Freud hoje - Cebrap

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ENTREVISTArepositório de conteúdos reprimidospor autoridades familiares e/ouculturais. A visão de inconsciente deFreud também toma como pressupostoque o irracional no homem pode serexplicado pela razão. Onde estão oslimites desse projeto de desencantamentoda psique ?FL: Talvez devêssemos discutir algunsdos pressupostos dessa pergunta antesde chegarmos ao desencantamento dapsique. O projeto teórico de Freud arespeito do inconsciente é muito maiscomplicado que um mero repositório deconteúdos reprimidos. Alguns leitorescríticos da psicanálise, como Canetti ouLévinas, apontavam justamente, na psicanálise,essa aparência de uma certa mecânicade emoções, como se eu pudesseconsertar minhas emoções. Como diziaCanetti, numa piada muito cruel, é comose eu fosse ao psicanalista com o mesmoestado de espírito com que levo aomecânico meu automóvel, como se apsicanálise se propusesse a ser umamecânica de emoções, uma arquitetura dearticulações, em que alguém pudessemexê-las, remexê-las ou normalizá-las.Mas o inconsciente freudiano não ésimples memória reprimida. É issotambém, mas não apenas. Freud nãoconcebeu o inconsciente como um merodepositório, uma espécie de quintal ondese jogam coisas que não servem ou coisasque foram maceradas ou coisas queforam relegadas para a periferia de si. Ovalor da noção de inconsciente deve-se,justamente, ao fato de se ter de considerálocomo se habitasse em mim um estrangeiroque está o tempo todo pedindo, exigindo,implorando, impondo, construindoem mim uma atitude hospitaleira, isto é,um estrangeiro que pede hospitalidade.Examinemos, por exemplo, a manifestaçãoonírica: todas as noites sonhamose o sonho aparece como a linguagem deum território estranho, numa línguaestranha, da qual não conhecemos aspalavras nem a gramática, e menos aindaa estrutura etimológica. Não conhecemosnada dessa língua, nada desse território eno entanto sabemos que há algo nosdizendo alguma coisa, alguém nos dizendoalguma coisa, e somos obrigados a fazerum esforço de tradução de um lugar paraoutro, de uma língua para outra, de umregistro afetivo a outro registro afetivo.Esse estrangeiro, que está sempre incomodando,me obriga a ter uma orelha paraescutar uma língua que eu não conheço,ele me força a criar uma língua e faz comque eu lhe dê ouvidos porque insiste emfalar comigo, insiste em obter uma respostade mim. E esse estrangeiro, esse territórioestranho, demanda de mim, inclusive,algo que eu não tenho, quer que eu lhediga “fique à vontade”, como quando aAlguns leitores críticosda psicanálise, comoCanetti ou Lévinas,apontavam justamente,na psicanálise, essaaparência de umacerta mecânica deemoções, como se eupudesse consertarminhas emoçõesgente recebe uma visita, “faça como seestivesse em casa”. Esse estrangeiro, queFreud me diz que eu acolho em mim – ounão acolho em mim – demanda a minhahospitalidade, meu esforço de tradução,meu esforço de compreensão. Às vezessuas maneiras me parecem até selvagens,me parecem pouco civilizadas, como seesse estrangeiro me falasse de algumacoisa que eu não reconheço como eu. Oestrangeiro me fala de uma civilização oude uma não-civilização, de uma anticivilizaçãoque coloca em questão amaneira pela qual eu vivo atualmente,pela qual eu disponho meu espaço, pelaqual eu disponho os meus móveis, meusinteresses. Esse estrangeiro apresenta-se,dia após dia, para me dizer que a minhamaneira civilizada não é a única maneiracivilizada, que dentro de mim existe umaoutra maneira, um outro modo de fazer,de pensar as coisas, de querer.Portanto, o inconsciente é esse repositório,mas não só. Ele é esse repositório deassuntos reprimidos (é um aspecto importantíssimo;sem dúvida, foi a primeiradefinição do inconsciente), mas o inconscientede Freud é muito mais do que isso.O inconsciente não está nos limites daconsciência, não é algo que já foiconsciente e não é mais. É algo