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Os convivas da morte no banquete das almas - Grupo de Estudos ...

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<strong>Os</strong> <strong>convivas</strong> <strong>da</strong> <strong>morte</strong> <strong>no</strong> <strong>banquete</strong> <strong>da</strong>s <strong>almas</strong><strong>Os</strong> <strong>convivas</strong> <strong>da</strong> <strong>morte</strong> <strong>no</strong> <strong>banquete</strong> <strong>da</strong>s <strong>almas</strong>:presença <strong>de</strong> eguns em um conto <strong>de</strong> João AntônioGilberto Figueiredo Martins 1A <strong>morte</strong> não é um acontecimento puramente <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m física; ao <strong>de</strong>struir um serhuma<strong>no</strong> ela elimina um ser social. O mundo a que pertence este indivíduo é automaticamenteatingido, e <strong>de</strong>ve então ser regenerado. Por isso os rituais funerários seassemelham aos rituais <strong>de</strong> criação. (...) a <strong>morte</strong> é uma criação inverti<strong>da</strong>.Renato OrtizO Brasil, pela junção <strong>de</strong> uma raça <strong>de</strong> sonhadores como os portugueses com a fantasiados negros e o pavor india<strong>no</strong> do invisível, está fatalmente à beira dos abismos<strong>de</strong> on<strong>de</strong> se entrevê o além.João do RioMas que não se lamentem os mortos: eles sabem o que fazem.Clarice LispectorNo conto “Eguns”, do livro Abraçado ao meu rancor (publicado em1986), o escritor paulista<strong>no</strong> João Antônio (1937-1996) traz um narradorpersonagemque, cansado <strong>de</strong> “malbaratar <strong>no</strong>s cafofos” e <strong>de</strong> “mariolar <strong>no</strong>guti-guti do brega”, <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> ir à Bahia, para a praia <strong>de</strong> Ponta <strong>de</strong> Areia, naIlha <strong>de</strong> Itaparica, a fim <strong>de</strong> temporariamente se livrar do ambiente urba<strong>no</strong>on<strong>de</strong> vive, um cenário <strong>de</strong>sencantado e tomado pela “poluição petroquímica”.Sabedor <strong>de</strong> quanto e como a mo<strong>de</strong>rnização e o capital se alastram etransformam o que <strong>de</strong>veria permanecer intocado, ele alerta, sobre a locali<strong>da</strong><strong>de</strong>baiana: “É <strong>de</strong> se ver, antes que acabe espeta<strong>da</strong> <strong>de</strong> espigões” (p. 148).O <strong>de</strong>slocamento espacial (“eu tenho chão pela frente, muito”, p. 156)ganha foros <strong>de</strong> viagem iniciática, já que, por “sorte”, por estar “recomen<strong>da</strong>dopor quatro obás 2 ” e graças ao empenho <strong>de</strong> um casal – a filha-<strong>de</strong>-santoDety e seu marido Flávio, do<strong>no</strong>s <strong>de</strong> um restaurante caseiro na praia <strong>de</strong>Ponta <strong>de</strong> Areia –, ele terá a chance <strong>de</strong> lá conhecer um terreiro <strong>de</strong> candomblée <strong>de</strong> participar, pela primeira vez, <strong>de</strong> um ritual fechado e pouco comum:“uma festa <strong>de</strong> eguns. Rara 3 ” (p. 148). Tudo se dá, significativamente,1Doutor em literatura brasileira e professor <strong>de</strong> teoria <strong>da</strong> literatura na Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Estadual Paulista(UNESP), Assis, São Paulo, Brasil. E-mail: bettomartins@uol.com.br.2No candomblé, os ministros do orixá Xangô.3Em outro trecho do conto, o narrador amplia a informação, ratificando o próprio privilégio, queos leitores passarão a partilhar. Afinal, é <strong>de</strong> prestígio, tradição e permanência que se trata: “Não semestudos <strong>de</strong> literatura brasileira contemporânea, n.40, jul./<strong>de</strong>z. 2012, p. 43-61 43


Gilberto Figueiredo Martinsem um feriado <strong>de</strong> Páscoa, não apenas a indiciar o hibridismo que marca asrelações <strong>da</strong>s religiosi<strong>da</strong><strong>de</strong>s afro-brasileiras com o catolicismo 4 , mas tambéma antecipar, com potência simbólica, que ali se re<strong>no</strong>vará, em diferentesníveis, uma experiência outra <strong>de</strong> renascimento e continui<strong>da</strong><strong>de</strong>: “Nosábado <strong>de</strong> Aleluia, enquanto <strong>no</strong> resto <strong>da</strong> boa terra os candomblés estarãobatendo e o Ju<strong>da</strong>s sendo malhado” (p. 148).Sim, porque, para o pensamento religioso africa<strong>no</strong>, os eguns 5 são enti<strong>da</strong><strong>de</strong>sancestrais que regressam 6 , espíritos <strong>de</strong> mortos (geralmente <strong>de</strong> personali<strong>da</strong><strong>de</strong>s<strong>de</strong>staca<strong>da</strong>s enquanto vivas, por terem exercido alta funçãosocial e/ou religiosa), <strong>almas</strong> <strong>de</strong> remotos antepassados masculi<strong>no</strong>s queconservam sua individuali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>no</strong> além, <strong>no</strong> mundo sobrenatural (òrun),e retornam à terra, ao mundo dos vivos (àiyé) 7 , quando invocados, porexemplo, em cerimônias <strong>de</strong> culto e homenagem como a que o narradorpresenciará 8 . Nestas, os ancestraissão preparados para proporcionar aju<strong>da</strong> a quem a eles recorre, e oobjetivo primordial <strong>de</strong> seu culto é o <strong>de</strong> orientá-los para que se tornemvisíveis, para que o homem tenha uma melhor compreensão <strong>de</strong>um mundo que lhe é <strong>de</strong>sconhecido! É através <strong>da</strong> preservação <strong>de</strong>stemotivo os nigeria<strong>no</strong>s atravessam o ocea<strong>no</strong> para ouvir e ver a festa fecha<strong>da</strong> dos eguns, última restanteao Brasil, ao mundo. E que se abre, mesmo muito fecha<strong>da</strong>, quatro vezes por a<strong>no</strong>. E só. Alguns raros,sapecados <strong>da</strong> sorte e escolhidos a vêem. O povo <strong>da</strong> nação ketu a preserva com firmeza. E <strong>de</strong>s<strong>de</strong> otempo em que a Bahia era a primeira capital” (p. 151). Nas <strong>no</strong>tas e <strong>no</strong> corpo do texto, opto por acompanharas citações <strong>de</strong> trechos do conto apenas <strong>de</strong> parênteses contendo o número <strong>da</strong> página <strong>da</strong> ediçãoaqui utiliza<strong>da</strong> (Antônio, 2001).4Basti<strong>de</strong> (2001, p. 136) informa que o 2 <strong>de</strong> <strong>no</strong>vembro, tido pelos católicos como o dia dos mortos, eraoutra <strong>da</strong>ta na qual se realizava, na Bahia, uma gran<strong>de</strong> festa <strong>de</strong> eguns. Braga também confirma que, emPonta <strong>de</strong> Areia, “muitos dos atos litúrgicos <strong>da</strong> Igreja Católica terminam por se integrar num mesmocontinuum dos rituais afro-brasileiros” (1995, p. 51).5Ver Santos (2008, p. 102-129) e D’ogun (2004, p. 27-31).6“Todo renascimento está relacionado com os ancestrais. A restituição <strong>de</strong> matéria simbólica e o renascimento(...) é que mantêm a relação e a harmonia entre os dois pla<strong>no</strong>s <strong>da</strong> existência. <strong>Os</strong> ancestraissão a garantia <strong>da</strong> continui<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>da</strong> evolução, <strong>da</strong> prosperi<strong>da</strong><strong>de</strong>” (Santos, 2008, p. 108).7“O egum se perpetua através <strong>da</strong>s múltiplas reencarnações. Quando se trata <strong>de</strong> morto ilustre, os vivospo<strong>de</strong>m cultuar sua memória, seu egum, que é assentado e recebe culto, como os orixás. Esse egum assentadonão precisa mais renascer, sua memória foi eterniza<strong>da</strong>. Sacrifícios votivos são oferecidos aoseguns que integram a linhagem dos ancestrais <strong>da</strong> família ou <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> mais ampla. Representamas raízes <strong>da</strong>quele grupo e são a base <strong>da</strong> i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> coletiva” (Prandi, 2005, p. 56-57).8Mary Del Priore, com base na et<strong>no</strong>tanatologia <strong>de</strong> Louis Vincent Thomas, <strong>de</strong>tém-se <strong>no</strong> estudo <strong>da</strong>spráticas fúnebres do africa<strong>no</strong>, o qual “minimiza a existência <strong>da</strong> <strong>morte</strong>: faz <strong>de</strong>la um imaginário queinterrompe provisoriamente a existência <strong>da</strong> singulari<strong>da</strong><strong>de</strong> do ser; ele a transforma em aci<strong>de</strong>nte quesó atinge provisoriamente a existência individual, poupando a espécie social. Daí a crença na onipresençados ancestrais, na manutenção do ‘phylum’ clânico graças à reencarnação etc.. O procedimentolhe permite não apenas aceitar e assumir a <strong>morte</strong>, mas também a or<strong>de</strong>ná-la melhor, integrando-a <strong>no</strong>seu sistema cultural. (...) Não ig<strong>no</strong>ram a <strong>morte</strong>; ao contrário, afirmam-na <strong>de</strong>smesura<strong>da</strong>mente” (2006,p. 34-35).44 estudos <strong>de</strong> literatura brasileira contemporânea, n.40, jul./<strong>de</strong>z. 2012, p. 43-61


