> República, assumindo formas as mais varia<strong>da</strong>s, mas trazendo sempre a marca de uma RazãoAfirmativa que se impunha sem admitir contestação. A isso opositivismo desde sempre esteve ligado, uma vez que, mesmo hoje,como diz Antônio Paim, "é difícil supor que exista na atual socie<strong>da</strong>debrasileira um grupo social onde a mentali<strong>da</strong>de positivistaesteja mais arraiga<strong>da</strong> que naquele constituído pela oficiali<strong>da</strong>de".38O caminho descrito pelas idéias totalitárias do positivismo, a"ditadura republicana", vem de Júlio de Castilhos, no Rio Grande,passando por Borges de Medeiros que, por sua vez, cedeu oposto a Getúlio Vargas, "ao qual incumbiria transplantar o castilhismopara o plano nacional".39 Eis como um pensamento retrógradoe débü, de uma insuficiência crítica total, na medi<strong>da</strong> em quepoderia servir de instrumento nas mãos de grupos dominantes, conseguiuse impor ao país, vindo a ser o traço mais marcante emnossa formação política e filosófica, constituindo-se no fenômeno38. PAIM, Antônia Op. cit, p. 186.39. Idem, p. 183.


88A Razão Afirmativaonde mais significativamente podemos encontrar as raízes de nossasalienações atuais.Procuremos agora encarar a Razão Afirmativa de um outroângulo, ou seja, a partir <strong>da</strong>s ilusões com que nos acena sua positivi<strong>da</strong>de.De fato, é muito mais cômodo - refira-se isto ao positivismo,ao tomismo ou ao marxismo - acatar globalmente um conjuntode "ver<strong>da</strong>des" resumi<strong>da</strong>s em alguns poucos livros, manual ou catecismodo que se fazer capaz de enfrentar um longo e penoso processode reconstrução histórica <strong>da</strong> Filosofia. Mais fácil, e até maisfascinante pelo conjunto de certezas que nos oferece, embrenharseem piruetas verbaüsticas e conciliar o inconciliável do que, numprocesso de revisão crítica, reconsiderar integralmente o ato deespirito que gerou esta atitude que chamamos de filosófica. Nãose trata, porém, como erra<strong>da</strong>mente muitos viriam a supor, de merapreguiça mental - do que temos sido acusados, às vezes na brincadeira,por amigos e inimigos. Pondo de lado a questão de sabermosse a preguiça não seria um dos valores com o qual poderíamosbrin<strong>da</strong>r uma humani<strong>da</strong>de desespera<strong>da</strong> (a Divina Preguide Mário de Andrade), gostaria de ressaltar que o afastamento, afuga de uma revisão crítica <strong>da</strong> Filosofia que a Europa nos enviava,não pode ser dissocia<strong>da</strong> do processo paralelo que nos envolve:a circunstância de sermos um pais dependente. Sendo um prolongamento<strong>da</strong> cultura ocidental, a Filosofia entre-nós, ausente de critici<strong>da</strong>de,acabou por optar pela simples afirmação desse prolongamento.E o intelectual brasileiro - que tem conseguido ser o protótipode nossos defeitos mais chocantes - assumiu, na fascinaçãopelo passado europeu, o papel de ser-dependente. Não deve revisarcriticamente. Deve, como na ingênua posição de Luís W. Vita,ser um "assimilador", um continuador ou repetidor de idéias gera<strong>da</strong>sem outras terras. Deve dizer sim - reproduzindo - àquilo queUma Razão que dissesse não seria algo estranho ao papeique o país deveria desempenhar face ao passado europeu. Negar


A Razão Afirmativa 89coroistiria, no caso, colocar-se à margem, fora <strong>da</strong> visão (e <strong>da</strong> posição)de mundo européia que nos havia sido lega<strong>da</strong>. Pois é isto quesignifica negação: para ser global e significativa - não apenas transformistacomo gostamos de ser, quando brincamos de revolucionários-, deve descentrar integralmente as razões do pensamento anterior.Como isso seria realizável se o país, econômica, políticasocialmente, era um apêndice <strong>da</strong> Europa e tão bem se a<strong>da</strong>ptaraao papel de filho edipianamente submisso? Como negar, se todoo conjunto tupiniquim era dependente e se às produções intelectuais,vítimas <strong>da</strong> Razão Ornamental, reservávamos o simples papel de refletoras - não de reflexão - do que se passava em torno?No entanto, era exatamente isso que precisaria ter sido feito. Dessamaneira, todo pensamento entre-nós tem sido prisioneiro demodelos e fins europeus, desligado de nosso contorno. Os caminhosde alienação <strong>da</strong> Razão <strong>Tupiniquim</strong> encaminham-se entãono sentido de uma dependência ain<strong>da</strong> mais acentua<strong>da</strong>. Agora aonfvel <strong>da</strong>s justificações ideológicas providencia<strong>da</strong>s para a manutençãodo vigente através <strong>da</strong> Razão Afirmativa.Da indiferenciação do ecletismo ao espírito dogmático do positivismo, a distância era mínima e foi percorri<strong>da</strong> festivamente pela inteligência nacional. Fascinados por um modelo de pensamentoe de ciência atado ao espírito oitocentista, caímos em algunmitos e novas falsificações. O mito <strong>da</strong> certeza em geral e <strong>da</strong> certezacientífica em particular. Qualquer positivista elimina a critici<strong>da</strong>de<strong>da</strong> Razão com quatro ou cinco argumentos, onde a fé na afirmativi<strong>da</strong>deé tão presente quanto o fanatismo nos santos guerreiros.Ao invés de favorecer o ver<strong>da</strong>deiro desenvolvimento do espíritocientífico, a Razão Afirmativa só fez bloqueá-lo, atado à camisa-de-forçasumaria<strong>da</strong> por Comte e seguidores em mui fáceis lições.Apresentando-se como irrefutável, a Razão Afirmativa impediuo aparecimento <strong>da</strong> única coisa que poderia gerar pensamento:a dúvi<strong>da</strong>.Com a vitória <strong>da</strong> afirmativi<strong>da</strong>de, o espírito <strong>da</strong> negação, semo qual não existe Filosofia, deixa de existir. A conseqüência é fu-


90 A Razão Afirmativanesta: ausência de capaci<strong>da</strong>de criadora, pois esa é antes do maisdestruição e dúvi<strong>da</strong>. A afirmativi<strong>da</strong>de fez apenas acentuar quadrosmentais que se impuseram acima do direito e <strong>da</strong> urgência de providenciarmosnossos próprios modos de ver e viver. Uma Filosofiabrasileira passou a ser impossível a partir do momento em que, comofenômeno geral, se deu entre-nós a opção pela certeza. Se aver<strong>da</strong>de é patrimônio de um outro, não nos resta senão ser "assimiladores".O que equivale a morrer para o pensamento.Já no pensamento eclético encontrávamos a tendência a dissolver oposições e a desconfiança com qualquer posição que contivessetraços de marginali<strong>da</strong>de: do ponto de vista eclético, aqueleque discor<strong>da</strong> é um criminoso, pois o ecletismo gera o fanatismo<strong>da</strong> mesmi<strong>da</strong>de. É essencialmente tirânico e antidemocrático, avesso ao livre circuito de posições que se questionem radicalmente.Para termos como definitivo que o positivismo só fez acentuar pressupostosecléticos, não sendo com relação ao ecletismo uma superaçãomas um desdobramento, "basta indicar que é solidário dessamentali<strong>da</strong>de positivista o pressuposto antidemocrático de quena socie<strong>da</strong>de não deve ter lugar o livre jogo dos grupos e <strong>da</strong>s facções,mas a tutela de agrupamentos que se atribuem semelhanteprivilégio a diversos pressupostos. Nisso talvez a particulari<strong>da</strong>dedistintiva mais característica entre a mentali<strong>da</strong>de positivista e o cientificismocontemporâneo, este último visceralmente ligado à tradição do liberalismo anglo-saxão, expresso na incapaci<strong>da</strong>de de aceitaro diálogo e o debate em qualquer plano".40Não houve salto entre o ecletismo e o positivismo, mas puracontinui<strong>da</strong>de, desdobramento, uma afini<strong>da</strong>de que explica como osegundo - movimento filosoficamente inconsistente - foi capazde encontrar entre-nós uma terra de promissão, ara<strong>da</strong> e aduba<strong>da</strong>pelo ecletismo. As duas atitudes prolongam a condição de dependência,ausentes de qualquer posição negadora.40. Idem, p. 208.