que jamaisfoi consciente. Como se eu tivesse amemória de algo que não vi, e sobretudonão vivi. Se fosse a memória só daquiloque vivi, diria que seria um repositório.Mas é uma memória daquilo que não vivi.E como posso ter a “memória” de algo quenão vivi? Esse é o grande interesse doinconsciente, tal como Freud formulou.Quando pensamos o inconsciente comoessa “memória” daquilo que talvez eununca tenha vivido, abrimos o caminhopara uma postura analítica segundo aidéia de Freud, em que o analista fornece,não interpretações, mas construções aoseu analisando. Freud preferia a palavraconstrução à palavra interpretação. Oanalista contrói modelos, hipóteses queele submete ao seu analisando, de talmaneira que aos poucos essas construçõesdaquilo que não foi vivido, daquilo quepoderia ter sido vivido, seja o que talvezestá sendo comunicado dis após dia pelossonhos. Algo que não vivi mas tambémque não posso esquecer. Uma "memória"que se torna uma necessidade deconhecer. Preciso conhecer esse algo quehabita em mim e que vem desse territórioem mim onde se encontra uma “memória”do não-vivido, por mais estranho que issopossa parecer.18: Entretanto, a psicanálise freudianamuitas vezes é percebida como ummétodo que busca, por meio da razão,conhecer e explicar as especificidades epatologias de cada indivíduo...6 Revista 18

ENTREVISTAFL: A visão de inconsciente de Freud nãopressupõe uma explicação do irracionalpela razão já supondo que a razão vásubmeter a não-razão. Freud aponta parauma coabitação entre instâncias de naturezasdistintas em que jamais uma vaisubmeter a outra definitivamente, o queestabelece a necessidade de negociaçãoentre as instâncias. E esse é um dos grandesinteresses do ensinamento psicanalítico:em cada um de nós coabitam instânciasdistintas, que negociam perpetuamente,para desespero dos portadores das verdadese certezas únicas. Nenhuma instância emnós é capaz de ser o amo e senhor único,nem mesmo o tão decantado logos que,diga-se de passagem, pretendeu ter tomadoo poder num aparentemente bem-sucedidogolpe de Estado. A psicanálise mostrou queo rei, qualquer rei, está nu, inclusive o logos,que durante séculos animou a crença detantas mentes brilhantes, pretendendonos ensinar a nos desembaraçar de nossaspaixões. A razão deve conhecer seuslimites. A razão precisa aprender a serhumilde porque precisa negociar comoutras instâncias que funcionam deacordo com outros princípios.18: Parece-lhe que hoje, no universo dacultura e da sociedade, essses limitesda razão estão se tornando mais nítidose reconhecidos?FL: Hoje em dia assistimos ao reencantamentoda natureza, dos céus, das relaçõeshumanas – mas por meio dos demônios,dos velhos demônios conspiracionistas,“complotistas”, da tentativa de explicar omundo, novamente, pelos maus e osbons, Satã, Lúcifer, as hordas infernaiscontra as hordas celestiais. Isto é umreencantamento dos céus, da natureza,uma tentativa de dominar aquilo quenós não dominamos porque o mundo écomplexo demais para que o possamosdominar e aceitamos isso muito mal.Então, depois do desencantamento, nósvemos o reencantamento dos céus pelosextraterrestres, pelos ovnis. Nós vemos oreencantamento das relações humanaspelos complôs, pelo racismo. O reencantamento– ou o encantamento quenunca desapareceu na psicanálise – nãome parece passar por essa mágica umpouco virulenta...Sigmund Freud: o inconsciente é como a memória de algo que não foi vividoA psicanálise nos obrigaa estarmos acordados,a não podermos dormir,a estarmos insones,incomodados por aquiloque é estranho,estrangeiro, incontrolável,não-domesticável e quenos obriga a umdoloroso abandono deuma posição dedominação absoluta18: A psicanálise hoje, então,surgiria como a ciência do convívioe da conciliação?FL: Sim, ela trata da imperiosa necessidadede coabitar. Quase como se pudéssemosdizer: podemos viver juntos? Comose eu pudesse transformar essa perguntaem mim mesmo: será que eu posso