REPORTAGEM | mu<strong>da</strong>nças na TV pagaO ator Marcos Palmeira interpretao advogado Mandrake,<strong>da</strong> série homônima <strong>da</strong> HBOfoto: divulgaçãoo abre-alas doaudiovisual brasileiroNova lei faz com que os canais por assinatura passem a exibir programação nacional e independente no horário nobre,<strong>da</strong>ndo uma guina<strong>da</strong> nas produções de conteúdo para TV no BrasilTEXTO carol almei<strong>da</strong>“A ci<strong>da</strong>de não é aquilo que se vê do Pão de Açúcar.”A frase, de 2005 e que dá título ao episódio-pilotode Mandrake, primeira série brasileiracoproduzi<strong>da</strong> e exibi<strong>da</strong> pela HBO na América Latina,soa profética para o que então se anunciavano mercado audiovisual brasileiro. Tal comoa ci<strong>da</strong>de cujo pulsar já não mais cabia em umafoto de cartão-postal, estava mais do que claroque, naquele momento, a TV por assinatura noBrasil não mais podia se adequar ao olhar gringo,à mira<strong>da</strong> panorâmica de uma programação queera turista em seu próprio país.No virar do calendário de agosto para setembrodeste ano, entra em vigor a lei cujo número qualquerprofissional <strong>da</strong> área já memorizou há tempos:12.485. É com ela que o mercado de audiovisualpretende finalmente amanhecer (e brilharensolarado) para desabrochar, quem sabe, comouma indústria consoli<strong>da</strong><strong>da</strong>, conceitua<strong>da</strong> e internacional.Pode parecer discurso de hino ufanista,mas é fato que uma brisa de otimismo soprahoje por entre os corredores <strong>da</strong>s produtoras deconteúdo do país. E não é para menos. A tal lei,publica<strong>da</strong> no último mês de junho pela Ancine(Agência Nacional do Cinema), prevê uma sériede incentivos à produção nacional para TV paga.A começar por aquele que obrigará todos os canaisde TV por assinatura a exibir um mínimo de3 horas e 30 minutos de programação nacionalem horário nobre, sendo 50% desse tempo ocupadopor produção independente.Com isso, a Ancine não apenas abre a primeiraporta para a criação de uma indústria de audiovisualnacional, como fun<strong>da</strong>mentalmente descortinao Brasil para uma parte dos brasileirosque, zapeando hoje pelos canais de pacotes pagos,conseguem muito mais facilmente entenderas nuances <strong>da</strong>s ruas de Manhattan do quede Copacabana. “Não faz mais sentido simplesmentelegen<strong>da</strong>r programas de fora. Estamos falandode uma questão que é se comunicar coma população”, acredita Gustavo Moura, que, aolado <strong>da</strong> mulher, a apresentadora Marina Person,abriu em 2011 uma produtora de vídeos, a MiraFilmes, hoje com 12 projetos de programas sendodesenvolvidos para canais de televisão. “Aideia é que este trabalho de pensar em novosprogramas não pare nunca. Digamos que desses12 projetos consigamos emplacar 3 ou 4. Jáestá legal”, diz Moura.Nas palavras de Marina Person, tudo se explicamais ou menos assim: “É necessário perguntar seo Brasil quer ser fornecedor de minério e laranjaou se queremos ganhar um Oscar”. Sua provocaçãosintetiza todo o debate. Visto hoje internacionalmentecomo um país emergente e à beira desediar uma Copa do Mundo e as próximas Olimpía<strong>da</strong>s,o Brasil ain<strong>da</strong> carimba sua identi<strong>da</strong>de láfora com ecos <strong>da</strong> maneira Zé Carioca de ser. Aexemplo do que acontece há déca<strong>da</strong>s nos EstadosUnidos, onde há mecanismos de estímulo à produçãodo audiovisual, nosso cartão de visita podemu<strong>da</strong>r bastante quando começarmos não apenas
