Freud hoje - Cebrap

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12.07.2015 Views

ENSAIOO Islã e o mundoA doutrina islâmica, que se impõe a seus seguidores como única doutrina verdadeira, não admitea legitimidade da existência do outro e é incompatível com a noção ocidental de sociedade civile democracia. Para Luis Dolhnikoff, as tiranias muçulmanas são mera conseqüência deste fatoDesde a revolução islâmica de 1979no Irã, o islã tornou-se um atorcentral no cenário internacional.Isto gera uma série de problemas de váriasordens, a começar pelos termos dadiscussão. Pois sequer haveria um islã, jáque este termo se refere, ao mesmo tempo,a uma religião – que em si não é monolítica– e a uma cultura, ainda menosmonolítica do que a religião.No entanto, existe um islã. Pois todosos “islãs” têm certos denominadorescomuns. E o conjunto desses denominadorescomuns pode, com pertinência, serchamado de o islã. Os primeiros denominadorescomuns são a adoção de Alácomo Deus, de Maomé como Profeta e doCorão como livro sagrado. Outros, os“cinco pilares” do islã, práticas de cumprimentoobrigatório: a profissão de fé(chahada), as rezas diárias (salat), o dízimo(zakat), o jejum (saum) no mês do Ramadã(que comemora a data da “revelação” doCorão) e a peregrinação a Meca (hajj).Há, porém, outros denominadoresmenos conhecidos, como o Hadith,conjunto de histórias, normas e comentários,atribuído a Maomé, e que complementao texto do Corão (atribuído a Alá emsi mesmo, que, segundo a crença, doou-o aMaomé por meio do anjo Gabriel).Por fim, mas não menos importante,há o conceito básico da religião islâmica,a submissão – daí a palavra islã(submissão em árabe). Em princípio, trataseda submissão do homem a Alá. Naprática, trata-se da submissão dos fiéis aopróprio islã.Um denominador comum menos“oficial”, mas não menos verdadeiro, é ofundamentalismo. O termo fundamentalismooriginou-se nos EUA, no início doséculo 20, para designar protestantes quepretendem se ater aos “fundamentos” docristianismo contra o criticismo moderno.Isto inclui a noção de inspiração divina –e não de criação histórica – da Bíblia, o queimplica sua interpretação literal. Teremadotado um nome específico, cuja conotaçãoé majoritariamente negativa, indicaquão minoritários são no campo cristão.No caso muçulmano, porém, a leituraliteral ou fundamentalista do Corão é aA shariá, ou lei islâmica,é a lei. Não há, assim,nenhum país islâmicoem que a shariá nãoesteja presente. O quevaria é apenas o tipo depresença. Ou a shariá éa lei em si mesma, ou éa parte principal da lei,ou é a sombra que pairapesada sobre leisnão-religiosasnorma e o ideal. Assim, nas escolas religiosas(madrassas), os anos de “estudo”praticamente se limitam à memorizaçãodo texto – que em minha edição tem, comnotas, 781 páginas, fora o índice (SP,Marsam, 2001, trad. direta do árabe porSamir el Hayek). Não por acaso, o opostoda leitura literal, isto é, a livre interpretaçãodo Corão e também do Hadith(chamada ijtihad), passou a ser condenadajá a partir do século 11, quando o corpusteórico do islã – que além dos doisprimeiros, inclui ainda a shariá, ou leiislâmica – foi concluído.O que nos leva a outro denominadorcomum do islã. Não se trata da famosanão-separação entre Estado e Igreja. Poisembora o próprio Maomé – ao contráriode Abraão, Moisés, Buda ou Cristo – tenhasido ao mesmo tempo líder religioso epolítico, além de militar, e apesar de osprincipais títulos islâmicos, como califa(“sucessor” [de Maomé]) e xeque (“ancião”,autoridade doutrinária), serem tantoreligiosos quanto políticos, há diferençasentre as posturas sunita e xiita. A primeiracostuma defender apenas a submissão dogovernante à lei islâmica, enquanto asegunda prefere o poder direto dos sacerdotes(sunismo e xiismo; não por acaso,são divisões originalmente políticas,surgidas na sucessão de Maomé no século7). O outro denominador comum é, naverdade, a não-separação entre a lei civil e alei religiosa. De fato, é a própria inexistência,na tradição islâmica, do conceitode lei civil.A shariá, ou lei islâmica (baseada tantono Corão quanto no Hadith, e concluídano século 11), é a lei. Não há, assim,nenhum país islâmico em que a shariánão esteja presente. O que varia é apenas otipo de presença. Ou a shariá é a lei em simesma (como no Irã, na Arábia Sauditaou no Afeganistão dos talibãs), ou é aparte principal da lei (como nos inúmerospaíses que adotam leis complementares),ou é a sombra que paira pesada sobre leisnão-religiosas (como na Turquia).À sombra da lei islâmica, não apenas éimpossível uma verdadeira lei civil, comotambém é impossível uma imprensa livre(pois tudo tem de ser “religiosamentecorreto”). E sem uma lei civil e uma26 Revista 18