<strong>Os</strong> <strong>convivas</strong> <strong>da</strong> <strong>morte</strong> <strong>no</strong> <strong>banquete</strong> <strong>da</strong>s <strong>almas</strong>segmento <strong>da</strong> religião que conseguimos enten<strong>de</strong>r a continui<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>vi<strong>da</strong>. (...) São eles que impõem ensinamentos morais, regras <strong>de</strong> convivência,<strong>de</strong> comportamento e <strong>de</strong> hierarquização, na religião ou <strong>no</strong>dia-a-dia do ser huma<strong>no</strong> (Kileuy e Oxaguiã, 2009, p. 348-349).A menção a Itaparica como cenário do conto não é mera marca <strong>de</strong> referenciali<strong>da</strong><strong>de</strong>,mas confere à narrativa consi<strong>de</strong>rável dimensão documental,pois foi nessa ilha baiana (e, sobretudo, na região <strong>da</strong> praia <strong>de</strong> Ponta <strong>de</strong>Areia) que mais fortemente se preservou a cerimônia afro-brasileira <strong>de</strong>culto aos ancestrais 9 , ao me<strong>no</strong>s <strong>de</strong>s<strong>de</strong> as primeiras déca<strong>da</strong>s do século XX 10 :Ponta <strong>de</strong> Areia é uma comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> pescadores, localiza<strong>da</strong> emItaparica. Esta gran<strong>de</strong> ilha que me<strong>de</strong> 46 km <strong>de</strong> extensão e 13 km <strong>de</strong> largura,situa-se na Baía <strong>de</strong> Todos os Santos. Apesar <strong>da</strong> pequena distânciaque a separa <strong>de</strong> Salvador, capital do Estado <strong>da</strong> Bahia, a comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>Ponta <strong>de</strong> Areia apresenta certas peculiari<strong>da</strong><strong>de</strong>s que lhe conferem específicai<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>, especialmente por servir como estrutura <strong>de</strong> apoio a<strong>de</strong>terminado grupo religioso. Instituí<strong>da</strong> através <strong>de</strong> <strong>no</strong>rmas e valores queimprimem substrato <strong>de</strong> religiosi<strong>da</strong><strong>de</strong> em quase todos os setores <strong>de</strong> suavi<strong>da</strong> cotidiana, Ponta <strong>de</strong> Areia está sendo atualmente submeti<strong>da</strong> a intensoprocesso <strong>de</strong> mu<strong>da</strong>nças sociais, que tem provocado modificações <strong>no</strong> modusvivendi <strong>de</strong> sua população permanente. Aliás, tais mu<strong>da</strong>nças vêm sendoobserva<strong>da</strong>s em todo o recôncavo baia<strong>no</strong>, sobretudo na Ilha <strong>de</strong> Itaparica(Braga, 1995, p. 23). 11 Guiado pela curiosi<strong>da</strong><strong>de</strong> e por uma perspectiva que9Júlio Braga publicou os resultados <strong>de</strong> sua importante pesquisa acerca <strong>da</strong> organização sociocultural<strong>de</strong>sse peque<strong>no</strong> povoado – “on<strong>de</strong> o culto aos ancestrais é a experiência mais sagra<strong>da</strong> e vivi<strong>da</strong> por suapopulação” –, buscando resgatar os traços essenciais <strong>de</strong> crenças e cultos a fim <strong>de</strong> configurar umaespécie <strong>de</strong> “fe<strong>no</strong>me<strong>no</strong>logia <strong>da</strong> <strong>morte</strong>, tal como é vista e vivi<strong>da</strong> pela população <strong>de</strong> Ponta <strong>de</strong> Areia, quea re<strong>de</strong>finiu a partir <strong>da</strong> experiência nagô-iorubá, mas que incorporou outras expressões <strong>de</strong> ancestrali<strong>da</strong><strong>de</strong>.Ali se cultuam ancestrais africa<strong>no</strong>s e brasileiros e a <strong>morte</strong>, antes nagô, é hoje, indubitavelmente,uma <strong>morte</strong> afro-brasileira, cultua<strong>da</strong> <strong>no</strong>s padrões remanescentes dos cultos ancestrais <strong>da</strong> Nigéria e doBenim” (1995, p. 21).10Na seção ico<strong>no</strong>gráfica do livro <strong>de</strong> Juana Elbein dos Santos (2008, p. 250 e ss.), encontram-seduas raras fotografias (em preto e branco) <strong>de</strong> eguns, feitas durante uma cerimônia em terreiro <strong>da</strong> Ilha<strong>de</strong> Itaparica; e outra imagem, semelhante (mas ao ar livre), do mesmo rito em Abomey-Calavi, <strong>no</strong>Daomé. Ver, ain<strong>da</strong>, as fotos publica<strong>da</strong>s <strong>no</strong> estudo <strong>de</strong> Braga (1995, p. 83-93), on<strong>de</strong> aparece retratado– por Pierre Verger, em 1942 – o alabá babá mariô Antônio Daniel <strong>de</strong> Paula, “chefe” mencionado<strong>no</strong>minalmente <strong>no</strong> conto: “Antônio Daniel <strong>de</strong> Paula se levanta, eu me chego, na humil<strong>da</strong><strong>de</strong>. E ele, alto,tem <strong>de</strong> se curvar para o abraço” (p. 152). Por fim, <strong>no</strong> livro <strong>de</strong> Santos, aparece a informação <strong>de</strong> que “háevidências <strong>da</strong> origem <strong>de</strong> vários ‘terreiros’ Égún, fun<strong>da</strong>dos pelos africa<strong>no</strong>s, <strong>no</strong> <strong>de</strong>correr do primeiroterço do século XIX” (2008, p. 119): na Ilha <strong>de</strong> Itaparica, o Terreiro <strong>de</strong> Vera Cruz, fun<strong>da</strong>do em tor<strong>no</strong><strong>de</strong> 1820; o <strong>de</strong> Mocambo, em 1830; o <strong>de</strong> Tuntun, <strong>de</strong> 1850.11Em outro capítulo do mesmo livro, o autor <strong>de</strong>tém-se na análise dos aspectos econômicos do grupoque realiza os cultos <strong>de</strong> eguns na Ilha. Se, antes, era possível reaproximar “a comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> do mo<strong>de</strong>lotípico <strong>de</strong> muitas socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s africanas pré-coloniais”, agora isso “ten<strong>de</strong> a <strong>de</strong>sfazer-se na medi<strong>da</strong> emestudos <strong>de</strong> literatura brasileira contemporânea, n.40, jul./<strong>de</strong>z. 2012, p. 43-61 45


Gilberto Figueiredo Martinsse po<strong>de</strong> <strong>no</strong>mear (não sem excesso) <strong>de</strong> et<strong>no</strong>lógica, o narrador acumula emseu relato expressões associa<strong>da</strong>s ao campo semântico <strong>da</strong> visibili<strong>da</strong><strong>de</strong>, indiciandoque sua experiência na ilha será fun<strong>da</strong>mentalmente dirigi<strong>da</strong> porcerta pulsão escópica ou, melhor dizendo, por um marcado <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> ver.Assim, <strong>de</strong> início, seu olhar passeia respeitosamente pelo corpo <strong>de</strong> Dety(“A pele azeitona<strong>da</strong>, quase <strong>de</strong> índia”, p. 148), mulher que lhe facilitaráo acesso ao rito secreto. Além disso, <strong>no</strong> caminho para o local <strong>de</strong> culto,embora seja <strong>no</strong>ite, é marcante a presença <strong>da</strong> lua, a qual, na praia “to<strong>da</strong>branca”, “alumia feito dia”: “o luar me <strong>de</strong>ixa ver” (p. 149) e “Vista <strong>da</strong>qui,a lua cheia passeia” (p. 151) 12 . Ain<strong>da</strong> assim, ele e seus guias carregam“farolete”, a abrir o caminho difícil, do qual são etapas “uma pica<strong>da</strong> <strong>de</strong>piçarra” e uma “subi<strong>da</strong> longa” pelo morro. A travessia vale a pena: “meusolhos viajam”. Porém, quem tudo olha também é olhado e, mesmo “recomen<strong>da</strong>do”,o visitante do Sul <strong>de</strong>sperta <strong>de</strong>sconfiança: “o ojé 13 me examinasem pressa, indireto, meio distante, olhando as roupas com uma calma<strong>de</strong>sconheci<strong>da</strong>” (p. 149); “Ig<strong>no</strong>ram a minha presença e, <strong>de</strong>pois, me olham”(p. 149); “(o chefe do terreiro) Vai <strong>de</strong> olhos <strong>no</strong> visitante, <strong>de</strong>morado, quieto”(p. 152).Aceito, o homem já passa a gozar <strong>de</strong> algum reconhecimento <strong>no</strong> grupo,recebendo o epíteto comum, <strong>de</strong>stinado aos que adquirem o <strong>no</strong>vo vínculorelacional <strong>de</strong> parentesco religioso: “compadre” 14 . Estranha, mas gosta:que avança e se plasma, <strong>de</strong>finitivamente, uma mentali<strong>da</strong><strong>de</strong> capitalista nas relações <strong>de</strong> produção, comreflexos imediatos nas relações sociais, em uma comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> on<strong>de</strong>, até há pouco tempo, imperavam oespírito associativo e o coletivismo na obtenção dos bens essenciais à subsistência. Essas mu<strong>da</strong>nças se<strong>de</strong>vem, em gran<strong>de</strong> parte, à consoli<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> Ilha <strong>de</strong> Itaparica como um dos mais importantes sítios <strong>de</strong>recreação e lazer para a classe média <strong>da</strong> região metropolitana <strong>de</strong> Salvador” (Santos, p. 49-50). Tais informações,infelizmente, reforçam o acerto e a pertinência <strong>da</strong> i<strong>de</strong>ia exposta <strong>no</strong> início do conto, quandoo narrador alerta para o risco <strong>de</strong> a locali<strong>da</strong><strong>de</strong> acabar “espeta<strong>da</strong> por espigões” (Antônio, 2001, p. 148).12O satélite também se faz presente <strong>no</strong> relato do mesmo culto em Varan<strong>da</strong>: “A lua cheia já está bemalta quando do asfalto se ouve a voz agu<strong>da</strong> <strong>da</strong>s mulheres <strong>no</strong>s seus cantos e o tom grave dos atabaques,<strong>da</strong>ndo seus primeiros toques <strong>de</strong> reverência aos Eguns” (1985, p. 62).13O sacerdote: “<strong>Os</strong> Ojé são, pois, os intermediários entre os vivos e os mortos. Têm a responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong><strong>de</strong> tornar os espíritos ancestrais visíveis e fazê-los aparecer em público” (Santos, 2008, p. 127).14Mais adiante, será chamado <strong>de</strong> “ma<strong>no</strong>” (p. 150). É reinci<strong>de</strong>nte, <strong>no</strong>s estudos sobre as religiosi<strong>da</strong><strong>de</strong>safro-brasileiras, a referência a tal vinculação simbólica <strong>de</strong> fundo parental estabeleci<strong>da</strong> entre seus praticantes.Em ensaio anterior, <strong>no</strong> qual analisei a peça teatral Balbina <strong>de</strong> Iansã, <strong>de</strong> Plínio Marcos – umaa<strong>da</strong>ptação <strong>de</strong> Romeu e Julieta, só que ambienta<strong>da</strong> em terreiros <strong>de</strong> candomblé paulistas –, chameiatenção, respal<strong>da</strong>do em Prandi (2005, p. 232), para o fato <strong>de</strong> que “termos como mãe, fi lho, casa, correntesnesse ambiente sociocultural dos terreiros, indiciam a dimensão relacional dos vínculos entreos membros do grupo, como simulacro <strong>da</strong> configuração familiar, pautado em ‘relações protocolares<strong>de</strong> parentesco iniciático’” (Martins, 2010, p. 65, <strong>no</strong>ta 8). Referindo-se especificamente aos habitantes<strong>de</strong> Ponta <strong>de</strong> Areia, Braga (1995, p. 44) confirma: “Na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, a comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> transcen<strong>de</strong> os limites<strong>de</strong> parentesco por consanguini<strong>da</strong><strong>de</strong> e envolve a todos, conjuntamente, num parentesco religioso maisamplo – mágico e simbólico – que os leva a participar <strong>de</strong> uma experiência comum <strong>no</strong> que se refere àsrelações <strong>de</strong> ancestrali<strong>da</strong><strong>de</strong>”.46 estudos <strong>de</strong> literatura brasileira contemporânea, n.40, jul./<strong>de</strong>z. 2012, p. 43-61


