OPINIÃOReproduçãoTolerância máximaJosé Arthur Giannotti refletesobre os limites do conceito detolerância religiosa no mundocontemporâneo e vê uma políticaestritamente laica como únicamaneira de garantir o convívioentre diferentes grupos de féOconceito de tolerância é multívoco,pois denota o aceitar, ocondescender, assim como osuportar. Aceitar pode valer entre iguais,mas condescender e suportar implicamrelações de desigualdade entre osagentes. Daí a necessidade de distinguirvários planos em que a tolerância vem aser exercida. Já que não posso me aventurarpor esses caminhos tortuosos, souobrigado a escolher um deles, e tento omais abrangente de todos, a tolerânciareligiosa, que afeta a totalidade de nossaexistência, do nascimento à morte.Abarca até mesmo o universo dos nãocrentes, pois uns e outros convivem nomesmo espaço coletivo. Mas de queforma? A incredulidade não tende a sedar como infidelidade?16 Revista 18
OPINIÃOVale lembrar que, na metade do século 19, particularmenteos comunistas acreditaram que o problema perderarelevância. A questão teórica da religião teria sido resolvida,de sorte que o progresso e a Revolução terminariampor dissolver esse ópio do povo. Enquanto isso, o Estado seencarregaria de uma repressão educativa. Nem todos,porém, foram tão radicais; os primeiros sociólogos – MaxWeber é um deles – diagnosticaram um progressivo desencantamentodo mundo à medida que a ciência e a razãotécnica estariam modificando as mentes e solapandocondutas de cunho religioso. No entanto, foi basicamenteo inverso que aconteceu.Muitas vezes se ouve dizer que cada religião tem suaprópria experiência do divino, como se elas apresentassemaspectos diferentes de um mesmo conteúdo. A multiplicaçãodos encontros e cultos ecumênicos não o comprova?Mas sem a idéia de Espírito Absoluto, queganha esse caráter precisamente porqueincorpora todas as representações religiosas,cada uma como um todo visto de certoângulo, fica difícil pensar o que esseconteúdo possa ser. Talvez o místico, isto é, A destruição é sempreum conteúdo sem qualquer modalização.Mas deixemos de lado essas firulas metafísicaspara nos perguntar como ficam as sorte que a política e asde alguns inimigos, depráticas religiosas diante do caráter profundamenteirreconciliável de seus princípios. operações de seuNão vejo como cada religião possa abrir aniquilamento aindamão de sua verdade. Sabe-se que as ciênciascontemporâneas deixaram de se tomar devem criar ascomo procura DA verdade, pois nelas há circunstâncias para queuma determinação recíproca entre discursose tecnologias, o que faz delas uma alternânciade perspectivas e uma procura sem também possam viros restantes um diafim. Mas o discurso religioso se arma emconfronto com o espírito científico. Isso não a ser amigossignifica que a fé seja irracional, mas elalabora com seu próprio Absoluto, que tendea se fazer prática particular – inquestionávele intolerante. O protestante não podeaceitar, como o católico, a transformação daeucaristia em corpo de Jesus; o judeu não pode aceitar atese do Apóstolo Paulo, segundo a qual a circuncisãoespiritual equivaleria à circuncisão física; o muçulmanonão pode aceitar os mistérios da Trindade, pois afirma ereafirma a unicidade de Deus, sendo Maomé o seu profeta eassim por diante. Desse ângulo, os princípios de umareligião não toleram os outros. Os sacerdotes e os teólogospodem dialogar, reunir-se em concílios, comparar seuspontos de vista, admirar o refinamento das teses, mas cadacrente não duvidará de que está de posse de sua verdade, anão ser que já tenha sido mordido pela cobra da indiferença.É interessante observar que, nos relatos dosencontros ecumênicos, quase sempre um congressista sedistrai e não perde a vez de confirmar o caráter verdadeirode sua religião.Cultos ecumênicos juntam, num mesmo espaço,práticas diferentes em vista de um objetivo comum, mascada indivíduo mantém sua identidade na medida em queconserva intacto o cerne do ritual que pratica. Mesmo osincretismo, ao articular, num todo, fragmentos de religiõesdiversas, continua preservando a unidade do culto:um católico, adepto do candomblé, não aceitaria comungarnum terreiro.Cada crente pode orar sozinho, mas somente pratica umculto ecumênico se comungar com práticas cujo sentido,no fundo, ele rejeita. Além do mais, quase sempre a reuniãode indivíduos de crenças diferentes em vista de um objetivocomum – homenagear um morto, por exemplo – se fazgraças ao trabalho de intermediários institucionalizados,como o padre, o rabino, o bispo evangélico, que suspendemsuas diferenças para compor uma cerimônia coletiva. Cadaum está interessado em praticar suascrenças e vigiar as transgressões a seusprincípios, mas se participa de uma cerimôniaecumênica é porque assim acreditaestar fortalecendo sua Igreja e seassocia com outras na medida em quecalcula os ganhos da ação coletiva. Qual éo sentido, porém, desse coletivo? Não é oculto do morto, que poderia ser feito emcada Igreja, mas a intenção de reunir fiéis,independentemente de suas crenças, paraque mostrem que, ao menos em vista domorto, podem estar juntos em vida. Asdiferenças de políticas religiosas setravam assim por intenções e práticas deconsenso, propriamente políticas, queavaliam a aliança com os outros tantoquanto a aliança com Deus.No entanto, essa relativa autonomia édifícil de ser praticada. O adepto de umareligião se liga tanto a Deus como aosfiéis da mesma crença e seguem asmesmas regras como membros de umaIgreja, de uma seita, de uma ordem eassim por diante. Ora, desse ponto devista prático, os próprios princípios religiosos passam,então, a ser iluminados sob o aspecto da prática políticoreligiosa;num mesmo texto, ordens diferentes ressaltamaqueles aspectos que legitimam seu próprio apostolado. Atéque ponto essa coexistência não degenera em conflito? Emparticular, os mesmos princípios cristãos serviram para quecatólicos, donatistas, maniqueístas, pelagianos se engalfinhassematé à morte, mas quando se estudam esses movimentosdo início do cristianismo fica evidente que a questãobásica era como se apropriar dos restos do Império Romano.Creio ser difícil uma disputa sobre princípios religiososdegenerar num conflito prático, a não ser que os agentes sepercebam ameaçados em suas próprias identidades sociais.O céu pode comportar um diálogo infinito sobre diferençasde fé, mas no nível da prática de cada religião, a tendência éRevista 18 17