A Razão Afirmativa 91Tudo parece preparar o que entre-nós aconteceria quando,leva<strong>da</strong> a desconfiança com relação à democracia a seu limite, passou-sea uma declara<strong>da</strong> hostili<strong>da</strong>de contra qualquer coisa que pudesserepresentar debate político - onde, de resto, nossas urgênciasterminariam por surgir - e optou-se por uma franca tecnoburocracia,onde o que menos conta é esta caótica, vulgar e tropical"opinião do povo". Sylvio Romero já advertira quanto ao positivismo:"tal é o sistema que se propõe enfaticamente a acabar comos males <strong>da</strong> opinião democrática e liberal, que domina no país!."41Aliás, foi a Real Mesa Censória, cria<strong>da</strong> por Pombal em 1776, queproibiu a tradução e difusão de Descartes, "porquanto o povo portuguêsain<strong>da</strong> não está acostumado a ler no seu próprio idioma este gênero de escritos". Simples, portanto: o povo sempre tem culpa.Não é sem motivo que ain<strong>da</strong> se discute se estaremos "preparados"para a democracia. Um precursor, este PombalQue os poderes constituídos adotassem tal posição, na<strong>da</strong> aestranhar, embora muito a lamentar. Mas que os pretensos intelectuais,fantasiados de inúmeras maneiras, inconscientemente ou porsimples má-fé, o fizessem, eis algo a estranhar e a lamentar. Nomomento em que desabou sobre nós a afirmativi<strong>da</strong>de, to<strong>da</strong> possívelcriação que questionasse nosso mundo estava condena<strong>da</strong>. E aconseqüência, estabeleci<strong>da</strong>: entre-nós o pensamento haveria deser "ornamento e pren<strong>da</strong>".Essas, as questões que deverão ser abor<strong>da</strong><strong>da</strong>s numa introduçãoa uma possível Filosofia brasileira. Não apenas ao nível <strong>da</strong>s teorizações abstratas - ao modo <strong>da</strong>s infindáveis "introduções à Filosofia"que se publicam entre-nós -, mas investigando aquilo quea Filosofia veio a ser entre-nós e as condições que circun<strong>da</strong>m talacontecimento. Em suma, revivificar os modos de alienação dopensamento brasileiro, sua incapaci<strong>da</strong>de de maior compromissocom as urgências históricas que nos rodeiam e sua fuga para a sétimanuvem à direita, onde se pensa "do ponto de vista <strong>da</strong> eterni<strong>da</strong>de".E sobre isso exercer a consciência negadora.41. ROMERO, Sylvio. Op. cit, p. 30&


92 A Razão AfirmativaCom efeito, o que faz a Filosofia? Sua pretensão parece serclara: desde sempre pretendeu ser um pensar ao limite. Ou: umlevar a sério que busca extrair de si as últimas conseqüências.É justo aqui que encontramos o entrave básico a um pensarbrasileiro. Se o próprio homem é resultado de um ato de criaçãode si, o viver social providencia - e nós providenciamos - nossosmodos de instalação no real, modos de contornos bem definidose práticos, numa especialização de nossa existência, objetivandomanejar situações com a máxima segurança.Uma condição talvez nos leve a isso: o homem é um animalenraizado na insegurança, o que faz com que na<strong>da</strong> nos fascinemais do que a certeza. As certezas dos limites de nossas instalações,as quais acabam plasmando nosso mundo. É de agarrar-sea tais limites que extraímos nossa débil segurança. A dinâmica bsica <strong>da</strong> existência oscila entre momentos de segurança e insegurança,certeza e dúvi<strong>da</strong> - sendo o ato criador aquele momento quefaz romper algumas certezas, desequilibrando um sistema. Ao con-


A Razão Afirmativa93trário, a vitória de uma <strong>da</strong><strong>da</strong> visão de mundo tenderá a se transformar em instituição, segura e sóli<strong>da</strong>, vigente. Logo, morta.Um pensar ao limite só poderia nos atrapalhar. Se devo pensar,tudo está em jogo, sendo o pensar a sério um levar-se ao lite. Equivale a expor nossas instalações ao perigo <strong>da</strong> dissolução, jáque pensar é o mesmo que duvi<strong>da</strong>r. A face inquietante <strong>da</strong> Filosofiaé a ameaça ao tranqüilo esquema de instalação que montáramos para enfrentar o real, aniquilando-o como coisa em sL O pensamentotenderá a explodir esta inércia do <strong>da</strong>do bruto ao quanos agarrávamos. Contávamos com comodismos de instalação quvemos, súbito, desabar. E o que pretende a Filosofia quando a sério?Salvar-nos? Não. A Filosofia não é salvação - é perdição.Ao menos antes de alienar-se nalgum sistema. Convi<strong>da</strong>-nos a largartudo, a encontrar soluções por conta própria. Em suma: pensarpor si mesmo.Eis o convite que nos aterroriza e que nos põe nos limitesde nossas certezas: pensar por conta própria. Me contaram ou li(ou inventei) que segundo os chineses "pensar dói". Dói. E um riscoa assumir. Exige colocar tudo em jogo. É conduzir-se aos limitesa despeito <strong>da</strong> insegurança. É neste momento que o chão nosfalta - e preferimos a burra paz dos que não sabem. De fato, pensardói. Mas é a única coisa que nos resta.Uma Razão Afirmativa é o mesmo que uma sem-razão. Complementodesesperado do senso impensado <strong>da</strong> Razão Eclética.Equivale a agarrar-se ao <strong>da</strong>do na pretensão de perpetuá-lo, quandoa função radical do pensamento é destruir a positivi<strong>da</strong>de do <strong>da</strong>do.Se a Razão Eclética perdia-se numa indiferenciação amorfa edespersonaliza<strong>da</strong>, a Razão Afirmativa tende a sacralizar o passado,fonte de to<strong>da</strong>s as certezas - certezas que já não sabemos ver<strong>da</strong>descaducas. E ambas encontram na Razão Ornamental a formaadequa<strong>da</strong> à sua expressão: o pensamento não pensado, alegórico.Que não incomo<strong>da</strong> nem arrisca. O pensar anestésico e esterilizado.


94 A Razão AfirmativaPor exemplo, o estruturalismo, o neopositivismo, a predominância<strong>da</strong> lógica, formal ou matemática, são os lugares onde se realizam aquelas intuições filosóficas que se perderam. Ver<strong>da</strong>deirassalas de operação: esteriliza<strong>da</strong>s e inofensivas. E úteis. Ou, pelomenos, consentindo. Isso se dá em função do estado de alienaçãono qual nos encontramos; preferimos jogos lógicos e epistemológicosàquilo que sabemos urgente.