<strong>Os</strong> <strong>convivas</strong> <strong>da</strong> <strong>morte</strong> <strong>no</strong> <strong>banquete</strong> <strong>da</strong>s <strong>almas</strong>“De on<strong>de</strong> tirou o compadre não sei. Mas já me alegra. Regulou” (p. 149).Junto com a <strong>de</strong>ferência do título, um tratamento gra<strong>da</strong>tivamente mais personalizado:“Querem saber, meigos mas firmes” (id.); “a partir <strong>da</strong>í, soutratado sem distância” (p. 150); “Só não me revistarão porque vim pelamão <strong>de</strong> um ojé” (p. 151). No entanto, o privilégio gera necessária contraparti<strong>da</strong>,a fim <strong>de</strong> se garantir a <strong>de</strong>finitiva i<strong>de</strong>ntificação: “– De que nação é orapaz?”. A pergunta <strong>de</strong>ixa o visitante em estado <strong>de</strong> <strong>de</strong>rrelição e fragili<strong>da</strong><strong>de</strong>,constrangido e confuso, já que <strong>de</strong>sconhecedor <strong>de</strong> suas próprias raízes<strong>de</strong> ancestrali<strong>da</strong><strong>de</strong>, por outro lado tão caras àqueles que passa a conhecer:“E eu sei <strong>de</strong> que nação sou? Eta! Estou espetado, feito meni<strong>no</strong>. Como saberei?”(p. 150) 15 . Mas logo será auxiliado pelo outro ojé, que o conduz(“parece me topar”), e que trata <strong>de</strong>, generosa e marotamente, filiá-lo <strong>de</strong>imediato a alguma tradição e região geográfica – a “do povo <strong>da</strong> umban<strong>da</strong>16 , lá <strong>no</strong> Sul” (p. 150).Antes mesmo <strong>de</strong> chegar ao local on<strong>de</strong> se <strong>da</strong>rá a festa, começa a presenciarmais indícios ritualísticos: o ojé que lhe serve <strong>de</strong> guia traz na mão“uma vara branca e compri<strong>da</strong>, <strong>de</strong> pau acabado <strong>de</strong> <strong>de</strong>scascar, com certeza”e veste “um barrete magnífico. Todo vermelho, brilhante, com <strong>de</strong>senhosbrancos e ver<strong>de</strong>s” (p. 149). Inicia-se a preparação para o ingresso <strong>no</strong> sagrado,um tempo-espaço <strong>no</strong>vo, com um ritmo outro... Logo encontram pelocaminho mais dois “homens e<strong>no</strong>rmes”, que passam a integrar a comitiva,também eles portando “varas brancas, altas como eles 17 , leva<strong>da</strong>s como cajados”.O narrador logo saberá o porquê <strong>de</strong> tal insígnia comum ao grupo:15Significativamente, a partir <strong>da</strong>í, fica mais comum para o narrador referir-se aos celebrantes utilizandoo viés i<strong>de</strong>ntitário, como “os <strong>da</strong> nação ketu” (p. 150).16Na umban<strong>da</strong>, religião mais marca<strong>da</strong>mente brasileira e que agrega, entre outros, valores e preceitosdo espiritismo kar<strong>de</strong>cista, há diferenças nas relações com os eguns, <strong>de</strong>scritas com mais porme<strong>no</strong>res<strong>no</strong> livro <strong>de</strong> José Ribeiro: “A Linha <strong>da</strong>s Almas, ou Linha dos Eguns, como é conheci<strong>da</strong>, tem gran<strong>de</strong>força espiritual, pois nela baixam todos os Eguns, <strong>de</strong> todo o ritual, trabalhando também em legião <strong>de</strong>espíritos <strong>da</strong> Natureza, que são Orixás, mas, quando baixados, na mesa <strong>da</strong>s Almas, são <strong>de</strong> muita utili<strong>da</strong><strong>de</strong>,sendo que esses espíritos só baixam <strong>de</strong>pois <strong>da</strong>s vinte e três horas, havendo, entretanto, exceção,quando baixam a qualquer hora para ‘sacaãnga’/<strong>de</strong>senterrar (malefícios)” (s/d, p. 39). Apontando parao fenôme<strong>no</strong> brasileiro <strong>de</strong> umbandização do candomblé, Prandi afirma que, graças a esse processo,“os eguns, que são na concepção iorubá ancestrais particulares <strong>de</strong> uma específica comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>, vãoper<strong>de</strong>ndo suas características africanas para se transformar em enti<strong>da</strong><strong>de</strong>s genéricas não liga<strong>da</strong>s a nenhumacomuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> culto em particular, que ‘baixam’ <strong>no</strong>s terreiros para ‘trabalhar’ e assumem ajustificativa <strong>da</strong> cari<strong>da</strong><strong>de</strong>, i<strong>de</strong>al e prática cristã-kar<strong>de</strong>cistas. Aos poucos, tais i<strong>de</strong>ias vão suplantando osmo<strong>de</strong>los africa<strong>no</strong>s <strong>de</strong> ancestrali<strong>da</strong><strong>de</strong> com seus i<strong>de</strong>ais <strong>de</strong> culto à origem e valorização <strong>da</strong>s linhagens”(2005, p. 65).17Chegando ao barracão on<strong>de</strong> se <strong>da</strong>rá a festa, o narrador encontra outros três ojés, “gente <strong>de</strong> aí, alta,uns dois metros”, fazendo com que ele próprio se sinta conduzido como “uma criança”. Curiosamente,Braga refere-se à história <strong>de</strong> “certo senhor conhecido pela alcunha <strong>de</strong> João-Dois-Metros, numa claraalusão ao tamanho <strong>de</strong>ste prestigioso lí<strong>de</strong>r religioso do terreiro <strong>da</strong> Encarnação, localizado <strong>no</strong> povoado<strong>de</strong> igual <strong>no</strong>me, na Ilha <strong>de</strong> Itaparica” (1995, p. 27).estudos <strong>de</strong> literatura brasileira contemporânea, n.40, jul./<strong>de</strong>z. 2012, p. 43-61 47


