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Freud hoje - Cebrap

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OPINIÃOo cerco dos fiéis pelas Igrejas. Na verdade, cada uma a seumodo: uma religião da salvação quer salvar os outros, umareligião da transcendência almeja tornar conhecido ocaminho da ascese e assim por diante; mas, desse modo,cada uma está preparada para exercer um tipo de violência.No entanto, mesmo no conflito, desde que este não degenerenuma matança generalizada, sempre se vislumbra umterreno coletivo onde as diferenças religiosas deixam de serpertinentes, onde outras diferenças se manifestam, poissomente assim a luta de um com o outro não termina eliminandoo outro e o próprio conflito.A associação de crentes numa comunidade requer, pois,mais do que a convergência de opiniões. Uns se re-ligampelo sangue, pela aliança firmada, pela tradição; outros, pelaentrega aos mesmos mistérios, prontos a irem além delesmesmos e assim por diante. Mas convém salientar quequalquer conflito entre eles incorpora umadimensão prática impossível de ser resolvidano plano da fé e até mesmo das instituiçõesreligiosas. Estas, por sua próprianatureza, quando combatem o cismático,quando lutam contra uma ameaça que vemde dentro, terminam recorrendo à força,colocando-o fora do campo religioso. Assimabandonam um projeto de paz e tendem afazer do outro o infiel que deve ser morto.Enquanto o conflito tiver esse caráter,enquanto o outro for o absoluto, não háconciliação e paz possíveis, o que faz daguerra de religião um processo sem fim.Lembremos que, no Ocidente, até oséculo 16, era impossível alguém se aceitarcomo incrédulo, descrente, de sorte que asdiferenças religiosas sempre foram pertinentes.Somente a repressão de uma Igrejaforte poderia assegurar uma paz relativa,não havendo pois espaço para o pensamentode uma política estritamente laica.O Ocidente pagou um preço alto paracompreender que somente uma política laicaem estrito senso vem a ser capaz de limitaros exageros das políticas religiosas. Isso ocorreu, sobretudo,durante as guerras religiosas do século 16. Exemplificando:o católico Carlos V, obcecado pelo projeto de unificar oSanto Império Romano sob a mesma crença, só vence ospríncipes alemães protestantes depois de se comprometer aassinar o Tratado de Paz de Augsburgo (1555), segundo oqual cada príncipe poderia determinar a sua religião comoaquela de seu povo. Obviamente, esse compromisso sópoderia ser passageiro por causa da disputa entre as velhase as novas elites que modificavam o perfil da Europa. Aguerra continua, mas os massacres chegaram a limites detal forma intoleráveis – em Paris, na noite de SãoBartolomeu (agosto de 1572), foram mortos por volta de3.000 protestantes – que passaram a ameaçar a própria existênciade cada grupo. Fica então evidente a necessidade deEnquanto o conflito tiveresse caráter, enquanto ooutro for o absoluto, nãohá conciliação e pazpossíveis, o que faz daguerra de religiões umprocesso sem fimum pacto social além dos conflitos religiosos. É significativoque nesta época se passa a pensar o Estado comocontrato, sendo Thomas Hobbes um dos formuladores maisrefinados desta teoria. No plano da prática e no plano teórico,frente à ameaça de desastre total, inventa-se umcontrato exclusivamente político que leva ao Estado absolutista.O Absoluto da religião dá lugar a outro Absoluto.Vale a pena ainda lembrar o oportunismo exemplar deHenrique IV. Sendo um dos chefes do partido calvinista,consegue salvar-se do massacre pagando o preço da abjuração,vence seus inimigos, sagra-se em Chartres e entratriunfante em Paris – mas a cidade não vale uma missa?Mais tarde, lá está ele se aliando aos príncipes protestantesalemães. Dessas idas e vindas, porém, resulta o Édito deNantes, garantindo a liberdade de consciência para todos.Cada um se obriga a respeitar a religião do outro, desde quevenha a ser intolerante em relação aosinimigos do Estado. Mas agora a crençapode virar arma política.Lembrei esses episódios para salientarque a prática de uma política que se querapenas política nos custou um longo edoloroso aprendizado. E agora, quando denovo a política se entrelaça com políticasreligiosas, acredito ser necessário repensartoda essa experiência. Em particular, nademocracia, quando os cidadãos devemser tratados como iguais perante a lei, atolerância prática passa a ter, como umade suas condições de possibilidade, aidentificação de cada um como sujeito dedireitos. Até há poucas décadas, no Ocidenteisto se deu reconhecendo-se essesujeito como cidadão partícipe de umEstado. No entanto, não foi por isso que oséculo 20 foi um século de paz e de tolerância.Mas esse dilaceramento, essasguerras totais também não se sedimentaramem experiências que podemorientar o pensamento do futuro?Parece-me evidente que a políticaarma um espaço de decisões coletivas na base de pactosque somente se repõem no jogo de aliados e adversários.Parece-me ingênuo pressupor que a luta política possa terna sua base uma ética visando o consenso e a reconciliaçãototais. Por sua própria natureza, a luta pelo poder é exclusiva,uns fazem parte dele, outros são afastados. Daí o riscoconstante. O jogo político do aliado e do adversário, doamigo e do inimigo, se transforma facilmente num regimeautoritário quando o outro é pensado como devendo serexcluído do processo, quando é desenhado como a figurado Mal. Isso aconteceu nos movimentos autoritários doséculo 20, quando o inimigo foi marcado pelo sangue, pelaraça, pela traição irrecuperável, merecendo, pois, serexcluído do jogo da política transformada em religião leiga,excluído então do mundo dos seres humanos.18 Revista 18

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