ENTREVISTAOs limites da psicanálise: dominação absolutapor meio da razão é a grande quimera quesurge, na Europa, a partir do Iluminismo,e que só pode ser contida pela noção deresponsabilidade e humildadenão se deixa dominar, por esse outro que,sem ele, eu não sou eu. Nesse contexto emque a responsabilidade, lenta mas inexoravelmente,afasta a liberdade de sua posiçãomajestática, imperial, a psicanálise e a filosofiatêm de considerar a ética como filosofiaprimeira, como queria Lévinas. Nãoestamos longe do espírito freudiano. <strong>Freud</strong>dizia que o Ego, esse sacrossanto senhor, éum pequeno senhor, um ínfimo senhor,quase um não-senhor, é um anão que temque lidar, negociar com dois gigantes,aquilo que <strong>Freud</strong> chamava o Superego,muito mais do que o Ego, aquele que estáacima do Ego, e o Id. Então vemos que aquestão de negociar não é nem mesmonegociar honrosamente, pomposamente,já que se trata da negociação de um anãocom dois gigantes. Assim, homens <strong>hoje</strong>,ou mentimos, nos iludimos e permanecemosaspirando essa dominaçãosenhorial, absoluta, sobretudo por meiodo terror, ou somos obrigados humildemente,modestamente, quase submissamente,a negociar. Difícil entrada nestemilênio que se anunciava radioso e cheiode promessas de liberdade e de felicidade.Gostaria de insistir sobre a palavraterror. De tanto repeti-la, manuseá-la, acabamospor torná-la familiar, acabamospor aceitá-la e por aceitá-la como algomais de nosso ambiente com o qualdevemos nos acomodar. Talvez, se o intelectual,aquele que tem como profissãoestar alerta, se deixa adormecer, ele traisua tarefa social de barreira, de alarme deparalisia do pensamento de todos. O intelectualtraidor torna-se traidor de todos edo pensamento. O homem aterrorizado jáé vítima e vítima humilhada e ofendidana sua inteligência, presa fácil de tornarseapenas mais um na massa. Talvezdevêssemos, com Karl Kraus, jamais cedere abrir a brecha por onde passam aspalavras que vão constuir Auschwitz.A psicanálise não é odomínio da razão, mas éaceitação do conflito.Conflito que nãonecessariamente temque ser uma rupturaou uma guerra. Mas umconflito, um conflitode interesses, que temde ser negociado semque nenhum dosparceiros possa imporsobre o outro suaspróprias condições18: A psicanálise surgiu como umaferramenta para a cura de doençaspsíquicas ou mentais. Ela também écapaz de proporcionar a felicidade e arealização do ser humano?FL: Gostaria de retomar o comentário dealguns leitores críticos da psicanálise quemencionei anteriormente: se fosse ao psicanalistacomo se estivesse levando meuautomóvel ao mecânico, efetivamente apsicanálise, então, como ferramenta, nãoteria nenhum interesse. Mas creio que ovalor da psicanálise é que começou a seinteressar pelas doenças, como na formulaçãoda pergunta, psíquicas ou mentais, emuito rapidamente deixou-se convencerpela evidência de que as doenças psíquicasou mentais não são apanágio de alguns, os“doentes”, mas são propriedade de todos.Todos nós passamos por lá. Todos nós,sem muito caricaturar, passamos porexperiências das quais pensávamos muitoorgulhosamente, até algumas décadasatrás, estar resguardados. Nenhum de nóspode dizer que está do lado certo dafronteira entre os sadios e os doentes,porque estes limites, que nos pareciamtão evidentes, claros, intransponíveis quepraticamente não teríamos com que nospreocupar, na realidade não são claros.Enfim, a psicanálise teve o mérito deabandonar muito rapidamente estasituação confortável que colocava os“doentes” de um lado e os “médicos” e os“sadios” de outro. Os psicanalistas reconheceramo interesse de buscar na literaturaou então nos casos ditos raros oubizarros, alimento, fonte de aprendizado.Essa barreira julgada clara, determinada,entre saúde mental e doença mental, podeser transposta com certa facilidade.Nesses termos, é muito difícil falarmos defelicidade, realização, quando reconhecemosa proximidade com o sofrimento, odrama e a tragédia. Felicidade, realização,são termos muito vagos para a psicanálise.Observamos, <strong>hoje</strong> ainda, disciplinasque tentam mostrar efetivamenteque podemos nutrir as ilusões de quevamos dominar tudo. Cremos ou estamosdispostos a acreditar que somos científicos,que vamos resolver as coisas pelaciência, pelos comprimidos, pela mudançados comportamentos. E vamos ser felizes.É interessante constatar como o pensamentocientífico, dito científico, está tãoperto do pensamento mágico, do pensamentoreligioso, nessa ilusão de acreditarna salvação, redenção, felicidade, o equilíbrioe todas essas coisas que, se olharmoscom olhos um pouco menos hipnotizados,não existem.18: E em que medida pode a psicanálisealiviar os sofrimentos que são intrínsecosà condição humana?FL: A psicanálise, dizia na resposta à10 Revista 18