Captíub 11Razão Dependentee negação


96Razão Dependente e aegaçi...porque as estirpes condena<strong>da</strong>s acem anos de solidão nao tinham umasegun<strong>da</strong> oportuni<strong>da</strong>de sobre a terra.GABRIELGARCÍA MARQUEZ(Cem Anos de Solidão)Se a função <strong>da</strong> consciência é explodir um mundo, podemosdizer que com a Semana de Arte Moderna, em1922, realizamos uma primeira tentativa de real independênciacultural face ao passado europeu e aos modelosestrangeiros. Com exagero - este sim, bastante nosso -efetuamos a constatação do óbvio: à nossa volta não havia fog, neveou castelos medievais - mas bananeiras, coqueiros, casas de cabocloe gente de nariz batatudo e lábios grossos. O parnaso superrefinado,os traços suaves <strong>da</strong>s madonas, o bom gosto oficial vieramabaixo; nossos artistas retiraram de seus ombros a carga de umpassado alheio e que lhes pesava. Tornava-se possível criar. O resultadofoi uma revolução. De Mário e Oswald a Drummond eJoão Cabral de Mello Neto, súbito percorremos os caminhos deuma emancipação artística. Os imensos pés <strong>da</strong>s figuras de Portinaridenunciam: encontrou-se um chão sobre o qual pisar.É claro que análises detalhísticas encontrariam por detrásdo Manifesto Antropofágico o italianíssimo Marinetti. Mas umacoisa se ressalta: mudou o espírito, a atitude. A partir <strong>da</strong>í uma reaçãoem cadeia será libera<strong>da</strong>, permitindo produzir uma arte cujo


Razão Dependente e negação 97significado é flagrante: assumir nossa posição. "Confesso - diz Oswaldde Andrade - que a revolução modernista eu a fiz mais contramim mesmo (...) Pois eu temia escrever bonito demais. Temiafazer a carreira literária de Paulo Setúbal. Se eu não destroçassetodo o velho material lingüístico que utilizava, amassasse-o de novonas formas agrestes do modernismo, minha literatura aguava eeu ficava parecido com D'Annunzio (...) Não quero depreciar nenhumadestas altas expressões <strong>da</strong> mundial literatura. Mas sempreenfezei ser eu mesmo. Mau mas eu."42O modernismo brasileiro instalava-se sobre o signo <strong>da</strong> negação.Havia que destruir, como diz Oswald, aquilo que falsamenteviéramos a ser: "A revolução modernista eu a fiz contra mim mesmo".Destruir as condições internas e subjetivas <strong>da</strong> dependência,pois esta não é simples fato externo - se existem fatos puramenteinternos ou externos - mas disposição internamente assumi<strong>da</strong>:o escravo traz o senhor dentro de si. Lutando contra si mesmo,contra seus próprios fantasmas, os modernistas sentiam a urgênciade se libertarem dos vínculos que os mantinham presos a uma Europaidealiza<strong>da</strong>."A Alemanha racista - diz Oswald - purista e recordista precisaser educa<strong>da</strong> pelo nosso mulato, pelo chinês, pelo índio maisatrasado do Peru ou do México, pelo africano do Sudão. E precisaser mistura<strong>da</strong> de uma vez para sempre. Precisa ser desfeita nomelting-pot do futuro. Precisa mulatizar-se."43 Um mundo desabava.E a primeira coisa a fazer - assim como nas revoluções - eraqueimar os retratos e bustos dos tiranos. Não contra os tiranos -mas contra nós mesmos. E o efeito de substituição: a toma<strong>da</strong> deconsciência do mulato, do índio, <strong>da</strong> América Latina. A consciência<strong>da</strong>quilo que nos constituía e sem o que na<strong>da</strong> poderíamos ser.Após a derruba<strong>da</strong> do ídolo - sau<strong>da</strong>velmente barulhenta -assistimos à aproximação de nossos valores, de nossos limites epossibili<strong>da</strong>des. "Na<strong>da</strong> podemos esperar <strong>da</strong> Europa européia, para4Z ANDRADE, Oswald de. Op. cit, p. 11.43. Idem, p. 62


98 Razão Dependente e negaçãoonde vivemos por tanto tempo voltados, com a luz de Paris emnossos espíritos. Foi uma época que terminou. Tínhamos pelos latno-americanos um desprezo que participava do conhecimento denós mesmos, de nossos pobres recursos civilizados, perdidos no esmagamentode uma fiança torpe liga<strong>da</strong> à fome dos imperialismos."44Nas páginas de O Movimento Modernista*5, Mário de Andrade deixou algumas lições que precisaríamos recuperar, já que apossível Filosofia brasileira muito teria a aprender com nossa Literatura.Encontramos aí certos traços de desgosto e arrependimento,certas restrições a seu passado modernista.Não se revolta por ter sido modernista, mas por não ter ido alémde suas pretensões. Não propõe um retorno, mas a revisão crítica,na tentativa de recuperar a intuição revolucionária que se perdera.O modernismo havia sido "uma ruptura, foi um abandonode princípios e de técnicas conseqüentes, foi uma revolta contro que era a Inteligência Nacional". Mário nota, porém, que o "espírito modernista e suas mo<strong>da</strong>s foram diretamente importados <strong>da</strong>Europa". Daí o aparecimento subterrâneo, às vezes nem tanto,de uma postura niti<strong>da</strong>mente aristocrática, de um internacionalismomodernista e um nacionalismo embrabecido. "Era uma aristocraciado espírito." No entanto, o movimento, essencialmente destruidore com possibili<strong>da</strong>des de criar, representava uma convulsãono panorama artístico e intelectual brasileiro. O que ficaria expressonos três princípios apontados por Mário: "O direito permanente à pesquisa estética; a atualização <strong>da</strong> inteligência artística brasileira; e a estabilização de uma consciência criadora nacional."Isso permitiria uma reviravolta aos artistas brasileiros, que tinhamsempre jogado "colonialmente certo". Havia que <strong>da</strong>r conta<strong>da</strong>s "numerosas Cataguases", o que, associado à pesquisa estética,44. Idem, p. 63.45. ANDRADE, Mário de. O Movimento Modernista In: Aspectos <strong>da</strong> Literatura Brasileira.São Paulo, Martins [s/d.], pp. 231-55.


Razão Dependente e negação 99pudesse representar o primeiro movimento de independência, legítimoe indiscutível, <strong>da</strong> inteligência brasileira. "Essa normalizaçãodo espírito de pesquisa estética, antiacadêmica, porém não marevolta<strong>da</strong> e destruidora, a meu ver, é a maior manifestação de independênciae de estabili<strong>da</strong>de nacional."Mas onde o lamento e a lição maior? Aqui, creio: "Se tudomudávamos em nós, uma coisa nos esquecemos de mu<strong>da</strong>r: a atitudeinteressa<strong>da</strong> diante <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> contemporânea. E isto era o principal!"Vítima de seu próprio individualismo, Mário crê não encontrar em suas obras e nas obras de seus companheiros "uma paixãomais contemporânea, uma dor mais viril <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. Não tem. Temmais é uma antiqua<strong>da</strong> ausência de reali<strong>da</strong>de em muitos de nós".Essa consciência dolorosa, agu<strong>da</strong>, denuncia o espírito nummomento decisivo: o <strong>da</strong> consciência que explode um mundo. Omomento <strong>da</strong> negação, -a crítica, que permitiria superar o própriomodernismo e vislumbrar o que deveria vir em segui<strong>da</strong>. Falta algo.Este contato - fora de to<strong>da</strong> Razão Ornamental - com nossocontorno; talvez um levar-se a sério ain<strong>da</strong> mais comprometido. "Dveríamos ter inun<strong>da</strong>do a caduci<strong>da</strong>de utilitária do nosso discursode maior angústia do tempo, de maior revolta contra a vi<strong>da</strong> como está."Revisando tudo, Mário aponta onde fora efetivamente renovadore onde fracassara - e dá testemunho deste fracasso, superando-o.Esquecera-se de seu tempo, quando muito lhe fizera, "delonge, uma careta". Creio que isso possa explicar por que mesmoMário de Andrade não tenha ficado livre, ao final, do espírito conciliador;é fácil encontrar nele traços de uma Razão Eclética <strong>da</strong>qual não conseguiu se libertar inteiramente.Mas estava, ao <strong>da</strong>r testemunho de si, virtualmente pronto areiniciar tudo, tendo sido capaz de negar mesmo seu passado, recuperando-ocriativamente. Seu lamento deve ser considerado comouma devastadora revisão crítica, legítima, porque <strong>da</strong>va testemunhode um mundo seguinte. "Eu creio que os modernistas <strong>da</strong> Semanade Arte Moderna não devemos servir de exemplo a ninguém.Mas podemos servir de lição. O homem atravessa uma fase integralmentepolítica <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de."Registremos agora a ausência de repercussão do modernis-