Gilberto Figueiredo MartinsO ojé marcha e me diz por que a vara branca – icham – na mão. Hojeé <strong>no</strong>ite <strong>de</strong> eguns; estão soltos e vão <strong>da</strong>nçar. Ficam pelas matas aporrinhandoe pegando o pé dos filhos <strong>de</strong> fé que ain<strong>da</strong> estão vivos. Masegun respeita uma vara branca. Frente a ela, não avança. (p. 150).(...)Ninguém nem chegue perto <strong>de</strong> um egun. Nem um ojé. Eles matamcom suas armas afia<strong>da</strong>s, a<strong>da</strong>gas, punhais, punhaletes, espa<strong>da</strong>sque brilham 18 . Dos vivos, não gostam. Vai <strong>da</strong>í, os ojés os dominamusando as varas brancas. Não os dominam, redigo, os amenizamsó, assustando. Que um egun ninguém domina (p. 153).Na tradição do culto, os ixãs são bastões sagrados usados para controlaros eguns, evitando que os ancestrais se aproximem dos vivos, já quetal contato físico ofereceria um risco mortal 19 . No conto, os espíritos ancestraissão personificados, recebendo características humanas, que reforçamo vínculo entre os dois mundos – ou dois níveis <strong>de</strong> existência – paralelos:São misteriosos, cheios <strong>de</strong> caprichos, teimosia e raiva contra os vivos.Exigem muita atenção, cantoria, candongas. Gostam, então.Mas só dos mimos, não <strong>de</strong> quem os dá. Eles são os espíritos dosmortos. E, para os do candomblé, mortos não cruzam bem com vivos.Ain<strong>da</strong> que os agra<strong>de</strong>m com cerimônias candonga<strong>da</strong>s, homenagens,abalés 20 (sic) e muitos cantos bonitos (p. 150).Mesmo do lado <strong>de</strong> fora do barracão on<strong>de</strong> se dá a cerimônia invocatória,“um grupo maior <strong>de</strong> ojés circula (...), encarregado do trabalho <strong>de</strong> proteção<strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> religiosa contra a presença in<strong>de</strong>seja<strong>da</strong> <strong>de</strong> eguns ain<strong>da</strong> nãosocializados pelos rituais <strong>de</strong> consagração (‘tomar roupa’) que circulamlivremente durante a <strong>no</strong>ite, provocando pânico em to<strong>da</strong> a comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>18Ao tratar do assunto, Ziegler é categórico: “Quem quer que tenha sido tocado pelas franjas, osbabados, ou as luvas dos Egun é fulminado. A evidência traduzi<strong>da</strong> pelo mito repousa na observaçãoempírica. De fato, as pessoas que por <strong>de</strong>scuido se <strong>de</strong>ixam tocar pela roupa <strong>de</strong> um Egun sofrem gravesproblemas psiconervosos e psicossomáticos” (1977, p. 69).19“Com efeito, os Baba (eguns) trazem para seus <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes e fiéis o benefício <strong>de</strong> sua benção e<strong>de</strong> seus conselhos, mas eles não po<strong>de</strong>m ser tocados e ficam sempre isolados dos vivos. Sua presençaé rigorosamente controla<strong>da</strong> pelos Òjè e ninguém po<strong>de</strong> aproximar-se dos Egúngún” (Santos, 2008,p. 120). D’ogun completa: “Há o perigo do contato pessoal do assistente com o Egun. Segundo falares<strong>da</strong>s comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s, o contactante po<strong>de</strong>rá tornar-se um ‘assombrado’, vítima <strong>de</strong> perigo permanente.Caso isso aconteça, períodos <strong>de</strong> purificação <strong>de</strong>verão ser ministrados com a finali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> afastar osaparecimentos <strong>de</strong> doença, ou até <strong>da</strong> <strong>morte</strong>. Sendo o Egun a própria materialização <strong>da</strong> <strong>morte</strong> sob astiras <strong>de</strong> pa<strong>no</strong>, o mais simples contato ou esbarrão é altamente prejudicial. Até mesmo os Ojé-Atokun,qualificados sacerdotes, guias, invocadores e zeladores <strong>de</strong> Eguns, <strong>de</strong>sempenham to<strong>da</strong>s essas missõessem substituírem as mãos pelo ixã (sic)” (2004, p. 30).20Provavelmente alabês, em referência aos toques <strong>de</strong> atabaque.48 estudos <strong>de</strong> literatura brasileira contemporânea, n.40, jul./<strong>de</strong>z. 2012, p. 43-61


<strong>Os</strong> <strong>convivas</strong> <strong>da</strong> <strong>morte</strong> <strong>no</strong> <strong>banquete</strong> <strong>da</strong>s <strong>almas</strong>religiosa” (Braga, 1995, p. 46) 21 . São os membros <strong>de</strong>sse exército que o personagem-narradorencontra pelas curvas <strong>da</strong> “estradinha”. E sobre seuscostumes a atenção <strong>de</strong>scritiva ain<strong>da</strong> se <strong>de</strong>tém, seja sobre o modo como secumprimentam (“é um abraço em que as cabeças se cruzam e os ombrostambém. Há um toque <strong>de</strong> leve na altura <strong>da</strong>s clavículas”, p. 149) ou reparandona língua estrangeira com que se comunicam (“<strong>Os</strong> ojés falam emioruba”, p. 149).<strong>Os</strong> sentidos são <strong>de</strong>spertados ao se aproximarem do “arraial”, uma“roça gran<strong>de</strong>, to<strong>da</strong> cerca<strong>da</strong>”, “quilombo vasto”: o “barracão ou galpãocaiado <strong>de</strong> branco”, local <strong>de</strong> culto, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> vem “a bati<strong>da</strong> <strong>de</strong>senfrea<strong>da</strong>,rítmica” dos atabaques, “chamando, pren<strong>de</strong>ndo, alegrando” (p. 151). Era<strong>de</strong> “tremer o mato”. Junto aos sons ritmados dos instrumentos, o “canto<strong>de</strong> muitas vozes <strong>de</strong> mulheres” (p. 150). Daí para diante, o entusiasmodo narrador é crescente e o estilo do relato timbra-se <strong>de</strong> hipérboles: “Erapreciso que se criassem vinte missas lubas 22 para chegarem a esta beleza<strong>de</strong> canto” (p. 151). No espaço ritualístico, há a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> obe<strong>de</strong>ceràs <strong>no</strong>rmas <strong>de</strong> conduta, às regras <strong>de</strong> organização e funcionamento do terreiro,pois “os eguns têm fun<strong>da</strong>mento” (id.). Já na entra<strong>da</strong>, a reverênciagestual frente a uma vela acesa 23 . E então, portas cerra<strong>da</strong>s. Agora, só serápermitido sair “ao raiar do dia, <strong>de</strong> festa acaba<strong>da</strong>”, avisam-<strong>no</strong>, e ele <strong>no</strong>sdiz: “Entrei”.Uma senzala festandoO livro <strong>de</strong> Juana Elbein dos Santos, centrado na “<strong>de</strong>scrição e interpretaçãodos elementos e dos ritos associados à <strong>morte</strong>” (2008, p. 15), é um dosmais reconhecidos <strong>de</strong>ntre os estudos sobre o tema, principalmente poradotar rigorosamente uma perspectiva “<strong>de</strong>s<strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro, isto é, a partir <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong>cultural do grupo” (p. 20) 24 . Nele, se reafirma um <strong>da</strong>do oferecido pelo21No conto, referindo-se aos eguns, relata o narrador: “Além <strong>de</strong> baixarem <strong>no</strong> terreiro, ron<strong>da</strong>m a roça,fantasmando, tencionando atacar os vivos com suas armas pelas janelas do barracão. Perturbam, azoam.<strong>Os</strong> ojés não têm sossego, correm a afastá-los, distanciá-los. As varas batem o chão, que estalam”(p. 154).22Referência a regiões do sul do Congo, on<strong>de</strong> há al<strong>de</strong>ias nas quais mulheres praticam a agricultura.23Provavelmente se trata <strong>de</strong> algo equivalente ao “<strong>Os</strong>sum – um monte <strong>de</strong> terra on<strong>de</strong> estão finca<strong>da</strong>salgumas velas e uma quartinha d’água” e on<strong>de</strong> ficam <strong>de</strong>positados todos os pertences do egun. VerVaran<strong>da</strong> (1985, p. 65).24“Devido a que a religião Nagô constitui uma experiência iniciática, <strong>no</strong> <strong>de</strong>correr <strong>da</strong> qual os conhecimentossão apreendidos por meio <strong>de</strong> uma experiência vivi<strong>da</strong> <strong>no</strong> nível bipessoal e grupal, mediante um<strong>de</strong>senvolvimento paulati<strong>no</strong> pela transmissão e absorção <strong>de</strong> uma força e um conhecimento simbólico ecomplexo a todos os níveis <strong>da</strong> pessoa, e que representa a incorporação vivi<strong>da</strong> <strong>de</strong> todos os elementoscoletivos e individuais do sistema, parece que a perspectiva que convencionamos chamar <strong>de</strong>s<strong>de</strong> <strong>de</strong>ntroestudos <strong>de</strong> literatura brasileira contemporânea, n.40, jul./<strong>de</strong>z. 2012, p. 43-61 49


<strong>Os</strong> <strong>convivas</strong> <strong>da</strong> <strong>morte</strong> <strong>no</strong> <strong>banquete</strong> <strong>da</strong>s <strong>almas</strong>orais. O “senso prático” encontrava-se na natureza <strong>de</strong>stas que constituíam,para ele, o espírito <strong>da</strong> “ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira narrativa”, anterior ao surgimentodo gênero romance e ao predomínio <strong>da</strong> imprensa, que vive <strong>de</strong> produzirinformação somente sobre o que é próximo e imediato. E o ensaísta conclui,sem disfarçar certo tom <strong>no</strong>stálgico em seu melancólico diagnósticosobre os <strong>no</strong>vos tempos que então se anunciavam:“Quem viaja tem muito que contar”, diz o povo, e comisso imagina o narrador como alguém que vem <strong>de</strong> longe(Benjamin, 1994, p. 198).O saber que vem <strong>de</strong> longe encontra hoje me<strong>no</strong>s ouvintes quea informação sobre acontecimentos próximos. O saber, quevinha <strong>de</strong> longe – do longe espacial <strong>da</strong>s terras estranhas, oudo longe temporal contido na tradição –, dispunha <strong>de</strong> umaautori<strong>da</strong><strong>de</strong> que era váli<strong>da</strong> mesmo que não fosse controlávelpela experiência (Benjamin, 1994, p. 202-203).Parece advir <strong>da</strong>í também a espécie <strong>de</strong> introito na abertura do conto –até mesmo graficamente isolado do conjunto –, que reclama a per<strong>da</strong> doreconhecimento <strong>da</strong> condição <strong>de</strong> excepcionali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> locali<strong>da</strong><strong>de</strong> afasta<strong>da</strong>,ain<strong>da</strong> marca<strong>da</strong> por costumes e práticas tradicionais, mu<strong>da</strong>nça esta ocasiona<strong>da</strong>pelo avanço <strong>da</strong> força homogeneizadora do capital e do progresso,que ten<strong>de</strong> a tudo igualar, metamorfoseado em mercadoria. Lugar singularizadopelo rito e ofício auratizado <strong>da</strong> escrita se equivalem, portanto, comoameaçados espaços <strong>de</strong> resistência 26 . Transmitindo o que viu – e respeitandoos limites do que po<strong>de</strong> ser conhecido e relatado por um leigo 27 –, inclusiveutilizando muitas vezes os verbos <strong>no</strong> presente, o narrador reatualizao rito a ca<strong>da</strong> <strong>no</strong>vo leitor, revitaliza o visto a ca<strong>da</strong> leitura, perpetuando o26Eis outro importante trecho do conto, que <strong>de</strong>ixa claro o lugar <strong>de</strong> fala do narrador e sua respeitosaadmiração pelo que enuncia: “Estes atravessaram quatrocentos a<strong>no</strong>s <strong>de</strong> resistência e guar<strong>da</strong>ram osseus trazidos <strong>da</strong> África. Tiveram <strong>de</strong> manter os seus cantos e <strong>da</strong>nças, dissimula<strong>da</strong>, sorrateiramente,escondidos <strong>no</strong>s morros, encafuados <strong>no</strong>s matos, nas senzalas. Quilombados. Resistiram ao chicote, aosgrilhões, ao pelourinho, à estupi<strong>de</strong>z <strong>da</strong> escravidão. E estão aí, vivos. Vou lá eu, mestiço ou mulatoclaro e nascido livre, filho <strong>de</strong>ste com aquela, me meter na investigação <strong>da</strong> profundi<strong>da</strong><strong>de</strong> dos eguns?Quatrocentos a<strong>no</strong>s. E até posso espiá-los, <strong>de</strong>ntro do meu <strong>de</strong>sconhecimento <strong>da</strong> seita, e fui recebido comreverência” (p. 154).27“É ver<strong>da</strong><strong>de</strong> que o único candomblé <strong>de</strong> Egun existente na diáspora nagô do Brasil, o terreiro <strong>de</strong>Amoreira (nas colinas <strong>de</strong> Itaparica), é protegido por re<strong>de</strong>s superpostas <strong>de</strong> saber hermético. Essesconhecimentos são estratificados. Ca<strong>da</strong> saber particular <strong>de</strong> uma classe é protegido por uma linguagemsecreta que lhe é específica. Permanece impenetrável a quem não pertença ao estrato <strong>de</strong>tentor do saberque lhe é próprio (aliado, agregado, ou estranho). (...) Todo o saber social nagô é assim hierarquizado,protegido, ‘secretizado’” (Ziegler, 1977, p. 59).estudos <strong>de</strong> literatura brasileira contemporânea, n.40, jul./<strong>de</strong>z. 2012, p. 43-61 51