ENTREVISTAprimeira pergunta, é um espaço leigo. Elanão promete a redenção ou então arecompensa, antes ou depois da morte,como no campo religioso, onde muitasvezes se afirma que se a felicidade não estáaqui, ela está um pouco mais adiante. Se arecompensa não está aqui, não temproblema, ela está um pouco maisadiante, para além da vida, da morte. Paraa psicanálise, do ponto de vista da negociação,a questão da felicidade e da realizaçãosurge como um problema insolúvelou apenas temporariamente solucionável.Saímos de uma ilusão de libertaçãopara um peso da responsabilidade, saímosde uma ilusão de tudo podermos parauma necessidade de negociar pacientemente.De tal maneira que a psicanálise,primeiro, não é uma ferramenta, segundo,pode até ser uma terapia, e pode até ajudarum pouco, mas absolutamente nãopromete a felicidade, muito menos ailuminação, menos ainda a realizaçãohumana. Mas ela promete algo muitodifícil de aceitarmos como promessa: umcaminhar lento, aflito, de negociação comos outros de mim, de dentro e de fora demim e que muda completamente oregistro da questão da realização ou dafelicidade para o registro da negociaçãodo conflito e para o registro da humildade,da modéstia. Sofremos, de nossaspróprias pulsões, a pressão de termos decrescer e crescer é um trabalho denomeação, de encontrarmos as palavras ea maneira de dizer, portanto também deaprendizado (no sentido forte do termo,aprender com a experiência). Antedoutrinas que prometem as maravilhasdo além, como se a morte fosse algo nemtão grave assim, e ante os livros e osdiscursos que nos prometem que, fazendoisso e aquilo vai dar tudo certo, o psicanalistasó pode oferecer um olho sorridentee outro lacrimoso.18: Libertar o ser humano de seus condicionamentose neuroses pressupõe aexistência de um Eu verdadeiro que seencontra aprisionado. A noção de que oindivíduo nasce como uma tábula rasae que ele é o fruto de suas expériênciase traumas da infância, é compatívelcom a idéia de um Eu verdadeiro quebusca realizar-se num mundo real ?Nesse contexto em que aresponsabilidade, lentamas inexoravelmente,afasta a liberdade de suaposição majestática,imperial, a psicanálise ea filosofia têm deconsiderar a ética comofilosofia primeira, comoqueria LévinasO psicanalista e seu cão da raça chow-chow: conscientizar o indivíduoda multiplicidade de aspectos da personalidade é maneira deenfrentar o reducionismo racionalista e utilitarista que ameaça, cadavez mais, transformar seres humanos e cidadãos em autômatosFL: No campo da psicanálise, estamosmuito longe de pensar que uma criança éalgo que nasce em branco. A criança, opequeno homem, o homem que nasce, jánasce imerso numa tal complexidade, jánasce sendo de uma tal maneiracomplexo, que a última coisa que a gentepoderia pensar, para sermos rigorosamentepsicanalistas, é que o homemnasce como uma tábula rasa. Poderíamoslembrar uma passagem de Kafka que podenos servir. Kafka, quando estava elaborandoA muralha da China, escreveu noseu diário um pequeno conto: construir asi mesmo é como construir uma casa.Construir a si mesmo é como construiruma casa, em que começamos adesmontar a casa velha, construindo acasa nova. Terminamos por constatar quenão só não temos mais a casa velha comoainda não temos a casa nova. Enquanto acasa velha já não tem mais teto, a nova sótem uns pilares. Mudamos de uma casaque não serve mais para uma casa queainda não nos serve, de uma casa que jánão nos abriga para uma casa que aindanão pode nos abrigar. O Eu verdadeiro, seé que existe algo como Eu e comoverdadeiro, é um Eu nu, vulnerável, embusca de certo conforto ou proteção, umEu fraco, frágil, laborioso, mas tambémpreguiçoso. Então, se existe um verdadeiroEu, é quase como se fosse um Eu empermanente exílio, um Eu que, se quiserpossuir alguma coisa, possui muitopouco, e tem uma posse que não lhe serveRevista 18 11