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Freud hoje - Cebrap

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LETRAS E ARTESum presente como aqueles que o filme deficção científica De volta ao futuro mostra,monstruoso e resultado de modificaçõesindevidas. Em “Agentes de negócio”, porexemplo, um funcionário, vestido debranco, toca a campainha e, no melhorestilo dos caixeiros viajantes, apresentasua mercadoria: “Somos especialistas naterra... Nós nos encarregamos do GêneroHumano...” e passa ao mostruário, apresentandobreves filmes de exemplares dogênero humano, para facilitar a escolha:“Homens e mulheres... O senhor conhecea diferença, não? É pequena, mas fundamental...”.O interlocutor, que é uma almaà espera de uma encarnação e um potencialcliente, desconfia de possíveis falhas eproblemas na “mercadoria”. O caixeiroviajante admite, finalmente: “Parece-meque o senhor teve uma intuição; alguém,em algum ponto, deve ter errado, pois osplanos terrestres apresentam uma falha,um vício de forma...”.O terceiro e último livro da trilogiaaqui reunida chama-se, numa alusão inequívocaà tradição cabalista judaica, Lilithe outros contos, e reúne 36 contos, divididosem três seções, emblematicamente intituladas:Passado próximo, Futuro anterior ePresente indicativo. Estes três temposgramaticais do italiano aludem, evidentemente,a três momentos na relação entreo passado e o nosso presente. Passadopróximo reúne contos sobre o campo deconcentração de Auschwitz, de onde Levifoi libertado em abril de 1945, e tema deseu magistral relato É este um Homem, de1947 (Lilith é o apelido que Levi dá a umaprisioneira). Futuro anterior e Presenteindicativo incluem visões fantasiosas,advindas de um passado ainda não superado,e sinais de incompreensão, dechoques entre culturas, de mudanças deperspectiva e situações paradoxais.Na leitura, cada palavra tem seu peso,um peso específico, bem material. Comoo peso dos tijolos. Se com estes é possívelconstruir palácios e pontes (esta última,uma metáfora bastante presente na obrade Levi, especialmente em La chiave astella, num diálogo ideal entre um engenheiroe um escritor), com as palavras épossível descrever essas pontes, mudar aperspectiva de onde são olhadas, apontarpara os “vícios de forma”, na ilusão, talvez,de que uma transformação seja possível(ao menos, uma transformação de pontode vista).Por meio das palavras observamos nossopresente, relembramos o passado que nosinfluencia e construímos um futuro, quedepende, em grande medida, do exercíciode liberdade que sabemos realizar emnossa leitura. O que confirma, ainda, opapel fundamental do exercício de leiturana época da globalização e da descrença.Por meio das palavrasobservamos nossopresente, relembramoso passado que nosinfluencia e construímosum futuro, que dependeda liberdade quesabemos realizar emnossa leituraHá dois detalhes que chamam aatenção nesta antologia: o título do livro ea última frase, duas pequenas idiossincrasiasdesta edição brasileira. Trata-se demarcas quase imperceptíveis que deixa atransposição de uma língua para outra, deum universo cultural para outro, comorastros da memória. O título 71 contosexiste somente na edição brasileira e éuma criação que, enquanto tal, modificaalgo na leitura, estimulando especulações,conjeturas, hipóteses, não necessariamentefundamentadas na lógica (mas aliteratura cria sua própria lógica, aspalavras escapam do discurso racional!). Eisto vale especialmente para um escritorque, químico de profissão e escritor emseu tempo livre, estava sempre muitoatento às coincidências, que procuravapalavras especiais, como os palíndromos(palavras que podem ser lidas nos doissentidos, da esquerda para direita e viceversa),ou o aspecto específico daspalavras: seu peso ou tamanho.Os 71 contos poderiam ser lidos comoos 49 degraus (título de um livro deensaios do escritor italiano RobertoCalasso), considerando o aspecto numerológicoda tradição cabalista. “O servo”, porexemplo, um dos contos deste volume,apresenta uma nova versão do mito doGolem, metáfora do poder da letra, dentroda escrita alfabética. Na versão relatadapor Gerschom Scholem (A Cabala e seuSimbolismo, São Paulo, Perspectiva), aoGolem, que é uma figura de barro, é dadaa vida pela inscrição de uma palavra:“Sobre a testa da imagem, escrevem emet,isto é, verdade”. Mas, vice-versa, quando énecessário parar sua atividade é sempreScholem que afirma: “Eles apagam rapidamentea letra alef da palavra emet sobrea testa, ficando apenas a palavra met, quesignifica morte. Feito isto, o Golem desmoronae se dissolve no barro, no lodo quefora antes...”. Ou seja, o texto, enquantocomposto de letras alfabéticas permutáveis,comporta-se como um organismovivo. Primo Levi, em sua versão nestacoletânea, acentua o papel dos números:“O Golem ia tomando forma, e ficoupronto no ano 1579 da Era Vulgar, 5339ºda Criação; ora, 5339 não é propriamenteum número primo, mas quase, pois éproduto de 19 [...] multiplicado por 289,que é o número dos ossos que compõemnosso corpo...”.É conhecida a relação contraditória dePrimo Levi com o judaísmo, pois oescritor italiano tematizou elementosconstitutivos da tradição judaica e, aomesmo tempo, reafirmava uma certadistância, em certa medida típica dojudaísmo italiano.A propósito do número 71 do títulodesta nova coletânea, coincidentemente,o capítulo de número 71 do tratadoKidushin do talmude babilônico trata daquestão dos segredos relativos à pronúnciado Tetragrama, o inefável nome divino.Esta é uma alusão irônica, talvez, pormera associação livre, mas fala-se, aí,44 Revista 18

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