LETRAS E ARTESFotos: divulgaçãoA cerimônia de kapará, realizada um dia antes do Yom Kipur, dia do perdão: rito de absolviçãoGestos de féFotografar o invisível parece ser o objetivo de André Douek ao documentaros preparativos das celebrações da liturgia judaica tradicionalFazer uma documentação fotográfica dosrituais da liturgia judaica conforme praticadospelos seguidores da ortodoxia é umatarefa praticamente impossível. Isto porque asleis que se referem à maior parte dos dias santosdo calendário judaico proíbem, nestas datas, oexercício de qualquer trabalho – inclusive o defotografar. Deparando-se com esta impossibilidade,André Douek, fotógrafo brasileiro nascidono Egito, começou a procurar meios para arealização de um projeto que, havia anos, germinavaem sua imaginação.Seu desejo era documentar os ritos judaicos,associados a dimensões da existência que nãofazem parte do mundo quotidiano e, em seu caso,ligados também às suas memórias da terra natal,que deixou aos sete anos de idade, em 1962 – ele esua família foram dos últimos a deixarem o Egito,depois da expulsão promulgada por Nasser em1957, que pôs fim a uma das mais antigas e tradicionaiscomunidades judaicas do mundo.As lembranças nítidas da infância e da vidafamiliar no Cairo permaneceram com Douek,porém, como matrizes que organizam o universo36 Revista 18
LETRAS E ARTESA purificação do lar por meio da remoção do chametz, realizada um dia antes de Pessach: para contornar proibição religiosa de fotografardurante os dias santos, Douek optou por documentar os preparativos das principais cerimônias que marcam o calendário litúrgico judaicodos sentimentos, de maneira que presenciar a celebraçãodas festas religiosas, cada qual com seusabor específico, tornou-se, também, uma maneirade reencontrar o passado irremediavelmenteperdido, não obstante as diferenças entre as celebraçõesjudaicas no Egito e no Brasil.Tanto quanto para as festas em si, a nostalgiade Douek volta-se para o Cairo de sua infância,onde a vida, seja a dos muçulmanos, seja a doscristãos coptas, seja a dos judeus, lhe pareciaimpregnada de religiosidade em todos os seusaspectos. “No Egito daquele tempo a palavra deuma pessoa valia tudo. Havia um grau enorme deconfiança entre as pessoas, nem se pensava emcontratos”, diz ele.Recuperar a inocência e a simplicidade perdidasna voragem materialista e no cinismo, e evidenciara sacralidade do tempo conforme cultivada pelosque seguem a fundo todos os preceitos do judaísmotradicional; fotografar o invisível e o proibido,porque sagrado, foram, assim, os objetivos que eletinha em vista ao se lançar neste projeto, que aRevista 18 publica em primeira mão.Em meio à desorientação da vida mundana – eda história – o ritual proporciona refúgio, segurançae libertação. A santificação do temposuspende as incertezas para mergulhar quem delaparticipa no sentimento e no sentido de maravilhamento.E o rigor das leis judaicas referentes àsfestas tem como objetivo, justamente, preservareste espaço de suspensão dos condicionamentos,construir, como que uma cerca em torno destesmomentos apartados do calendário comum, paraque nada perturbe sua vivência.O ritual judaico não é algo que pode ser descritoem palavras, nem compreendido pela razão ou pelointelecto. É algo que ameaça perder-se no tempo enas migrações dos judeus por todos os quadrantesRevista 18 37