25foto: divulgaçãofoto: Humberto PimentelJece Valadão (no centro à frente),um dos protagonistas <strong>da</strong> sérieFilhos do CarnavalJoana Mariani e Matias Mariani(no centro à frente) posam com aequipe <strong>da</strong> Primo Filmesa nos ver no espelho, como estrategicamente exportaressa imagem para além <strong>da</strong>s fronteiras.“A questão é: estamos falando de uma conta quetem de fechar. O negócio precisa ser bom tantopara as produtoras quanto para os canais. Quandovocê fala nesses canais grandes, eles precisam deum produto brasileiro que consiga circular tambémpor outros países <strong>da</strong> América Latina. E aí oque você faz? Cria um enredo latino-americano. Eexistem milhares de assuntos que envolvem to<strong>da</strong>a América Latina”, explica Joana Mariani, sócia <strong>da</strong>Primo Filmes com o primo Matias Mariani.A produtora, aliás, já deu início às filmagens deum de seus projetos mais au<strong>da</strong>ciosos. Em parceriacom o Canal Futura, a ficção Família Imperial éuma série infantojuvenil, dirigi<strong>da</strong> por Cao Hamburger,que coloca em paralelo dois casais de irmãos<strong>da</strong> mesma família que vivem em temposdistintos: dois deles moram no Rio de Janeiro de2012 e os outros dois estão na ci<strong>da</strong>de em 1812, poucodepois <strong>da</strong> vin<strong>da</strong> <strong>da</strong> corte portuguesa ao Brasil.Graças a um feitiço, esses dois pares de irmãostrocam de tempo, <strong>da</strong>ndo abertura para que o nossopresente conheça nosso passado e vice-versa.Não deixa de ser uma parábola para uma possíveljorna<strong>da</strong> de autoconhecimento com o impulsoque a Lei 12.485 <strong>da</strong>rá ao audiovisual nacional.Porque, se até hoje as produtoras independentes(com o perdão do trocadilho) dependiam doscanais sob o guar<strong>da</strong>-chuva Globosat (GNT, Multishow,Canal Brasil, Canal Futura, entre outros)para fazer vingar suas ideias, <strong>da</strong>qui para a frenteas possibili<strong>da</strong>des se agigantam com to<strong>da</strong>s as outrascombinações do controle remoto.“Acho que esse é o momento de novas cabeças,ideias e, principalmente, de mostrar a cara brasileiranesses canais”, afirma Tiago Mello, que atépouco tempo era diretor executivo de uma <strong>da</strong>smaiores produtoras do país, a Mixer, e decidiuinvestir sua experiência de mais de dez anos naárea em sua própria produtora, que começa comestrutura de pós-produção. “Estamos em umamaratona para fechar projetos para canais. Omercado de produtoras nasceu no Brasil pensandoe mirando sempre o cinema, e agora temosde pensar em produtos que gerem audiência eestejam focados naquilo que os canais precisam.”Provado está que, no momento em que se encontra,a produção audiovisual independente, aquelafeita fora <strong>da</strong>s emissoras abertas do país, consegue,sim, criar conteúdo de quali<strong>da</strong>de internacional,capaz de desfazer nossa necrosa<strong>da</strong>, introjeta<strong>da</strong> eexporta<strong>da</strong> imagem de samba-futebol-e-carnaval.Além <strong>da</strong>s séries já coproduzi<strong>da</strong>s pela HBO − comoMandrake, Filhos do Carnaval e Alice −, temosuma carta de ofertas originais e de diversos formatose representações, como os bem-sucedidosSuperBonita, programa de varie<strong>da</strong>des do GNT, eAdorável Psicose, série de ficção do Multishow.E, se há quem diga que nosso grande gargalo criativo,na TV ou no cinema, ain<strong>da</strong> está na elaboraçãode bons roteiros, há também quem acredite que oproblema maior seja justamente essa falta de exercíciode um mercado, até então, desprotegido pelogoverno. “Você só aprende a pintar pintando e ajogar futebol jogando. Se falta mão de obra qualifica<strong>da</strong>no Brasil, essa é a nossa oportuni<strong>da</strong>de paraexperimentar novos caminhos. A questão agoraé aprender a trabalhar, em orçamento e prazo, eentender o público. O que falta é botar esse povopara trabalhar e aí, uma hora, os acertos vão falarmais alto que os erros”, pontua Gustavo Moura.Otimistas ou realistas, os produtores são consensuaisem um ponto: com a Lei 12.485, a Ancinequer aju<strong>da</strong>r a criar uma indústria que, sem mecanismosde proteção do governo, não iria muitolonge. Essas regulamentações já deram certo empaíses próximos, como a Argentina, e, claro, mantêmo maior mercado de audiovisual do mundo,o dos Estados Unidos. E, se a produção audiovisualnacional nasceu pensando na tela grande docinema, agora ela pode <strong>da</strong>r seu maior passo commonitores bem menores.CONTINUUM24