Gilberto Figueiredo Martinsculto que teimam em fazer <strong>de</strong>saparecer 28 e participando – ain<strong>da</strong> que <strong>de</strong>forma media<strong>da</strong> – <strong>da</strong> vivência cultural alteritária:Neste ponto, o homem nagô afirma a sua brilhante superiori<strong>da</strong><strong>de</strong>.Graças ao Egun sabe aquilo que antes <strong>de</strong>le foi vivido, sofrido, sonhado;conhece, <strong>no</strong> sentido mais marcante do termo, a vi<strong>da</strong> vivi<strong>da</strong>,as experiências sofri<strong>da</strong>s, os amores sonhados pelos seus pre<strong>de</strong>cessores.Desta montanha vital retira ensinamentos insubstituíveis.Mesmo em sua vi<strong>da</strong> precária <strong>de</strong> subproletário negro, o homemnagô se encontra apoiado por uma perspectiva ontológica, que esvaziaem gran<strong>de</strong> parte a sua angústia <strong>da</strong> <strong>morte</strong> e lhe restitui, emsóli<strong>da</strong>s estruturas, numa límpi<strong>da</strong> linguagem ritual, a certeza <strong>de</strong> suaprópria imortali<strong>da</strong><strong>de</strong> (Ziegler, 1977, p. 70). 29Na segun<strong>da</strong> meta<strong>de</strong> <strong>da</strong> narrativa, ingressamos, <strong>de</strong>finitivamente, na<strong>de</strong>scrição dinâmica <strong>da</strong> cerimônia, ocorri<strong>da</strong> <strong>no</strong> espaço ritualístico, a saber,a casa <strong>de</strong> culto dos Baba-égún em Itaparica, o Ilé-igbàlè. Aí os espíritos ancestraismasculi<strong>no</strong>s são invocados e po<strong>de</strong>m assumir sua forma corporal,com <strong>no</strong>me próprio, e “vestidos <strong>de</strong> maneira que os singulariza” (Santos,2008, p. 105-106):<strong>Os</strong> Egúngún, Baba Égún, ou simplesmente Baba, espíritos <strong>da</strong>quelesmortos do sexo masculi<strong>no</strong> especialmente preparados para ser invocados,aparecem <strong>de</strong> maneira característica, inteiramente recobertos<strong>de</strong> pa<strong>no</strong>s coloridos, que permitem aos espectadores perceber vagamenteformas humanas <strong>de</strong> diferentes alturas e corpo. Acreditaseque sob as tiras <strong>de</strong> pa<strong>no</strong> que cobrem essas formas encontra-seo Égun <strong>de</strong> um morto, um ancestre conhecido ou, se a forma nãoé reconhecível, qualquer aspecto associado à <strong>morte</strong>. Nesse últimocaso, o Egúngún representa ancestres coletivos que simbolizam con-28Como exemplo dos percalços por que passa uma religião ti<strong>da</strong> por subalterna para ter legitimado seuespaço social <strong>no</strong> conjunto <strong>de</strong> crenças <strong>de</strong> um povo, o livro <strong>de</strong> Braga (1995, p. 31-32) traz a íntegra <strong>de</strong>uma reportagem publica<strong>da</strong> <strong>no</strong> jornal A Tar<strong>de</strong>, do dia 21 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 1940, com o título “Vareja<strong>da</strong> aigreja negra e presos os bárbaros sacerdotes”, e o subtítulo “Amoreiras, em Itaparica, era um redutodo fetichismo”. No texto jornalístico, há referência à apreensão <strong>de</strong> “copioso material <strong>da</strong> liturgia fetichista”e <strong>de</strong> um “casal <strong>de</strong> pais-<strong>de</strong>-santo”, parentes <strong>de</strong> Antônio Daniel <strong>de</strong> Paula, mencionado <strong>no</strong>minalmente<strong>no</strong> conto <strong>de</strong> João Antônio. Segundo a reportagem, <strong>de</strong> teor eminentemente sensacionalista, essereligioso teria fugido durante a invasão ao terreiro e estaria, então, “sofrendo severa perseguição porparte <strong>de</strong> investigadores, que se acham <strong>no</strong> seu encalço”.29E, ain<strong>da</strong>, em outro momento do mesmo livro: “A função primordial do terreiro <strong>de</strong> Egun consiste,portanto, em reencarnar os mortos, colocar os vivos sob os benefícios regulares <strong>da</strong> experiência acumula<strong>da</strong>pelos antepassados e estabelecer uma comunicação socializa<strong>da</strong>, controla<strong>da</strong> e or<strong>de</strong>na<strong>da</strong> entre osque se encontram <strong>no</strong> momento entregues a sua aventura humana e os outros que já percorreram essaexistência” (Ziegler, 1977, p. 66).52 estudos <strong>de</strong> literatura brasileira contemporânea, n.40, jul./<strong>de</strong>z. 2012, p. 43-61


<strong>Os</strong> <strong>convivas</strong> <strong>da</strong> <strong>morte</strong> <strong>no</strong> <strong>banquete</strong> <strong>da</strong>s <strong>almas</strong>ceitos morais e são os guardiães <strong>de</strong> her<strong>da</strong>dos costumes e tradições(Santos, 2008, p. 120).No conto, o narrador <strong>de</strong>screverá mais <strong>de</strong>talha<strong>da</strong>mente a aparição <strong>de</strong>dois <strong>de</strong>sses espíritos, mas afirmará <strong>de</strong>pois, <strong>de</strong> forma sumária: “Há três ouquatro eguns <strong>de</strong> uma só vez, lá na frente. E, assim, <strong>no</strong>ite to<strong>da</strong>” (p. 154).No entanto, antes <strong>de</strong> admirar os do<strong>no</strong>s <strong>da</strong> festa, volta a <strong>de</strong>ter sua atençãonas mulheres presentes <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong> “senzala” 30 , agrupa<strong>da</strong>s <strong>de</strong> modo a permaneceremsepara<strong>da</strong>s dos homens: estes à direita, elas à esquer<strong>da</strong> 31 – “eque gente bonita! Meus olhos viajam primeiro para o lado <strong>da</strong>s mulheres,on<strong>de</strong> os tipos <strong>de</strong> beleza se multiplicam em algumas i<strong>da</strong><strong>de</strong>s. Senta<strong>da</strong>s <strong>no</strong>chão 32 , meigas, madonas, donas, meninas, sensuais e cantando” (p. 151).Ain<strong>da</strong> mais uma vez, profere – reiterando-a como que ritualisticamente,feito uma rítmica fórmula mágica que con<strong>de</strong>nsa a sabedoria recentementeapreendi<strong>da</strong> –, a frase que justifica a função dos ojés, que “protegem opovo, fazendo uma barreira com as varas brancas”: afinal, “Eguns nãogostam <strong>de</strong> gente viva” (p. 152). No culto <strong>de</strong> Itaparica, as mulheres não po<strong>de</strong>mser imortaliza<strong>da</strong>s sob a forma <strong>de</strong> egun, nem participam dos segredose mistérios <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s secretas <strong>da</strong> seita. Contudo, “participam ativamente<strong>da</strong>s cerimônias do culto, oferecem sacrifícios, e lhes é permitidoprincipalmente entoar cânticos característicos dos Egúngún por ocasiãodos festivais anuais” (Santos, 2008, p. 123) 33 . E assim, como se viu, elasaparecem <strong>no</strong> conto: “<strong>Os</strong> cantos vindos <strong>da</strong>s mulheres são lindos”; “o mulheriocomovente, os cantos são selvagens, doloridos ou efusivos como oquê, arrebentando <strong>de</strong> alegria. Muitas p<strong>almas</strong> são puxa<strong>da</strong>s pelas mulherese segui<strong>da</strong>s pelos homens <strong>no</strong> acompanhamento dos cantares” (p. 152). Aofinal <strong>da</strong> narrativa e <strong>da</strong> festa, quando ain<strong>da</strong> “as duas primeiras fileiras <strong>de</strong>mulheres não esfriaram entusiasmo” (p. 155) e algumas outras “vão servira comi<strong>da</strong>, com as primeiras luzes do sol”, restam tempo e disposição ao30O narrador insiste em <strong>de</strong>stacar a negritu<strong>de</strong> <strong>da</strong> pele que marca, como traço i<strong>de</strong>ntitário, o povo quefrequenta o culto, utilizando termos como “quilombo”, “senzala”, sendo ele próprio – “mestiço, mulatoclaro” – apenas uma “exceção”.31“Esta parte <strong>de</strong> uso público é que estabelece a separação por sexo – homens do lado direito <strong>de</strong> quementra e mulheres do lado esquerdo –, tal como em qualquer terreiro <strong>de</strong> candomblé jêje-nagô” (Braga,1995, p. 37).32“Todos cantam para Egun, mas são as mulheres que dão to<strong>da</strong> a vi<strong>da</strong> <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o primeiro canto <strong>de</strong>reverência aos Eguns. Elas são as mais vigia<strong>da</strong>s durante todo o ritual. O culto <strong>de</strong> Egun é uma seitaprivativa dos homens: às mulheres é apenas permitido que assistam <strong>no</strong> barracão, assim mesmo senta<strong>da</strong>ssobre o ikunlê (esteira), enquanto os homens – em outra ala – acham sempre um lugar <strong>no</strong>s bancos.Apesar disso, são as mulheres que também vão cantar <strong>no</strong> centro do barracão. Fazem uma fila, vesti<strong>da</strong>s<strong>de</strong> baianas, e batendo p<strong>almas</strong> ron<strong>da</strong>m os presentes que vão oferecer aos eguns” (Varan<strong>da</strong>, 1985, p.63-64).33Ver também Ziegler (1977, p. 46-47).estudos <strong>de</strong> literatura brasileira contemporânea, n.40, jul./<strong>de</strong>z. 2012, p. 43-61 53