100 Razão Dependente e negaçãomo na Filosofia pratica<strong>da</strong> entre-nós. Mais uma vez vemos aí denunciadoo estado de alienação, de apartamento, <strong>da</strong> Filosofia diantede uma reali<strong>da</strong>de nossa. Foi, para os praticantes <strong>da</strong> Filosofia, comose a Semana não houvesse existido. "A partir <strong>da</strong> Semana deArte Moderna e <strong>da</strong> Revolução de 30 - diz Roland Corbisier -,ocorreu no país uma significativa renovação cultural, assinala<strong>da</strong>pelo aparecimento de romancistas, poetas, arquitetos, pintores,músicos, críticos literários, ensaístas etc. A essa eclosão de valorno campo <strong>da</strong> arte e do ensaio não correspondeu, porém, no campo<strong>da</strong> Filosofia, ao surgimento de valores equivalentes."4*A razão disso, creio, possa ser encontra<strong>da</strong> no fato de ter sidona Filosofia onde se enraizou mais fortemente - já pela primeiratentação alienante <strong>da</strong> Filosofia: pensar acima do tempo e doespaço - o caráter afirmativo <strong>da</strong> dependência cultural, perdurando aí a atitude "assimüadora", de prolongamento do universo europeu.Ao nível <strong>da</strong>s justificações ideológicas, houve uma reação dedefesa por parte <strong>da</strong>s idéias e ideais dominantes, não permitindoque se questionassem mais radicalmente as bases <strong>da</strong> visão de mundovigente. Enquanto estas manifestações de libertação se <strong>da</strong>vamao nível <strong>da</strong>s propostas artísticas e ensaísticas, fazendo, de longcaretas para o tempo - coisas, de resto, facilmente redutíveis aum estado de ornamento social -, era fácil manter o seu controle,absorvendo os seus golpes. Mas pensemos no que ocorre sempreque se tenta ir, na Filosofia ou em qualquer outra forma de expressãoe conhecimento, além de um mero questionamento ornamental<strong>da</strong>s condições nacionais.Vista a questão de dois ângulos, complementares e indissociáveis,podemos dizer que, por um lado, houve a retenção do espíritocrítico aos limites permitidos pela ordem vigente e, por outro,os praticantes <strong>da</strong> Filosofia entre-nós, desde sempre vítimas e beneficiários <strong>da</strong> Razão Ornamental, preferiram manter-se a distâde questões mais delica<strong>da</strong>s, permitindo-se flutuar no limbo <strong>da</strong>s questões"metafísicas".46. CORBISIER, Roland. Carência de Filosofia. Jornal Crítica, Rio de Janeiro, ano37:7, 21 a 27 abr., 1975.


Razão Dependente e negação 101Razão pela qual a Filosofia preservou entre-nós uma atitudede desprezo face às questões efetivamente urgentes, delas se esquecendo,considerando-as coisas pouco sérias, não dignas <strong>da</strong>s luzesde nossos pensadores. Sérias, só teses secas e desinteressanmonta<strong>da</strong>s a partir de questões que foram vitais para homens queviveram há, no mínimo, sete séculos. Sérios são estudos maçque cheiram a Europa. Assim, apesar dos traços de emancipaçãode uma inteligência nacional que podemos encontrar no modernismo,os praticantes <strong>da</strong> Filosofia continuaram, e continuam, comono verso de Manuel Bandeira, "macaqueando a sintaxe lusía<strong>da</strong>".Podemos agora equacionar a questão de um pensamento brasileiro.A Filosofia representa, por si só, num desafio a nossas instalações,uma exigência de questionamento radical. Por outro lado,por comodismo, ligação incestuosa e pela violência do projeto colonizador,sempre delegamos à Europa nos dizer o que deveríamospensar. Deste irreconciliável choque - quanto a isso não há como<strong>da</strong>r um jeito - resultou a impossibili<strong>da</strong>de de uma Filosofia brasileira.Ou não?A questão é irrespondível se não fizermos referências às peculiari<strong>da</strong>desde nossa formação histórica.Este país foi iniciado por pessoas que para cá vieram sem apretensão de permanecer. Tanto que até o início do século XVUJ"o termo brasileiro, como expressão e afirmação de uma nacionali<strong>da</strong>de,era praticamente inexistente".47 Não só por oposição à formaçãodos EUA mas até mesmo com relação ao que aconteceriana América Espanhola, o sonho de enriquecer depressa e voltarem segui<strong>da</strong> fez com que a ação dos portugueses se caracterizasseentre-nós por um mercantilismo selvagem.Os primeiros que se instalaram nestas terras mantiveram umaligação permanente com Portugal e, por seu intermédio, com oresto <strong>da</strong> Europa. Desde o início existiam as condições externas e47. MOOG, Vianna. Bandeirantes e Pioneiros, paralelo entre duas culturas. 8? ed., Riode Janeiro, Civilização Brasileira, 1966, p. 116.


102 Razão Dependente e negaçãointernas <strong>da</strong> dependência: a força <strong>da</strong> metrópole e a mente do bandeirante - ativi<strong>da</strong>de extrativa, pre<strong>da</strong>tória e desinteressa<strong>da</strong> do lugar- caracterizam a posição periférica do Brasil, com to<strong>da</strong> suaprodução volta<strong>da</strong> para o centro europeu. Assim, os primeiros "brasileiros"- no sentido que esta palavra tinha até meados do séculoXVII: aquele que explora o pau-brasil ou aquele que fez fortunanestas terras - sempre se mantiveram voltados com muitas sau<strong>da</strong>des(já se pensou nas explorações dessa palavra entre-nós?) paraas terras d'além-mar. De lá vinham as notícias significativas, láo destino do mundo era decidido. Lá estavam o poder e o saber.E para lá se voltaria algum dia.O primeiro traço a ser destacado na formação brasileira é aorigem colonial, com seu característico alheamento. Não possuindouma geração interna, resultou de um transplante cultural Jamaissujeito <strong>da</strong> própria história, a dependência lhe reservava apenaso papel de objeto de exploração, exigindo que assumisse o papelde assimilador. "Numa produção transplanta<strong>da</strong>, e monta<strong>da</strong>em grande escala, para atender exigências externas, surge naturalmenteuma cultura também transplanta<strong>da</strong>."48Condição que contaminaria séculos de Brasil De país colonizado, tornamo-nos formalmente livres - e sempre saudosos. O pólode nossa dependência econômico-cultural sofreu vários deslocamentos,mas sempre esteve nalguma parte fora de nossos limites.De um modo geral este centro sempre foi a "Europa", não a geográfica,mas a espiritual, no sentido <strong>da</strong> distinção feita por Huse analisa<strong>da</strong> por Mario Casalla; neste sentido, os EUA também fazemparte <strong>da</strong> "Europa".49 Lá se encontra o centro do mundo. Éonde se fazem descobertas, se escrevem romances notáveis, se renovamos costumes, se é fino e inteligente. O brasileiro, assim, sempredesejou ser europeu. Vale dizer: não-brasileiro. O que explicariao incrível sucesso de uma viagem ou de estudos realizados na48. SODRÉ, Nelson Werneck. Síntese de História <strong>da</strong> Cultura Brasileira. 2? ed., RiJaneiro, Civilização Brasileira, 1972, p. 5.49. CASALLA, Mario. Husserl Europa y la justification ontológica dei imperialismo.Revista de Filosofia Latinoamericana, Liberación y Cultura, Buenos Aires, l(l):16-50, ejun., 1975.