ENSAIOimprensa livre, não existe sociedade civilque mereça o nome (desconsiderando-semuitos outros impedimentos, como asfidelidades tribais e o profundo patriarcalismo).Porque a sociedade civil depende,entre outras coisas, de um sistema legalque proteja sua autonomia (“normaprópria”), assim como de uma imprensalivre que garanta sua voz. Sendo a democraciaa expressão política da sociedadecivil, e não havendo uma verdadeirasociedade civil nos países islâmicos,explica-se a impermeabilidade das sociedadesislâmicas à democracia.Explica-se, também, a persistência deditaduras e reinados no mundo árabeislâmico,que não é, portanto, meraconseqüência do interesse ocidental emapoiar a ordem em países produtores depetróleo, mas igualmente o resultado daausência de uma sociedade civil.Explica-se, ainda, o verdadeiro problemada política de exportação da democracia.Os argumentos habituais baseiam-se empremissas ideológicas: dizem que a democracia,um produto cultural do Ocidente,não pode ser exportada; a democracia nãodeve ser exportada, pois isto seria umaimposição cultural. O primeiro argumentonão resiste à história: de um modoou de outro, a democracia ocidental foiexportada para o Japão, a Coréia, Taiwan ea Índia. O segundo argumento não resisteaos fatos: não há, infelizmente, regimemelhor (ou menos pior, parafraseandoChurchill) no cardápio mundial. Não poracaso, nenhum outro garante o respeitoaos valores internacionais fundamentais,como os direitos humanos. Qual é, então,o problema da política de exportar ademocracia? É não se estar a exportar ademocracia – já que não se pode exportara sociedade civil. Exporta-se, portanto,apenas o método eleitoral.Existe hoje o hábito desinteligente dereduzir a democracia ao processo eleitoral.Eleições, porém, são apenas um método dereferendar governos representativos. Democracia,por outro lado, não é um método,mas um sistema político e jurídico.Na verdade, o método de escolha dogovernante é de relevância menor paraa definição da democracia. Os euaescolhem seu presidente por via indireta.No parlamentarismo, é o Parlamentoque escolhe o chefe de governo. O queCharge publicada no jornal saudita de língua inglesa The Arab News retrata Ariel Sharonbrandindo um machado em forma de suástica crianças palestinas: demonização eincitamento ao ódio estão, há décadas, na ordem do dia da imprensa do mundo árabeO islã, como religião ecomo cultura, pressupõeuma sociedade tutelada,originalmente, pelaprópria religião. Oantagonismo, assim, nãoé com a democracia emsi, mas com a concepçãode sociedade conforme areconhecemos edefendemos no Ocidenteimporta é a existência da sociedade civilsoberana (apesar mesmo das injunçõeseconômicas do capitalismo) – que então,soberanamente, escolhe como querescolher seus governantes.Não surpreende, em todo caso, queexportar eleições para lugares onde asociedade civil é fraca ou inexistente,enquanto são fortes os grupos antidemocráticos(como no mundo muçulmano),resulte, cedo ou tarde, no fortalecimentodesses mesmos grupos por meio daspróprias eleições.Mas como se resolve, então, oproblema dos grupos antidemocráticosmuito populares, como a Frente Islâmicade Salvação na Argélia e o Hamas nosterritórios palestinos? Considerando quea democracia tampouco tem a ver automaticamentecom maiorias eventuais –mas sim com regras republicanas. Ou seja,regras que têm de valer para a totalidadedo espectro político. Uma eventualmaioria eleitoral que confronte essasregras não merece, portanto, participar dojogo – muito menos vencê-lo. É o caso dosgrupos que pregam a teocracia (de fatoproibidos na Turquia, a menos imperfeitadas democracias muçulmanas – de modoequivalente, na Alemanha, grupos quepregam abertamente o nazismo nãopodem concorrer nas eleições).O caminho, na prática, é o desenvolvimentodas instituições mínimas e daReproduçãoRevista 18 27