Gilberto Figueiredo Martinsnarrador para reparar na “cadência do an<strong>da</strong>r” <strong>da</strong>s moças (e, por tabela, <strong>no</strong>passo inevitavelmente sestroso dos rapazes) e para <strong>de</strong>sejar, concupiscentee já reinstalado <strong>no</strong> tempo-espaço profa<strong>no</strong> <strong>da</strong> <strong>no</strong>rmali<strong>da</strong><strong>de</strong>: “Crescidinhos,<strong>de</strong> mulher. Lá <strong>no</strong> quilombo, já me lembro. O peito <strong>da</strong> menina <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong>blusa branca balangava dois seios soltos” (p. 156).Mas, <strong>de</strong>ixemos, por ora, os corpos e voltemos aos espíritos. Tal comoconfirmam os <strong>de</strong>poimentos <strong>de</strong> pesquisadores especializados nessa festa– a qual “na<strong>da</strong> tem a ver com orixás ou com o comum do candomblé. Éúnica” (p. 152) –, o espaço “apinhado, atopetado” <strong>no</strong> qual se encontrao personagem-narrador é a porção pública do terreiro, ocupa<strong>da</strong> por iniciadose fiéis, on<strong>de</strong> são realizados os rituais coletivos; em segui<strong>da</strong>, outraparte do gran<strong>de</strong> salão também é retrata<strong>da</strong>, um “espaço semiprivado transitadounicamente pelos iniciados <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as categorias sem distinção eon<strong>de</strong> às vezes um não iniciado po<strong>de</strong> ter acesso se está acompanhado <strong>de</strong>um sacerdote do culto” (Santos, 2008, p. 124); nele ficam o tro<strong>no</strong> e as ca<strong>de</strong>iras<strong>de</strong>stinados aos eguns mais elevados hierarquicamente e on<strong>de</strong> estesaparecem para “receber as oferen<strong>da</strong>s, <strong>da</strong>nçar, cantar, benzer, <strong>da</strong>r mensagens,enfim ‘visitar’ e festejar ao lado <strong>de</strong> seus <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes” (Santos, 2008,p. 124). Tendo sido presenteado com um lugar privilegiado, “<strong>no</strong> banco lá<strong>da</strong> frente, perto dos atabaques e antes dos ojés”, o visitante po<strong>de</strong> observarsem barreiras “a fileira <strong>de</strong> poltronas e tro<strong>no</strong>s variados numa mistura <strong>de</strong>sconcertante<strong>de</strong> tamanhos, enfeites, espelhos, cetins”, já sabendo, inclusive,que “os eguns escolherão ou não. São caprichosos” (p. 152). Finalmente,o espaço estritamente privado, <strong>de</strong>stinado apenas aos ojés, on<strong>de</strong> se encontramos assentamentos dos eguns, também é mencionado <strong>no</strong> texto ficcional:Dizem que <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma câmara, lá <strong>no</strong> escondido e pegado ao galpão,ficam, num quarto, as roupas dos eguns. Durante dias, antes<strong>da</strong> cerimônia, sacrifícios lhe são oferecidos, comi<strong>da</strong>s e um carneiro.Chega<strong>da</strong> a <strong>no</strong>ite <strong>de</strong> baixarem, os espíritos se materializam nas roupas(p. 153). 34O conto <strong>de</strong> João Antônio assemelha-se muito ao relato feito por JeanZiegler, em seu livro, publicado na França em meados <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1970e traduzido <strong>no</strong> Brasil em 1977. O caminho dificultoso até chegar ao terreiro,a <strong>de</strong>sconfiança inquiridora dos ojés frente ao estranho visitante, ocontato com importantes membros idosos <strong>de</strong> uma mesma família ou clã,o apoio dos guias, a segregação do espaço entre homens e mulheres, a34“Entre as construções, <strong>no</strong> limite do espaço ‘urba<strong>no</strong>’ e <strong>de</strong>bruçados sobre o ‘mato’, encontra-se o Ilê-Ibo-Aku, a casa on<strong>de</strong> são adorados os mortos e on<strong>de</strong> se encontram seus ‘assentos’ – lugares consagrados– local on<strong>de</strong> ninguém se po<strong>de</strong> aproximar, guar<strong>da</strong>do por sacerdotes preparados para estes mistériose separado do resto do ‘terreiro’ por uma cerca <strong>de</strong> arbustos rituais” (Santos, 2008, p. 34).54 estudos <strong>de</strong> literatura brasileira contemporânea, n.40, jul./<strong>de</strong>z. 2012, p. 43-61


<strong>Os</strong> <strong>convivas</strong> <strong>da</strong> <strong>morte</strong> <strong>no</strong> <strong>banquete</strong> <strong>da</strong>s <strong>almas</strong>presença e função dos “servos do bastão”, o encantamento emocionado<strong>de</strong> quem participa pela primeira vez <strong>de</strong> uma festa dos eguns, tudo apareceem ambos, <strong>no</strong> ensaio acadêmico e na narrativa <strong>de</strong> ficção:Entramos. Meus olhos, pouco habituados às luzes fugidias dos lampiões<strong>de</strong> petróleo, percebem um surpreen<strong>de</strong>nte espetáculo. A casaé dividi<strong>da</strong> em dois espaços distintos, um reservado aos mortos,o outro aos vivos. O dos vivos é dividido ao meio por uma cerca<strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira. De um lado, à direita, os homens, velhos e meni<strong>no</strong>sencontram-se sentados em bancos rústicos. À esquer<strong>da</strong>, <strong>de</strong>ita<strong>da</strong>sem esteiras, as mulheres. Somente o rosto, os braços e as pernasemergem dos lençóis brancos recém-lavados (Ziegler, 1977, p. 50).A semelhança é ain<strong>da</strong> maior <strong>no</strong> que diz respeito à <strong>de</strong>scrição dos egunsque, <strong>de</strong> repente, irrompem <strong>no</strong> salão. No livro do então professor <strong>de</strong> sociologiaem Genebra, lemos:Súbito, bem distante, uma voz, uma espécie <strong>de</strong> prolongado gritogutural, corta a <strong>no</strong>ite e se aproxima. É um som totalmente inuma<strong>no</strong>.Estremeço. A memória fônica não encontra nenhum ponto <strong>de</strong>referência. Nenhum som tem parecença com aquele. Para os africa<strong>no</strong>spresentes é a voz dos mortos. Ouço um ruído vindo <strong>da</strong> portados fundos (do lado su<strong>de</strong>ste). Um após outro surgem cinco Egun.Entram, silhuetas magnificamente vesti<strong>da</strong>s e com passo <strong>de</strong>slizante,rodopiam várias vezes sobre si mesmos, esboçam uma breve ron<strong>da</strong>e <strong>de</strong>ixam-se cair <strong>no</strong>s seus lugares, belas ca<strong>de</strong>iras <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira que seencontram alinha<strong>da</strong>s ao longo <strong>da</strong> pare<strong>de</strong>, <strong>no</strong>s fundos do terreiro, <strong>no</strong>espaço que lhes foi reservado.O aparecimento dos Egun exerce indiscutível fascínio em to<strong>da</strong> amultidão, mesmo naqueles que não se sentem totalmente submissosao seu po<strong>de</strong>r. (...) A entra<strong>da</strong> dos Egun e sua sessão em companhiados vivos é um espetáculo <strong>de</strong> quali<strong>da</strong><strong>de</strong>, revestido <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>soleni<strong>da</strong><strong>de</strong> (Ziegler, 1977, p. 51-52) 35 .O excerto é longo, mas nele a <strong>de</strong>scrição permite entrever na perspectivado observador a oscilação entre um ponto <strong>de</strong> vista pautado na avaliaçãorigorosa, <strong>de</strong> intencionali<strong>da</strong><strong>de</strong> científica, e a entrega total ao que sabe aespetáculo e rito, numa participação quase fusional, que obnubila a razão eexige a<strong>de</strong>são e entrega absolutas. A experiência paroxística põe em xeque,inclusive, a própria capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> linguagem <strong>de</strong> <strong>de</strong>finir e relatar o visto,35Guilherme D’ogun (2004, p. 29) confirma: “o Egungum, ao surgir <strong>no</strong> recinto, procura, simplesmente,causar impacto visual, utilizando-se <strong>da</strong> surpresa como arma ritualística”.estudos <strong>de</strong> literatura brasileira contemporânea, n.40, jul./<strong>de</strong>z. 2012, p. 43-61 55