Sazão Dependente e negação 103Europa - para não falar do charme sempre desejável <strong>da</strong>s maneiraseuropéias.As origens de nosso mazombismo têm <strong>da</strong>ta remota. Como apretensão era a posse e a instalação provisória nestas terras - sendopermanente o desejo de voltar - o própio padre Nóbrega jánotara: "Não querem bem à terra, pois têm afeição a Portugal".Com a sucessão de outros pólos de dependência, essa atitudese viu reforça<strong>da</strong> e acabou generalizando-se. Em gerações recentesencontramos o irresistível desejo de ser norte-americano. Valeaqui um registro quanto ao ver<strong>da</strong>deiro perfeccionismo que empregamosao falar uma língua estrangeira. É fácil observarmos queum norte-americano ou europeu costuma falar português com afluência de quem cospe cascalhos. E não dão a isso a menor importância.São o que são e querem ser o que são. Daí se concluirque falar mal uma língua estrangeira é sinal de amadurecimentocultural.Executores e vítimas desta situação de colonialismo cultural,jamais nos conformamos e muito menos desejamos ser o que somos.Os norte-americanos, por exemplo, nasceram de uma pretensãoassumi<strong>da</strong>: um novo mundo. Gostemos deles ou não, foram capazesde assumir-se culturalmente. Enquanto isso, o mazombo quehabita em ca<strong>da</strong> um de nós continua suspirando pela culta vi<strong>da</strong> d'além-mar.Estamos aqui em pleno domínio <strong>da</strong>quilo que Octávio Iannchamou de "cultura <strong>da</strong> dependência", referindo-se mais especificamenteao caso <strong>da</strong> Sociologia, que "também reflete as peculiari<strong>da</strong>des<strong>da</strong> dependência estrutural e histórica que caracteriza as socie<strong>da</strong>des<strong>da</strong> América Latina".50Podemos dizer que tanto na Sociologia quanto na Filosofiaa problemática é externa, importa<strong>da</strong>, e traz consigo as implicações50. IANNI, Octávio. Sociologia <strong>da</strong> Sociologia Latino-americana. Civilização Brasileira,Rio de Janeiro, 1971, p. 39.


104 Razão Dependente e negaçãoteóricas que dela resultam. Daí a dificul<strong>da</strong>de de aplicação de taisconhecimentos à reali<strong>da</strong>de que nos circun<strong>da</strong>, o que impede quevenhamos a conhecer criticamente a superfície ideológica que encobre nossas alienações."Da mesma maneira que no passado, na atuali<strong>da</strong>de tambéma produção científica e filosófica dos países <strong>da</strong> América Latina cotinua a revelar influências acentua<strong>da</strong>s <strong>da</strong> produção intelectual norte-americana,francesa, alemã, inglesa etc. (...) Na Sociologia, assimcomo nas artes, nas outras ciências sociais e na Filosofia, ain<strong>da</strong> éfreqüente que o prestígio de alguns sociólogos latino-americanoesteja relacionado com a informação sobre a última novi<strong>da</strong>de sociológicanorte-americana ou francesa."51O pensar latino-americano e particularmente o brasileiro seencontram presos a importâncias e urgências que não são nem importantesnem urgentes, senão para europeus e norte-americanos- motivo pelo qual a Razão entre-nós se perdeu nas alegorias <strong>da</strong>ornamentali<strong>da</strong>de. Ocorre então à Filosofia optar por uma reproduçãodo pensar alheio - que é, em última análise, a reproduçãodo pensar europeu, no âmbito do qual seremos mdefini<strong>da</strong>mentedependentes - sem se <strong>da</strong>r conta do que nos é próprio. Ou, emmomentos de exaltação patrioteira, a querer se refugiar no mato,como bugres. "A Filosofia no Brasil se acha, pois, muitas vezes entreduas tentações igualmente funestas: a de se entregar, abandonar-secegamente ao passado, ou a de confiar nos filósofos estrangeiros.Enquanto nos contentarmos com estu<strong>da</strong>r problemas do passadoou do estrangeiro; enquanto, de fato, manifestarmos menosprezopelos ver<strong>da</strong>deiros problemas do Brasil de hoje - a Filosofiamerecerá ser tacha<strong>da</strong> como artigo de luxo, que o país poderia eventualmente dispensar."52O que Michel Schooyans não acrescenta, e do que pouca gentequer <strong>da</strong>r-se conta, é que justamente esta Filosofia alegórica interessaà manutenção de nosso estado de dependência. Com efeito,51. Idem, pp. 41 e 4252. SCHOOYANS, Michel. Op. ciL, p. 78.


Razão Dependente e negação 105urge libertar o Brasil de dois modos: externamente, <strong>da</strong>s pressõeseconômico-culturais, e, internamente, <strong>da</strong> introjeção do papel dedependente e "assimilador". É vigente, no entanto, a crença deque o ver<strong>da</strong>deiro pensar encontra-se nesta incestuosa ligação comos centros <strong>da</strong> Razão Européia, na repetição do dito, jamais no dizer.O pensamento, que poderia e deveria ser essencialmente negadore libertário se atendesse a urgências históricas nossas, tornase apenas mais um instrumento de domínio. E grave, posto queinstalado dentro de nós.Estamos aqui às voltas com a oposição entre o passado e ofuturo. Passado representado pelo que nos legou a cultura européia-ocidental,sendo o futuro a possibili<strong>da</strong>de ain<strong>da</strong> existente deque possamos superar as amarras que nos atam a esse legado."De tal maneira que a 'nova cosmologia' e a 'nova história' nãosão nem mais nem menos que a superação - no sentido estritode Aufheben - de um passado histórico em direção a um fredefínidor."53Não se trata de julgar conveniente qualquer tipo de ilhamentocultural. O que se isola, morre; o futuro não se constrói a partirde um presente arbitrariamente fixado, mas do questionamentodo passado. É tão grave esquecer-se no passado quanto esquecero passado. Nos dois casos desaparece a possibili<strong>da</strong>de de história.O contato continuado com o universo euro-ocidental é condiçãode nossa maturi<strong>da</strong>de. Mas sob uma condição: o exercício de umaimpiedosa antropofagia. É urgente devorar a "estranja" - comogostava de dizer Mário de Andrade. Devorar sem culpa ou sentimentode inferiori<strong>da</strong>de.Com relação ao passado europeu, precisamos ter consciênciade que estamos diante de uma estrutura de vi<strong>da</strong> e pensamento,de um horizonte de sentido que é preciso desven<strong>da</strong>r para compresiCASALLA, Mario. Razón y Liberación, notas para una filosofia latinoam1? ed., Buenos Aires, Siglo XXI, Argentina. Ed. 1973, p. 71.


