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Freud hoje - Cebrap

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LETRAS E ARTEShomens, e promove assim uma reduçãoda complexidade kafkiana, na qual, comono relato A colônia penal, a violência seinscreve como letra no corpo humano efaz de cada um não apenas uma vítima,mas também um sujeito capaz de suscitála.Esta é a gravidade do universo kafkiano:cada um, mesmo aquele que mais sofre,pode ser um agente violento. Esta é asituação kafkiana por excelência, na qualtodos atropelam todos e todos são atropeladospela máquina burocrática que éposta em atividade.Um dos intuitos centrais da leitura deLöwy é tentar evidenciar quais seriam asmotivações e as fontes de inspiração dotrabalho literário de Kafka. Assim, porexemplo, ele sustenta que A colônia penalteria como origem uma crítica de Kafkaao colonialismo, ao militarismo e à burocracia,chegando até a argumentar emfavor de um colonialismo bem específico– o colonialismo francês – que estaria namira da crítica de Kafka, sendo que Löwyhesita entre saber se o espaço territorialem que se passa o relato seria a Ilha doDiabo, “para onde o Capitão Dreyfusshavia sido remetido após sua condenação,mas lá não havia população indígena”, oua Nova Caledônia, “essa ‘colônia penal’francesa habitada por melanésios, paraonde foram deportados os prisioneiroscommunards, mas Kafka não mencionaprisioneiros deportados, políticos ououtros” (p. 83). Para O processo, Löwy põeem cena a hipótese de que processos antisemitasteriam sido a sua fonte, ou aindaque a irmã Otla seria o modelo arquetípicosobre o qual teria sido construída apersonagem Amália, da novela O castelo.O diálogo entre realidade e obra literárianunca é fácil, e a crítica contemporâneahá muito que abriu mão de ver aobra literária como cópia do real. Löwy,porém, aponta para cada obra umaorigem na realidade social, da qual a obraseria um desdobramento imaginativo.Que em toda literatura uma determinadaideologia se materialize numa açãoimaginária é inquestionável. Ocorre que ocaso de Kafka é emblemático de umaliteratura que, para além de quererrepresentar um estado de coisas da vidados homens, toma a si própria como oproblema a ser trabalhado. E Löwy parece,neste trabalho, pouco atento a este fato.Ao priorizar a apresentação de um Kafkaanti-autoritário, ele termina por filtraraspectos importantes do texto kafkiano,principalmente no que diz respeito aquestões referentes à forma da escrita,lugar por excelência da singularidade deque o texto de Kafka é dotado. Löwyprivilegia uma crítica apoiada sobre oque seria o argumento do texto. Mas otrabalho literário consiste basicamente naoperação textual que é realizada, isto é,nos artifícios de escrita que o escritor põeem cena, selecionando cada palavra,construindo cada oração, atento à estruturafrasal, e assim por diante. E isto maisainda em Kafka, um autor que operavaconsciente de sua atividade textual eQue em toda literaturauma determinadaideologia se materializenuma ação imaginária éinquestionável. Ocorreque o caso de Kafka éemblemático de umaliteratura que toma a siprópria como o problemaa ser trabalhadocrítico dela, atuando não através dalinguagem mas na linguagem, lugar emque estão alocadas, pela forma como Kafkaopera, grande parte das tensões constitutivasde seu texto. E Löwy, em seu filtrocrítico, muitas vezes termina por privar otexto kafkiano desta tensão, o que significa,de algum modo, privar a letra do “espíritokafkiano” (a expressão é de Löwy).Isto não quer dizer que a leitura deLöwy não seja de grande valia. Aocontrário, ela contribui em muito paradestacar um Kafka que é também umgenial leitor crítico do estado de coisasentre os homens. E isto não é poucodiante de um panorama da crítica literáriacontemporânea, que muitas vezes tende aencerrar a obra literária num compartimentoestético-lingüístico, destituindo aobra de toda a sua potência crítica. E opróprio Löwy sabe dos limites de seutrabalho, quando escreve que “a leitura‘política’ proposta aqui evidentemente éparcial: o universo de Kafka é rico,complexo e multiforme demais para serredutível a uma fórmula única. Seja qualfor a pertinência de uma interpretação,sua obra guarda todo o seu inquietantemistério, sua singular consistência oníricacomo um ‘sonho desperto’, inspiradopela lógica do maravilhoso” (p. 13).Se toda leitura de Kafka é parcial, senenhuma a esgota, por que então oenorme esforço de Löwy para se colocarcomo original dentro do gigantesco campocrítico deste autor? Ele diz: “Em lugaralgum encontrei uma análise sistemáticade sua obra pelo ângulo da paixão antiautoritáriaque a atravessa como umacorrente elétrica” (p. 12). Não é o caso detrazer aqui o incrível leque de críticos queassentam sua leitura de Kafka justamentenesta “paixão anti-autoritária”. Citemosapenas Canetti. Diz ele: “Desde umprincípio, Kafka foi partidário dos humilhados”.E referindo-se a O castelo: “Nuncase escreveu um ataque mais claro contraa submissão ao que é superior, tanto sequeremos entender por isto um poderdivino ou meramente terreno”. 1 É importantesalientar que toda a leitura de Canettidesdobra este pensamento em profundidade,bem como a de Benjamin, Adorno,Ritchie Robertson, Hannah Arendt, MartheRobert, Deleuze e Guattari e tantos outrosque o próprio Löwy cita. Porém, se Löwynão é o primeiro a vê-la por este ângulo,este volume tem o mérito indiscutível deiluminar em que medida esta paixão antiautoritáriapercorre a obra kafkiana emsua totalidade, situando-a no contexto darealidade européia da primeira metade doséculo 20. Enrique Mandelbaum é psicanalista, coordenadorpedagógico do Colégio Iavne e autorde Franz Kafka: um judaísmo na ponte doimpossível. São Paulo: Ed. Perspectiva, 20021 Canetti, E. El otro proceso de Kafka. Barcelona:Muchnik Editores, 1981, p. 146.42 Revista 18

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