Gilberto Figueiredo Martinsbeirando, por vezes, o silêncio a que obriga a indizibili<strong>da</strong><strong>de</strong> radical do queé intensamente vivido: “É impossível <strong>de</strong>screver a roupa com maiores <strong>de</strong>talhes”,dirá o estupefato pesquisador em outro trecho.Já <strong>no</strong> conto, acumulam-se expressões que <strong>de</strong>nunciam o esforço <strong>de</strong> <strong>de</strong>finiçãoe <strong>de</strong> registro <strong>de</strong> um escritor mais afeito a transcrições do efêmeroe do abstrato, como se sabe, um exímio perito em retratar aquilo quepermanece à margem <strong>da</strong>s representações dominantes 36 . Mesmo assim,avultam <strong>no</strong> texto o <strong>de</strong>sconcerto e a falta <strong>de</strong> ancoragem asseguradora doque é (re)conhecido. Ultrapassado o primeiro impacto do contato presencialcom a cerimônia e já distanciado em tempo e espaço outros, onarrador luta para resgatar, pela memória afetiva, a matéria <strong>da</strong> escrita,embora não possa impedir, várias vezes, que se rompa o limite do gêneroconto-reportagem <strong>de</strong> viés et<strong>no</strong>gráfico, sendo o <strong>de</strong>poimento turvado aquie ali pela flagrante comoção:Meu coração apertado entre a beleza <strong>da</strong>s vozes e o medo do chefeme rejeitar.(...) Coração louco, comovido, uns <strong>de</strong>z minutos sentado, sem saberon<strong>de</strong> pren<strong>da</strong> os olhos, on<strong>de</strong> vá a atenção. <strong>Os</strong> tro<strong>no</strong>s são lindos, osatabaques mexem com os pêlos do braço (p. 152).Dá-se o engraçado. Se me dá. Nenhuma necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> provar averaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>ssas informações que cantam e <strong>da</strong>nçam, como nãochego a sentir medo do egum, nem o ambiente me é estranho.Aturdido e maravilhado, sim e bem. Uma enxurra<strong>da</strong> <strong>de</strong> beleza, pureza,<strong>de</strong> cores, sons, <strong>de</strong> crença. (...) E, nestas belezas, até homem <strong>de</strong>pouca fé se comove (p. 154).O primeiro egun a aparecer na festa em Itaparica assemelha-se aosque são <strong>de</strong>scritos em outros textos, mais efetivamente referenciáveis: recobertospor tecidos cortados em tiras e franjas colori<strong>da</strong>s (o abala), corposhabilmente camuflados, com pés e mãos ocultados, continuamente emmovimento (Ziegler, 1977, p. 52):Lindo <strong>de</strong> colorido. Surge o primeiro egum, estalando pela porta,avançando com uma espa<strong>da</strong> e um punhal. Não se vêem as mãos.Mas há os braços, e ele tem forma humana, plenamente. (...) O egumse aquieta, toma o ritmo e começa a <strong>da</strong>nçar. Canta também, emioruba, sua voz empasta<strong>da</strong>, rouquenta, como vin<strong>da</strong> <strong>de</strong> um fundo36Ver Oliveira et al. (2008) e Boletim Proleitura (1997).56 estudos <strong>de</strong> literatura brasileira contemporânea, n.40, jul./<strong>de</strong>z. 2012, p. 43-61


<strong>Os</strong> <strong>convivas</strong> <strong>da</strong> <strong>morte</strong> <strong>no</strong> <strong>banquete</strong> <strong>da</strong>s <strong>almas</strong>misterioso qualquer. Mas que não viesse <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>le mesmo.Rouquenta, <strong>de</strong>vagar, mo<strong>no</strong>córdica. O povo conversa com ele emafrica<strong>no</strong> (p. 153) 37 .Segundo Juana E. dos Santos, ca<strong>da</strong> Égún-àgbà possui vestimentas esons característicos que o distinguem, incluindo um awon, “peça <strong>de</strong> re<strong>de</strong>com a aparência <strong>de</strong> um rosto, inserido numa espécie <strong>de</strong> macacão que aparecevagamente sob o abala” (este, por sua vez, o “conjunto <strong>de</strong> tiras multicores,que caem como uma cortina, presas numa parte sóli<strong>da</strong>, quadra<strong>da</strong>ou redon<strong>da</strong>, que forma o topo”). To<strong>da</strong>via, comparecem ao culto, ain<strong>da</strong>,representantes do grupo dos Apáàràká, os eguns que “não têm abala, masapenas um pa<strong>no</strong> muito colorido <strong>de</strong> forma quadra<strong>da</strong> ou retangular; semawon, são <strong>de</strong>sprovidos <strong>de</strong> rosto e voz. São mudos e não i<strong>de</strong>ntificados. (...)são espíritos <strong>no</strong>vos que, por várias razões, não pu<strong>de</strong>ram chegar ao estadoagbá e cujos ritos <strong>de</strong> formação não foram acabados” (Santos, 2008, p. 127).A consi<strong>de</strong>rar o que diz o narrador, um <strong>de</strong>sses espíritos também acaboupor comparecer à festa registra<strong>da</strong> <strong>no</strong> conto:Estala outro egum, surge num tropel, com estrondo pela portaa<strong>de</strong>ntro. Este não tem forma humana, que na<strong>da</strong>. Nem é tão colorido,nem sua roupa é o artesanato fulgurante do primeiro egum,com espelhos, vidrilhos, palmeiras, bananas, sóis, ocres, carmins,luas alaranja<strong>da</strong>s, cores fortes e quentes, africanas. Ele é quadrado,e<strong>no</strong>rme, se atiça amalucado, inquieto, como que revoltado 38 . Preto<strong>de</strong> um lado, vermelho <strong>de</strong> outro. Mas não tem frente nem costas. Éum quadrado. Um espírito ain<strong>da</strong> sem luz, vagando <strong>no</strong> espaço, sofrendo<strong>de</strong>pois <strong>da</strong> <strong>de</strong>sencarnação (p. 153-154) 39 .37Jean Ziegler chega a se referir ao som emitido pelos ancestrais como “voz aterrorizante <strong>de</strong> ventríloquoembriagado”. E completa: “O Egun respon<strong>de</strong>, or<strong>de</strong>na, aconselha e, na maioria <strong>da</strong>s vezes,admoesta. Sua voz provoca uma impressão aterrorizante, que não se dissipará por to<strong>da</strong> a <strong>no</strong>ite. Incompreensívelpara o comum dos fiéis, a língua fala<strong>da</strong> pelo Egun é hermética, constituí<strong>da</strong> <strong>de</strong> palavrasdo ioruba arcaico” (Ziegler, 1977, p. 52). Juana E. dos Santos complementa: “<strong>Os</strong> Égun falam <strong>de</strong> umamaneira muito particular: alguns com uma voz rouca e caver<strong>no</strong>sa. Outros falam muito baixo, mas comuma voz muito agu<strong>da</strong>. (...) os Égun falam com uma voz que não é humana. (...) A maneira <strong>de</strong> Égunfalar é chama<strong>da</strong> ségi, na Bahia, e sua palavra tem força <strong>de</strong> lei” (2008, p. 127-128).38Segundo Varan<strong>da</strong> (1985, p. 61), a inquietu<strong>de</strong> e o nervosismo <strong>de</strong>sses espíritos <strong>de</strong>ver-se-iam justamenteao fato <strong>de</strong> eles serem mudos.39“No candomblé <strong>de</strong> Babá Egum existe uma divisão hierárquica para o melhor entendimento <strong>da</strong>s suasliturgias. Não são todos os Eguns que po<strong>de</strong>m vir ao aiê trazer sua aju<strong>da</strong>. Isso é prerrogativa somentedos Babá-agbás, aqueles mais antigos, mais velhos, que são preparados liturgicamente e doutrinados,recebendo o direito <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r falar (ké), se expressar verbalmente. Existem também os aparacás, Egunsque não falam e que, por não constituírem individuali<strong>da</strong><strong>de</strong>, não têm <strong>no</strong>mes ou simbologias que osi<strong>de</strong>ntifiquem. <strong>Os</strong> aparacás são os ancestrais mais <strong>no</strong>vos e que não alcançaram o estágio <strong>de</strong> Babá Egum.A eles cabe geralmente a função <strong>de</strong> fiscalizar e administrar as partes exteriores dos Ilês <strong>de</strong> Egungun.Se necessitarem transmitir alguma mensagem a alguém, utilizam-se do auxílio dos Babás” (Kileuyestudos <strong>de</strong> literatura brasileira contemporânea, n.40, jul./<strong>de</strong>z. 2012, p. 43-61 57