106 Razão Dependente e negaçãoendermos o que nos ocorreu. A possibili<strong>da</strong>de de redefinirmos umfuturo existe na medi<strong>da</strong> em que nos for possível estabelecer as contradiçõesa que se viu conduzi<strong>da</strong> esta Razão Européia. "O germedo novo mora na caduci<strong>da</strong>de efetiva do velho. O futuro não éum simples desejo, nem um projeto demagógico a mais, não éum novo produto para o mercado, é o levantamento definitivo <strong>da</strong>contradição à qual um modelo de vi<strong>da</strong>-pensamento chegou."54A Razão Euro-Ocidental é a Razão Metafísica que se geroua partir <strong>da</strong> Grécia, vindo culminar no século XIX, sendo a "civilização euro-ocidental uma civilização metafísica".55 Esta metafísicaque nos foi lega<strong>da</strong> hoje sofre as mesmas impossibili<strong>da</strong>des <strong>da</strong> civilizaçãoà qual deu forma e <strong>da</strong> qual é o reflexo. A Razão Dualistaque emerge desde as origens na Filosofia grega encontrou sua tragédia:a impossibili<strong>da</strong>de de conciliar uma consciência atemporal,universal, com uma história que é fluidez no tempo. Nesta duali<strong>da</strong>de,a bipartição do homem residente nesta civilização tornou-seinevitável, e sua reconciliação, impossível. O século XIX expressa última busca desespera<strong>da</strong> <strong>da</strong> reconciliação, quando a Razão Euro-Ocidentalatinge sua maior grandeza e miséria. Em tal contextoé compreensível o desvario final de Husserl: é preciso "salvara humani<strong>da</strong>de <strong>da</strong> crise". Não nos ilu<strong>da</strong>mos. Não a humani<strong>da</strong>de,mas uma parcela <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de e seu modelo de vi<strong>da</strong> e pensamentopreocupava a Husserl. Defender a perpetui<strong>da</strong>de de seusvalores e a "missão civilizadora" <strong>da</strong> Europa face ao resto do mundofoi a tarefa à qual Husserl se dedicou. Batalha previamenteperdi<strong>da</strong>. A Europa não precisou ser destruí<strong>da</strong> por ninguém, chegandopor seus próprios pés ao limite de exaustão do qual encontramosos sinais por to<strong>da</strong> parte: guerras, dominação, exploração,marginali<strong>da</strong>de, violência, desespero. Expressão de uma civilizaçãoque morre, "a metafísica - agrade ou não a Husserl - terminou".56A nós cabe a conquista <strong>da</strong> consciência de que só seremos livresapós devorarmos o legado de nossos pais. A solução do com-54. Idem, p. 80.55. Idem, p. 73.56. Idem, p. 7R


Razão Dependente e negação 107plexo de Édipo, que Freud propôs e milhões se recusaram a entender, consiste nisto: a vi<strong>da</strong> explode para fora - e morre quando sevolta para o passado. De uma condição de dependência e envolvimentocom relação aos pais, urge chegar ao ponto de introjetá-los.Devorar nossos pais - o que ficou expresso no assassinato do paiprimordial - numa assimilação profun<strong>da</strong> e, então, propor nossocaminho. Numa explosão para fora e para a liber<strong>da</strong>de. Inexplicávelsem nossos pais, mas irredutível a eles.No todo <strong>da</strong> cultura as coisas se passam assim, pois é o todohistórico-social que determina o psicológico. Com grande aborrecimento noto o excesso de escrúpulos de nossos praticantes de Filosofia,esmerando-se em permanecer fiéis aos textos, questões e sistemasdos mestres europeus. A máxima fideli<strong>da</strong>de a um mestre éabandoná-lo. É jamais deixar que seu pensamento vire fórmula vazia.Não deixar que a originali<strong>da</strong>de de sua intuição morra na esterili<strong>da</strong>dede um conceito. Fazer o que um mestre fez não é fazero que fez, mas o que faria se estivesse em nosso lugar.É preciso devorar o mestre e referir a lição restante a umasituação nossa, aquilo que está diante de nós - sem o que nuncahaverá ver<strong>da</strong>de para nós, não havendo ver<strong>da</strong>de nossa. A Filosofia,já foi visto, é negação do passado, é dizer o contrário. A tentativade enxergar um palmo diante do nariz. Enquanto a Razão Euro-Ocidental, com seus fins, interesses, preocupações, esforços, continuarsendo para nós a prisão intelectual que até aqui representou,aquelas pretensões radicais <strong>da</strong> Filosofia serão irrealizáveis entre-nós."Tudo aquilo que não cheira o bom perfume de nossa intelectuali<strong>da</strong>defaz mal a nosso nariz. Nós estamos tão cheios deuma importância de sabidice e de teorismos inúteis que não queremosnos aproximar <strong>da</strong>quilo que está diante de nosso nariz, nasruas, nas conduções coletivas, nas gerais dos campos de futebol,nos suburbanos, porque tudo isto fede e fere o nosso chamadobom gosto, que eu não sei de onde veio: somos afinal uns mestiçosluso-afro-tupiniquins com incríveis problemas de povo pobre,mas pensamos em termos de uma civilização cristaliza<strong>da</strong> e que podese <strong>da</strong>r ao luxo de pesquisar e divagar sobre problemas esotéricosantes de resolver os problemas <strong>da</strong> existência mais imediata:


108 Razão Dependente e negaçãoalimentação, habitação, saúde, educação etc. Somos uns deslumbrados<strong>da</strong>quilo que nem conhecemos: América do Norte e Europa."57O que impede o surgir de um pensar nosso é a recusa implícitade enfrentarmos algo brasileiro. Se os modelos de ver que assimilamossão os de um outro, não nos vemos a não ser de mododistorcido e sem chegarmos a nos assumir teórica e praticamente.Nossos temas são recusados por não serem de odor tão refinadoquanto as questões européias. Nosso modo específico de abor<strong>da</strong>ro real, tornando-o importante, é esquecido. O mesmo se dá comos problemas que deveríamos efetivamente problematizar, poisnão se enquadram entre aqueles que possamos pensar com "isenção","distanciamento", de modo "neutro". Quer dizer: não poderiamser objeto de uma Filosofia esteriliza<strong>da</strong> sem contaminá-la,obrigando-a a assumir seu papel histórico entre-nós. Contamina<strong>da</strong>,esta Filosofia viria a ser muito incômo<strong>da</strong>, já não permitindo ainfindável conciliação. O que não é recomendável, quer do pontode vista do vigente - e o vigente entre-nós é a dependência -,quer do ponto de vista <strong>da</strong>s instalações que providenciamos paranos proporcionar certezas.Esta Filosofia esteriliza<strong>da</strong>, asséptica, refina<strong>da</strong>, de bom gostoe ornamental é na ver<strong>da</strong>de "a voz do dono". Não se comprometenem suja as mãos. Dedica-se de preferência ao puro jogo formalque a ninguém incomo<strong>da</strong> ou contamina.As condições de possibili<strong>da</strong>de de um juízo filosófico brasileirose encontrariam na missão de demolir as condições subjetivase objetivas <strong>da</strong> dependência, a consciência crítica volta<strong>da</strong> contra aintrojeção do papel de "assim Dadores" que a condição de coloniza-57. FERREIRA FILHO, João Antônio. "Um Apanhador de Dados". Depoimento aNelson Blecher sobre o papel do repórter no jornalismo. Jornal Ex-, São Paulo, 8:9, dez., 1974.