ENSAIOimprensa livre, não existe sociedade civilque mereça o nome (desconsiderando-semuitos outros impedimentos, como asfidelidades tribais e o profundo patriarcalismo).Porque a sociedade civil depende,entre outras coisas, de um sistema legalque proteja sua autonomia (“normaprópria”), assim como de uma imprensalivre que garanta sua voz. Sendo a democraciaa expressão política da sociedadecivil, e não havendo uma verdadeirasociedade civil nos países islâmicos,explica-se a impermeabilidade das sociedadesislâmicas à democracia.Explica-se, também, a persistência deditaduras e reinados no mundo árabeislâmico,que não é, portanto, meraconseqüência do interesse ocidental emapoiar a ordem em países produtores depetróleo, mas igualmente o resultado daausência de uma sociedade civil.Explica-se, ainda, o verdadeiro problemada política de exportação da democracia.Os argumentos habituais baseiam-se empremissas ideológicas: dizem que a democracia,um produto cultural do Ocidente,não pode ser exportada; a democracia nãodeve ser exportada, pois isto seria umaimposição cultural. O primeiro argumentonão resiste à história: de um modoou de outro, a democracia ocidental foiexportada para o Japão, a Coréia, Taiwan ea Índia. O segundo argumento não resisteaos fatos: não há, infelizmente, regimemelhor (ou menos pior, parafraseandoChurchill) no cardápio mundial. Não poracaso, nenhum outro garante o respeitoaos valores internacionais fundamentais,como os direitos humanos. Qual é, então,o problema da política de exportar ademocracia? É não se estar a exportar ademocracia – já que não se pode exportara sociedade civil. Exporta-se, portanto,apenas o método eleitoral.Existe <strong>hoje</strong> o hábito desinteligente dereduzir a democracia ao processo eleitoral.Eleições, porém, são apenas um método dereferendar governos representativos. Democracia,por outro lado, não é um método,mas um sistema político e jurídico.Na verdade, o método de escolha dogovernante é de relevância menor paraa definição da democracia. Os euaescolhem seu presidente por via indireta.No parlamentarismo, é o Parlamentoque escolhe o chefe de governo. O queCharge publicada no jornal saudita de língua inglesa The Arab News retrata Ariel Sharonbrandindo um machado em forma de suástica crianças palestinas: demonização eincitamento ao ódio estão, há décadas, na ordem do dia da imprensa do mundo árabeO islã, como religião ecomo cultura, pressupõeuma sociedade tutelada,originalmente, pelaprópria religião. Oantagonismo, assim, nãoé com a democracia emsi, mas com a concepçãode sociedade conforme areconhecemos edefendemos no Ocidenteimporta é a existência da sociedade civilsoberana (apesar mesmo das injunçõeseconômicas do capitalismo) – que então,soberanamente, escolhe como querescolher seus governantes.Não surpreende, em todo caso, queexportar eleições para lugares onde asociedade civil é fraca ou inexistente,enquanto são fortes os grupos antidemocráticos(como no mundo muçulmano),resulte, cedo ou tarde, no fortalecimentodesses mesmos grupos por meio daspróprias eleições.Mas como se resolve, então, oproblema dos grupos antidemocráticosmuito populares, como a Frente Islâmicade Salvação na Argélia e o Hamas nosterritórios palestinos? Considerando quea democracia tampouco tem a ver automaticamentecom maiorias eventuais –mas sim com regras republicanas. Ou seja,regras que têm de valer para a totalidadedo espectro político. Uma eventualmaioria eleitoral que confronte essasregras não merece, portanto, participar dojogo – muito menos vencê-lo. É o caso dosgrupos que pregam a teocracia (de fatoproibidos na Turquia, a menos imperfeitadas democracias muçulmanas – de modoequivalente, na Alemanha, grupos quepregam abertamente o nazismo nãopodem concorrer nas eleições).O caminho, na prática, é o desenvolvimentodas instituições mínimas e daReproduçãoRevista 18 27

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