Gilberto Figueiredo MartinsTudo o visitante observa e <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>screve, sempre com a “humil<strong>da</strong><strong>de</strong>”e a reverência <strong>de</strong> quem presencia a irrupção do sagrado <strong>no</strong> mundo ecom a admiração espanta<strong>da</strong> <strong>de</strong> quem reconhece a potência estética <strong>de</strong> umcerimonial religioso. E, principalmente, o narrador valoriza a autentici<strong>da</strong><strong>de</strong>e a espontanei<strong>da</strong><strong>de</strong> dos que têm raízes e as preservam, em evi<strong>de</strong>nte<strong>de</strong>monstração <strong>de</strong> espírito comunitário. Naquele espaço especial, o contatocom os ancestrais gesta alternativos modos <strong>de</strong> subjetivação e outras formas<strong>de</strong> sociabili<strong>da</strong><strong>de</strong>:É um chega ansiado, longamente esperado, e, <strong>no</strong> fundo, alegre entreo povo ketu e seus eguns, apesar dos temores. Mulheres e homens,filhos <strong>de</strong> fé, olham reconduzidos para os eguns que baixam.Senzala inteira canta para eles, com harmonia, com uma amiza<strong>de</strong>,como num reencontro. Coisas <strong>da</strong> boa terra, que é to<strong>da</strong> pra fora,franca, <strong>de</strong>vocional.Aqui se gosta <strong>da</strong> beleza, do ritmo e do que é corporal, musical evem <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro (p. 155).Com a chega<strong>da</strong> do sol, a substituir “um restinho <strong>de</strong> lua que já não alumia”,tendo os eguns já regressado ao òrun, resta esperar uma <strong>no</strong>va chance<strong>de</strong> entrar em contato – festivo – com os representantes <strong>da</strong> <strong>morte</strong>, <strong>no</strong>ssaalteri<strong>da</strong><strong>de</strong> mais absoluta: “<strong>Os</strong> eguns vão embora. Só baixarão <strong>de</strong> <strong>no</strong>vo <strong>de</strong>pois<strong>de</strong> <strong>no</strong>vas homenagens, holocaustos 40 e pedidos. E, isso, se vierem, lápelo São João” (p. 155). Agora, necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s mais primárias po<strong>de</strong>m ser <strong>de</strong><strong>no</strong>vo satisfeitas. O <strong>banquete</strong> final oferece a todos “arroz, feijão-fradinhocom farinha, carne <strong>de</strong> galinha e <strong>de</strong> carneiro”, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> uma <strong>no</strong>ite inteira<strong>de</strong> entrega ao maravilhoso. I<strong>de</strong>ntificado – ain<strong>da</strong> que temporariamente –com o vivido, o visitante se imiscui <strong>no</strong> grupo, relaxando a vigilância sobrehábitos que ali não têm razão <strong>de</strong> ser: “Como com as mãos, lambuzando asunhas. Igual aos outros” (p. 155). Rastros e sinais do rito inva<strong>de</strong>m o mundo<strong>de</strong>sencantado; contudo, não vige mais o regime do sagrado: “O ojé secobre ain<strong>da</strong> <strong>de</strong> barrete na cabeça e não carrega mais sua vara branca feitocajado. Icham. Não é mais um ojé em dia <strong>de</strong> festa <strong>de</strong> eguns, fecha<strong>da</strong>, paraos raros, mironga<strong>da</strong> e bonita. Já não se fala em ioruba” (p. 156).e Oxaguiã, 2009, p. 349-350). Jorge Varan<strong>da</strong> também narra a aparição assustadora <strong>de</strong> um Aparacá(“estranha figura, mu<strong>da</strong> e <strong>de</strong> movimentos primários”) durante uma cerimônia: “(A) porta se abriu esurgiu flutuante <strong>no</strong> ar uma tela preta, silenciosa, ameaçando entrar <strong>no</strong> barracão. ‘Babá Aparacá, BabáAparacá’, gritaram todos apavorados, ao mesmo tempo em que os Ojés e os Omo Inxãs evitavam aentra<strong>da</strong> <strong>da</strong>quele Egun diferente” (1985, p. 72-73).40Em seus livros, Santos (2008) e Braga (1995) <strong>de</strong>stacam a centrali<strong>da</strong><strong>de</strong> do sacrifício <strong>no</strong>s ritos <strong>de</strong>culto aos eguns.58 estudos <strong>de</strong> literatura brasileira contemporânea, n.40, jul./<strong>de</strong>z. 2012, p. 43-61


<strong>Os</strong> <strong>convivas</strong> <strong>da</strong> <strong>morte</strong> <strong>no</strong> <strong>banquete</strong> <strong>da</strong>s <strong>almas</strong>Significativamente, a última frase do conto é dita não por quem narra,mas – com marcação <strong>de</strong> discurso direto – pelo homem que “faz carretosna sua kombi <strong>de</strong> aluguel” e o levará <strong>de</strong> volta à outra parte do país. A festaserá revisita<strong>da</strong> pelo narrador na hora <strong>da</strong> escrita. O convite para voltartambém ecoando ao leitor, chamado a ciclicamente retornar ao começo,<strong>no</strong> ritual sempre re<strong>no</strong>vável <strong>da</strong> releitura: “– Vai e volta, um dia. Que Oxaláse lhe acompanhe” (p. 156).A visa<strong>da</strong> et<strong>no</strong>gráfica do narrador <strong>de</strong> João Antônio ilustra, portanto, oalcance (e os limites) <strong>da</strong> literatura na representação ficcional <strong>de</strong> aspectosdo campo religioso brasileiro, ao combinar o distanciamento que pautao reconhecimento <strong>da</strong> diferença com a mobilização <strong>de</strong> potentes recursosexpressivos, os quais documentam e registram, mas também repõem, in<strong>de</strong>fini<strong>da</strong>mente,o encantamento <strong>da</strong> <strong>de</strong>scoberta.Assim seja.ReferênciasANTÔNIO, João (2001). “Eguns”. In: Abraçado ao meu rancor. São Paulo: CosacNaify.AUGRAS, Monique (2008). O duplo e a metamorfose: a i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> mítica emcomuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s nagô. 2. ed. Petrópolis: Vozes.BASTIDE, Roger (2001). O candomblé <strong>da</strong> Bahia: rito nagô. Trad. Maria IsauraPereira <strong>de</strong> Queiroz. São Paulo: Companhia <strong>da</strong>s Letras.BENJAMIN, Walter (1994). “O narrador: consi<strong>de</strong>rações sobre a obra <strong>de</strong>Nikolai Leskov”. In: Obras escolhi<strong>da</strong>s. v. 1. Magia e técnica, arte e política. Trad.Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense.BOLETIM PROLEITURA (1997), a<strong>no</strong> 4, n. 17 (<strong>de</strong>dicado a João Antônio). Assis:Eeditora <strong>da</strong> Unesp; Maringá: Editora <strong>da</strong> UEM; Londrina: Editora <strong>da</strong> UEL.BRAGA, Júlio (1995). Ancestrali<strong>da</strong><strong>de</strong> afro-brasileira: o culto <strong>de</strong> Babá Egun. 2. ed.Salvador: EDUFBA, Ianamá.CARNEIRO, Edison (s/d). Candomblés <strong>da</strong> Bahia. São Paulo: Ediouro.DEL PRIORE, Mary (2006). “Passagens, rituais e práticas funerárias entreancestrais africa<strong>no</strong>s: outra lógica sobre a finitu<strong>de</strong>”. In: ISAIA, Artur Cesar(org.). Orixás e espíritos: o <strong>de</strong>bate interdisciplinar na pesquisa contemporânea.Uberlândia: EDUFU.D’OGUN, Guilherme (2004). Iansã do balé: Senhora dos Eguns. 6. ed. Rio <strong>de</strong>Janeiro: Pallas.HOLLANDA, Lula Buarque <strong>de</strong> (2006). Pierre Verger: mensageiro entre doismundos (DVD). Brasil: Conspiração Filmes,Gegê Produções, GNT Globosat,Europa Filmes.KILEUY, Odé; OXAGUIÃ, Vera <strong>de</strong> (2009). O candomblé bem explicado: naçõesBantu, Ioruba e Fon. Org. Marcelo Barros. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Pallas.estudos <strong>de</strong> literatura brasileira contemporânea, n.40, jul./<strong>de</strong>z. 2012, p. 43-61 59


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<strong>Os</strong> <strong>convivas</strong> <strong>da</strong> <strong>morte</strong> <strong>no</strong> <strong>banquete</strong> <strong>da</strong>s <strong>almas</strong>resumo/abstract<strong>Os</strong> <strong>convivas</strong> <strong>da</strong> <strong>morte</strong> <strong>no</strong> <strong>banquete</strong> <strong>da</strong>s <strong>almas</strong>: presença <strong>de</strong> eguns em umconto <strong>de</strong> João AntônioGilberto Figueiredo MartinsA literatura escrita tem sido um espaço privilegiado para a representação e, consequentemente,para o registro e divulgação dos valores e costumes <strong>de</strong> variadosgrupos e segmentos sociais. No conto analisado neste ensaio – “Eguns” –, o escritorpaulista<strong>no</strong> João Antônio (1937-1996) traz um narrador que <strong>de</strong>screve com <strong>de</strong>talhesuma rara festa religiosa ocorri<strong>da</strong> na Bahia, <strong>de</strong>stina<strong>da</strong> ao culto dos ancestrais.Contemplativo e respeitoso, limita-se a contar o que a tradição religiosa permite.O contato com a alteri<strong>da</strong><strong>de</strong> ganha foros <strong>de</strong> rito iniciático e a experiência – em sentidoforte – é transferi<strong>da</strong> ao leitor.Palavras-chave: João Antônio, i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> afro-brasileira, conto brasileiro contemporâneo,religião e literatura.<strong>Os</strong> <strong>convivas</strong> <strong>da</strong> <strong>morte</strong> <strong>no</strong> <strong>banquete</strong> <strong>da</strong>s <strong>almas</strong>: presence of eguns in a JoãoAntônio’s short storyGilberto Figueiredo MartinsWritten literature has become a privileged space for performance and, consequently,for recording and fostering of values and practices of various groupsand social segments. In the short story analyzed in this essay – “Eguns” – JoãoAntônio (1937-1996), a writer from São Paulo, presents a narrator who <strong>de</strong>scribes in<strong>de</strong>tail an unusual religious celebration held in Bahia, meant for the cult of ancestors.Contemplative and respectful, it sticks to tell what is allowed by the religioustradition. Contact with alterity achieves the status of initiation rite and the experience– in a strong sense – is transferred to the rea<strong>de</strong>r.Keywords: João Antônio, Afro-Brazilian i<strong>de</strong>ntity, contemporary Brazilian shortstory,religion and literature.estudos <strong>de</strong> literatura brasileira contemporânea, n.40, jul./<strong>de</strong>z. 2012, p. 43-61 61

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