Razão Dependente e negação 109dos nos reservou. O crivo severo com relação ao passado: relernossa história. Criar uma nova consciência com relação a nós mesmose com relação à consciência que se veio gerando no Ocidentee <strong>da</strong> qual somos uma última expressão desfibra<strong>da</strong> e mambembe.Saber que somos outra reali<strong>da</strong>de, o que de pronto exige outraconsciência, outros fins, interesses, preocupações. "Sendo a Filosofiauma ativi<strong>da</strong>de vital, inseparável <strong>da</strong> existência e dos problemas<strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, é necessário (para Cruz Costa) filosofar sobre o Brasil,vestindo as idéias com os músculos, o sangue, os nervos <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de presencia<strong>da</strong> e apreendi<strong>da</strong>: explicar sua gênese, analisar a suanatureza, prever as suas diretrizes. Em suma, é preciso ligar a nossaativi<strong>da</strong>de mental aos destinos de nossa história, porquanto 'paraque o pensamento não seja fantasia sem proveito - como diziael-rei D. Duarte - é mister que não perca contato com a história,com os problemas reais <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>'."58É preciso inventar as condições de nosso futuro: nossas importânciase urgências. Mas fora de todo contexto dependente,deixando vir à tona as virtuali<strong>da</strong>des efetivamente nossas para queestas mesmas importâncias e urgências não se vejam novamentevítimas <strong>da</strong> Razão Ornamental. Para tanto, <strong>da</strong>r adeus ao mazomboque habita em nós. Resolvido nosso complexo de dependentes- desvela<strong>da</strong>s suas condições internas e externas -, superar a culpae a inferiori<strong>da</strong>de. Conceder a nós mesmos o direito de ser oque somos, a nosso modo. Afinal, não estamos fazendo um piqueniqueem Hampshire ou Saint-Germain. Aceitar que há uma dolorosaver<strong>da</strong>de no juízo segundo o qual somos "los macaquitos". Epior: macaquitos que julgam tão sem classe comer banana.A condição prévia a qualquer Filosofia brasileira que não queirase ver reduzi<strong>da</strong>, como tem acontecido até hoje, à mera assimilaçãoornamental e dependente - úteis tão só a britharecos verbaisdiante de um povo adormecido - é fazer desabar as instalaçõessérias nas quais vivemos. Negar postiças importâncias e urgêprovidencia<strong>da</strong>s estranhamente e que não nos expressam, encobrindocondições que poderiam liberar em nós um pensamento de fa-58. VITA, Luís Washington. Op. cit, p. 81.


110 Razão Dependente e negaçãoto criador. Jamais esquecer-se nalgum sistema cômodo de pensar,em qualquer arquivo de primeiros socorros existenciais. Correr orisco de não saber coisa alguma, longe de qualquer certeza prévia.Pois o pensamento não é gerado pela certeza, mas pela dúvi<strong>da</strong>.Urge ser o que somos - descobrir-se no Brasil, na América Latina.Sem um "outro" ao qual possamos nos agarrar. Só a solidãogera pensamento - só na tragédia nasce Filosofia. Mas que sejaum pensamento comprometido, a sério, fora de to<strong>da</strong> Razão Ormental. Essencialmente negador.Antes disso, qualquer Filosofia será, entre-nós, pura ingenui<strong>da</strong>deApren<strong>da</strong>mos duas coisas. Que nesta altura dos acontecimentosum soco na mesa, violento e sonoro, é mais importante do quesabermos <strong>da</strong> vali<strong>da</strong>de dos juízos sintéticos a priori E que, do ponto de vista de um pensar brasileiro, Noel Rosa tem mais a nos ensinardo que o senhor Immanuel Kant, uma vez que a Filosofia,como o samba, não se aprende no colégio.


111Sugestões deativi<strong>da</strong>desdidáticasUm título Cap. 11. Fazer uma sessão de apresentação/representação<strong>da</strong>s melhores pia<strong>da</strong>s que o grupoconhece. Em segui<strong>da</strong> analisar as relaçõesentre os personagens; apontar as pia<strong>da</strong>s críticase as alienantes.2. Pesquisar sobre o Movimento Modernista,Oswald de Andrade e Mário de Andrade.Apresentar os resultados.3. Comentar a frase do texto: "Gaba seuinigualável jeito piadístico, mas na hora <strong>da</strong>scoisas 'culturais' mergulha num escafandrogreco-romano".4. Apontar formas de conformismo nos várioscampos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> brasileira.5. Elencar algumas obras dos autores citadosna página 12.6. Montar painéis com reportagens e artigossobre o caráter brasileiro.7. Analisar as ilustrações do capítulo (omesmo vale para os capítulos seguintes).


112 Sugestões de ativi<strong>da</strong>des didáticaA sério: a serie<strong>da</strong>de Cap. 21. Apontar pessoas ou ativi<strong>da</strong>des "sérias"e "a sério".2. Entrevistar um artista, um filósofo sobresua ativi<strong>da</strong>de e sobre o poder demolidordo pensamento crítico.3. O que é erotizar o agir?4. Analisar o conto "A hora e a vez de AugustoMatraga", de Guimarães Rosa, sobrea libertação <strong>da</strong> personali<strong>da</strong>de de uma pessoa.5. Criar uma comédia, "a sério". Sugestãode título: "Viagem de um barnabé, que saiudo sério e rodou a baiana, a sério".6. Comentar a frase de Nelson Rodriguessobre o escanteio.7. Ao dizer que "o Brasil não é um país sério",o general De Gaulle, sem querer, fezum elogio ou uma crítica?8. Comentar: " afinal, o peixe é que menossabe <strong>da</strong> água".Cap. 31. Respon<strong>da</strong>, a partir do texto: " Onde estou?Quem sou?"2. Faça uma coleção de sambas-enredo, organizeuma audição e aponte as imagensque eles apresentam sobre o Brasil Ressaltara visão oficial e a visão alternativa.3. Comentar a frase do poeta brasileiro:"Cansei de ser eterno, agora quero ser moderno".4. Procurar a relação entre a arte de umconjunto de rock e a sua época. O que ésucesso e o que é impasse em arte?


Sugestões de ativi<strong>da</strong>des didáticas5. Dar exemplos de situações (equipamentos,métodos, idéias, mo<strong>da</strong>s) estrangeirasmal a<strong>da</strong>pta<strong>da</strong>s, entre-nós (uma boa fontesão revistas ilustra<strong>da</strong>s antigas).6. Citar casos de soluções originais para algunsproblemas brasileiros.IliFilosofia e negação Cap. 41. Pesquisar artigos de jornal e revista sobrea Academia Brasileira de Letras e apontaras relações dessa instituição com o pensamentooficial.2. Localizar em Machado de Assis o personagemJosé Dias. Escrever um texto sobrea figura dos agregados na família patriarcalbrasileira.3. Comentar: "O ver<strong>da</strong>deiro intelectual e over<strong>da</strong>deiro artista são sempre negadores".4. O que é ser clássico? O que é ser moderno?Qual a relação entre as duas características?O mito <strong>da</strong> imparciali<strong>da</strong>de:o ecletismo Cap. 51. O que é ecletismo? Vantagens e desvantagens.2. O brasileiro é um ser cordial?3. Sinais <strong>da</strong> dependência cultural do brasileiro.4.0 Brasil é um país velho, jovem ou infantil?5. Comentar: " O espírito <strong>da</strong> dúvi<strong>da</strong> é o início e a essência do pensamento". Vantagense desvantagens <strong>da</strong> dúvi<strong>da</strong> como atitudementaL


114 Sugestões de ativi<strong>da</strong>des didátic6. Fazer um cartaz (com colagens, desenhos)criticando a frase: "Mais uma vez, aEuropa se curva perante o Brasil".O mito <strong>da</strong> concórdia:o jeitoCap. 61. Fazer uma pesquisa sobre as revoltas sangrentasna História brasileira, passa<strong>da</strong> e recente.2. Entrevistar um burocrata assumido, sobreo que ele considera a importância <strong>da</strong> burocracia.3. Entrevistar uma vítima <strong>da</strong> burocracia.4. A partir dos depoimentos, montar umapequena peça teatral.5. Apontar no cotidiano manifestações dejeitinho e de intolerância. Ver como elasaparecem na musica popular.Originali<strong>da</strong>de e jeito Cap. 71. Fazer o levantamento <strong>da</strong>s mo<strong>da</strong>s intelectuaisque assolam o Brasil e dos resíduosque deixam.2. Pesquisar sobre as idéias de Sylvio Romero,Sérgio Buarque de Holan<strong>da</strong>.3. Com o que os brasileiros se importam,profun<strong>da</strong>mente?