viverjunto comigo? Será que os diversos "eus"podem coabitar em mim? Será que possoser um território de coabitação? Nãoestamos, aqui, muito longe da palavrapoética, uma palavra que é, ao mesmotempo, comunicativa e performativa, eque porta em si a possibilidade de atravessaras barreiras entre eu e os meusoutros, entre eu e o outro; atravessar asbarreiras míticas, todas as barreiras mistificadasque existem entre eu e os outros, eos meus outros. A palavra poética varaessa carapaça e atinge o outro, e o outrome atinge numa afetação recíproca, nosafetamos, estamos afetados, não somosRevista 18 7

ENTREVISTAFL: A visão de inconsciente de <strong>Freud</strong> nãopressupõe uma explicação do irracionalpela razão já supondo que a razão vásubmeter a não-razão. <strong>Freud</strong> aponta parauma coabitação entre instâncias de naturezasdistintas em que jamais uma vaisubmeter a outra definitivamente, o queestabelece a necessidade de negociaçãoentre as instâncias. E esse é um dos grandesinteresses do ensinamento psicanalítico:em cada um de nós coabitam instânciasdistintas, que negociam perpetuamente,para desespero dos portadores das verdadese certezas únicas. Nenhuma instância emnós é capaz de ser o amo e senhor único,nem mesmo o tão decantado logos que,diga-se de passagem, pretendeu ter tomadoo poder num aparentemente bem-sucedidogolpe de Estado. A psicanálise mostrou queo rei, qualquer rei, está nu, inclusive o logos,que durante séculos animou a crença detantas mentes brilhantes, pretendendonos ensinar a nos desembaraçar de nossaspaixões. A razão deve conhecer seuslimites. A razão precisa aprender a serhumilde porque precisa negociar comoutras instâncias que funcionam deacordo com outros princípios.18: Parece-lhe que <strong>hoje</strong>, no universo dacultura e da sociedade, essses limitesda razão estão se tornando mais nítidose reconhecidos?FL: Hoje em dia assistimos ao reencantamentoda natureza, dos céus, das relaçõeshumanas – mas por meio dos demônios,dos velhos demônios conspiracionistas,“complotistas”, da tentativa de explicar omundo, novamente, pelos maus e osbons, Satã, Lúcifer, as hordas infernaiscontra as hordas celestiais. Isto é umreencantamento dos céus, da natureza,uma tentativa de dominar aquilo quenós não dominamos porque o mundo écomplexo demais para que o possamosdominar e aceitamos isso muito mal.Então, depois do desencantamento, nósvemos o reencantamento dos céus pelosextraterrestres, pelos ovnis. Nós vemos oreencantamento das relações humanaspelos complôs, pelo racismo. O reencantamento– ou o encantamento quenunca desapareceu na psicanálise – nãome parece passar por essa mágica umpouco virulenta...Sigmund <strong>Freud</strong>: o inconsciente é como a memória de algo que não foi vividoA psicanálise nos obrigaa estarmos acordados,a não podermos dormir,a estarmos insones,incomodados por aquiloque é estranho,estrangeiro, incontrolável,não-domesticável e quenos obriga a umdoloroso abandono deuma posição dedominação absoluta18: A psicanálise <strong>hoje</strong>, então,surgiria como a ciência do convívioe da conciliação?FL: Sim, ela trata da imperiosa necessidadede coabitar. Quase como se pudéssemosdizer: podemos viver juntos? Comose eu pudesse transformar essa perguntaem mim mesmo: será que eu posso viverjunto comigo? Será que os diversos "eus"podem coabitar em mim? Será que possoser um território de coabitação? Nãoestamos, aqui, muito longe da palavrapoética, uma palavra que é, ao mesmotempo, comunicativa e performativa, eque porta em si a possibilidade de atravessaras barreiras entre eu e os meusoutros, entre eu e o outro; atravessar asbarreiras míticas, todas as barreiras mistificadasque existem entre eu e os outros, eos meus outros. A palavra poética varaessa carapaça e atinge o outro, e o outrome atinge numa afetação recíproca, nosafetamos, estamos afetados, não somosRevista 18 7

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