Sugestões de ativi<strong>da</strong>des didáticas 113A Filosofia entre-nós Cap. 81. Diferença entre ser criativo e assimilativo.2 Quais as principais correntes filosóficasentre-nós?3. Entrevistar um filósofo brasileiro sobresuas influências e sua originali<strong>da</strong>de.4. O brasileiro tem "cabeça filosófica"?5. Comentar a relação pensamento-linguagem,levanta<strong>da</strong> por Mário de Andrade nap. 65. Entrevistar um professor de Portuguêssobre os preconceitos a respeito <strong>da</strong>nossa língua.A Razão Ornamental Cap. 91. Aponte algumas pessoas "brilhantes" eoutras "esforça<strong>da</strong>s", que você conheça.2. Analise nas campanhas eleitorais o parentescoentre "brilhantismo" e demagogia.3. Comparar o bacharel bem-falante como sofista <strong>da</strong> Grécia Clássica.4. Estu<strong>da</strong>r os livros e artigos de Millôr Fernandes.Respon<strong>da</strong> se ele é um filósofo, umhumorista, ou ambos. Demonstrar sua conclusãocom trechos <strong>da</strong>s obras.Cap. 101. Pesquisar sobre Comte e o positivismo.2. Comentar a opinião de Comte sobre ovoto e os direitos humanos.3. Comparar o positivismo e o ecletismo.


116Sugestões de ativi<strong>da</strong>des didáticaA Razão Afirmativa4. Fazer um levantamento <strong>da</strong>s idéias deBenjamim Constant5. Demonstrar a presença <strong>da</strong> afírmativi<strong>da</strong>dee a dúvi<strong>da</strong> na educação, religião, nas relaçõescotidianas, no sistema de trabalho,política e cultura.6. Comentar: "A Filosofia não é salvação,é perdição" e "Pensar dói".Razão Dependentee negação Cap. 111. Além <strong>da</strong> Semana de 22, que outros movimentosculturais provocaram rompimentono Brasil?2. Comentar: " O escravo traz o senhor dentrode si".3. O que é "jogar colonialmente certo"?4. Apontar a presença do lucro imediato eo sucesso fácil e rápido na economia, políticae cultura no Brasil5. "O brasileiro sempre desejou ser europeu(ou norte-americano)" - levantar na músicaou na poesia comentários a essa situação.6. Qual a tarefa atual <strong>da</strong> filosofia no Brasil?7. Produzir um texto (re<strong>da</strong>ção, peça, música,cartaz) que sintetize as principais idéiasque você teve a partir <strong>da</strong>s discussões destelivro.


117O autorIgual a todo mundo, nasci Mas, em 8/10/1944, na ci<strong>da</strong>de de Blumenau,Materni<strong>da</strong>de Santa Isabel, num domingo às 15 horas, só eu e umamigo de infância, chamado Cacaes, com quem nunca mais cruzei na vi<strong>da</strong>.Um ponto a menos para os horóscopos. Aos treze anos, por culpade Mark Twain, disparei a ler livros, revistas, jornais, folhetos, cartazes,bulas de remédios, receitas de bolo, regulamentos de hotéis (desses quficam pendurados atrás <strong>da</strong>s portas). Desde então vivo com uma porçãode livros por perto e quase me transformo em personagem de Borges.Aos 16 anos, resolvi que ia ser escritor e gastei o primeiro salário de auxiliarde desenhista <strong>da</strong> prefeitura na compra de uma máquina de escreverusa<strong>da</strong>. Nela e em mais três outras, até chegar ao micro que uso hoje,escrevi contos, romances, artigos, reportagens, crônicas, o que resultounuma imensa montanha de papel e em nove livros publicados, além deuns três ou quatro inéditos. O livro Crítica <strong>da</strong> Razão <strong>Tupiniquim</strong>crito entre 1974 e 1977. Nele eu investi contra a hipocrisia intelectual,contra a falsa cultura, contra a filosofia desfibra<strong>da</strong> e mole qüe se pratica<strong>da</strong>)no Brasil. Mas também investi contra mim mesmo, quer dizer, contra aquilo que o ensino, a escola e a universi<strong>da</strong>de haviam feito de mim.Foi uma libertação emocional e intelectual pela qual agradeço até hoje.A minha esperança é que o mesmo aconteça com os leitores. RobertoBibliografia1. ANDRADE, Mário de. "O movimento modernista". In: Aspectos <strong>da</strong> literatura brasileira.São Paulo, Martins, [s/d.], pp. 231-55.2. ANDRADE, Oswald de. Ponta de lança. 3? ed., Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1973. —. Do Pau-Brasü a antropofagia e às utopias: manifestos, teses de concursos e enIntrod. Benedito Nunes. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira e Instituto Nacionaldo Iivro-MEC, 19724. ARDILES, Osvaldo."Líneas básicas para um provecto de filosofar latinoamericano"In: Revista de Filosofia Latino-Americana. Buenos Aires, Castane<strong>da</strong>, 1 (1):5-15,ene./jun., 1975.5. BAZAN, Bernardo. "Método para una Filosofia de la liberación según Enrique Dussel"In: Revista de Filosofia Latino-Americana. Buenos Aires, Castane<strong>da</strong>, 1 (2):277-85,juL/dic, 1975.6. BUARQUE DE HOLANDA, Sérgio. Raízes do BrasiL 7? ed., Rio de Janeiro, JOlympio, 1973.


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A Filorer vista e apresenta<strong>da</strong> comoalgo c*esquisitices de gregos e alemães.o uma coleção de teorias quese Tfnas que, de tão profundos, sãoin'comum dos mortais. A preocu-P mérito, desta CRÍTICA DA RAZÃO,razer estas questões para o solo3 no dia-a-dia, fazendo <strong>da</strong> in<strong>da</strong>gamquestionamento que parte do co-. 10 que nos é próximo, <strong>da</strong>s formas que.•a particular usa para nos construir, numanos. Darcy Ribeiro disse a propóablicaçãodeste livro: "O Brasil volta, finalj,a filosofar." Preocupado em reconstruir omodo como nós brasileiros nos apropriamos <strong>da</strong> tradiçãoeuropéia, Roberto Gomes tem <strong>da</strong> Filosofiauma visão muito particular. Ela é uma crítica dosmecanismos por meio dos quais nos tornamos dignosou indignos <strong>da</strong> Razão.Livros desta coleção:PLATÃO - OUSAR A UTOPIA Jorge Cláudio RibeiroARISTÓTELES - O EQUILÍBRIO DO SER Otaviano PereiraDESCARTES - A PAIXÃO PELA RAZÃO Mario Sérgio CortellaROUSSEAU - O BOM SELVAGEM Luiz R. Salinas FortesMARX - TRANSFORMAR O MUNDO Moacir GadottiSARTRE - É PR0D3ID0 PROIBIR Fernando José de Almei<strong>da</strong>GANDHI - POLÍTICA DOS GESTOSPOÉTICOS Rubem AlvesCRÍTICA DA RAZÃO TUPINIQUTM Roberto GomesFTD

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